domingo, 15 de dezembro de 2013

Aluisio de Azevedo (Do Vendeiro ao Poeta)

I

Meu Deus! como o Rio de Janeiro ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro literário.

Nas grandes capitais do velho mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito, pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores, os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a indústria e entre o público que o consome.

Esta última camada social constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas escrupulosamente.

A França, depois que se democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e até com repugnância.

Em França, hoje essa classe só serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.

É que a França vê no comerciante o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a ganância e para a especulação.

E o negociante, com efeito, ao mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor industrial.

Estes quase sempre acabam pobres, e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não trabalha.

A sociedade dá-lhe o direito de viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos, amigos - negócios à parte".

Efetivamente, entre os negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma dúzia de certos lenços especiais de cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.

Como não entendo de fazendas e não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem sério.

- Não podias cair melhor! disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de melhor, vais ver!

- Não preciso ver, porque, já disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é quanto basta.

Ele embrulhou os lenços, paguei e saí.

Daí a alguns passos encontro outro negociante meu amigo.

Paramos a conversar um instante e contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda recebida.

Ele pediu para ver os lenços, observou-os um instante e segredou-me:

- Foste enganado... Isto não é cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços, não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.

E agora digam-me com franqueza: Fui ou não fui roubado?

E se com efeito fui; se o dono do primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem, desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...

Esses ao menos são mais sinceros e arriscam a dormir na cadeia.

Os negociantes, em geral, são como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem gato por lebre.

Concordo que assim vivam; concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões, enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos; concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado de honra.

Dois proveitos não cabem no mesmo saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não gozam das regalias que esta goza!

Pois bem: para se calcular com justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.

Aqui, a primeira camada é feita pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.

Rompe a marcha na ordem social, em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.

E quando precisamos alugar ~a casa, diz-nos o proprietário:

- Não alugo sem carta de fiança de vendeiro ou negociante matriculado.

Não! Definitivamente o Brasil poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes compete.

Antes disso, não passará esta terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm procurar fortuna rápida.

(O Combate, 6 de março de 1892.)

II

 Começo a convencer-me de que esta seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na costa d'África.

Dantes surgia ainda um livro de vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de regalo ao apetite de letras pátrias.

E no entanto, o que dantes inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente, enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.

O amor, o grande manancial onde os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.

Eva continua, como Jesus Cristo, a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da República.

Segundo as minhas observações, o azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.

Por que pois acabaram-se os poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há versos?

Como diabo não há versos e poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento da fome, da fome e da miséria?

Os senhores sabem quanto vale a fome para os poetas!...

Não sei que mais desejam, os exigentes!

Boa lua, mágoas de primeira ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia; mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!

Pois mesmo assim, com todas essas vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem um verso!

Os romancistas e os contistas e novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!

E os romancistas - moita!

Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho, uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.

Os Melos, por exemplo! Como aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot, de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses e descompostura às folhas da oposição?

Oh! definitivamente, não vejo razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!

Se os Srs. literatos não aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.

E é pena, porque o momento histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso, para gozo e regalo dos futuros brasileiros.

Um Floriano não se bispa duas vezes no mesmo século!

Vamos, coragem, meus senhores! mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.

Vá o país à garra, mas salvem-se as letras, com um milhão de raios!

(O Combate, 10 de março de 1892.)

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N. 8 – 14 de dezembro de 1886

E disse o Diabo: — “Fala,
Que queres ser nesta vida?
Antonino ou Caracala?
Capucho ou jardins de Armida?

“Escolhe, e verás, Malvólio,
Tudo o que quiseres; pede
Um sólio, e terás um sólio,
Pede um culto, e és Mafamede”.

E eu, respondendo-lhe, disse
Que nem tronos nem altares;
Que, na minha mandriice,
Tinha sonhos singulares.

Ou antes, um sonho apenas,
Um só desejo, um só, único,
Mais velho que a velha Atenas,
Mais velho que um vintém púnico.

Não era ter a coroa
Do Egito nem da Bulgária,
Nem ver as moças de Goa,
Nem ter os beijos da Icária,

Nem dormir o dia inteiro
Em tapetes persianos,
Sentindo o vento fagueiro
De numerosos abanos.

Digo abanos meneados
Por muitas damas formosas,
Feitos de fios delgados
De palma, e plumas, e rosas.

Nem comer em pratos de ouro
Figos secos da Turquia,
Acompanhados do louro
Néctar que há na Andaluzia.

Nem possuir as estrelas
Que são tão minhas amigas,
Para um dia convertê-las
Em meias-dobras antigas.

Pois tudo isso, e o mais que pode
Entrar no mesmo cortejo
Duvido que se acomode
Ao meu íntimo desejo.

Sabes tu o que eu quisera?
Quisera ser cartomante,
Dizer que espere ao que espera,
E dizer que ame ao amante.

Saber de cousas perdidas,
Saber de cousas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Saber de cousas futuras,
De verdades não sabidas,
De verdades não maduras.

Se uma senhora é amada,
Ou se há lá na costa mouras;
Se a costureira — casada —
Chega a depor as tesouras.

Quem é certo moço que anda
De chapéu branco e luneta,
E algumas vezes lhe manda
Lembranças por uma preta.

Se a mulher de um diplomata
Vive enredando as pessoas...
Se há de esperar certa data...
Se as filhas hão de ser boas...

Onde pára uma pulseira,
Um recibo, um cachorrinho...
Se a neta da lavadeira
Bifou algum colarinho...

Se há de morrer de um inchaço
Que traz na perna direita...
Ou se a luxação de um braço
Pode deixá-la imperfeita...

Tudo isso, e o mais que não cabe
Em verso rápido e breve,
E que a cartomante sabe,
Sabe, conta, e não escreve.

É o meu desejo. E tenho
Que, se essa cousa me ensinas,
Serei, com o meu engenho,
O doutor destas meninas,

Que a nós outros coube em sorte
Política e loteria,
Cousas que têm, como a morte,
Mistério e melancolia.

Mas que hão de fazer as damas
Com a alma incendiada
Das mesmas secretas flamas
E ao mesmo abismo inclinada?

Procuram timidazinhas
Aquelas claras vivendas
E crescem as adivinhas,
Não dão para as encomendas.

Pois se tu, Diabo amigo,
Me pões capelo de mestre,
Juro-te que dás comigo
No paraíso terrestre.

Cá virão as Evas novas,
Inquietas, desordenadas,
Pedir-me, com ou sem provas,
As verdades mascaradas.

E olha que farei no ofício
Notáveis melhoramentos,
Tapetes, largo edifício,
E o preço — mil e quinhentos.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Malba Tahan (Resignação)

"Cordas do inferno me cingiram, laços de morte me surpreenderam. Na angústia, invoquei ao SENHOR e clamei ao meu Deus; desde o seu templo ouviu a minha voz e aos seus ouvidos chegou o meu clamor perante a sua face". David (Salmo 18:5-6).

 
Era por um dia de sábado, ao anoitecer. Havia já algumas horas que o doutor Meir se entretinha na escola pública explicando a Santa Lei a seus inúmeros discípulos. Deleitavam-no aqueles estudos e a religiosa atenção com que suas palavras eram ouvidas.

Sua casa, entretanto, durante aquelas fugidias horas, hospedara o luto e a desesperação. Dois de seus filhos haviam morrido quase de repente e de sua família só a desolada mãe permanecia para chorar aos pés dos dois cadáveres. Infeliz mulher! Petrificada pela dor, contemplava imóvel aqueles dois corpos amados buscando neles, em vão, alguns indícios de vida; e vinha-lhe à mente o pobre marido que dentro em pouco iria defrontar o tremendo espetáculo. O respeito à vontade divina e a caridade de esposa deram à mísera uma grande força de alma. As maternas mãos estenderam um lençol sobre aquele leito de morte onde os filhos amados repousavam. Cumprindo o piedoso mister, a triste mãe passou-se ao quarto vizinho à espera do marido.

A noite descera lentamente. Já estrelas sem conta luziluziam pelas alturas sem fim. Volveu a casa o doutor e apenas transposta a soleira indagou, da sua esposa, um tanto perturbado:

- E os filhos?

- Terão ido à escola - respondeu a mulher com voz trêmula e sumida, fitando o céu, evitando o olhar do marido.

- Parece-me que não os vi entre os alunos.

A mulher, sem lhe responder, apresentava-lhe o vinho e o círio para o Avdalá, com que implorar as bênçãos do céu para a nova semana.

Cumpriu o doutor o religioso ato e com crescente ânsia bradou:

- Mas, e os filhos, mulher?

- Saíram talvez para alguma incumbência familiar.

Isto dizendo punha diante do marido, há longo tempo em jejum, umas fatias de pão.

Provou o doutor um pedacinho e tendo dado graças a Deus, a quem devemos todos os bens terrenos, exclamou:

- Como tardam hoje os nossos filhos! É certo que não sabes mesmo nada, ó esposa minha? Porque me pareces tão triste?

- Eu, meu esposo, preciso muito de um conselho teu.

- Que é?

- Ontem um amigo nosso me procurou e deixou sob minha guarda algumas jóias. Vem ele agora reclamá-las. Ai de mim! Não contava que viesse tão cedo. Devo restituí-las?

- Ó minha esposa! Essa dúvida é pecaminosa!

- Mas já me afizera tanto àquelas jóias!

- Não te pertenciam.

- Mas eu queria-lhes tanto bem... Talvez tu também...

- Ó mulher! - exclamou atônito o marido que começava a pensar, com temor, nalguma coisa, estranha e terrível. - Que dúvidas! Que pensamentos! Sonegar um depósito, coisa sagrada!

- É isso mesmo - balbuciava chorosa a mulher. - Muito preciso de teu auxílio para fazer esta dolorosa restituição. Vem ver as jóias depositadas.

E as suas mãos geladas tomaram das mãos do atônito marido e conduziram-no a câmara nupcial e ergueram as franjas do lençol fúnebre.

- Aqui estão as jóias. Reclamou-as Deus!

Diante daquela visão o pobre pai prorrompeu em grandíssimo pranto, e exclamou golpeado pela dor:

- Ó filhos meus, filhos de minha alma, doçura da minha vida, luz dos meus olhos, ó meus filhos!

- Esposo meu. Não disseste há pouco que é forçoso restituir o depósito quando o reclama o seu dono legítimo?

Com os olhos marejados de lágrimas, o sábio fitou a esposa cheio de admiração e de inefável ternura.

- Ó meu Deus – suspirou, - posso eu balbuciar alguma queixa contra a Tua vontade? Deste-me, para escudo e consolo de minha vida uma esposa religiosa e santa!

E os dois infelizes prostraram-se a um só tempo e por entre lágrimas repetiram as santas palavras de Jó:

- "Deus deu, Deus tirou. Bendito seja o seu santo nome!".

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do Povo de Deus

sábado, 14 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 6)

O mundo esqueceu que existe
o ponto de exclamação...
De tão seco, amargo e triste,
perdeu de vez a emoção!
A. A. DE ASSIS – PR

Ser grande não é ser pleno;
grandeza a nada conduz.
O vaga-lume é pequeno,
mas tem sua própria luz!...
ADEMAR MACEDO – RN

Seria um éden, seria,
este mundo se, em verdade,
nele houvesse a trilogia:
paz, amor e honestidade.
ALOÍSIO BEZERRA – CE

Não fale... Não diga nada...
Aperte mais minha mão...
Faça a promessa quebrada
não precisar de perdão.
AMÁLIA MAX – PR

E de repente te vejo
tal qual meu sonho te vê:
Musa...Mulher...e Desejo...
e me deságuo em você!
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG – RJ

O orvalho, do céu liberto,
de uma flor se fez amante,
e em seu regaço entreaberto
pôs um límpido brilhante!
AMARYLLIS SCHLOENBACH – SP

Se Deus nos deu dois ouvidos
e um meio só de falar,
sejamos, pois, comedidos
mais no dizer que escutar.
AMILTON MONTEIRO – SP

Ao despertar-me, na aurora,
vejo no céu, todo dia,
o teu olhar, que namora
e a solidão que judia.
ARI SANTOS DE CAMPOS - SC
Lavrador, ao fim do dia,
após a lida no chão,
tua enxada rodopia
celebrando a produção!
ARLENE LIMA – PR

Se fazer bem é o que vale,
faça o bem sem ver a quem,
pois não há bem que se iguale
ao bem de fazer o bem!
ARLINDO TADEU HAGEN – MG

¡A mi niño ha de encantar!
sabernos humanizados,
sin poder alimentar
¡los odios encarnizados!
CARLOS IMAZ – FRANÇA

Os beijos são evidências
que a vida teima em mostrar.
São também as reticências
de um amor por despertar.
CARMEM PIO – RS

Da união se faz a força,
da força o grande dever:
pedir ao homem que torça
para ouvir mais do que ver.
CIDINHA FRIGERI – PR

Todo fiel Entendimiento
llega de Dios con amor,
él nos da discernimiento
para abolir el dolor.
CLAUDIO GARIBALDY MARTÍNEZ – REPÚBLICA DOMINICANA

Quanta tristeza me invade
nesta vida amargurada...
-Eu quero sentir saudade,
sem ter saudade de nada!
CLENIR NEVES RIBEIRO – RJ

Primavera o ano inteiro
você terá , onde houver
um amigo verdadeiro
para o que der e vier...
CLEVANE PESSOA – MG

No colo a filha do filho
pela avó é acalentada,
qual noite sem luz e brilho
embalando a madrugada.
CONCEIÇÃO ASSIS – MG

Yo llevo la Primavera,
dentro de mi corazón,
por tu amor que a él le diera,
¡Su única eterna ilusión!
CRISTINA OLIVEIRA – USA

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto...
DARLY O. BARROS – SP

Em vez do vício, a virtude
e... da revolta, a harmonia...
Quisera que a Juventude
se drogasse de poesia!
DELCY CANALLES – RS
Ah! mundo cão, mundo louco,
de guerras pelo poder...
só necessito de um pouco
de sossego pra viver.
DJALMA MOTA – RN
 

Quando a lembrança me invade
no porto da vida – e quanto! –
brilha o farol da saudade
sob a neblina do pranto!
DOMITILLA B. BELTRAME – SP

Chuvas mansas ou granizos
agradecemos em prece,
que é de lágrimas e risos
que consiste a nossa messe.
DOROTHY JANSSON MORETTI - SP

Os meus sonhos vão ao léu,
Pelas asas da ilusão...
-Plantando flores no céu...
-Colhendo estrelas no chão!
EDUARDO A. O. TOLEDO – MG

Quanto mais cresce a ambição
sem cautela, em mãos de ateus,
mais vejo o mundo sem pão
e a humanidade sem Deus.
ELEN DE NOVAIS - RJ

Se o teu amor foi miragem
no deserto da paixão,
que importa?... Me deu passagem
para o oásis da ilusão!...
ELISABETH SOUZA CRUZ – RJ

Sejamos leais amigos
com esta obra de Deus,
conservando sem castigos
os teus direitos e os meus.
FAHED DAHER – PR

Minha infância, doce herança
que recordo nesta idade,
é o retrato da esperança
na moldura da saudade!...
FERNANDO CÂNCIO – CE

Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI - RS

Paz, amor, fraternidade,
eis o lema entre as nações;
porém quanta falsidade
em só três afirmações
GASPARINI FILHO – SP

A minha vida é um romance,
pois sonhando sou feliz...
Eu deixo que o vento trance
os sonhos que eu sempre quis!
GISLAINE CANALES – RS

Se és veloz no pensamento,
no trânsito sê prudente.
Usa o cinto, fica atento...
Mostra que és inteligente!
GLEDIS TISSOT - SC

Quanta tristeza me invade
ao sentir chegar meu fim...
E, em meio a tanta saudade,
sinto saudade de mim!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO – RJ

Mimos de tanta beleza,
tais como os teus, jóia minha,
não possui uma princesa,
nem os sonha uma rainha!
HUMBERTO RODRIGUES NETO - SP

Primavera é a natureza
se revestindo de cores,
multiplicando a beleza
nos sonhos dos Trovadores!
JOAMIR MEDEIROS - RN

Ensino, sempre, ao meu filho
que a humildade é a luz do bem:
quem faz do orgulho o seu brilho...
não ilumina ninguém!
JOÃO FREIRE FILHO – RJ

O gesto de amor que eleva
a nossa alma, é luz potente
que ilumina a espessa treva
na noite dentro da gente!
JOÃO PAULO OUVERNEY – SP

Fiz de você a minha musa
Minha vida e coração
Meu pijama, minha blusa
A tábua de salvação.
JOSÉ FELDMAN – PR

Não há fortuna guardada,
que pague o gesto de quem
divide o seu quase nada
com outro que nada tem...
JOSÉ OUVERNEY - SP

Teu corpo, lânguida estrada,
percorro com meu desejo,
no asfalto da madrugada,
na trilha de cada beijo!
LISETE JOHNSON – RS

Entre amigos aprendendo
lucramos com alegria
e nessa troca eu entendo
o dom da Sabedoria!
LUIZA BENÍCIO – CE

Meu coração atingido
por tremores de amargura
sobrevive reduzido
a ruínas... de ternura...
MARISA VIEIRA OLIVAES - RS

Tudo muda... O tempo avança...
Vai-se a vida...O globo roda,
mas com lastros na esperança,
sonhar nunca sai de moda.
MIGUEL RUSSOWSKY - SC

O pai é sempre o primeiro
se o filho está precisando.
Quem tem um pai verdadeiro,
tem sempre exemplos sobrando.
MILTON SOUZA - RS

A cuca me põe à prova,
quando me acende esta idéia:
se tudo cabe na trova,
para que serve a epopéia?
RAYMUNDO S. BRASIL – BA

Bela vitória há de ter
quem tenta a glória alcançar,
pois pior do que perder
é desistir sem lutar!...
RODOLPHO ABBUD - RJ

Num ritmo de eternidade
e encanto que se renova;
há comboios da saudade
nos quatro trilhos da trova.
ROZA DE OLIVEIRA – PR

Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós,
e as vitórias e derrotas
começam dentro de nós...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ - PR

Afinal, eis a questão:
achei um rico alimento...
Somos gêmeos na emoção:
teu amor é o meu sustento.
VÂNIA ENNES - PR

Folclore Brasileiro (Por quê é Triste o Jaburu)

mito indígena de animais encantados do Mato Grosso
–––––––––––––
Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. E o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites de cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda, naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso, abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios ou à beira das lagoas, uma ave cinzento-escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente, a cabeça voltada para a terra…

É o jaburu.. .

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho, cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão: Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo Cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da Lagoa Sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda.

Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de Cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tão pouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente…

Carin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da Lagoa Sagrada e ali ficava, horas a fio, a contemplar a majestade de Febo, que se ocultava, aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia.

E os dois divertiam a jogar migalhas de fruta adocicada ou miolo saboroso de quipiá para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas.. .

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas conglobaram-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha.

Carin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair, lentamente sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Carin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora coroando o novo tuxana, um grupo de aráes dançava ao som de música fúnebre…

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que saudavam, olhou em baixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pode conter-se. Atirou para um lado os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorossos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. No outro dia, já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraço impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de aráes abria duas tibis nas terras de Pendejã, o heróico tuxana, pai de Carin, que ali tombara um dia em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique: a outra, aberta ao lado da Lagoa Sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado…

O jaburu, tristonho e imóvel, tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a tibi dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava.

Vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Daí por diante, o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos pouco e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor… Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

Fonte:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.flickr.com

Nilto Maciel (O Último Troiano)

Quando mais uma pessoa caiu do edifício Troia, a história das tragédias lá ocorridas voltou à baila. Relembraram repórteres as outras mortes no prédio de vinte andares. Um ano atrás, uma jovem se havia espatifado na calçada, caída do 18.º andar. E ainda não se concluíra o inquérito. Inoperância da polícia – asseguravam jornalistas. Para o delegado, podia se tratar de suicídio, hipótese não aceita pela família da vítima. No ano anterior a esse, um homem voou do 19.º andar. Portava asas de papelão e uma máscara. Disseram ser réplica da face de Cristo. Nos dias anteriores à inauguração do edifício, ainda em obras, um operário escorregou de um andaime do último andar e deu início à série de tragédias acontecidas no lugar. No dia seguinte alguns jornais noticiaram o fato, sem alarde. E ficou nisso.

A morte da moça caída do 17.º andar do Troia deixou a polícia perplexa. Não se apresentaram parentes nem amigos da vítima. Na bolsa da morta não foram encontrados documentos pessoais. Ninguém no edifício conhecia a jovem. Quem seria ela? Qual o nome dela? De onde viera? O que fora fazer no prédio?

Para alguns jornalistas, estava-se diante de um mistério. Aliás, de mistérios. Por que tantas mortes no edifício? Por que a sucessão de tragédias se dava de ano em ano? Por que as mortes ocorreram de forma tão organizada, seguindo a ordem decrescente dos andares? Por este raciocínio, no próximo ano a vítima cairia do 16.º andar.

Segundo um pesquisador, erigiram o prédio sobre o terreno de um cemitério. E daí? Ora, as fundações...; ora, os mortos antigos...; ora, isso e aquilo. Os mais incrédulos riam do pesquisador maluco. Eu não sou palhaço, não. E maluco é a mãe. Deixavam de rir, mas não de refutar as opiniões do homem. Ora, quase todas as cidades foram construídas sobre cemitérios, sejam de índios, sejam de seus antepassados. Os arqueólogos descobriam a toda hora sítios no Egito, na China, no Piauí. E hajam ossadas de mil, dez mil, quarenta mil anos. Quarenta mil anos antes de Cristo parte de uma tribo teria sido enterrada na praia (antes terra firme) onde o edifício Troia se erigiu. E tudo se explicava.

Um delegado de polícia não queria conversa fiada. Precisava somente encontrar o assassino, o louco, o “frio e calculista matador”. Não podia dar maiores informações, mas garantia: mais dia, menos dia, apresentaria à imprensa o monstro. Seria um coveiro? Não, talvez um carvoeiro. Um engenheiro? Não, talvez um arteiro. Um jornalista? Talvez um contista.

Quando ninguém mais falava da moça sem nome, um fotógrafo se postou diante do Troia e apontou a máquina para o alto. Logo cercaram-no dezenas de curiosos. Aconteceu mais uma tragédia? Dizem que o prédio vai desabar. Morreu galego? Um homem vai pular do 16.º andar. O incêndio já começou? Os bombeiros foram chamados. Descobriram o nome da moça? Maria, mãe de Jesus, salvai-nos! O fotógrafo pediu silêncio; a multidão gritou, vaiou, assobiou. Olha para o céu que a estrela vai nascer. Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra. O fotógrafo acionou a máquina uma duas três vezes, o povo se calou, voltou a gritar, o corpo descia, aproximava-se do chão, mais fotografias, apupos, gritinhos de pavor e gáudio. Finalmente o homem voador pousou, feito uma nave, aos pés do fotógrafo e das demais pessoas. Silêncio de morte. Mais fotografias, arredem pé, aplausos, risos, palmas. O rapaz abriu os olhos, mexeu-se no chão da calçada e se foi erguendo, para espanto de todos. Estou vivo! Estava tudo escuro. Senti medo, muito medo. Preciso morrer depois. Quem é você? Os mais medrosos se retiraram, embasbacados. Milagre! O fotógrafo fotografava o homem e o povo, o chão limpo, sem uma gota de sangue. Será o assassino das moças e dos rapazes? Será o engenheiro irresponsável? Será o capeta? Um evangelista se aproximou da multidão, Bíblia aberta, e pregou o fim dos tempos. Chamaram o sobrevivente de impostor, enganador do povo, matador de moças e rapazes. O delegado se enfiou no meio da plebe e sorrateiramente se acercou do homem caído. Com visível ódio, juntou as mãos do último troiano e o algemou. Prendi o assassino! Cumpri minha palavra. E arrastou o preso para um carro cheio de luzes e sirenes.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 7 – 6 de dezembro de 1886.

A lei darwínica é certa
Inda em acontecimentos...
Não fiquem de boca aberta,
Vão vê-lo em poucos momentos.

Há nelas a mesma luta
Pela vida, e de tal arte
A crua lei se executa,
Que é a mesma em toda a parte.

Há seleção, persistência
Do mais capaz ou mais forte,
Que continua a existência,
E os outros baixam à morte.

Demonstro: — O famoso caso
Da escola e pancadaria,
Caso que pôs tudo raso,
Tudo, até a epidemia.

Tal foi ele que, tomando
Todo ou quase todo o espaço,
Foi de um trago devorando
Quanto lhe embargava o passo.

Escapou a Cantagalo,
Por trazer comprido bico,
Unha capaz de matá-lo,
Peito largo e sangue rico.

Mas, por um só que resiste,
Quantos passaram calados
Na penumbra vaga e triste
Dos seres mal conformados!

Cito dois — um pequenino,
Um telegrama celeste,
Oficial e argentino
Sobre os destroços da peste.

Dava os óbitos do dia,
De modo tão encoberto,
Que o duvidoso morria
E só escapava o certo.

— “Rua tal: um duvidoso,
Outro duvidoso ao lado...”
Pois, com ser tão engenhoso,
Foi lido e não foi guardado.

Segundo caso: o de Arantes,
Arantes, a testemunha,
Que os juízes implicantes
Cuidam de pegar à unha.

Porquanto há necessidade
De ouvir-lhe a palavra de ouro,
Para saber a verdade
Do que houve no Matadouro.

Seja pró ou seja contra
Essa testemunha rara,
Onde é, onde é que se encontra?
Onde vive? Onde é que pára?

Mandou-se às partes remotas
Da cidade, e logo ao centro;
Foram ao fundo das botas
E não o acharam lá dentro.

Em Minas? Vá precatório,
Rápido, para intimá-lo ...
Esforço inútil e inglório!
Voltou sem lograr achá-lo.

Não sendo encontrado em Minas
Nem pelas matas cerradas,
Foram às ilhas Malvinas,
Ao Congo e ao reino das Fadas.

E bradaram-lhe: — “Ó Arantes,
Chamado como quem sabe
O nome aos bois pleiteantes,
E o mais que no caso cabe;

“Arantes, onde respiras?
Onde estás? Onde te escondes?
Na trama das casimiras?
Chamo-te e não me respondes.

“Talvez no centro da Arábia,
Talvez na rua da Ajuda,
Talvez estudando a Fábia,
Talvez adorando a Buda.

“Donde quer que estejas, corre,
Acode ao nosso chamado:
Vem, que, se não corres, morre
O processo começado”.

E passou esse episódio
Sem fazer maior barulho
Do que as saúdes de um bródio
Na Gávea ou no Pedregulho.

Porque nos próprios eventos
A lei darwínica é certa.
Provei-o em poucos momentos,
Não fiquem de boca aberta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Francisco Sobreira (Operação Coroada de Êxito)

Empoleirado nesta cama, desde ontem – ou anteontem? Vão me levar daqui a pouco, finalmente. O anestesista anestesiado e penduleandando me examinou e confirmou a hora da operação. Foi embora com o bigode pretíssimo encostando no cigarro, deixando o quarto com hálito de bebida penetrando nas minhas narinas, sufocando-me a respiração. Tudo isso acontece pra me aporrinhar. Um cachorro ganiu a noite toda, o doente do quarto vizinho gritou tirando meu sono. A noite toda o chuveiro pingou, já manhã os pingos avolumaram-se, invadiram o quarto, treparam na cama e me cobriram. Despertei ouvindo meus berros de socorro, a enfermeira me estendendo um copo dágua. Ela permaneceu junto de mim conversando, até me acalmar. Não ouvi mais o cão e o doente gritarem, virara defunto doente. Pensei em seus gemidos, tive remorso por o haver amaldiçoado, mas logo me convenci de que a morte tinha sido um bem para ele. A moça pensava assim, fiquei em paz, não era responsável pela morte do infeliz.

                Alguém bate à porta, mando entrar. É a enfermeira que saiu há pouco, equilibrando entre o fura-bolo e o cata-piolho a seringa abarrotada do líquido que vai me narcotizar. Me veste para a operação, fura meu braço, dói muito, mas com pouco tempo não vou sofrer mais nada, a sádica me tranquiliza. Está cada vez mais perto a hora de me levarem. Ela se retira e me deseja uma feliz operação. Os olhos vão ficando pequeninos, o corpo amolecendo, os músculos relaxando. Uma música sofrida sussurra nos meus ouvidos, fugida de uma radiola longínqua, nas asas do vento. Seus versos devem falar de infelicidade, não consigo entendê-los, sinto apenas o gemido da melodia. Outros estão ouvindo ela? Não, não, tenho certeza de que somente eu. Entre milhões de padecentes fui o escolhido para escutar o seu lamento. Já vão chegando os homens, a música despede-se de mim. São quatro homens de preto, com eles está a enfermeira que me fez beber água açucarada, e me furou e me narcotizou, cabelos soltos pra cobrir o corpo nu. Me ajuda a passar pra cama de rodas, depois senta a meu lado. Dois homens seguram de cada extremidade da cama e a suspendem, como ignorando as rodas. Atravessamos a estreita sala de visitas, alcançamos o corredor comprido, há uma multidão estacionada nas portas dos quartos esperando minha passagem. Um velho aparece como cabeça de uma fila. O radinho pregado no ouvido toca a Marcha Nupcial. Um dos homens tem o rosto do meu tio, só que meu tio não era carrancudo. Na véspera de me internar me encontrei quinhentas vezes com o Buick que o matou. Parecia de propósito. Fiquei pensando besteiras, não posso ver o Buick preto e carcomido que não sinta medo de morrer como ele. Fiquei com ele até o último gemido, a última palavra ininteligível. (Quem escutará meu gemido final, além do médico indiferente?). O homem agora ri pra mim do jeito que conheço bem. Aterrissam a cama, como se tivessem descoberto as duas rodas. Deviam estar combinados, logologo o sósia do meu tio, usando o mesmo risozinho moleque, e o outro homem empurram a cama que arranca na maior velocidade. De medo, a enfermeira me atraca, sufocando-me no seu desespero, espetando-me o rosto com os mamilos. Os homens gargalham feito metralhadoras, divertem-se com o meu asfixiamento, a histeria da puta e a correria dos acompanhantes. Aos poucos a cama vai reduzindo a velocidade e a risalhada ganhando distância, já ouço o toque-toquear de sapatos bem perto. Um fio de voz sai de minha garganta pra tranquilizar a enfermeira, que pára de berrar e cansada deita comigo. Uns vultos detêm a cama, não os distingo bem, minha vista está escurecendo, só ouço o resfolegar das respirações. O velho do rádio deve ter ficado no meio do caminho, não ouço mais a música. Em lugar dele está um outro parecendo vestido de padre, as mãos segurando um livro aberto, faz um gesto que os padres fazem, deve ser mesmo um. Minha mão procura os seios da enfermeira e não os acha, a cama recomeça a caminhar, desaparecendo comigo por uma porta.

                Na sala reencontro a enfermeira fantasiada para a operação. Não me dá atenção, papeia com a colega com quem vai trabalhar. A colega está fatigada pelo plantão da noite anterior – a voz apressada contrasta com a voz vagarosa e cheia de pausas da minha conhecida. Fico impaciente com a demora do médico, pergunto à minha conhecida se ele está lembrado da operação. Está lembrado sim, além do mais, mora vizinho ao hospital, basta um grito e ele aparece. Não me convenço e, para desviar a preocupação, tento pensar em outras coisas. Mas eu penso no Buick estraçalhando meu tio ou penso nos gritos do meu vizinho se acabando pelo câncer e fico mais nervoso. E a enfermeira de voz veloz é também uma sádica, está falando do homem, assistiu à operação. O médico só teve o trabalho de abrir e fechar a barriga, o tumor já devastara tudo por dentro e o martirizado voltou ao quarto pra receber a morte.

                O sucesso da televisão assoviando entra na sala. O marchante veste preto. Belisca a da voz que tinha pressa, graceja com a da voz preguiçosa e abanca-se pra conversar.

                “Está fazendo o maior sucesso essa música” (a voz do marchante).

                “Diz que é um plágio duma música brasileira bem antiga” (a voz veloz).

                “Também, ouvi falar” (a voz lenta).

                “É, realmente, as duas se parecem, mas é apenas uma questão de coincidência (a voz sábia do marchante). O francês autor da música declarou numa entrevista que nunca ouviu a música brasileira. Eu acho que está falando a verdade. E podem notar que, toda vez que uma música estoura, aparece logo um descobridor de plágio”.

                “O filme tá passando no Rio, há vários meses”´(a voz vagarosa).

                “Minha prima assistiu disse que quase morre de chorar que é muito emocionante o filme não tem gente forte pra não chorar” (a voz cada vez mais veloz).

                “Não resistem as mulheres, que vocês são umas sentimentalonas. Pois eu estou doido pra ver esse filme pra mostrar que não me emociono com frescurinhas” (a voz do marchante, viril).

                “Pois minha prima diz que viu até homem chorando o filme é muito penoso conta a história de uma moça que morre de câncer com apenas vinte cinco anos” (a voz correndo).

                “Por falar em morte. A Helena morreu. Sabia?” (a voz se arrastando como tartaruga).

                “Que Helena?”

                “A Helena da novela ‘Hospital’”.

                “A Glauce Rocha. A maior atriz de teatro que vi em cena. Uma perda irreparável para o teatro, a televisão e o cinema brasileiro” (a voz do marchante, de crítico).

                “Interessante. Depois de morta, a pessoa aparecer na televisão, fazendo as mesmas coisas que as pessoas vivas”.

                “Tal fato sucede porque os capítulos das novelas são gravados com grande antecedência” (a voz do marchante, de entendido).

                A conversa martelava minha paciência, retardava a operação. O marchante ignorava minha presença, envolvido pelo assunto. Mais de uma vez me deu vontade de fugir, para protestar contra a indiferença dele. Será que a operação era desnecessária, como a do meu vizinho? Ia ser isso, o marchante não tinha que me ligar, conversava animado e suas palavras amaciavam os ouvidos das enfermeiras. Alguém começa a esmurrar a porta, enfermeira corre pra atender, escuto uma voz cochichada e logo depois a porta fechar com violência. E a voz da mulher desembestar:

                “A diretora manda comunicar que o anestesista faleceu há meia hora, se o senhor quer que mande atrás de outro”.

                “Hoje não. A operação fica adiada pra outro dia” (a voz do marchante, ditatorial).

                Entreabro os olhos, pesados de sono os meus olhos distinguem dentes enormes de algodão querendo saltar da boca, escuto uma voz esfalfada pela caminhada longa:

                “A operação do senhor foi coroada de êxito. O caixão, qual a cor que o senhor prefere?”

                Verde. E voltei a dormir.

(Francisco Sobreira, A Morte Trágica de Alain Delon)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://rabi-rabix.blogspot.com

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Francisco Sobreira

Francisco de Paula Sobreira Bezerra (Canindé, 1942) fez o antigo Ginasial e o Científico, incompleto, em Fortaleza. Concursado no Banco do Brasil, foi trabalhar no interior do Estado, depois fixou residência em Natal, Rio Grande do Norte. Publicou os livros de histórias curtas A Morte Trágica de Alain Delon (1972), A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997); os romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1999) e Infância do Coração (2002). Cinéfilo, foi presidente do Cineclube Tirol, de Natal, e do Clube de Cinema, de Fortaleza. Ganhador de vários prêmios literários, como o da Fundação José Augusto de Ficção, de 1879 e 1981. Também venceu o Prêmio Aurélio Pinheiro de Ficção, de 1985, e o Concurso Literário “5 Contistas Potiguares”; além do Concurso Literário Câmara Cascudo, de 1987, dentre outros. Participa de várias antologias.

A maioria das peças ficcionais de Sobreira se situa na estante das chamadas narrativas lineares, com um episódio central, poucos personagens, desfecho, narração, diálogos e alguma descrição. Em “Operação coroada de êxito”, do primeiro volume, o narrador, internado num hospital, monologa por alguns minutos, no presente, e vez ou outra “repete” falas, de pouco interesse, de seres fictícios insignificantes, ao seu redor. No entanto, a obra de título igual ao da coleção tem arquitetura mais moderna: uma notícia de jornal (a morte do cachorrinho Alain Delon), uma crônica, outras notícias menores relativas ao cão, duas entrevistas e, finalmente, a notícia do julgamento do assassino.

Seu segundo livro, A Noite Mágica, nada tem de revolucionário, de vanguardista, de inovador. Muito pelo contrário, é tecnicamente conservador. Francisco Sobreira não faz nenhuma alquimia de estilo, não cria nenhuma nova linguagem. No entanto, esta aparente acomodação não indica seja ele um simples contador de histórias.

Sendo conservador na forma, o livro de Sobreira segue a trilha da prosa de ficção de pós-1964. Perpassa por quase todas as composições um vento forte de paranoia, caudaloso na literatura urbana brasileira dos últimos anos do século XX. Histórias de medo, terror, alucinação. Medo de ser preso, de perder o emprego, de morrer de fome, medo disso e daquilo. As pessoas se sentem caçadas como bichos, ameaçadas, perseguidas. Os amigos e os parentes são delatores ou espiões a serviço do Poder. A própria sombra de cada ser humano é um dedo-duro em potencial. Esse horror kafkiano é notório em contos como “O Caçado”, “Enquanto o Diabo Esfrega o Olho”, “O Falso Álibi”, “A Promissória” e “O Caçador de Nostálgicos”. O narrador, sempre perseguido, sempre paranoico, torna-se perseguidor, delator, comparsa da polícia (representação do direito de perseguir), como em “A Voz do Vizinho”. O protagonista, sem nome explícito (“o homem que vinha denunciar”, “senhor” ou “denunciante”), comparece a uma delegacia para denunciar o seu vizinho, pelo crime de não falar, embora não seja mudo. Os outros seres fictícios são “o soldado” e “o Delegado”. Constituído basicamente de diálogos, a história tem um quê de non-sens ou, se quiserem, de parábola. E isto é visto em outras peças, como “A Fábrica”, a lembrar José J. Veiga, especialmente “A Usina Atrás do Morro”. Entretanto, a notícia da fábrica, da sua inauguração perde importância logo, para dar lugar à presença de “estranhos”, isto é, os construtores ou trabalhadores da fábrica, na cidade. E somente um personagem adquire significância: o palhaço Arrelia. Por que este e não o professor, o padeiro, o padre? Perfeito desvario, o que não deixa de ser valioso.

O absurdo é, assim, o ingrediente principal da iguaria narrada. Às vezes um absurdo que, de tão cotidiano, perde o sabor de coisa literária. Em “A Lâmina”, por exemplo. Porque ninguém é mais dono de nada. Outras vezes, a situação anormal se apresenta como se o ser fictício fosse apenas um deficiente mental, incapaz de perceber a vida e a morte ao seu redor, manejado por tentáculos tão torturantes quanto os fantasmas dos pesadelos. A realidade narrada aproxima-se, então, do sonho. Os protagonistas e os espectadores são meros joguetes nas malhas de seres todo-poderosos que inventam a vida ou o fato. Por isto, em alguns contos a presença do elemento onírico é perfeitamente perceptível ou mesmo preponderante. Os atos e as imagens se sucedem de forma incoerente, deixando o personagem simplesmente perplexo, espantado diante da estranha realidade de que tenta desesperadamente fugir. Assim, reduz à condição de ficção, de brincadeira de mau gosto, de encenação, quando muito de logro, a peça que lhe pregam. Não acredita ser possível tão absurda realidade. Por fim se convence e tenta fugir. Porém, já é tarde demais.

Essa cosmovisão, esse sentimento de inferioridade, de pequenez, essa crença nos super-homens, nos homens de milhões de dólares, nos seres biônicos, nos deuses e entes mitológicos do mundo moderno, possibilitaram a ascensão do nazi-fascismo e possibilitam, ainda, um mundo de tantos disparates.

“A Pedra” é belíssima composição e tem dimensão diferente das demais. No entanto, o mesmo clima de perseguição, de repressão, na pessoa de um pobre sertanejo virado pagador de promessas.

A linguagem nas narrativas de Sobreira é coloquial, popular, recheada de gírias e modismos (“meu chapa”, “abonado”), expressões de uso comum (“era a última coisa que faria naquele momento”; “ajuda de que tanto necessitava”; “tocava na sua ferida”; “pele de uma alvura imaculada”), observações desnecessárias (“Lá bem distante o mar glaucíssimo oferecia-se à admiração das pessoas”; “Mas os jornalistas parecem sofrer do mesmo tipo de amnésia que afeta os eleitores e os torcedores”; “É preciso que se diga que”). O narrador de “Aquele casal” (pode ser o próprio autor também) observa: “A rotina, seria dispensável dizê-lo, gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira...” Apesar disso, esta peça é magnífica até no desenlace. Sobreira inverteu os papéis dos personagens: o narrador, Ernani, é mero espectador, e é o único com nome explícito. Os protagonistas são “o homem” ou “o gigante” e “a mulher” ou “a mulherzinha”, ou, como se fossem um só, “o casal”. O narrador e os seres fictícios que gravitam ao seu redor falam, gritam, ouvem, veem, discutem, se relacionam. Exercem seus papéis no palco da rua. Por outro lado, os protagonistas simplesmente passam diante deles, em permanente discussão, como se o mundo além deles não existisse.

Em Sobreira a narração é minuciosa, o narrador se perde em detalhes. Há explicações em demasia: “A submissão aos maridos, naquela época, era como que uma cláusula no contrato de casamento, que as esposas tinham que cumprir, e ainda vigora na maioria das uniões existentes no Nordeste do Brasil”. A linguagem da crônica, do ensaio, da matéria jornalística não pode ser a do conto, salvo se o propósito do contista for o de imitar ou parodiar uma ou outra.

Personagens sem nenhuma influência na trama surgem de repente e logo desaparecem, como em “Lastênia”. Algumas obras parecem capítulos de romance, com vários episódios e personagens secundários que poderiam se apresentar sem nomes, como Jofre Colares, Celso Meireles, Benito, Policarpo, Hermógenes, Zeca Marcolino, de “Soldadinhos de chumbo”.

O Francisco Sobreira das histórias insólitas, das parábolas, dos contos fantásticos é, sem dúvida, muito superior ao narrador das pequenas cenas domésticas, das narrativas do cotidiano das pessoas. Entretanto, se depurasse a linguagem, se transgredisse as normas do conto, mesmo os episódios ordinários poderiam alcançar degraus mais altos da arte literária. E, ainda, se buscasse sobrepor ao objetivo um pouco de sugestivo, ou seja, se transitasse da movimentação episódica externa para a ação interior.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Djalma Filho (Poemas Avulsos)

A foto da gaveta

havia uma foto antiga na gaveta.

Por mais que jurasse de nada saber,
ela chorava o mais calado dos cantos tristes
- ao meu lado -
como se quisesse desmanchar, com seu chover,
o contorno da imagem à mostra, ali, cheia de espanto...

havia uma foto antiga na gaveta usada.

Eu, desconhecedor de todas as lembranças,
- novas ou antigas -
entre seus braços fui morrendo de passado
e nascendo a cada instante de silêncio
ouvi, sem surpresa, seu choro:
- Rasga?...

havia uma foto antiga na gaveta emperrada,
tão escondidinha que parecia até ter sido guardada...

havia uma foto na gaveta,
- só mesmo a foto -
pois a essência da alma que vivo
está ao meu lado fingindo-se de morta
silenciosa e quase triste
por ter me achado numa imagem do passado.

Havia uma foto na gaveta,
só uma foto:
- Coisa boba, não é?
Havia. Não há mais!

Reforma

tua forma feminina
ainda anda pela casa.

Com ela,
chegaste comigo
qual cabra-cega:
com os olhos fechados por minhas mãos
e com os dedos soltos no ar. Parecias despencar!...

seguiste-me,
corredor adentro,
atrás do caminho que meu cheiro te provocava,
qual um abre-alas.

Apresentei-te à flor de plástico no vaso sobre a mesa,
disseste-me que nela havia cheiro de campo;
enquanto, flutuando sobre o tapete barato da sala,
andavas mercando liberdade
como se em tua volta não existissem paredes, rodapés, portas nem vidraças,
enfim, nada mais que pudesse silenciar
o exercício pleno do amor.

Participei-te a cama
só para não topares os dedos,
- dos pés! -
pois, ainda vendada,
sentes o cheiro da minha espera sobre o lençol de linho. E deitas!...
não há mais nada para mostrar-te:
Toca-me?...

O noivado
ou Frejat e Vinicius não compareceram


conseguiste achar a quinquagésima nona gravação de “Luiza”.
Compraste-a de olhos fechados!

sabes, há muito,
da minha paixão pelo Jobim, o Brasileiro,
e da admiração por casamentos quase eternos,

consegui encontrar a oitava gravação de “Codinome Beija-Flor”.
Adquiri-a sem duas vezes pensar!

sei, há muito,
do teu espanto pelos Cazuzas, poesia-alta,
e do desejo suave por relacionamentos estáveis.

Saímos,
cada qual para seu canto,
em busca de uma aliança bem bonita
- com nosso jeito e cara -
para tocar nossos dedos no dia do noivado.

Encontramo-nos,
com os dedos ainda vazios,
na porta de saída de uma loja qualquer
pensando, inevitavelmente, um no gosto do outro.

E trocamo-nos presentes:
dei-te o Cazuza,
deste-me o Jobim;
estávamos noivados!

Amigos antigos, velhos namorados

invadi teu abraço
até sentir-me guardado
na paz que mora em ti.

Quando, feridos de passado,
éramos os mesmos ou
- até outros -
inseparáveis fingindo-nos de amigos
carimbados por tanta identidade;
e, quando o beijo engravidava,
preferíamos o silêncio,
que faz falta aos cinemas mesmo com pipocas nos fins-de-tarde,
até desapercebermos que a mão da ausência pesa muito
a cada toque desarrumando por um carinho não feito.

Invadi teu abraço o mais que pude,
só então percebi quão infantil-homem fui:
por mais que usasse calça desde pequeno,
por mais que abusasse da barba e do bigode,
por mais que fingisse a mais adulta das posturas.

Depois de invadir
tantos e quase todos teus abraços,
- enquanto pude -
senti, inteira, a arquitetura do teu corpo
nos querendo mais adultos
até acriançarmo-nos e adormecemo-nos!
Ninado pelo acalanto silencioso dos teus bons-dias,
senti-me morador nos teus abraços invadidos,
enquanto, tarde da noite, a paz regride
envelhecida pelo teu pôr-do-sol.

Silêncio de cinco pontas

há um vago silenciar...

entrei na noite dos teus braços,
adiei o dia
- o mais que pude -
de lábios mordidos
economizando claridade.

tênue, o silêncio é vago.

dois respiros em hiatos
na mansidão mais abstrata da mudez,
- quase mudez -
ditas pelas mãos contornando a alma em forma,
respiro teus ais suados de amor em resguardo
na penumbra de muito silêncio, o absoluto,
enquanto o grito do sol não arde
vago pela noite
em busca das cinco pontas
do brilho silencioso desta estrela.

Os últimos primeiros

Conheci Deus.
Estaria louco?

Era Deus, sim,
- há pouco -
com dedos paz-amor, insistindo sono às pálpebras,
pressionando-as para o sul, querendo-as fechar.

Com Ele falei o mais humanamente, enquanto pude;
em fração de segundos, tornei-me Dele íntimo:
desenvergonhamo-nos
- Um ao Outro -
nossos segredos.

Deixou-me escapar
- quase sem querer -
que jamais fora brasileiro,
mas tem uma vontade louca de passar férias na Bahia.
(os curiosos, espantados, descerram a janela na minha cara sã)

Há pouco, conheci Deus!
(os amigos lúcidos ainda dizem que pirei de vez)

Falou-me das Suas angústias,
enquanto era eu quem deveria estar deitado no divã
falando mais que a matraca da quarta-feira-de-cinzas.
Deixou-me escapar
- sem nenhum estereótipo -
que fora Um sem-lugar, Um sem-grana,
Um sem-paciência, Um sem-medo
e Um sem-espelho
- principalmente -
só para não constatar a desgraça das semelhanças.

Diverti-me muito com Deus,
- em poucos segundos -
até sentir-me, confesso, necessitado,
tornar-me Dele analista, vigia e confessor.

Nos breves poucos segundos,
- talvez os últimos -
saímos para falar a última bobagem dita entre goles de chope;
até que um amigo
- um daqueles preocupadíssimos com meu surto -
com a língua tropeçando no excesso de álcool e na falta dos óculos,
leu duas laudas e meia de páginas
provocando cochilos aos que não Nos viam;
enquanto Dele me despedia ao som de um blues-azul,
em noite de puro jazz.

Agora, menos cansado,
só, então, um pouco mais eterno,
descobri porquê Deus pressionou
minhas pálpebras:
Ele tentou fechá-las, sem querer.

Fonte:
Goulart Gomes (organ.). Antologia do Pórtico.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Cláudio de Cápua

O dia oito de março marca a data do nascimento de Cláudio de Cápua, que é natural de São Paulo, e que em 1960 mudou-se para Araraquara, tendo mais tarde ingressado na Escola Superior de Agrimensura. Paralelamente aos estudos, Cláudio começou a colaborar no jornal semanário “A Cidade” onde respondia pela edição da “Coluna do Estudante”. A partir deste momento, Cláudio não parou mais de escrever. Escrever tornou-se a forma de comunicação marcante em sua existência. Foi escrevendo que Cláudio de Cápua passou a escrever em jornais paulistanos como a antiga “A Gazeta”, “Diário da Noite”, “A Tribuna Italiana”, “Diário Popular”; colaborou também na revista “Destaque”, de Santos, além de outras assim como ainda em cerca de 30 jornais de bairro, do interior de São Paulo e até de outros estados.

Em sua volta a São Paulo, Cláudio de Cápua teve de abandonar em definitivo os estudos de Agrimensura, uma vez que não existia este curso em nível superior na Capital. Foi nesta época que começou a conviver com poetas como Guilherme de Almeida, Paulo Bomfim, Judas Isgorogota. Bernardo Pedroso, Orlando Brito, Oswaldo de Barros, Antônio Lafayette, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Laurindo de Brito, Ibrahim Nobre, só para mencionar os mais conhecidos. Para aperfeiçoar sua vocação natural e satisfazer seu desejo de ampliar os conhecimentos e adquirir um maior lastro profissional, Cláudio ingressou num curso de jornalismo. A partir daí, o jornalismo constituiu-se a base de todas as variadas atividades nas quais Cláudio de Cápua se envolveu e nas quais deixou sempre a marca de sua integridade e força de trabalho. Ainda no jornalismo, tornou-se professor de jornalismo eletrônico, na Universidade Mackenzie, na década de 80.

Cláudio de Cápua fez ainda algumas incursões pelas artes dramáticas, tendo participado como ator no filme “A Marcha” baseado no romance de Afonso Schmidt. Na televisão, foi ator coadjuvante na telenovela “Hospital” da extinta TV Tupi, isso em 1971, e na TV record trabalhou como assistente de produção de externas na telenovela “O Leopardo”.

Cláudio de Cápua atuou sempre de forma marcante na vida literária paulista, tendo participado ativamente de diversas eleições da União Brasileira de Escritores. Nesta entidade deixou marcas de sua defesa intransigente dos direitos do escritor, e tem lutado pela divulgação de suas obras e do pensamento do escritor paulista. Nenhum movimento sugnificativo que tivesse por objetivo a valorização e a divulgação dos escritores e suas obras deixou de contar com o apoio e iniciativa decisiva de Cláudio de Cápua. Da mesma forma teve ainda atuação destacada junto ao Sindicato dos Escritores do Estado De São Paulo e Centro de estudos Euclides da Cunha de São Paulo.

Como escritor, Cláudio de Cápua publicou livros que não foram brindados com edições fantásticas, mas que foram procurados avidamente pelos conhecedores das obras de qualidade, esgotando rapidamente suas edições. Estão nessa categoria, a começar por 1980, a biografia do escritor e político Plínio Salgado, livro que alcançou 4 edições e vendeu 11 mil exemplares mantendo-se durante 9 semanas entre os livros mais vendidos. (…) Em 1981, Cláudio de Cápua lançou o livro “Meu Caderno de Trovas”, editado por Mestre das Artes; anos depois publicou em co-autoria com sua esposa, Carolina Ramos, o livro “Paulo Setúbal – Uma Vida – Uma Obra”, que teve sua primeira edição esgotada em apenas 90 dias. Entre os projetos de Cláudio de Cápua está a publicação de um ensaio sobre a revolução de 1924, obra que demandou muita pesquisa e anos de trabalho.

Nas palavras de Carolina Ramos, “Ninguém passa pela Trova saindo impune. Rendido aos seus encantos, sempre deixa com ela um pedaço do coração, quando não o coração inteiro. No passado, grandes poetas como Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Bilac, Colombina e outros, passaram por ela, ainda que de raspão. Naquele tempo, a Trova não tinha a força nem o prestígio que hoje tem. Mas, convém lembrar que o santista Ribeiro Couto conquistou Prêmio Internacional com o livro “Jeux de l’apprenti animalier”, com suas fábulas consideradas superiores às de La Fontaine pela concisão com que eram apresentadas, ou seja, sob o formato de Trovas.”

Cláudio de Cápua não seria uma exceção.

Biógrafo, prosador e poeta, esbarrou na Trova e deixou-se cativar por ela. Em 1969, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, faz parte do quadro associativo da Seção de Santos.

Embora concorrente bissexto, Cláudio de Cápua conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas realizados em território nacional.

Seu trabalho em prol da Trova, sincero e despretensioso, merece o respeito daqueles que cultuam o gênero e fazem do Movimento Trovadoresco Nacional, uma das mais ativas e populares facções da literatura do nosso país.”

Fontes:
Trechos extraídos do Discurso de Saudação de Henrique Novak em recepção a Cláudio de Cápua. 31 de outubro de 1998 . Disponível em http://www.de-capua.com/biografia.html
Excerto da Introdução por Carolina Ramos ao livro “Canto que eu Canto”, de Cápua.

Nilton Manoel (São Paulo é Esperança Todos os Dias)

450 ANOS DE SÃO PAULO
-
O sonho da vida está na vida do sonho.
(Nilton Manoel, em Grilos na ponta do lápis)

Estação da Luz (SP)
1
No meu antigo toca discos,
ouço com muita atenção,
lindas canções de outrora:
- “São Paulo  Quatrocentão”,
da “Rapaziada do  Brás”…
O “Trem das Onze me traz”,
saudade e muita emoção.
2
O trem pelos velhos trilhos,
a história do povo escreve!
e a cidade em seu cenário
sempre arrojada se atreve
a plantar modernidade;
sofra a gente com a saudade,
o progresso não é breve.
3
São Paulo, não perde tempo,
inova, protege, acolhe,
quer sua gente contente
não há garoa que molhe,
o entusiasmo dessa sina;
quem vence sua rotina
dá vida aos sonhos que escolhe.
4
O povo quer movimento,
quer cenário, quer ação,
quer futuro e conforto
pela glória da nação…
Todo mundo quer ter paz,
como é bom sonhar no Brás,
há poesia nesse chão!
5
Sou paulista do interior
e passo a vida na estrada,
quem gosta de movimento
quer vida facilitada:
- ao modernismo dou fé,
por todo lado dá pé,
se a cidade é bem cuidada…
6
Quando estou na capital
tenho eficiente o transporte;
seguro, rápido, alegre,
em toda estação o bom porte
que, nem posso imaginar
sem metrô pra trabalhar…
Ser pontual é ser forte!
7
A inspiração não me falta
e até me lembro que, a gente,
há trinta e cinco anos tem,
esse serviço excelente
que movimenta a cidade
e dá ao povo a vontade,
de viver mais… felizmente!
8
São estações variadas
espalhadas pela cidade,
elevados, com plataformas
e na sua versatilidade,
põe no cenário, poesia,
integra-se com a ferrovia,
caminho de prosperidade.
9
Entre fixas e rolantes,
gente que faz movimento
no ganha pão habitual…
paro, olho e  meu pensamento
cola imagens que, resumo
para as falas de consumo…
Reportagens do momento!
10
Quem tem vida solidária
dá valor à cortesia:
por favor… muito obrigado…
dá licença… que poesia,
nas convenções sociais;
todos nós somos serviçais,
pelo pão de cada dia.
11
Jânio Quadros fez história
melhorou a imagem do Brás.
com novas edificações
e o povo cheio de paz,
se orgulha a todo o instante,
por ser sempre o Bandeirante,
de eras que não voltam mais…
12
Nossa vida que é cíclica,
deve a Anchieta, o jesuíta,
que nem sabia, Senhor!
a vida rica e catita
que sua instalação
da história da fundação,
seria plena e bonita.
13
Na sequência do transporte
o tempo não segue à toa
e o cenário num instante
de São Paulo da garoa
vai e volta com o metrô
rápido como um alô
de celular… Coisa boa!
14
Na integração, a saudade
que traz Maria Fumaça
é recompensa gostosa
é vida cheia de graça
é tempo cheio de glória
é povo que faz a história
nas estações em que passa.
15
Sertanejo, deslumbrado,
da capital do Interior,
Paro e olho como poeta
e fotografo com amor,
a cidade velha e a nova…
Faço haicai, cordel e trova,
São Paulo em tudo tem cor.
16
Fora e dentro da paisagem
do metrô, pelas estações,
a moda que inventa moda
tem espaço de emoções,
nos projetos culturais,
além de artes visuais
concertos e belas canções
17
Viajando, cheio de sonhos,
o usuário com vigor,
faz a vida mais contente,
tem no metrô, o esplendor,
do minuto brasileiro.
Sabe que tempo é dinheiro
e dinheiro é vida e valor.
18
Nestes bons trinta e cinco anos
dos quais dez Companhia
de Trens Metropolitanos.
São Paulo que é poesia.
tem seus pontos cardeais
movimentos cordiais,
na vida do dia a dia…
19
Entre túneis e superfícies.
neste cenário bacana,
paz pelas quatro estações
com as vitrines de Ikebana…
Esculturas e poesia…
O jornal de todo o dia…
É obra que de Deus emana.
20
Nesse progresso incomum
de terra quatrocentona
dos cafezais à indústria
ao comércio em maratona
o povo que se desdobra…
O imigrante tudo cobra
da cidade que emociona.
21
Cenário amigo é o Metrô!
solidário,  nada esconde…
Relembre através da história
a vida dura do bonde,
no meu relógio de ponto…
Todo mês quanto desconto!
A rapidez corresponde.
22
“São Paulo dos meus amores”
treze listras das bandeiras
progressista a todo o instante
de vida gentil de ordeira
cidade que se desdobra,
urbanidade que sobra
pela pátria brasileira.
23
Nesta vida, coisa boa,
meu trem das onze, é fulgor,
corre até a meia-noite;
é transporte de valor
é segurança de fé
é sorriso que dá pé
é verso de cantador…
24
Vai-e-volta, gente bonita,
da pátria do bom cidadão
em sua faina diária,
carteira assinada ou não
que, São Paulo que é formiga
também é cigarra e abriga
a saga da Educação.
25
Neste  mundo transversal
temas escolares tantos,
em seu cenário tem vida…
Num programa, com encantos
comunitários, o fascínio,
dá a todos tirocínio
da grandeza em todos cantos.
26
No “Ação Escolar” projeta
a influência, positiva,
do metrô pela cidade…
Movimento que motiva,
no urbanismo, novos lares,
é nos bancos escolares,
consagra-se em voz ativa.
27
Os conceitos cidadãos
são plenos em toda parte
faz da cultura de então
dar vivas a vida com arte
que o visual é fartura
que encanta, fascina e apura,
É saber que se reparte…
28
Como patrimônio público
paisagístico e de transporte
Metrô é riqueza da história,
trouxe à vida a melhor porte,
é tudo que o povo queria…
Foguete de todo o dia
do meu trabalho, o suporte.
29
São Paulo é renovação,
canteiro da arquitetura,
pátria de nossos estados
onde se sonha fartura…
Ambição a luz do dia
de noite sonho e poesia…
Vive-se bem… A vida é dura!
30
Por todas as linhas que passo,
por todos sonhos que planto
a trabalho ou a passeio
O metrô tem seu encanto
viajo em paz, sossegado,
feliz e cheio de agrado
e meus limites suplanto.
31
Recordo dos velhos tempos
do transporte e nossa história…
Museu Gaetano Ferolla
têm muito da trajetória…
O bondinho da novela
se à saudade dá trela?
Metrô é conforto e glória!
32
Salve os metroviários. Viva!
gente amiga e de paz!
quem trabalha por São Paulo,
é ordeiro em tudo que faz.
Viva minha gente de fé,
em Sampa tudo da pé!…
Viva o Metrô!  Viva o Brás!
-
Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 6 – 28 de novembro de 1886.

“Tu és Cólera, e sobre esta
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico”.

Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.

E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,

Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:

— “Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.

Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.

Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.

Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranqüilo.

E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;

Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;

Calcule as meias idéias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;

E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.

Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;

Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.

Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.

Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um beneficio imenso,
Que o torna bom e aprazível.

E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Barros Pinho (Mundica, Mulata do Cais)

Depois de mim corre um rio. Já ouvi falar nele. Chico do Gonçalo pôs os pés nessa aguazona da cor de barro vermelho. Dona Dolores vem lá dessas bandas, no cheiro da irmã casada com seu Zuza do Flor do Tempo. É visita de fins d'água. O povo da cidade às vezes se lembra dos viventes aqui do mato. A tudo ela inspeciona com o olho do ausente. O cercado, sabe Deus, como anda em pé. O engenho renova o ofício de muitos janeiros, soltando gemidos da moenda de madeira. O boi sabonete, impassível, de canga no pescoço. Na casa grande a menina cheirando a moça, de flor no cabelo, carrega no ventre o cio da terra viçosa. Dona Dolores chega a observar uma beleza de aurora nos olhinhos da cabocla, ligeiros como relâmpagos, a apanhar no canto a cabaça pra labuta da fonte.

Mundica, do Flor do Tempo, se não era esse o nome de batismo, foi apelido que lhe deram depois dos nove meses e três dias do encontro da negra Nazaré com o Polinário no baixão de dentro. O mundo da moleca nova era uma roleta. Ora circunscrito à história de sua origem, relembrada pela malícia ferina dos cambiteiros, ora, nos adjutórios domésticos, à dona Dica esposa do seu Zuza, bom de moagem e de gatilho na espera.

O rio era a obstinação da mulata. A esteira d'água do conversar fanhoso do Chico do Gonçalo não lhe saia do coco, desde o domingo da desbulha. Até dormindo, a voz lhe estava presente, como a descaroçar um sonho. O mercado da cidade, uma coisa de encher a vista. Uns homens de paletó com uns enlinhados no pescoço, donde vinha uma zoada com a história do pavão misterioso e o namoro de Toinho com Mariquinha.

Naquela manhã – o sol todo de fora.

Já de noite, na beira do rio, depois da rampa, estava o gaiola com farol na popa alumiando a força do motor. E o paredão chamado cais, com tanta mulher assim, entre nua e vestida que a gente do engenho, com esse vício de fêmea, até se espanta.

Dona Dolores se abanca e dá de espiar nos passos da Mundica, olhando fundo as intenções que formigam no juízo da donzela. É obsessão de bonina – o rio com seus mistérios e a cidade com seus segredos. Por cima da ribanceira de sonhar, os modos de dona Dolores, mulher de capital, metida num vestido de seda e brincos penduro-cai, pulseiras de miçanga, uma senhora de boas medidas. Até lembra a cigana dos tempos das vacas gordas, que passara pelo engenho com um brilho de sol das manhãs abertas. Não mais vivia a preta Nazaré, que, se viva fosse, talvez afastasse esse rio grandão, do Chico das ventas, da filha que tanto leite lhe mamara.

Na casa do sem-jeito tudo foi arranjado. Dona Dolores conseguiu a permissão da irmã exigente e intransigente com a virgindade da mulata. Grelo esperando prenda de casamento: véu e grinalda de flor de laranjeira, com homem dotado, de agrado de família.

O Dico da Tiquara, que, entre uma lua e um sol, deu de aparecer no Flor do Tempo descobrindo festa nos dentes de Mundica, fora esquecido. Antes, tinha sofrido do mal do desamparo o João, baralho da desobriga do Padre Delfino. O Olho d'água do tempo das eleições e dos festejos na cape-la de São Jorge, aquela que tem um espigado galo de barro na torre, sempre em posição de cantador continuo das madrugadas. Os banhos da vertente nuinha como a lua com essa cara de verão. A chapada do pequi. A matinha das guabirabas. A moagem e o atrevimento respeitoso dos cambiteiros. Tudo era carta que sobrava no baralho da Mundica, cheiinho na tampa de valete e de viagem pra Teresina.

A Josefa, com olho de ciência, a mexer nos bilros, no orgulho de dispensar o uso do pince-nez , cochichava: – esta bichinha só tando com o diabo nos couros. Formiga quando quer se perder cria asas.

Da parte dos cambiteiros, seu Zuza quase recebeu carta de muita respeitação pra esfriar o fogo da cabrocha. A viagem espalhou tristeza no verde das canas. Quem botaria pau doce do palheiro pra boca do engenho, sem maus pensamentos? As cheias ancas da Mundica eram uma ilusão de boa safra. Os mamões verdes da Maria Paula bem que ajudavam a remoer o cansaço do trabalho. Refrigério dos mais necessitados, na palma da mão sacrificando a espécie.

Numa madrugada rasa, o sol quase de fora pelas encostas, o carro-de-boi toma o caminho de Parnarama. Quando por lá chegaram, na hora em que o feijão é mais gostoso – dona Dolores e Mundica vão direitinho à balsa que as espera para o destino. Léguas d'água nos olhos da mulata, buscando beleza e saudade nas palmeiras de babaçu que ficam para trás. Viagem mansa como o passo do boi sabonete, parceiro de canga do boi mimoso.

Fez-se a última volta do rio pra alcançar Teresina. Todos apontaram a capital. Os mais curiosos distinguiram a torre da igreja de Nossa Senhora do Amparo. A mulata espichou o corpo como se acordasse dum sonho de encantamento. Passa em revista a paisagem. Não usa o indicador. Seu olhar demora espreguiçando-se na torre da igreja e não enxerga o galo da capelinha de São Jorge, que se habituara a ver. Espanta-se. Sente um mundão a engolir-lhe os pés.

Num fechar de olho, entra na cidade com o pé esquerdo. Vive na proteção de dona Dolores numa venda de secos e molhados. Faz vida de mulher adulta. Dispõe das noites nos bares como cheiro de creolina. Entra em muitos carnavais. À sombra de uma quarta-feira de cinzas, volta ao cais. O céu era grave. Nenhuma estrela de quebra. No outro dia, as manchetes dos jornais receberam a sorte da mulata.

Fonte:
José Maria de Barros Pinho.
A Viúva do Vestido Encarnado.