sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVII

4. RELEITURA E RE-ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO FEMININO

É sabido que as noções de intertextualidade, bem como outros conceitos que permeiam e orientam as discussões na esfera literária, são ainda relativamente  recentes, mas ainda muito em pauta na atualidade. A presença efetiva feminina em âmbito literário também é um dado recente, e os intertextos utilizados por algumas escritoras em suas obras remontam a textos calcados em estruturas arcaicas, machistas e patriarcais.

Desse modo, o primeiro momento deste capítulo fará uma breve abordagem intertextual, conforme alguns teóricos da área, o que introduzirá o subcapítulo seguinte, ao se observar o hipotexto, bem como os demais hipertextos que serão apresentados.

Posteriormente, uma breve exposição sobre paródia antecederá a análise de algumas releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont. Dentre os inúmeros contos destes escritores, foram selecionados Barba– Azul (1999), de Perrault, A Bela e a Fera, de Beaumont (2004) e as releituras de Carter, contidas na obra O quarto do Barba-Azul (1999), abrangendo os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do tigre e A garota da neve.

A análise da figura feminina, enquanto personagem, será realizada nos contos escolhidos. Além disso, o estudo se enriquecerá com os comentários das teóricas Marina Warner e Maria Tatar a respeito de contos de fadas. Ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão analisados, de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

Por último, serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras Margaret Drabble e Lucía Extrebarría, além de Carter que, através de suas releituras e re-escrituras de romances, engajaram-se na composição da personagem feminina. A teórica Marie-Louise von Franz será citada também, de acordo com seus estudos realizados nesta área.

4.1 Abordagem intertextual

Os contos variam infinitamente, mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade. CASCUDO, 2004, p. 22.                                                                 
Sabe-se que toda literatura passa por uma renovação na medida em que mudam os tempos e os autores. Por isso, os contos tradicionais da antiguidade têm sido alvo de releituras como modo de adaptação a uma realidade diferenciada. Assim, Angela Carter, por exemplo, “re-aproveitando” o já conhecido, insere-o em sua narrativa, dando a ela características originais, uma vez que nova tessitura e novas expectativas são acrescidas à mesma. Esse processo de constituição de um texto denomina-se intertextualidade.

Julia Kristeva, apoiando-se em Bakhtin, afirma que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (1974, p. 64). Além disso, Kristeva sustenta que “em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (1974, p. 64). Nessa duplicidade de leituras, há presença de vozes de vários autores de diferentes épocas, constituindo uma única obra.

Alba Olmi, citando Kristeva (2003), salienta que o texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto. A ciência paragramática deve, pois, levar em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve segundo leis específicas que estão por descobrir. Assim, no paragrama de um texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor. (KRISTEVA apud OLMI, 2003, p. 266)
                     
Olmi ainda afirma que, na própria etimologia da palavra texto, do latim textus, tem-se o que é “tecido entrelaçado”: “Nessa afirmativa está implícita a idéia de algo que resulta da relação de elementos pré-existentes ao texto, o que evidencia a presença intertextual” (OLMI, 2003, p. 265).

Por sua vez, Koch conceitua intertextualidade “como aquilo que diz respeito aos modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona” (KOCH, 2000, p. 46).

Marly Amarilha salienta que o processo intertextual é o de revitalizar o passado, revivendo novamente, sob novos ângulos, algo já conhecido: “[...] Ao retomar na história contemporânea os ecos do passado, o leitor tem a oportunidade de despertar todo um sistema vital que estava resguardado no texto” (AMARILHA, 1997, p. 89).

De certa forma, intertextualidade é a desconstrução, a renovação e a ampliação do já existente no campo literário. Provavelmente, não exista nada totalmente original, pois o que se constrói no presente aborda reminiscências advindas de outros tempos. Seria, então, acertado afirmar que os textos são “solidários” entre si, ou seja, comunicam-se, entrelaçando e ressaltando culturas, ideologias, valores, crenças e a história vivida pela humanidade em cada época.

No encontro do leitor com o texto é bem possível que se incite um impacto de desconstruções, releituras, construções, uma vez que quem está lendo traz consigo a sua bagagem cultural-ideológica-social que esbarra ou desliza ou se põe na tangente em meio ao que o autor evoca. Nesse momento surgem desconstruções que se dividem em dois mundos, o do leitor e o do autor. O processo posterior é a releitura, o buscar o que já se conhece e compará-lo com o que está sendo lido, vivenciado. Por sua vez, quando o leitor consegue encontrar os encaixes das partes desmontadas, desfiguradas, naturalmente assimila dois universos diferentes, o do autor e o do leitor, formando um único universo, que se faz enriquecido, novo, único, consistente, resultando em uma real construção, no entendimento, no conhecimento do que foi lido.

Quanto à inserção de um texto em outro, resultando na construção de uma nova obra literária, Olmi sustenta que o espaço literário é aberto para a apropriação, o surgimento e o “re-surgimento” de novas idéias:
                                                                                  
Essa apropriação, [...] foi e deverá ser um lugar, um espaço de proliferação, de disseminação capaz de produzir e re-produzir idéias, formas, conceitos e conteúdos e de ser aceita como fenômeno absolutamente natural, despreocupado de citação de fontes, influências e referências, de acordo com os postulados mais recentes dos estudos em Literatura Comparada. (OLMI, 1998, p. 7)                     
Entretanto, segundo Nitrini:
             
Intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas, mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios, pois estas dependem muito da erudição do leitor. (NITRINI, 1997, p.167)
                     
É possível afirmar, observando a citação de Nitrini, que os elementos intertextuais que compõem uma obra só podem ser observados pelo leitor que os conhece, uma vez que o implícito torna-se explícito. De outro modo, se esse jamais leu ou ouviu um determinado conto de fadas, ou um romance, não encontrará a presença intertextual presente nele.

Consoante a isso, Peônia Guedes menciona a citação de Margaret Drabble, uma vez que Drabble explicita como lida com o processo intertextual em suas obras, ou melhor, as adaptações que ela realiza de acordo com os diferentes leitores:

O problema de alguém com um background como o meu é que tenho uma sobrecarga de alusões literárias. E para me comunicar com pessoas que não têm essa carga, tenho de tentar esconder e esquecer coisas, ou assegurar-me de que estão vindo das profundezas e não da superfície do texto. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 40)
                     
Quando se trata de intertextualidade e quando as mulheres decidem enveredar pelo caminho dos intertextos em suas obras, Jean Franco pensa o seguinte:

Todo escritor - tanto homens como mulheres - enfrenta o problema da autoridade textual ou da voz poética já que, desde o momento em que inicia a sua produção, estabelece relações de afiliação ou de diferença para com os mestres do passado. Este confronto tem um interesse especial quando se trata de uma mulher escrevendo “contra” o poder asfixiante de uma voz patriarcal, assim, continua Franco, a intertextualidade é um terreno de luta onde a mulher se enfrenta com as exclusões e com a marginalização do passado. (FRANCO apud NAVARRO, 1997, p. 46)
                                                                                  
Na verdade, o que Jean Franco percebe é o confronto entre autores historicamente conhecidos ou cânones que conquistaram o público e, com isso, adquiriram voz de autoridade em relação aos escritores mais recentes. E se essa batalha pelo espaço literário acontece entre homens escritores, imagine-se onde se pode encontrar uma lacuna para a inserção da autoria feminina. Além de a mulher lutar pelo seu espaço contra valores ultrapassados, excludentes, impostos pelo sistema patriarcal, ainda tem que enfrentar uma batalha maior, ou seja, concorrer no campo literário com homens que já traçaram a literatura conforme seus moldes.

Nessa perspectiva, depreende-se que a literatura escreve a sua própria releitura, ou seja, o escritor produz a partir do embasamento literário que constitui a própria literatura e, assim, no recém-criado, o antigo renasce. Dessa forma, seria acertado afirmar que a intertextualidade desencadeia um processo triplo na mente de quem a percebe, ou seja, observando-se a obra primeira, a obra é reconstruída e o material é absorvido e reconstruído na mente do leitor.

O curioso nesse processo de apropriações, já referido por Olmi, é como um texto A pode se relacionar com um texto B, e o que entre ambos, de acordo com as relevantes diferenças, pode ser apresentado efetivamente    como evidência intertextual?

Quando se percebe a presença de hipertextos (é a inclusão e/ou modificação de um ou vários textos em outro, uma vez que o surgimento do novo texto pode ser a soma de vários outros textos e/ou sua alteração parcial ou total.), verificando-se o uso de referências, diálogos, na verdade, o que se busca é desvendar as semelhanças e/ou diferenças em relação ao hipotexto (É o texto-origem.).

Segundo Olmi observa, Genette “prefere o conceito de transtextualidade (*) –  ou transcendência textual do texto definida como tudo aquilo que coloca o texto, explícita ou implicitamente, em relação com outros textos” (OLMI, 2003, p. 267).
                                                                                  
Segundo Genette, intertextualidade “é uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] como a presença efetiva de um texto noutro” (GENETTE apud OLMI, 2003, p. 267). Essa “relação de co-presença entre textos”, é que será analisada a seguir nas re-escrituras de alguns contos de fadas.

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(*) Genette divide o processo em cinco categorias: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade, hipertextualidade e a arquitextualidade (cf. Olmi, 2003).
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continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Delicada)

Mulher na praia, de Silvério Reis
Era uma jovem de coração tão delicado que assustava. Não dava um passo além da luz que, como se estivesse num teatro, parecia iluminá-la. Sempre no centro de sua vida, Marina sabia bem o que dizer, quando dizer, como dizer, enfim, não perdia o foco, a força de sua voz, nem mesmo sendo tão delicada. Talvez, por isso mesmo, fosse tão forte. Nara Leão, segundo ouvi Maria Bethânia dizer numa entrevista, já ensinava: se estiver cantando num lugar com muito barulho, vá cantando mais baixo, pois, assim, você força a quem estiver falando alto a baixar o tom, o que nos leva a crer que silêncio demais também incomoda. Quantos decibéis, hein?

De coração tão delicado, delicadinho, Marina espraiava suas ondas azuladas como beijos frios na areia quente por onde passava. Um dia, um belo moço a trouxe à luz de sua história, e, juntos, formaram um casal. Totalmente o oposto de Marina, ele era bruto, não lhe dava tempo para dizer as coisas do jeito que ela gostava, como leves sussurros ao pé do ouvido numa noite de lua. Ensolarado, feroz, vociferava a qualquer gesto mais doce de sua amada, dizendo que não era fresco e que, se quisesse um maricas, que fosse procurar outro barco, em outra encosta, porque ele era macho, homem com h maiúsculo. Marina chorou. Não queria isso.

Terminado este namoro, sobrevieram outros, mas nada de encontrar um delicado coração que ao seu fizesse par. Bateria apenas solo um coração delicadinho como o dela? Não sei, mas, nos dias de hoje, mais se valoriza quem atropele o semelhante que quem ceda seu lugar ao outro. Gentileza é coisa rara, artigo de luxo, na loja de costumes. Acostumada a ser lívida, leve como a brisa de um verão que é quase outono, Marina estava um tanto desiludida. Seu coração, delicadinho, era amassado com frequência, e ela, sem defesa, se magoava e via seu coração, em pétalas, tão delicado, virar tapete. Olhando a si mesma, chorou, e o chão ficou inteiro em flor.

Hoje, numa praia de um litoral qualquer, Marina se rende ao som do mar e já não pensa muito em par ideal. Mantém acesa a delicada chama rubra que a mantém como a pessoa que ela foi e, se Deus quiser, sempre será. Magoa-se menos quando o amor naufraga nas ondas frívolas da ilusão, acreditando, ainda, no delicado azul que envolve o céu, que chove em nós quando amorosos, confiantes em que o delicado em nós não se perdeu. Ironia, sarcasmo, violência, tudo isso é parte do humano. Será que precisamos ser só isso? Estar só nisso? Marina acreditava que não. Fizera simpatia para Santo Antônio. Junho estava aí. Não, "não aprendeu dizer adeus".

Fonte:
O Autor

Contos Populares Portugueses (A Herança Paterna)

Era uma vez um pai que tinha dois filhos, dos quais o mais novo lhe disse:

- Meu pai, dê-me a minha parte, que eu quero ir correr terras a ver se junto fortuna.

Então o pai deu-lhe o que lhe pertencia da parte da mãe e ele partiu para terras longes.

Passaram-se alguns tempos e o rapaz, vendo que não juntava fortuna, antes ia gastando a sua parte, resolveu voltar à casa paterna. Chegado à sua terra natal, soube logo que seu pai havia falecido e seu irmão transformara a casa num palácio, onde vivia regaladamente. Então o rapaz foi ter com o irmão, contou-lhe a sua vida e ele respondeu:

- Eu nada te posso fazer, pois nosso pai nada me deixou e para ti ficou essa caixa velha, recomendando-me que a não abrisse.

Recebeu o rapaz a herança paterna e partiu para outras terras. No caminho desejou ver o que continha a caixa e abriu-a. Eis que lhe sai de dentro um negrinho muito pequenino que lhe diz:

- Mande, senhor!

- Mando que me apresentes um palácio com tudo quanto lhe é dado, carruagens e lacaios para me servirem.

Dito e feito - tudo apareceu como ele desejava. Vivia o rapaz muito feliz no seu palácio, que era muito mais belo que o do rei, quando um. Dia recebeu a notícia de que o seu irmão o ia visitar. Foi o irmão recebido ali com grandes festas e ele então perguntou-lhe como é que em tão pouco tempo tinha arranjado tanta coisa.

- Foi a herança que me deixou o nosso pai.

- Mas - retrucou o irmão - a tua herança foi uma caixa velha!

- Foi o que tu dizes, na verdade. Mas dentro dessa caixa é que estava o segredo.

Então o irmão tratou de lhe roubar a caixa e, sem que ele desse por isso, saiu do palácio. Chegado à sua terra, abriu a caixa e logo o pretinho disse:

- Mande, senhor!

- Mando que meu irmão fique sem o seu palácio e apareça metido numa prisão e que o meu palácio se transforme num mil vezes melhor do que era o dele.

Tudo assim se fez e ele disse mais ao pretinho:

- Ordeno que faças com que a filha do conde de tal case comigo e que eu fique com o título de conde.

Cumpriu-se tudo quanto ele desejava, e para não lhe roubarem a caixa trazia-a sempre consigo e dormia com ela debaixo da cabeça.

Ora o irmão que estava preso tinha um cão e um gato, e estes, logo que souberam que o seu dono estava na cadeia, trataram de lá ir ter com ele. Uma vez chegados, tomaram conhecimento de que o conde, irmão do seu dono, lhe tinha roubado a caixa e cuidaram ambos de ir ao palácio dele para a trazer. Para esse fim fizeram um batel de casca de abóbora, pois tinham de atravessar o mar.

Chegados ao palácio do conde, disseram-lhes logo que ele dormia com a caixa debaixo da cabeça. Então, o cão disse ao gato:

- Eu meto-me debaixo da cama e tu vais à cozinha molhar o rabo no vinagre e chegas com ele ao nariz do conde. Enquanto ele espirra, eu tiro a caixa e depois fugimos com ela!

Assim fizeram, e logo se acharam fora do palácio. Embarcaram no batel e foram navegando. Em determinada altura avistaram um navio de ratos, que logo içou bandeiras de guerra. Mas eles, que iam em paz, não fizeram mal aos ratos e contaram-lhes o motivo que ali os levava. Então os ratos disseram:

- Se formos precisos, ao vosso serviço estamos!

- Obrigados - responderam o cão e o gato.

Quando já estavam quase no termo da viagem, tiveram uma grande questão por causa de decidirem qual havia de levar a caixa ao dono. Neste dize-tu-direi-eu, deixaram cair a caixa ao mar. Então, o cão, aflito, exclamou:

– Valha-me aqui o rei dos peixes!

E logo apareceu um grande peixe, que lhe perguntou:

- Aqui estou; que me queres?

- Eu vinha em viagem mais o gato e trazíamos uma caixa que nos caiu ao mar. Só Vossa Majestade nos pode valer.

- Eu não sei disso, mas vou chamar os meus vassalos, pois talvez eles saibam.

Então vieram muitos peixes e uma lagosta, que trazia uma perna quebrada. Esta informou:

- Eu vi essa caixa. Por sinal, caiu-me em cima de uma perna e partiu-a.

O rei dos peixes ordenou-lhe que a fosse buscar e deu-a ao cão. Este e o gato, depois de mil agradecimentos partiram para a prisão do seu dono, resolvendo entrar ambos com a caixa às costas.

O dono ficou muito contente e abriu a caixa. Logo ordenou ao pretinho:

- Quero desfeita esta prisão. Quero um palácio em frente do do  meu irmão. Quero casar com a filha do rei.

Tudo assim aconteceu. Depois ele dirigiu-se ao irmão: - Podia fazer-te muito mal, mas não quero. Antes hei de repartir contigo a minha riqueza e seremos muito amigos de hoje em diante.

Esquecia-me de dizer que o cão e o gato tiveram coleiras de ouro fino e pedras preciosas. Morreram muito velhos.

Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVI

Por sua vez, a menina Lúcia, ou Narizinho arrebitado, como assim foi apelidada,    também adormeceu    e    sonhou    com    um    país    encantado    e, coincidentemente, foi levada desse país, ou seja, o Reino das Águas Claras, até o Sítio do Pica-pau Amarelo, embalada por fortes ventos.

Em 1920, Lobato escreve o conto infantil A história do peixinho que morreu afogado. Em 1921, o autor re-elabora e amplia esse mesmo conto, acrescendo nele uma série de aventuras vividas pela menina Lúcia no Sítio do Pica-pau Amarelo, só que desta vez publica-o sob o título de Narizinho arrebitado.

Narizinho vive no sítio de Dona Benta, sua avó e, de certa forma, este é um lugar que, de acordo com a imaginação da menina, torna-se encantado.

Lúcia, assim como as demais personagens já vistas, desempenha papéis que se distanciam da personagem até então conhecida, como Branca de neve, Cinderela ou Bela adormecida, pois a menina não espera passivamente os fatos acontecerem, como as demais que sofriam ações predestinadas por madrastas, fadas ou bruxas.

A menina Lúcia mostra-se possuidora de um espírito consciente, crítico e voltado para o social, pois questiona possíveis situações que não poderiam ser justas ou que poderiam causar transtornos não somente aos habitantes do sítio do Pica-pau Amarelo, mas também ao Reino das Águas Claras.

Enquanto menina e vivendo em um sítio, muitas ações, historicamente atribuídas somente a meninos, eram praticadas por ela, como subir em árvores, brincar com Pedrinho e direcionar as regras do jogo, bem como dançar, correr, andar livremente em ambientes externos e mostrar-se feliz ou infeliz se algo não a agradasse. Além disso, Lúcia possuía imaginação muito fértil, por isso não era levada muito a sério por Dona Benta e Tia Nastácia.

Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças”. Mas depois que a menina fez a boneca falar, Dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra: –  Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.
                                                                                   
- Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido...Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça [...] (LOBATO, 1990, p. 33-34)                     
Narizinho arrebitado, como princesa do Reino das Águas Claras, é a imagem de menina-princesa que prenuncia novos tempos para a mulher, enquanto personagem e membro social atuante. Ela é uma menina simples, cheia de viva e que de princesa só possui o título, pois não apresenta nada em sua personalidade e postura que possa lembrar a alta nobreza.

Percebe-se, ao analisar-se Narizinho arrebitado, que não somente Lúcia assume a função de protagonista nas histórias, mas também Emília, que é a personagem que cresce, evoluindo gradativamente na narrativa do autor:

[...] Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela, não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira. (LOBATO, 1990, p. 6)                     
Emília, de mera boneca de pano, pertencente à menina Lúcia, passa a ser falante, com o auxílio do Doutor Caramujo, tornando-se audaz, independente e questionadora, representando os anseios a respeito da vida, do homem e do mundo, vivenciados inclusive pelo próprio autor.

Luciana Sandroni, conferindo à boneca Emília sua importância nas obras de Lobato, escreve o livro Minhas memórias de Lobato, sendo que a boneca narra a sua história junto ao autor, porém de seu ponto de vista feminino.

-Tive uma idéia mirabolante! Vou escrever minhas memórias.
Dona Benta não entendeu nada. Será que Emília estava sofrendo de amnésia e tinha esquecido que já tinha escrito as Memórias de Emília?
- Mas, Emília, você já escreveu suas memórias. Não me diga que já tem um segundo tomo!
- Não, é que eu tive a idéia de escrever as memórias do Monteiro Lobato, e é claro que metade do livro vai ser sobre mim, já que eu sou a personagem mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar “Eu e Lobato”. (SANDRONI, 1997, p. 5)

É importante salientar que, até mesmo quanto à constituição familiar, os três escritores citados inovaram, uma vez que as três meninas (Alice, Dorothy e Lúcia) pertencentes às narrativas em questão, não moravam com o pai e a mãe, o que era incomum em uma família tradicional naquela época.

No caso de Alice, menciona-se a presença de sua irmã. Dorothy, menina órfã, morava no Kansas com os tios.    Narizinho estava no sítio com a avó, tia Nastácia, e o primo Pedrinho.

Parece que a situação de as meninas estarem longe dos pais (vivos ou mortos) possibilita que a imaginação das mesmas flua naturalmente de forma que alcance terras distantes, uma vez que se eles estivessem presentes poderiam impor-lhes regras e restrições.

Além de Lúcia ser uma personagem bastante expressiva, Lobato concedeu também à boneca, características semelhantes. Com certeza, as personagens femininas criadas por Carrol, Baum e Lobato “roubaram” as cenas nas histórias, ou seja, brilharam por se mostrarem simples e autênticas. Na verdade, esses autores também se mostraram autênticos, abordando cenários e temáticas em suas histórias que se distanciavam do já conhecido, como “carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna”, como mencionou Câmara Cascudo.

Além disso, eles não colocaram um personagem masculino em posição de destaque em suas narrativas, o que indicaria conformidade com os valores patriarcais e com as estruturas sociais vigentes, mas escolheram personagens femininas para se tornarem sujeitos da ação, desfazendo-se do estereótipo de meros objetos-femininos propagados em um passado ainda recente, sendo que nesse a participação feminina ainda era considerada insignificante. Com certeza, a escassez ou a ausência de figuras masculinas foi um detalhe importante utilizado pelos escritores para que não se evidenciassem os convencionalismos desse sistema.

Os referidos escritores contribuíram para que a voz feminina fosse resgatada. Esse novo enfoque dado à figura feminina ou, quem sabe, esta nova prática discursiva em que as meninas pensam, falam e agem, contribuem para “desmascarar a ‘universalidade’ do discurso crítico tradicional da cultura dominante” (NAVARRO, 1997, p.49, grifo da autora), uma vez que a autoria das ações correspondiam, em geral, única e exclusivamente, a personagens masculinos.

Essas personagens representam os anseios femininos, visto que as mulheres queriam simplesmente viver de forma natural, e não acuadas em um submundo servil, somente moldando-se a convencionalismos e a padrões sociais que não coincidiam    com    seus    gostos,    desejos,    atitudes.    Assim    sendo,    desejavam compartilhar um mundo em igualdade de papéis, independendo do sexo a que pertencessem.

Como foi visto, Carrol, Baum e Lobato inovaram na criação de suas personagens femininas, distanciando-se da lógica comum da época, concedendo a uma menina atitudes e ações consideradas próprias do sexo masculino, bem como se utilizaram da magia e do mundo fantástico, talvez para mostrar ou alertar que mudanças eram necessárias em relação à concepção da personagem feminina, enquanto figura decisiva e atuante no cenário literário.

Quem sabe, futuramente, em plano fictício, essas três personagens (Alice, Dorothy e Lúcia) já crescidas possam vir a se parecer com as meninas más de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría ou, quem sabe, com as personagens femininas de Margaret Drabble, ou seja, imagens de mulheres que realmente sabem o que querem, construindo suas vidas, conforme suas vontades, mas com um detalhe que as torna realmente especiais, o interesse pelas causas sociais e a vontade incontrolável de consertar o mundo. Em consequência dessas atitudes e anseios, talvez, Alice, Dorothy e Lúcia possam ser consideradas os embriões das personagens criadas por Atwood, Etxebarría e Drabble.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (A hora certa de chorar)

Nunca se sabe a hora certa de chorar. O choro, assim como a voz, é uma expressão da alma. E a alma, pelo que se sabe, não tem relógio, não é mecânica. A alma é o que se mostra pelos olhos e pelas lágrimas. Você tem chorado o suficiente? Há muitas pequenas mortes durante o dia, todos os meses, o ano todo. A pressa, muitas vezes, empurra o choro para dentro e o sufoca, porque é preciso enfrentar. Mas, enfrentar?! Enfrentar o quê?! A vida não era para ser vivida, curtida, experimentada? Era. Mas deve ter havido alguma falha, e certas pessoas se esqueceram disso. Onde as lágrimas dessa gente? De que rio do esquecimento se esquivaram e, num cantinho das pálpebras, num abrir e fechar de olhos, empedraram-se e não caem mais?

Chorar é deixar cair as lágrimas e se render a apenas contemplar o que se perde, e se perde muito pela vida. Viver é perder um pouco de si a cada instante. E não há hora certa de chorar. Sufocado, o choro explode em palavras, muitas vezes com raiva, frustradas pelo medo e/ou pelo pouco caso com a vida, que é líquida como as águas que rolam dos olhos e lavam a alma. E a alma, pelo que se sabe, também se suja. A alma é o que se esconde atrás dos olhos, em forma de lágrimas. Chorar faz bem. E, mal e mal, sempre se soube disso.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.obaoba.com.br

Jorge Luis Borges (A loteria da Babilônia)

Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Alep, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria. Não indaguei a sua história; sei que os magos não conseguem por-se de acordo; sei dos seus poderosos propósitos; o que pode saber da Lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é a parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou do meu coração. Agora longe da Babilônia e dos seus estimados costumes, penso com certo espanto na loteria e nas conjecturas blasfemas que ao crepúsculo murmuram os homens velados.

Meu pai contava que antigamente – questão de séculos, de anos? – a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como os senhores vêem.

Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas faltasse a importância quase total das multas. Propôs uma ação judicial contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor eclesiástico, metafísico. Pouco depois, as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância. Foi o primeiro aparecimento, na loteria, de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos.

Ninguém ignora que o povo da Babilônia é devotíssimo à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que se computassem os números ditosos em moedas redondas e os infaustos em dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse das moedas não determina sempre a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais diretas.

Inquietações diversas propagavam-se nos bairros desfavorecidos. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual na loteria, inspirou uma indignada agitação, cuja memória os anos não apagaram. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma necessária etapa histórica... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio lhe deu direito a que lhe queimassem a língua. O código capitulava essa mesma pena para o que roubava um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, na sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o azar... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica finalmente impôs a sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente os seus generosos fins. Em primeiro lugar, conseguiu que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era indispensável, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segunda etapa, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre participava automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus de sessenta em sessenta noites e que demarcavam o seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio dos magos ou a detenção de um inimigo (conhecido ou íntimo) ou a encontrar, nas pacíficas trevas do quarto, a mulher que começava a inquietá-lo ou que não esperava rever; uma jogada adversa: a mutilação, a infâmia, a morte. Às vezes, um fato apenas – o vil assassinato de C, a apoteose misteriosa de B – era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram (e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, teria diminuído a sua virtude o conhecimento de que certas felicidades eram simples fábrica do acaso; para frustrar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Os seus passos e os seus manejos eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, conforme a opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses sítios. Um arquivo alfabético recolhia essas notícias de veracidade variável. Por incrível que pareça, não faltavam murmúrios. A Companhia, com a sua habitual discrição, não replicou diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa peça doutrinal observava que a loteria é uma interpolação da casualidade na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é confirmá-lo. Salientava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de os consultar), funcionavam sem garantia oficial.

Essa declaração apaziguou os desassossegos públicos. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está para zarpar; mas tratarei de os explicar.

Por inverossímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei instigou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De uma delas nasceu a seguinte conjectura: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulo tão justos provocaram, por fim, uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que intentarei resumir, embora de modo simbólico.

Imaginemos um primeiro sorteio que decrete a morte de um homem. Para o seu cumprimento procede-se a um outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do carrasco, dois podem substituir a ordem infeliz por uma ordem ditosa (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará (isto é, a tornará infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam noutras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga. Essa infinitude condiz admiravelmente com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que os platônicos adoram... Um eco disforme dos nossos ritos parece ter reboado no Tibre: Ello Lampridio, na Vida de Antonino Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de forma que um recebia dez libras de ouro, e outro, dez moscas, dez leirões, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo foi educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo.

Também há sorteios impessoais, de objetivo indefinido; um ordena que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro, outro, que secularmente se retire (ou se acrescente) um grão de areia aos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes, terríveis.

Sob o influxo benfeitor da Companhia, os nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não estranhará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, neste relato apressado, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, uma misteriosa monotonia... Os nossos historiadores, que são os mais perspicazes da orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; é de notar que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem alguma dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem qualquer divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta.

A Companhia, com modéstia divina, evita toda publicidade. Os seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que distribui continuamente (talvez incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Para mais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de súbito e estrangula a mulher a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de conjecturas. Uma insinua abominavelmente que há séculos não existe a Companhia e que a sacra desordem das nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra julga-a eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando o último deus aniquilar o mundo. Outra afiança que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem e do pó, nos entressonhos da madrugada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque a Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XV

3.3 A evolução da figura feminina também ressaltada pela ótica masculina:

[...] Raro é o conto que menciona armas de fogo. Falam sempre de carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna, absolutismo real. CASCUDO, 2004, p.13.                                           
No século XIX, e até meados do século XX, o mundo literário inglês, norte-americano e brasileiro sofreu radicais transformações, principalmente com o surgimento destas obras marcantes, entre outras: As aventuras de Alice no país das maravilhas, O mágico de Oz e Narizinho arrebitado.

Poderia se pensar até então que só as mulheres contribuíram para a sua própria causa, mas isso não é verdadeiro, uma vez que o apoio à evolução feminina se deu também por homens escritores, como Charles Lutwidge Dodgson, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato, que abraçaram essa causa, em virtude da real importância conferida às mulheres em suas obras.

Em relação à personagem Alice, criada por Carroll, parece que essa veio compor os traços, as características psicológicas de outras, elaboradas por Baum e Lobato. No entanto, apesar de existir uma distância temporal considerável em relação às obras de Carrol e Baum e às obras de Lobato, o que corresponde, aproximadamente, a cinquenta anos, as suas personagens Alice, Dorothy e Lúcia assemelham-se. As três são personagens protagonistas que não temem o desconhecido e, nem mesmo, os adultos. Alice, Dorothy e Lúcia dialogam com estes numa interlocução de igual para igual e os auxiliam a encontrar soluções para problemas cotidianos. Além disso, são movidas pela curiosidade e, para satisfazê-la, embrenham-se em aventuras inusitadas.
                                                                                   
Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carrol) nasceu em Daresbury, Cheshire, na Inglaterra, em 1832 e faleceu em Guildford, em 1898. Ele foi um matemático britânico e criador de obras que são consideradas clássicas da literatura universal, tais como, As aventuras de Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872).

Em um comentário de apresentação da obra As aventuras de Alice no país das maravilhas para os pequenos leitores, Elias José afirma que a personagem Alice pode ser comparada a uma atriz circense que realmente sabe como entreter seu público, conduzindo-o ao mundo encantado:

[...] Alice é a personagem mais indicada para levar alguém ao país do sonho, do faz-de-conta, do fantástico, do maravilhoso, do mágico – mágico mesmo, com doiduras [sic] como aquelas que você gosta de ver no circo. (JOSÉ, 2002, p. 7)                     
Segundo Elias José, Lewis Carrol criou sua obra observando uma menina de dez anos de idade, muito vivaz e criativa, filha de amigos seus. Inicialmente, Carrol jogava    com    as     palavras    e    seus    significados,    visando    entreter    a    garota. Posteriormente, o jogo de palavras e seus estranhos significados vieram a compor sua obra.

Ao escrever sua história, Lewis Carrol partiu do mundo real. Alice, uma menina de 10 anos que ele conheceu, chamou sua atenção pela inquietação, pela alegria e pela facilidade de inventar moda. O autor, então, começou a brincar com as palavras para diverti-la. Dessa brincadeira ele logo passou à construção do livro. Criou fantasiando, com a imaginação toda solta e livre. Ele queria fazer arte com as palavras [...] (JOSÉ, 2002, p.7)                     
Dessa forma, a menina até então só observada transformou-se na personagem Alice (*), que era extremamente curiosa, capaz de “enfiar o nariz” em qualquer lugar, tanto que acabou entrando na toca de um coelho, a fim de descobrir o que havia em seu interior.
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(*) Davi Arrigucci (1999) questiona e compara a atitude de Alice, quando essa cede à curiosidade “[...] E ao ceder à curiosidade, seguindo o passo de Alice entre nós, como não ver espelhada na resenha bisbilhoteira a impressionante capacidade da menina para meter o nariz em toda toca disponível?” (p.141)
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Alice cede ao seu instinto de curiosidade, seguindo um coelho falante e, inusitadamente, chega no País das Maravilhas. A menina, bastante inventiva, é capaz de imaginar de um modo bastante singular o que estava por vir:

Quantos quilômetros será que eu já caí até agora? - disse em voz alta. – Devo estar chegando perto do centro da Terra. Gostaria de saber se vou passar direto através da Terra! Como seria engraçado se eu fosse sair bem no meio daquelas pessoas que andam de cabeça para baixo! Teria de perguntar a eles: “Por favor, aqui é a Nova Zelândia ou a Austrália?” (CARROL, 2002, p.12)                     
O autor instiga o imaginário infantil, uma vez que a menina Alice aumenta ou diminui de tamanho comendo pedaços de cogumelo ou ingerindo líquidos. Essa mudança de estatura permite à menina não só ultrapassar portas, como também vencer obstáculos.

A menina supre não somente as suas necessidades básicas em “BEBA-ME” (p.15) e “COMA-ME” (p.16) (comendo e bebendo), mas também as pertinentes a uma criança perfeitamente saudável que vive em um mundo de faz-de-conta.

Além disso, neste mundo criado por Carrol, à menina Alice é permitido pensar, tomar atitudes, agir naturalmente. Comportamento esse destoante dos moldes da época, mas que prenuncia novos tempos para a personagem feminina, para a mulher escritora, para a estrutura patriarcal vigente.

De acordo com isso, Alice, sendo uma menina altiva e espontânea, fala seus pensamentos, sem antes analisá-los. A situação em que a garota conversa com um rato, querendo que ele conheça sua gata Dinah, é um exemplo disso:

- Mesmo assim, eu gostaria de poder mostrar a você nossa gata, Dinah. Ela é tão queridinha. E fica ronronando tão bonitinho perto da lareira, e é tão caçadora de ratos... Oh, me perdoe! - O Rato ficara com o pêlo todo arrepiado. - Nós não vamos mais falar sobre ela. (CARROL, 2002, p. 22)                     
É interessante ressaltar a localização do País das Maravilhas nessa obra. Ele fica muito além do fundo da toca do coelho e abriga animais e objetos que possuem características humanas, porém fora de seus juízos normais. Os animais conversam, o coelho é atrapalhado, o bicho-da-seda é fumante, enfim, eles contam histórias e divertem os leitores, enquanto as pessoas adultas falam palavras desconexas e apresentam atitudes insanas. Já a menina Alice mostra mais bom senso em relação aos demais, apesar de ser apenas uma menina de dez anos de idade.

Posteriormente, surge O mágico de Oz, de autoria de Lyman Frank Baum. O escritor era norte-americano, nascido em Chittenango, Nova York, em 1856. Pertencente a uma rica família alemã,    além de escritor, Baum também era teatrólogo e teosofista.

Frank Baum começou a escrever muito cedo, uma vez que era amante dos livros. Tendo escrito sessenta obras, O mágico de Oz (Escrita em 1900, denominando-se, inicialmente, O maravilhoso feiticeiro de Oz) é considerada como uma obra singular, que se tornou um clássico mundial. Tanto que o autor escreveu sucessivas continuações desta, alcançando também o sucesso.    Contudo, o que realmente o imortalizou foi a versão O mágico de Oz para o cinema.

O interessante em O mágico de Oz é que o próprio escritor esclarece o objetivo do livro e que pretensão ele teve ao escrevê-lo: “O Mágico de Oz foi escrito para agradar a criança de hoje. Ele pretende ser um moderno conto de fadas, que narra apenas coisas maravilhosas e alegres, excluindo a angústia e o pesadelo”.

Provavelmente, quando o escritor menciona ter escrito um moderno conto de fadas, ele esteja se referindo à nova postura da personagem feminina nesse contexto. Dorothy, a personagem-protagonista, é uma menina órfã, criada pelos tios Henry e Ema, no interior do Kansas.

Apesar de seus pais não estarem vivos e presentes, ela não é uma menina triste ou chorosa. Pelo contrário, é uma garota determinada, falante, inteligente e feliz. Características até então distantes das princesas dos contos. Ao mesmo tempo, Dorothy é humilde e bondosa, traços esses já bastante conhecidos e cultuados durante séculos nas histórias de fadas. Dessa forma, Baum utilizou-se de características que estavam arraigadas, pertencentes à mulher-personagem e, além  disso, ousou, mostrando outra face dessa mesma personagem que ainda estava encoberta.

Quanto ao enredo da história, sabe-se que a menina é levada por um ciclone a uma terra desconhecida, onde, assim como em As aventuras de Alice no país das maravilhas, os animais falam e os seres inanimados possuem vida e voz.

O interessante é que a menina, sendo levada pelos fortes ventos, mostrou-se corajosa, não temendo o desconhecido. Pelo contrário, Dorothy, que é inventiva por excelência, imaginou-se em um barco sacolejando e, quando os ventos tornaram-se mais amenos, em um berço sendo embalada.

Além dessa situação há inúmeras outras que demonstram a coragem de Dorothy,    porém    uma    merece    destaque,    ou    seja,    quando    ela    encontra, inusitadamente, pelo caminho, o leão Covarde.

O pequeno Totó, encontrando afinal um inimigo para enfrentar, correu  latindo na direção da fera, que abriu a bocarra para morder o cachorrinho; Dorothy, sem ter consciência do perigo a que se expunha, avançou para o leão e deu-lhe um tapa sonoro no focinho, gritando: - Atrevido! Atrevido! Um leãozão do seu tamanho mordendo um cachorrinho pequenininho! (BAUM, 1969, p.42)                     
A protagonista, destemidamente, avança em território desconhecido, tal qual príncipes do passado, só que não para conquistar princesas, mas virtudes, pelas quais seus estranhos amigos tanto ansiavam. Evidentemente que ela também queria encontrar o caminho de casa, pois demonstrava estar bastante determinada em seus ideais. Contudo, isso não a impedia de auxiliar os que dela necessitassem. O curioso é que representantes do sexo masculino é que precisavam descobrir o que neles já existia. O espantalho, o homem de lata, e o leão recuperam cérebro, coração e coragem, aventurando-se com Dorothy e, como ela, encarando e resolvendo com sabedoria as dificuldades que encontravam pelo caminho. Outrora, personagens há muito conhecidos, como a Bela adormecida, jamais sairiam do seu ambiente familiar e, acompanhados de homens estranhos, jamais iriam a lugares desconhecidos.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (O Coração que Deus lhe deu)

Está certo, há quem não acredite em Deus. Não, nem falo do Deus que as religiões monoteístas apregoam como o criador do Todo e de tudo. Mas do Deus que respira agora com você e comigo e, ao mesmo tempo, cuida de manter vivo o que existe no mundo. Foi esse Deus que lhe deu um coração, e o coração que Deus lhe deu não é o mesmo que o meu, nem é melhor nem é pior que o de ninguém, é apenas seu. O coração que Deus lhe deu não bate em vão. Varia de intensidade conforme a emoção que sente, mas bate, insiste para que o compreendamos como Deus o fez: perfeito.

É muito agradável assistir a uma missa, a um culto, participar de uma sessão espírita, de uma prática de meditação, enfim, é muito agradável tomar parte em qualquer forma de experiência religiosa. Porém, o coração que Deus lhe deu quer mais que isso. Ele quer amar, o que não se garante que aconteça ao se fixar em nenhuma religião do mundo, porque, para amar, é preciso se aceitar como se é, aceitar o outro como ele é e o mundo como ele é. Isso não quer dizer que não se queira mudar em si o que se perceba como desagradável, nocivo, mas quer dizer que aceitar é amar.

Não há verbo mais simples e mais complexo que o verbo amar. Já diziam os Beatles: tudo o que o mundo precisa é de amor. No entanto, cada vez mais fechados em nós mesmos, mal temos tempo de abrir um livro e pensar na vida, para, depois da leitura, contar a alguém, dividir o que se leu. Por quê? Porque, muitas vezes, no mundo de hoje, o que o outro nos diz não tem muita importância. Podemos acessar depois, numa página qualquer da Internet e ver a reprise. Mas o que diz o coração do próximo não está disponível para download. O coração que Deus lhe deu ouviu?

Seu coração não é igual ao meu, nem ao de ninguém. E ele bem sabe porque, como uma prece, uma oração, um silêncio, um mantra, uma invocação a Deus, bate e repete seu toc-toc. A pilha do coração que Deus lhe deu, assim como a do meu, não é alcalina. Ela se esgota. Um dia, quando menos esperar, ela parará, e o coração que Deus lhe deu cessará de bater. O que terá feito de sua vida, além do previsto, além dos esperados dormir, acordar, trabalhar, comer, dormir e novamente acordar? O verbo amar terá sido experimentado pelo coração que Deus lhe deu antes de partir? Ame.

Fontes:
O Autor
Imagem = www.reflexoesempoesia.blogspot.com.br


Contos Populares do Tibete (O Moço que se Negava a Matar)

Era uma vez um moço que se chamava Tashi. Tashi não era capaz de se ajustar aos costumes do mundo. Por mais que seu pai se esforçasse, jamais havia conseguido que o moço caçasse para obter comida. Tashi se negava a tirar a vida de quem quer que fosse, e tampouco comia a carne que seu pobre pai levava para casa para a panela familiar.

Tashi tinha três irmãs, que se haviam casado com homens ricos. Amiúde seus pais se lamentavam da má sorte que haviam tido por terem ficado sozinhos com um filho que não seria capaz de sustentá-los em sua velhice, um filho que não queria caçar, e que era, por natureza, muito dócil e pacífico.

— Deveria ter-se tornado monge — dizia a mãe —, porque, de que nos serve este nosso filho? Quando formos velhos, teremos que mendigar às nossas filhas e aos nossos vizinhos para não morrermos de fome.

Esta era a queixa constante dos pais de Tashi, mas, mesmo assim, o moço se negava a tirar uma vida.

— Toda vida é sagrada — dizia; não posso matar outro ser.

Certo dia, o pai de Tashi insistiu para que o rapaz saísse com ele para caçarem juntos. Caminharam durante muitos quilômetros e o pai já estava muito cansado. Havia sido um dia bastante ruim, pois tudo o que havia conseguido pegar tinha sido um coelhinho. E o pai pensou: "É este meu filho, ele me da azar".

O moço estava sentado numa rocha, e enquanto comia sua pobre ração de fruta e queijo, ia gravando a oração de Chenrezik — OM MANI PADME HUM — numa rocha que havia ao lado. Ao largo do caminho, havia outras rochas, nas quais os viajantes também tinham gravado esta oração, pois o caminho conduzia a um santuário muito visitado pelos que passavam por ali.1

Chenrezik, a divindade tutelar e padroeira do Tibete, o Senhor da Compaixão, recebia uma grande devoção da parte do povo.

Quando o pai de Tashi viu o que seu filho estava fazendo, também se pôs a articular em silêncio a poderosa oração, e o fez repetidas vezes, enquanto desfiava, em suas mãos, as contas já gastas do seu rosário. Tirar a vida de alguém era uma coisa contrária às suas crenças como budista, mas ele precisava conseguir comida para a sua mulher; por isso, tratava de matar os animais o mais humanamente possível, rogando por eles ao fazê-lo. Mas era evidente para o pai que nunca iria conseguir que seu filho raciocinasse como ele. O rapaz jamais tiraria uma vida, por mais fome que passassem, e o pai não via saída alguma para esta situação.

Pai e filho seguiram caminhando ainda um pouco mais, sempre atento, o primeiro, para ver se conseguia descobrir algum animalzinho ou ave. De repente, por entre as árvores, viu algo que lhe fez conter a respiração. Ali, no campo que beirava o caminho, estava uma enorme lebre. Era realmente a melhor oportunidade que se havia apresentado para ele, desde há muitas semanas; por isso, decidiu não deixá-la escapar de maneira alguma. Pegando a sua funda, arrastou-se entre as árvores para ter uma perspectiva melhor do animal. A lebre corria em direção a eles, e suas pernas traseiras davam-lhe tal velocidade, que era impossível ao pai fazer bem a pontaria.

De repente, a lebre se deteve, como que percebendo que havia perigo. Mexeu nervosamente o nariz, olhou para um lado e para o outro e aguçou o ouvido. Estava tão perto que o rapaz podia vê-la perfeitamente. O mesmo acontecia com o pai, que já estava prestes a atirar uma grande pedra com a sua funda. Mas Tashi se levantou e gritou: "Não, pai, não! Não a mate!" E a lebre, dando um grande salto no ar, desapareceu num segundo e se escondeu de seu irritado agressor num campo de cevada.

O pai ficou como que atônito durante uns minutos. Sua cara estava pálida e lufadas de cólera subiam-lhe desde dentro. "Por quê?, perguntou ao filho. Por que você fez aquilo?". Tashi ficou perturbado, pois viu que seu pai estava mais irado do que nunca e que, provavelmente, a maior surra da sua vida já estava esperando por ele.

O pai não pôde dominar-se por mais tempo. Apanhando uma grande rocha, avançou em direção ao filho. "Eu vou matar você" — disse —, eu vou matar você, você, meu único filho". Dizendo isto, o pai se dispôs a lançar a pedra na cabeça de Tashi, mas este retrocedeu assustado, rogando ao pai que lhe poupasse a vida. Bem ao lado do caminho, havia uma encosta rochosa, e, ao lado desta, se abria uma pequena caverna. A abertura era somente uma estreita rachadura, mas o rapaz se enfiou por ela e conseguiu escorregar até o seu interior, antes que o pai lhe atirasse violentamente a pedra na cabeça. A pedra atingiu Tashi na perna e o moço gritou de dor.

Uma vez dentro da caverna, Tashi viu que estava a salvo, pois a abertura era demasiado pequena para que seu pai pudesse passar por ela. Tashi não podia fazer idéia das dimensões do seu cárcere de rocha, pois estava escuro e era muito difícil enxergar dentro dele. Avançando palmo a palmo, ao longo de uma das pontiagudas paredes, chegou ao fundo da caverna, que estava apenas a uns metros da entrada. AJi, com a perna sangrando, se estendeu no solo e... perdeu a consciência.

Muitas horas depois, Tashi voltou a si ao ouvir o ruído de passos, e se levantou. A dor o fez recordar tudo o que o havia levado até ali. O ruído de passos se tornava mais forte. Quis gritar pedindo ajuda, mas sua voz estava muito fraca e somente um leve murmúrio saiu dos seus lábios. Algum tempo depois, reunindo todas as forças que pôde, Tashi gritou, e desta vez mais alto. Os passos se detiveram e ele pôde escutar vozes que falavam em voz-baixa desde o exterior da caverna.

De repente, apareceu uma cabeça na abertura, dois olhos procuraram caverna adentro e uma voz gritou para que saísse.

— Não posso mover-me — disse Tashi, estou ferido, e me é difícil caminhar os poucos metros que me separam da entrada da caverna.

A cabeça desapareceu e logo foi substituída por outra. Depois, um pequeno corpo vestido com um hábito passou pela abertura e avançou de rastros pela caverna até Tashi. Este pôde ver que se tratava de um monge, que avançava até ele com os braços estendidos para levantá-lo e levá-lo a um lugar seguro. Uma vez fora da caverna, Tashi viu que eram três monges. Eles viajavam juntos em peregrinação aos lugares santos.

Os monges o levaram a um matagal de plantas delicadas, puseram-no no solo e cuidaram da sua perna. Depois de repartirem com ele a sua comida, os monges pediram a Tashi que lhes contasse a sua história, como havia chegado àquela situação tão penosa. O moço contou-lhes tudo, referindo-se à sua recusa a caçar, e dizendo-lhes como, no fim, seu pai, desesperado, havia pensado em matar a seu único filho.

Os monges escutaram em silêncio. Depois, o monge principal convidou o moço a acompanhá-los em suas viagens. E Tashi assim o fez, vestido com o hábito de um monge mendicante.

Ao fim de alguns dias, os peregrinos chegaram à casa da irmã mais velha de Tashi. O monge principal se aproximou da casa, chamou à porta e, quando apareceu a moça, pediu-lhe uma esmola. Depois de dar comida aos monges errantes, quando estes já se preparavam para partir, a moça perguntou se não teriam encontrado, por seu caminho, seu irmão desaparecido. Disse-lhes que estava desaparecido há muitos dias e que a família estava muito preocupada. O monge principal respondeu-lhe que não o haviam visto, mas que, se isso viesse a acontecer, logo tratariam de dar alguma notícia aos familiares.

A irmã mais velha de Tashi não reconhecera o irmão com o hábito de monge.

Pouco depois, chegaram à casa da segunda irmã do rapaz. De novo, o monge principal se aproximou da casa e pediu uma esmola. Esta lhes foi dada. E foi-lhes perguntado, também, se haviam encontrado o irmão desaparecido. O monge principal respondeu que não e seguiram seu caminho.

Quando chegaram à casa da irmã menor de Tashi para pedir uma esmola; ela reconheceu imediatamente o irmão desaparecido e o estreitou em seus braços, pedindo-lhe que permanecesse com os que lhe queriam bem.

As três irmãs se reuniram na casa da irmã menor e fizeram um banquete para celebrar a volta de Tashi. Os monges foram muito obsequiados pelos parentes do rapaz, os quais lhe pediram que permanecessem como convidados todo o tempo que quisessem. Os monges, entretanto, agradeceram o convite e deixaram a casa da irmã mais nova de Tashi para prosseguirem a sua viagem.

Tashi agradeceu às irmãs por toda a sua ajuda e por todo o seu interesse, mas pediu-lhes que o abençoassem, pois desejava partir e levar a sua própria vida. As irmãs se entristeceram ao ver seu único irmão sair para enfrentar o mundo e deram-lhe, como presente, um cavalo mágico que falava.2 Tashi pegou o cavalo e se dirigiu para as regiões mais remotas do país.

Ainda não havia ido muito longe, quando alcançou uma vasta planície. O cavalo lhe disse, então: — Mate-me. Estenda a minha pele sobre a planície e espalhe as minhas cerdas por todas as partes, para que o vento as leve aos confins desta planície.

O rapaz ficou horrorizado e negou-se a matar o cavalo. Em lugar disso, depositou seu fardo no chão, comeu o que suas irmãs lhe haviam dado e se dispôs a passar a noite ali. Mas, durante a noite, enquanto Tashi dormia, o cavalo lançou-se de um precipício escarpado e matou-se.

Quando Tashi se levantou, pela manhã, procurou o cavalo, mas não o encontrou em parte alguma. Explorando toda a planície, o rapaz chegou ao precipício e, olhando para baixo, viu o corpo destroçado do cavalo. Sentindo invadir-lhe uma tristeza enorme e pensando na conversa na noite anterior, Tashi decidiu fazer o que o cavalo lhe havia pedido. Pegou a pele, estendeu-a no centro da planície, e depois espalhou as cerdas do cavalo por todas as partes, lançando-as ao ar para que o vento as levasse até os confins mais distantes da planície.

Imediatamente, a pele do cavalo se converteu numa grande mansão e as cerdas se converteram em ovelhas e iaques, que pastaram pela planície até se perderem de vista. O cavalo tornou a aparecer a Tashi e assim lhe falou:

— Você tem mostrado uma grande compaixão para com todos. Esta é a sua recompensa.

Dizendo estas palavras, o cavalo partiu a galope e desapareceu ao longe. E Tashi notou que no chão, por onde os cascos do cavalo haviam tocado, haviam aparecido montinhos de ouro.

Inspecionando a sua nova casa, Tashi pensou nos pais e se perguntou como estariam se arranjando para sobreviver. Decidiu-se a ir vê-los e a trazê-los para viverem com ele na mansão. "Meus pais nunca hão de precisar buscar por comida, nunca mais", disse a si mesmo.

E assim pensando, o moço se vestiu novamente com o hábito de monge, pois não queria que seus pais soubessem de sua recém-adquirida fortuna. Depois, apanhou duas tortas e se dirigiu à casa dos pais. Ao chegar a esta, encarapitou-se no telhado, espiou por uma pequena janela e viu os pais acocorados diante do fogo. Tashi deixou cair uma das tortas. Sua mãe a agarrou, dizendo: "É um presente dos deuses!" Mas o pai, esfaimado, arrancou a torta das mãos da mãe, e se pôs a comê-la com avidez. Tashi deixou cair, então, a outra torta para a mãe. Depois, desceu do telhado e chamou à porta. Sua mãe abriu-a e, imediatamente, reconheceu o filho. Estreitou-o nos braços e pediu-lhe que não voltasse a deixá-los. O pai, embargado de emoção, pediu perdão a Tashi.

Tashi contou-lhes sobre sua nova casa e sobre sua riqueza, e os levou a viver com ele, na planície. Ali, colocou a mãe num trono de ouro puríssimo; fez o pai sentar-se num trono de prata puríssima. E quanto a ele, o único filho varão, sentou-se num trono de madrepérola puríssima, também.
___________________________________________
Notas
1. A propósito do mantra de Avalokitesvara (Chenrezik), a fórmula sagrada por excelência do budismo tibetano, gostaríamos de citar as palavras do Lama Anagarika Govinda: "Está nos lábios de todos os peregrinos, na reza dos moribundos, na confiança dos vivos. É a melodia eterna do Tibete, que o homem religioso percebe no murmúrio dos regatos, no rumor das cascatas ou no fragor das tempestades; e que saúda o ser humano desde os rochedos e desde as pedras-mam, que o acompanham por todas as partes, ao largo dos caminhos e dos escarpados desfiladeiros". (Fundamentos da Mística tibetana, Madri, 1975, p. 29). É numa dessas "pedras-mani" que grava Tashi em nosso relato; existem em grande número no Tibete e nas regiões limítrofes, Podem tratar-se de pedras isoladas ou de pequenos muros, e quando um budista passa junto a uma delas, deve contorná-la no sentido das agulhas do relógio, deixando-a sempre à sua direita, como se faz com os chôrten e outros símbolos sagrados. Para uma boa ilustração de uma pedra-mani, consulte-se Javier Gómez Rea e Dedvan Sen: Himalaia, os mosteiros dos auras. Coleção "O Universo do Espírito", n." 1, Madri, 1985, pp. 20-21.
2. O tema do "cavalo que fala" é muito frequente nas lendas tibetanas, e se encontra vinculado, em particular, à figura do rei Gesar de Ling e ao mito de Sambhala.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIV

      Segundo Warner, referindo-se a Beaumont, é relevante a habilidade da escritora em atribuir aos contos de fadas a importância devida, tornando-o recurso necessário à educação, bem como transformar o rude, o homem selvagem em cortesão e, além disso, mostrar que o amor é possível, até mesmo em uniões nada convencionais, como entre uma mulher e um animal, pois esse sentimento é a essência da vida e está além de diferenças, preceitos e preconceitos.

Mas foi essa governanta sensível e bondosa, madame Leprince de Beaumont, em meados do século XVIII, a primeira a usar os contos de fadas para educar os jovens desse modo. Sua visão do amor e simpatia femininos redimindo o selvagem que há no homem tornou “A Bela e a Fera” um dos contos de fadas mais estimados do mundo, que nunca deixou de inspirar em meninas – e meninos – sonhos de experimentar o poder do amor. (WARNER, 1999, p. 333)
                     
      Além de Beaumont enfatizar a importância da leitura para a educação, em 1687, é lançado um livro específico para as meninas, ou seja, voltado à educação feminina, o Tratado da Educação das Meninas, escrito por Fénelon. Nessa obra o ensino doutrinário é característico, visto que as meninas são preparadas para serem esposas e mães.

      A seguir, Mlle. L’Héritier de Vilandom, defensora das fábulas contadas pelas velhas senhoras, adepta do Preciocismo e seguidora de Mme d’Aulnoy, publica Obras Misturadas em 1696.

Em 1774, Mme. Le Prince de Beaumont, em tradução de Joaquim Inácio de Freitas, publica a obra Thesouro de Meninas. Nesta, o próprio título da obra a identifica como sendo instruções educacionais específicas para o sexo feminino.

Já foi visto que o passo inicial para o ingresso e a difusão intelectual feminina deu-se com Mme. de Rambouillet, em 1608, na França, uma vez que a vida mundana dos salões tornou-se mais refinada, através de apresentações literárias que lá aconteciam. Entretanto, muito antes disso, tem-se a presença da participação feminina e também “feminista”, segundo Moacyr Scliar. Scliar cita uma data, bem remota. Segundo ele, em A primeira transgressora36, a primeira transgressora feminina e “feminista” foi Lilith, uma personagem bíblica que, adepta de hábitos e valores nada convencionais, escandalizou a sociedade da época. Essa mesma personagem figura no cenário folclórico da Suméria e da Babilônia, mas representando o caráter demoníaco das mulheres.

Por sua vez, de acordo com Scliar, as feministas a transformaram em um modelo representativo de suas aspirações: “Existe nos Estados Unidos uma revista chamada Lilith (independente, judaica e francamente feminista). Um livro sobre feminismo chama-se A Ascensão de Lilith. Um festival feminista tem como denominação Lilith Fair, a Feira de Lilith” (2008, p. 17).

As idéias de Scliar confirmam o que J.D. Eisenstein afirmara em O Livro de Lilith (1991), citado por Eduardo de Assis Duarte (1997). Desse modo, Eisenstein narra em sua obra a história da criação da primeira fêmea, Lilith, obra do Divino, concebida para acompanhar Adão na Terra. No entanto, a personagem não ficou subjugada às ordens de Adão e preferiu percorrer o mundo, criando asas que a levariam para bem longe de seu companheiro.

      Convém salientar que a personagem Lilith faz lembrar As meninas más, de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría, que nada mais são do que mulheres que se fizeram fortes, devido aos muitos tormentos familiares e sentimentais que sofreram durante suas histórias de vida. Na verdade, através de seus anseios íntimos, seus conflitos, culpas, sonhos, as personagens refletem a vida difícil da mulher que decide se opor a uma sociedade machista. Consequentemente, elas se tornaram exigentes e determinadas, não aceitando a vida medíocre que, provavelmente, elas teriam se vivessem o papel de uma bela eternamente adormecida imposto pela sociedade. E, de acordo com Lélia Almeida:

O romance da espanhola Lucía Etxebarría, Amor, curiosidad, prozac y dudas, de 1996, não conta a história de uma vilã, como o de Atwood. Mas talvez conte, da mesma maneira, das vontades das mulheres de serem diferentes das princesas e boas meninas dos contos de fadas e das novelas sentimentais [...] (ALMEIDA, 2003, p.31)
                     
      Desse modo, nos contos escritos entre os séculos XVII e XVIII é perceptível o anseio primeiro da mulher escritora, que consiste em não mais reproduzir a mesma imagem “insossa” feminina de tempos distantes. A mulher escritora, recém chegada neste contexto literário masculino, está preocupada em descobrir, em determinar os reais valores e compor a identidade feminina em suas obras, distante do já tão conhecido, escrito por mãos e conceitos masculinos.

Nota:
Louise Mary Alcott e Eleanor Hodgman Porter não redigiram contos de fadas, mas fizeram diferença enquanto escritoras de Literatura Juvenil, por isso foram citadas.

No século XX, cabe ressaltar também a presença de Simone de Beauvoir que não escrevia contos de fadas e, pelo contrário, a eles mostrava-se avessa. Beauvoir escreveu sobre as mulheres, tornando-se um ícone feminista, o modelo da mulher liberal moderna, seguida fielmente por mulheres escritoras que se espelharam nela para embrenharam-se no mundo intelectual e literário sem preconceitos. Desde cedo, a referida escritora participou de grupos de filósofos que estudavam o Existencialismo, uma vez que as causas humanas, existenciais e sociais referentes à mulher interessavam-na muito.
Juliana Albuquerque, estudiosa da vida e obra de Beauvoir, salienta que a própria autora afirma:
“O certo é que até aqui as possibilidades da mulher foram sufocadas e perdidas para a humanidade: já é tempo, em seu interesse e no de todos, de deixá-la enfim correr todos os riscos, tentar a sorte.” (BEAUVOIR apud ALBUQUERQUE, 2009 p. 29)

3.2 Percalços que retardaram a efetiva inserção feminina no mundo intelectual

[..] se conhecemos as condições de vida da grande maioria das mulheres nos séculos passados, os obstáculos que enfrentaram - das teses médicas “provando” sua incapacidade    intelectual, ao esforço dos filósofos e governantes incentivando o recolhimento - não podemos nos admirar do reduzido número de escritoras hoje conhecido. LIMA DUARTE, 1997, p. 56-7.
                                        
      Além das escritoras já citadas no subcapítulo anterior, algumas outras se destacaram no final do século XIX e início do XX: a russa Sophie Rostopchine, Condessa de Ségur, com os Novos contos de fada (1856); a americana Louise Mary Alcott37, com Little women (1868), e a norte-americana Eleanor Hodgman Porter, com Pollyana (1915).

      Já no Brasil, em meados do século XIX, quando o povo sentiu repulsa por modelos estrangeiros, uma literatura brasileira surgiu e, com isso, inúmeras obras infantis, tais como: Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida; Livro das crianças (1897), de Zalina Rolim, e O Livro da infância (1899), de Francisca Júlia da Silva Munster.

      A romancista Júlia Lopes de Almeida foi membro atuante do movimento nacionalista, buscando uma literatura essencialmente brasileira e, com esse espírito, lançou o livro Contos infantis, composto por sessenta narrativas em verso ou prosa.

      Entretanto, Zalina Rolim, apesar de escrever para crianças, foi quem se destacou efetivamente no incipiente movimento feminista iniciado em São Paulo. Novaes Coelho, caracterizando a escritora Zalina Rolim, afirma:
                       Figura que teve significativa participação no movimento feminista que mal se iniciava, em São Paulo, e também nos projetos de inovação do ensino básico, a paulista Zalina Rolim (1869/1961) escreveu principalmente poesia. O volume Livro das Crianças, coletânea de contos e estorietas em versos, foi publicado pelo Governo de São Paulo, tornando-se com essa divulgação um dos grandes sucessos na literatura escolar da época. (COELHO, 1991, p. 216)
                     
Já Francisca Júlia da Silva Munster sobressaiu-se pela luta em favor da disseminação da cultura e da literatura para as crianças, bem como pela renovação do ensino propiciado a elas.

Além das escritoras já mencionadas, as quais publicaram suas obras em meados do século XIX, destinadas ao público infantil, ainda soma-se a mineira Alexina de Magalhães Pinto, com As nossas histórias, em 1907. Ela irmanou-se a Francisca Júlia Munster, quanto à busca pela renovação do ensino primário e, acresceu, ainda, a renovação das leituras infantis.

A seguir, Presciliana Duarte de Almeida, com Páginas infantis, publicada em 1908, associa suas idéias às de Zalina Rolim, uma vez que divulgou em suas obras os novos anseios feministas38 e educacionais. Consoante a isso, Novaes Coelho cita que Presciliana Duarte foi uma figura de destaque em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e feminista:

Figura feminina de destaque no movimento cultural, literário e educacional paulista, no entre-séculos, a mineira Presciliana Duarte de Almeida (1867/1944) teve ação importante na divulgação das novas idéias feministas e educacionais. Incentiva a criação da revista estudantil A Aurora (no Ginásio Sílvio de Almeida – SP), escreve peças de teatro que leva à encenação pelos escolares e, em 1908, publica Páginas Infantis, coletânea de estorietas referendadas por uma carta-prefácio de João Kopke. Em 1914, escreve o livro de leitura O Livro das Aves (crestomatia em prosa e verso), adotado em várias escolas paulistas. (NOVAES, 1991, p. 219)
                     
      Percebe-se que, timidamente, as mulheres se inserem no mundo intelectual, porém o número de homens escritores ainda é maior. No Brasil, Júlia Lopes de Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster, Alexina de Magalhães Pinto e Presciliana Duarte de Almeida eram, realmente, consideradas as pioneiras que, provavelmente, incentivaram muitas crianças, jovens e leitoras de várias idades a se tornarem escritoras no século seguinte.

Contudo, não é de se surpreender com o número inexpressivo de escritoras, devido à pressão em relação à mulher, em observância ao cultivo dos padrões tradicionais da época e isso se verificava de tal forma que, até mesmo o que ela devia ler era “sugerido”.    Mas essa realidade não era só vivida no Brasil, Laura Cavalcanti Padilha (1997) mostra um dado importante, porém quanto a escritoras de poesias, na década de 50, em Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau.

[...] a poesia angolana feminina começa a surgir na década de 50, fato este confirmado também com respeito a Cabo Verde onde, em 36 (trinta e seis) poetas, só há uma mulher. No caso de Angola, há 6 (seis), para 53 (cinquenta e três), enquanto em São Tomé e Príncipe, para 7 (sete), há duas e nenhuma em Guiné Bissau, onde, aliás, só se registra o nome de um poeta [...] (PADILHA, 1997, p. 63)
                     
      No Brasil, mudanças lentas começaram a surgir a partir da semana da Arte Moderna, em 1922, quanto às novas formas de linguagem e expressão. Consequentemente, obras novas surgiram no mercado, mas a acessibilidade das mesmas às mulheres continuava a ser demasiadamente lenta e, além disso, o tipo de leitura era lhe sugerido, uma vez que alguns livros não poderiam faltar em sua biblioteca, como a Bíblia, de cunho religioso e de higiene pessoal (relacionada à criança e à purificação espiritual da mulher). Esses livros eram os indicados para a leitura feminina, entre outros.

      Conforme o exposto anteriormente, faz-se interessante ressaltar uma curiosidade que talvez invada a mente de todo pesquisador ou leitor, ou seja, por que as escritoras francesas são sempre postas em destaque quando se buscam as mulheres escritoras de contos de fadas? Várias respostas para este questionamento podem surgir, como, por exemplo: porque a França foi o berço de inúmeras descobertas e lá surgiu o Iluminismo o que pode ter propiciado o caminho para a mulher se inserir no campo literário. De outro modo, Sara Castro-Klarén, citada por Márcia Hoppe Navarro, menciona uma alternativa mais condizente. Segundo Márcia Navarro, a escritora Sara Castro-Klarén sugere que:

[...] a escritura de mulheres latino-americanas está historicamente marcada pelos sinais da marginalidade social, das hierarquias raciais e, como tal, “feminismo” no âmbito de tais segmentações sociais, historicamente determinadas. Essa autora compara a discriminação que a mulher sofre com outros tipos de opressão, apontando que a exclusão da mulher do discurso patriarcal não difere da exclusão resultante do racismo: “o eterno feminino” se assemelha ao eterno “bom selvagem” [...] (NAVARRO, 1997, p. 44-45, grifos da autora)
                     
      Como se não bastassem as questões preconceituosas a que a mulher era submetida, um outro fator também vem justificar o número reduzido de escritoras em relação aos homens, ou seja, algumas se esconderam à sombra de pseudônimos ou desistiram de escrever visando não serem repreendidas e punidas. Além disso, em épocas anteriores, as mulheres eram consideradas seres não inteligentes e, para tanto, as histórias que elas escreviam eram queimadas ou roubadas pelos maridos ou familiares (até mesmo para publicá-las como se fossem escritas por eles mesmos). Era comum a existência de escritoras anônimas ou a utilização de pseudônimos, frequentemente masculinos, como exemplo, as irmãs Brontë que, inicialmente, ficaram conhecidas como os irmãos Bell, para que elas pudessem se proteger da opinião pública ou porque foram desaconselhadas a desenvolver tal atividade, considerada estritamente masculina.

      Virgínia Woolf, citada por Constância Lima Duarte (1997, p. 58), sugere que muitos escritores anônimos que publicaram seus textos em diversos suportes em tempos passados, na verdade, seriam elas, as anônimas.

      Constância Lima Duarte menciona inúmeras histórias que comprovam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao tentarem tornar-se escritoras. Um exemplo será citado somente como detalhe ilustrativo à questão, uma vez que a escritora mencionada não escrevera contos de fadas, mas poesia:

Para falar de literatura de autoria feminina e de cânone, lembro algumas histórias de mulheres, à guisa de ilustração. Começo com a última que tive notícia e que foi publicada recentemente no jornal Folha de São Paulo. Era uma pequena nota e trazia a informação de um artigo recém publicado em Londres afirmava que vários poemas incluídos em The Waste Land, de T. S. Eliot, não seriam de sua autoria e sim de sua primeira esposa, Vivien Haigh Eliot, também escritora. O autor do artigo afirma que Vivien havia publicado muitos dos poemas sob o pseudônimo de Fanny Marlowe, na revista Criterion, e que Eliot, “diante da instabilidade emocional da esposa”, a havia internado em um manicômio britânico, onde ela ficou até falecer [...] (LIMA DUARTE, 1997, p. 53)

Além do caso citado, há um característico no Brasil, envolvendo a escritora Auta de Souza, ou seja, em sua família, composta por homens escritores, não se permitia o surgimento de uma escritora. Provavelmente, não só o preconceito tumultuava a mente masculina, como também o medo da concorrência com o trabalho feminino. Sendo assim, os escritos dela foram reprovados, não agradando em nada seus familiares que, curiosamente, também eram poetas e intelectuais.


Inserido no rol dos homens escritores que, de certa forma, aceitavam o preconceito em relação à exclusão do pensamento feminino literário brasileiro e, consequentemente, a exclusão da mulher na literatura, estava o escritor Graciliano Ramos, citado por Constância Lima Duarte. Na verdade, quando o referido escritor se deparou com a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, duvidou ter sido escrito por uma mulher, pois a cultura patriarcal estava tão arraigada em seu ser, principalmente em seus conceitos e preceitos, que ele não acreditou que o estilo adotado pela escritora fosse um processo natural feminino.

O Quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: – Não há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado. Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O Quinze não me parecia natural. (RAMOS apud LIMA DUARTE, 1997, p. 59, grifos da autora)
                     
      A história confirma que, também em âmbito mundial, havia poucas mulheres que puderam tornar-se escritoras, devido ao preconceito que envolvia a figura feminina e, nesse sentido, firmar-se como escritora não era uma tarefa nada fácil. Evidentemente que, ao conhecer as condições de vida, as dificuldades por elas enfrentadas, os atestados médicos comprovando a insanidade e a incapacidade intelectual feminina, é de se compreender a sua escassa participação antes da década de 40.

      No entanto, percebe-se que devido ao trabalho realizado por essas mulheres escritoras é que novos horizontes se abriram para elas e para tantas outras que estavam por vir. Tanto que    homens escritores engajaram-se em sua causa emancipatória, presenteando o meio literário com personagens femininos inovadores que inspiraram o mundo intelectual.

continua...

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Aparecido Raimundo de Souza (Três Lágrimas)

EU CHOREI PELA PRIMEIRA VEZ NA MINHA VIDA quando meu casamento com a Dalva desmoronou, soterrado por visões sonâmbulas, no árduo facho da angústia dos estertores mais sombrios. Contava vinte e poucos anos, era muito jovem e imaturo. Entre rastros de violências mal cuidadas, parecia um nômade na busca constante da plenitude pessoal. Nenhuma experiência me conduzia à frente, principalmente a de convivência a dois. Na cabeça, um vazio de múltiplas formas não deixava os pensamentos tomarem chão. Se às vezes cogitava abrir o peito, na tentativa de modificar as coisas mais corriqueiras, secretos ventos sopravam contrariamente, e levavam, para longe, esses desejos mais veementes. Por isso, não havia a quem recorrer para pedir conselhos. Fazia o que dava na telha, como Lúcifer nas trevas, o espírito resistindo às fúrias do inferno, batendo, constantemente, com os costados n’água. Morávamos em um subúrbio apodrecido de São Paulo, e, nessa época, eu prestava serviços a meu pai. Estudava faculdade à noite. A cidade, demasiadamente provinciana, consumia a existência dos dias numa luta suprema de atribulações mórbidas. O povo, em si, tacanho e restrito a dogmas antigos, não oferecia condições de perspectivas melhores. Tudo girava em torno de enervante rotina. Um belo dia, acorrentada dentro do próprio ego, Dalva partiu. Foi embora como o vento gasoso transformado em furacão. Levou mala e cuia, e, a tiracolo, arrastou nosso filho Eduardo.

Por esse motivo, pouco ou quase nada recordo dele. O que guardo, são frágeis mimos, retratos intermediários do único aniversário que conseguimos realizar juntos, nada mais. Se olho no espelho e questiono respostas, o silêncio exaurido me cerca e violenta bem fundo o coração. Se penso no garoto ou experimento arrancar lembranças do passado, apenas flui a negação de um grito sufocado na garganta seca. A toda hora, fantasmas iracundos transpõem os umbrais do imensurável e me amedrontam. Geram, no meu cérebro, cenas abjetas de um filme triste e melancólico que não gostaria de rever.

Deparo com feridas abertas cujas chagas não cicatrizaram. Resumo esse tempo observando que muito cedo, na minha vida, ficou tarde demais. Comecei a namorar, andavam altas, as horas no relógio da desesperança. Aos vinte, portanto, o húmus da solidão denegrida, já havia envelhecido os dias e escurecido, sobremaneira, meu risonho e cálido amanhã...

EU CHOREI PELA SEGUNDA VEZ NA MINHA VIDA quando meu relacionamento amoroso e afetivo com a Carla complicou mais do que devia. Naufraguei,de repente, nas águas gélidas de um mar enfurecido e me acorrentei em porões mal cheirosos, onde lâmpadas e grades se confundiam com despojos de um fim de aurora traçado por mãos incógnitas. Nessa época, já diplomado, nascia do estardalhaço do anel de grau à vontade de seguir carreira e me tornar um advogado brilhante. Na casa dos trinta, ganhava a vida sepultando os meses com os poucos clientes que apareciam no escritório. Carla, a jovem esposa, moldava seus projetos a instintos soltos; construía um universo sem subterrâneos. Nas horas de folga, trabalhava comigo na função de secretaria. Também estudava as ciências jurídicas e pretendia, mais à frente, ser alguém de raízes, pontilhando caminhos em busca de crepúsculos não fecundados. Antes de providenciar o divórcio com Dalva (a primeira mulher), passamos a dormir interiorizado sono, acordar com a alquimia do pôr do sol, a dividir tarefas e afazeres embaixo do mesmo teto. Dessa união, olhos e pensamentos navegando idêntico curso, futuro e pretérito interligados em igual verbo, nasceu Narjara. Todavia, o destino se esvaiu nos contornos da repetição e dividiu espaços. De súbito, veio o fim. Com ele, rusgas, gritos, lágrimas molhando o espelho, reservando, uma vez mais, novas incertezas e dissabores.

Cada um seguiu por sendas opostas. Ânsias solfejando rimas desconexas desenharam um poema melancólico em derredor do que restou de um amor que parecia eterno. Na verdade, foi dura a visão que entrou pela janela na qual me debrucei cansado, vencido, magoado, tentando ver lá fora, na multiplicação do pesado silêncio, o vazio que permaneceu depois que ela (igualmente de bolsas e malas) passou a mão em Narjara, bateu a porta de casa alçando voo em direção a incerto porvir...

ENTÃO EU CHOREI PELA TERCEIRA VEZ NA MINHA VIDA. Desta feita, não por casamentos destruídos, ou por invasões de sofrimentos no alagadiço da alma em frangalhos. Derramei lágrimas em trêmulo mistério pelo nascimento de Amanda, minha filha com Marlúcia. A miudinha chegou, num mastim sonoro, bebendo o orgulho que crescia ao meu redor. Abriu os olhinhos assistida por bons médicos, maternidade de primeira linha, tudo a tempo e a hora. Eufórico, nutrindo a certeza do mortal esplendor, não cabia, no corpo, o contentamento que fluía de dentro do meu coração. Preparei sonhos para o esperado dia. Ensaiei piqueniques, acordei quimeras de um adormecido desejo de explosão refreado na alma. Deixei que florescesse a esperança, como uma canção inocente rasgando o crepúsculo. E ela coroou eterna estrela, efêmera luz divinal, anjo descido do espaço. Mas trouxe, porém, no lábio superior, um pequeno corte desfigurando o rostinho de boneca. Foi, na verdade, um choque, um baque tremendo que consumiu parte de mim. Senti-me como o faminto sem o pão para aplacar a fome visceral, como a dor incômoda na pele do enfermo descrente, como a fé que se matou de tédio no peito de um condenado à pena de morte. Senti-me como se alguém atirasse, inopinadamente, um balde de água fria, com afoiteza descomedida, em noves meses de espera, cercados de preparações e surpresas. Todavia, Amanda, meses depois, cirurgiada, voltou ao normal. Do quadro antigo somente fotos selecionadas em álbuns de família. Uma fita de vídeo mal gravada. Um pedaço da história, da pureza, da infância que logo se tornou remota. Evidentemente que essa lacuna não ficará adormecida, ou esquecida no “para sempre’’.

Amanhã, ou depois, já mocinha, Amanda, irá por certo, indagar por essa fase da sua estrada. É o livro que ao ser folheado não poderá estar faltando nenhuma página, mesmo que essa página traga, à tona, acontecimentos e lembranças que deveriam ficar enterradas.

Amanda, hoje, grita o universo a plenos pulmões. É flor em botão, barco de alegrias singrando águas tranquilas. Minha filha saltita, pula, corre, ri o rostinho marcado por uma tênue e quase apagada cicatriz. Ingênua pétala misturando esperança e perdão em flashes endereçados a Deus. Seu olhar é um pouquinho triste, com certeza, é um pouquinho triste. Quando a vejo (o dedinho polegar esquerdo na boca), me ponho a imaginar o que fiz de errado para ser castigado através dessa inocente? Ao mesmo tempo, me alegro interiormente, porque numa determinada intermitência do destino, entre espinhos e chagas, entre acertos e desacertos, entre idas e vindas, nesse encontro especial (por que não?), ela chegou como uma esperança sem par, iluminando com fulgor descomedido, meus passos incertos. Essa mocinha quer queira eu, ou não, mudou radicalmente os horizontes que pairam sobre minha cabeça -, e, mais que isso -, me fez acreditar piamente que lá do alto, bem acima das nuvens visíveis, alguém gosta um bocadinho assim, de mim. Barriguinha (como a trato carinhosamente) me consagra ao seu esbanjamento de vida plena e eu me sinto inteiramente realizado e feliz por ter tido a sorte de ser escolhido para ser seu PAI.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP : Ed. Sucesso, 2012.