segunda-feira, 18 de junho de 2018

Trova 309 - Elen de Moraes Kochman (Rio de Janeiro/RJ)

Fonte: http://elendemoraes.blogspot.com/

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) III


UM GRÃO DE INCENSO
A Lourenço Cayolla

Entraste com ar cansado
Numa igreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
– E nem ao menos me viste...

Ficaste a rezar ali,
Naquela imensa tristeza.
Rezei também, mas a ti,
– Que aos anjos também se reza...

Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
– E a caridade te falta?...

A MÁSCARA
A Santos Tavares

Por acaso, parou na minha frente,
De "loup" e dominó de seda negra,
Uma mulher d'olhar resplandecente
E mento breve de figura grega.

Tomei-lhe as mãos esguias entre as minhas...

E os seus olhos doirados reluziram
Como os punhais ao sol, quando se tiram,
Aguçados e frios, das bainhas.

– Máscara, quem és tu?

– E tu quem és?...

– Um homem que te viu e te deseja...

E um riso vago, de desdem talvez,
Floriu na sua boca de cereja.

Ergui-lhe as mãos ascéticas. Beijei-as.

Em vibrações entrecortadas, secas,
Tiniam taças irisadas, cheias.
E uma frase d'amor, toda em colcheias,
Vibrava nas arcadas das rebecas.

Levei-a para o vão duma janela.
– Máscara, quem és tu?

– Para que insistes?...

Outro riso subiu da boca dela
Aos olhos enigmáticos e tristes.

E descobriu a face. No capuz
Emoldurou-se um rosto lindo e sério.

Que diferente porém do que eu supus!

A gente nunca deve entrar com luz
Nos divinos recantos do mistério...

IN PROMPTUM PASTORAL
A Amadeu de Freitas

«Muito vence quem se vence
Muito diz quem não diz tudo,
Porque a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.»
("Copla do Infante D. Luiz")

Sob este céu criador
De manhã vergiliana,
Apetece ser pastor
E tocar frauta de cana;

Não, pastor d'autos d'amor,
D'éclogas frias e velhas,
Mas verdadeiro pastor
De verdadeiras ovelhas...

Não conhecer o talento
Nem nada do que se ensina.
Esta dor do entendimento
É pior do que se imagina...

Guiar o meu coração
Num ingênuo cristianismo.
Esta civilização
É cheia de pessimismo...

Comer pão negro, pão duro,
Beber o leite das pearas.
Pão de centeio é escuro,
– Mas põe as almas às claras...

Amar alguma pastora
Com palavras e com obras.
Estas senhoras d'agora
São mais falsas do que as cobras...

E ver criar com carinho,
Com cuidados infinitos,
À companheira, um filhinho...
E às ovelhas, borreguitos...

A CANÇÃO DAS PERDIDAS
A Vianna da Motta

I

Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
– É Maria Magdalena...

II

Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

III

Meu pai foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora de pena...

IV

E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce água limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai...

V

Aquele que me roubou
A virtude de donzela
Se outra honra lhe não dou,
– É porque só tive aquela!...

VI

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'água cantante,
Quem te quer, para um bocado.
Quem não quer, passa adiante...

VII

O meu amor, por ama-lo,
Pôs-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixa-lo.
Mas ao menos não me paga!

VIII

Nem toda a água do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

IX

Como querem ver contente
Este país desgraçado,
Se dão só livros à gente
Nas escolas do pecado...

X

Dormia o meu coração
Cansado de fingimento.
Bateste-me, e vai então
Acordou nesse momento.

XI

Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse voz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. 
Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

Olivaldo Júnior (Pequeno Conto Junino)


O menino tinha apenas uns dez anos de vida. Não sei ao certo, pois eu não morava na Cidade. Era um forasteiro que, de quando em quando, passava por ali. Mas o rosto do moleque não me saía da lembrança, pois se parecia muito com o rosto do filho que tive e que Nosso Senhor tão cedinho levou... Que saudade! A mesma que eu matava toda vez que chegava à cidadezinha em que morava o menino que era filho do dono da venda, o pequeno José.

José adorava quermesse. Seus olhinhos de quem ainda não viu quase nada faiscavam quando viam as faíscas da fogueira que o povão aprontava no terreno baldio, detrás da igreja. Quanta vontade de fazer como a galera mais velha e sair pisando a brasa, para a prova de que o fogo só queima os mais lentos! Sentia outro fogo em si mesmo, em sua alma infantil, sempre envolta em traquinagens com o amiguinho João. Eu, que nem morava lá, via tudo isso.

No dia de São João, José e seu amiguinho corriam soltos pela praça quando eu, que arrastava asa para uma bela morena, caso antigo, em pleno revival, topei com os dois, que derrubaram toda a pipoca no chão. “Minha pipoca!”, disse José, todo choroso. João, mais conformado, ofereceu uns trocos ao pobre e, quando já se iam embora, deixei a dona de lado e, num gesto de coragem, falei com José: “Deixa que eu pago a pipoca dos dois”, que, no início, não queriam aceitar, mas, depois de pensarem por exatos cinco segundos, aceitaram o agrado. “Espera, amor, que já volto!...”, falei para a bela que me dava bola e bebia um quentão.

Assim, na barraca de pipoca e milho verde quentinho, paguei pipoca e leite quente para os dois, que me agradeceram muito e, de posse dos mimos, lá se foram para a festa, ao som de modas de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Elba e Companhia Ilimitada, pessoal do Norte e Nordeste que tanto canta a tradição popular brasileira, sobretudo a junina. Nem olharam para trás, mas, ao dar pipoca e leite para o José, dava um pouco de alegria para o meu filho.

“Olha pro céu, meu amor / Vê como ele está lindo / Olha pra aquele balão multicor / Como no céu vai sumindo”... E a bela da noite, doidinha por mim, notou uma lágrima junina em meus olhos, que, ainda hoje, diz que foi por ela...

 Fonte: O Autor 

domingo, 17 de junho de 2018

Trova 308 - Lourdes Gutbrod (Rio de Janeiro/RJ)

Fonte: Facebook (Grupo: Meus Irmãos Trovadores)

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 6


TÃO PERTO E TÃO LONGE

MOTE:
Tanta luz, tanto carinho,
neste olhar abrasador
eu tão perto e tão sozinho
sem provar o seu amor.
Belmiro Ferreira

GLOSA:
Tanta luz, tanto carinho,
tanta paz, tanta ternura,
você deixa no caminho
num rastro só de ventura!

Vejo um brilho alucinante
neste olhar abrasador
perpetuando aquele instante
do meu eu, tão sonhador.

Essa distância é um espinho
que se pôs entre nós dois,
eu tão perto e tão sozinho
no meu hoje. E o meu depois?

Fico sem saber porquê
o porquê de tanta dor...
estar perto de você
sem provar do seu amor.

SONHO CONTIGO

MOTE:
Sonho contigo dormindo,
sonho contigo acordada,
eu levo a vida sorrindo
vivendo a vida sonhada!
Dalvina Fagundes Ebling

GLOSA:
Sonho contigo dormindo,
num êxtase incontrolado,
e do sono vou fugindo
para ficar ao teu lado.

Tu és o meu grande amor
sonho contigo acordada,
sem sonhar, o desamor
eu teria em minha estrada.

Por lembrar teu rosto lindo,
o teu beijo e o teu carinho,
eu levo a vida sorrindo
sou feliz no meu caminho.

Agora, no meu depois
me sinto realizada,
revivo o amor de nós dois,
vivendo a vida sonhada!

É LOGO ALI...

MOTE:
Por mais que a vida se oponha
traze os sonhos junto a ti,
porque aos olhos de quem sonha,
o infinito é logo ali!...
Edmar Japiassú Maia

GLOSA:
Por mais que a vida se oponha
segue a sonhar, continua...
não precisas ter vergonha,
a vida é somente tua!

Para viver o teu dia
traze os sonhos junto a ti,
pois te darão alegria
e o sonho sempre sorri!

Jamais ficarás tristonha,
serás feliz de verdade
porque aos olhos de quem sonha,
só existe a felicidade!

Sim! Existe! Está pertinho,
sonhando feliz previ...
Avistei do meu caminho
O infinito... é logo ali!…

A TERNURA

MOTE:
Ai! Que seria da gente,
neste mundo de amargura,
sem o bálsamo clemente
que nos oferta a ternura!
Hugo Ramirez

GLOSA:
Ai! Que seria da gente,
se o amor não existisse
e esse carinho envolvente
para nós nunca sorrisse?

Devemos saber viver
neste mundo de amargura,
ter muito amor e amor ser:
ser dele a imagem mais pura!

O amor é algo consciente
que nos traz muita alegria!
sem o bálsamo clemente
do amor, que de nós seria?

Assim, em nosso caminho
numa vida de ventura
nós veremos o carinho
que nos oferta a ternura!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós
abril de 2003.

Mário Quintana (Prosas Poéticas) I

Da paginação

        Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas...

Momento

        O homem parou, cheio de dedos, para procurar os fósforos nos bolsos. A insidiosa frescura do mar lhe mandou um pensamento suicida. E Veio um riso límpido, e irresistível - em i, em a, em o - do fundo de um pátio da infância. Um riso... Senão quando o homem achou os fósforos e a vida recomeçou. Apressada, implacável, urgente. A vida é cheia de pacotes...

Objetos perdidos

        Os guarda-chuvas perdidos.. aonde vão parar Os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras, os lenços com pequenas economias, aonde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes? Não sabes? Vão parar nos anéis de Saturno, são eles que formam, eternamente girando, os estranhos anéis desse planeta misterioso e amigo.

Do inédito

        E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável NOVO do outro lado do mundo, quase do Outro lado da vida, uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado... Nós, os antípodas, somos assim.

Feliz!

        Deitado no alto do carro de feno... com os braços e as pernas abertos em X... e as nuvens, os voos passando por cima... Por que estradas de abril viajei assim um dia? De que tempos, de que terras guardei essa antiga lembrança, que talvez seja a mais feliz das minhas falsas recordações?

Sinais dos tempos

        Esses que, pelas estradas claras dos primeiros séculos, mendigavam e faziam pueris e deliciosos milagres, e viraram agora transformistas de palco. Santos que perderam a fé, socorrem-se habilmente dos recursos inesgotáveis que a técnica hoje em dia nos proporciona, quando seria muito mais fácil um milagre... A divina simplicidade de um milagre.

Aventura no parque

        No banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: "Colhe o momento que passa". Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira. "Quem monta num tigre (dizia, à página seguinte, um provérbio chinês), quem monta num tigre não
pode apear.

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. 
Porto Alegre/RS: Editora Globo, 1948.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) IV


ANJINHO CAÍDO DO CÉU

Quem é esta garota de loiros cabelos,
De olhos azulados, com um lindo chapéu...
De boca pequena, de pés pequeninos,
Mas parece um anjinho caído do céu.

É toda formosa de pele bem clara.
De rosto bonito e encantador olhar,
Quando ela passa cheia de graça,
O povo que passa, resolve parar.

Pois no mundo até então, nunca se tinha visto,
Criatura tão perfeita, de beleza tão grande,
Que ao vê-la qualquer mortal perde a voz,
Se ela é da terra ou de outro planeta,
O mais importante é que está entre nós.

COMO ME ILUDI 

Entre outras que conheci...
Tu foste aquela...
Que sempre amei. 
Eras para mim,
A fonte de ternura! 
E único amor que sempre devotei. 

Eras para mim a eterna claridade. 
Mesmo nos dias nublados... 
E noites sem lua!
Eras para mim o sol,
Com o seus raios divinos.
Ao me aquecer... 
Após uma noite fria! 

Hoje apesar dos tempos... 
Já passados! 
E saber que já... 
É uma página virada...
Como me iludi!
Com estes pensamentos... 
Como posso te esquecer, 
Se tu foste a minha amada.

FERRO DE BRASA

A vovó era simpática,
Morava aqui na Comasa.
E passava toda a roupa,
Com o seu ferro de brasa.

Quando chegou o ferro elétrico,
Começou a reclamar
Dizendo este ferro não esquenta
Como é que vou passar?

Como é que irei passar...
O terno do João?
E o vestido da Geralda?
Este ferro não esquenta
As roupas ficam amassadas.

E era assim todas às vezes
Que a vovó ia passar
As roupas que precisava
Sempre a questionar.

Foi então que mamãe disse
Já de tanto intrigada,
Este ferro esquenta sim
A senhora é que não está acostumada.

Mas resolveu em segundos
Problema de quase um mês,
Depressa foi na dispensa,
Trouxe o de brasa outra vez.

OUÇO ISSO COM TRISTEZA

Porque ainda temas em dizer me, que me amas,
E que o teu amor é o mais puro do mundo!
E que a minha fisionomia está sempre diante de ti,
E por isso não podes esquecer-me nem por um segundo.

Ouço isso com tristeza prima da hipocrisia,
Pois quando estávamos juntos, fingias amar-me!
Usando uma formula que na verdade!
Eu já conhecia.

Acredito teres algum curso de teatro!
Ou quem sabe vês muita novela...
No momento vejo-te como uma atriz,
Representando o papel duma delas.

Fonte: O Poeta

Mário de Andrade (O Besouro e a Rosa)

Belazarte me contou:

Não acredito em bicho maligno mas besouro, não sei não. Olhe o que sucedeu com a Rosa... Dezoito anos. E não sabia que os tinha. Ninguém reparara nisso. Nem dona Carlotinha nem dona Ana, entretanto já velhuscas e solteironas, ambas quarenta e muito. Rosa viera pra companhia delas aos sete anos quando lhe morreu a mãe. Morreu ou deu a filha que é a mesma coisa que morrer. Rosa crescia. O português adorável do tipo dela se desbastava aos poucos das vaguezas físicas da infância. Dez anos, quatorze anos, quinze... Afinal dezoito em maio passado. Porém Rosa continuava com sete, pelo menos no que faz a alma da gente. Servia sempre as duas solteironas com a mesma fantasia caprichosa da antiga Rosinha. Ora limpava bem a casa, ora mal. Às vezes se esquecia do paliteiro no botar a mesa pro almoço. E no quarto afagava com a mesma ignorância de mãe de brinquedo a mesma boneca, faz quanto tempo nem sei! lhe dera dona Carlotinha no intuito de se mostrar simpática. Parece incrível, não? porém nosso mundo está cheio desses incríveis: Rosa mocetona já, era infantil e de pureza infantil. Que as purezas como as morais são muitas e diferentes... Mudam com os tempos e com a idade da gente... Não devia ser assim, porém é assim, e não temos que discutir. Mas com dezoito anos em 1923, Rosa possuía a pureza das crianças dali... pela batalha do Riachuelo mais ou menos... Isso: das crianças de 1865. Rosa... que anacronismo!

Na casinha em que moravam as três, caminho da Lapa, a mocidade dela se desenvolvera só no corpo. Também saía pouco e a cidade era pra ela a viagem que a gente faz uma vez por ano quando muito, finados chegando. Então dona Ana e dona Carlotinha vestiam seda preta, sim senhor! botavam um sedume preto barulhando que era um desperdício. Rosa acompanhava as patroas na cassa mais novinha, levando os copos-de-leite e as avencas todas da horta. Iam no Araçá aonde repousava a lembrança do capitão Fragoso Vale, pai das duas tias. Junto do mármore raso dona Carlotinha e dona Ana choravam. Rosa chorava também, pra fazer companhia. Enxergava as outras chorando, imaginava que carecia chorar também, pronto! chororó... abria as torneirinhas dos olhos pretos pretos, que ficavam brilhando ainda mais. Depois visitavam comentando os túmulos endomingados. Aquele cheiro... Velas derretidas, famílias bivacando, afobação encrencada pra pegar o bonde... que atordoamento meu Deus! A impressão cheia de medos era desagradável.

Essa anualmente a viagem grande da Rosa. No mais: chegadas até a igreja da Lapa algum domingo solto e na Semana Santa. Rosa não sonhava nem matutava. Sempre tratando da horta e de dona Carlotinha. Tratando da janta e de dona Ana. Tudo com a mesma igualdade infantil que não implica desamor não. Nem era indiferença, era não imaginar as diferenças, isso sim. A gente bota dez dedos pra fazer comida, dois braços pra varrer a casa, um bocadinho de amizade pra fulano, três bocadinhos de amizade pra sicrano que é mais simpático, um olhar pra vista bonita do lado com o espigão de Nossa Senhora do Ó numa pasmaceira lá longe, e de supetão, zás! bota tudo no amor que nem no campista pra ver se pega uma cartada boa. Assim é que fazemos... A Rosa não fazia. Era sempre o mesmo bocado de corpo que ela punha em todas as coisas: dedos braços vista e boca. Chorava com isso e com o mesmo isso tratava de dona Carlotinha. Indistinta e bem varridinha. Vazia. Uma freirinha. O mundo não existia pra... qual freira! santinha de igreja perdida nos arredores de Évora. Falo da santinha representativa que está no altar, feita de massa pintada. A outra, a representada, você bem sabe: está lá no céu não intercedendo pela gente... Rosa se carecesse intercedia. Porém sem saber por quê. Intercedia com o mesmo pedaço de corpo dedos braços vista e boca sem mais nada. A pureza, a infantilidade, a pobreza-de-espírito se vidravam numa redoma que a separava da vida. Vizinhança? Só a casinha além, na mesma rua sem calçamento, barro escuro, verde de capim livre. A viela era engolida num rompante pelo chinfrim civilizado da rua dos bondes. Mas já na esquina a vendinha de seu Costa impedia Rosa de entrar na rua dos bondes. E seu Costa passava dos cinquenta, viúvo sem filhos, pitando num cachimbo fedido. Rosa parava ali. A venda movia toda a dinâmica alimentar da existência de dona Ana, de dona Carlotinha e dela. E isso nas horas apressadas da manhã, depois de ferver o leite que o leiteiro deixava muito cedo no portão.

Rosa saudava as vizinhas da outra casa. De longe em longe parava um minuto conversando com a Ricardina. Porém não tinha assunto, que que havia de fazer? partia depressa. Com essas despreocupações de viver e de gostar da vida, como é que podia reparar na própria mocidade! não podia. Só quem pôs reparo nisso foi o João. De primeiro ele enrolava os dois pães no papel acinzentado e atirava o embrulho na varanda. Batia pra saberem e ia-se embora tlindliirim dlimdlrim, na carrocinha dele. Só quando a chuva era de vento, esperava com o embrulho na mão.

— Bom-dia.

— Bom-dia.

— Que chuva.

— Um horror.

— Até amanhã.

— Até amanhã.

Porém duma feita, quando embrulhava os pães na carrocinha, percebeu Rosa que voltava da venda. Esperou muito naturalmente, não era nenhum malcriado não. O sol dava de chapa no corpo que vinha vindo. Foi então que João pôs reparo na mudança da Rosa, estava outra. Inteiramente mulher com pernas bem delineadas e dois seios agudos se contando na lisura da blusa, que nem rubi de anel dentro da luva. Isto é... João não viu nada disso, estou fantasiando a história. Depois do século dezenove os contadores parece que se sentem na obrigação de esmiuçar com sem-vergonhice essas coisas. Nem aquela cor de maçã camoesa amorenada limpa... Nem aqueles olhos de esplendor solar... João reparou apenas que tinha um mal-estar por dentro e concluiu que o mal-estar vinha da Rosa. Era a Rosa que estava dando aquilo nele não tem dúvida. Alastrou um riso perdido na cara. Foi-se embora tonto, sem nem falar bom-dia direito. Mas daí em diante não jogou mais os pães no passeio. Esperava que a Rosa viesse buscá-los das mãos dele.

— Bom-dia.

— Bom-dia. Por que não atirou?

— É... Pode sujar.

— Até amanhã.

— Até amanhã, Rosa!

Sentia o tal de mal-estar e ia-se embora.

João era quase uma Rosa também. Só que tinha pai e mãe, isso ensina a gente. E talvez por causa dos vinte anos... De deveras chegara nessa idade sem contato de mulher, porém os sonhos o atiçavam, vivia mordido de impaciências curtas. Porém fazia pão, entregava pão e dormia cedo. Domingo jogava futebol no Lapa Atlético. Quando descobriu que não podia mais viver sem a Rosa, confessou tudo pro pai.

— Pois casa, filho. É rapariga boa, não é?

— É, meu pai.

— Pois então casa! A padaria é tua mesmo... não tenho mais filhos... E se a rapariga é boa...

Nessa tarde dona Ana e dona Carlotinha recebiam a visita envergonhada do João. Que custo falar aquilo! Afinal quando elas adivinharam que aquele mocetão, manco na fala porém sereno de gestos, lhes levava a Rosa, se comoveram muito. Se comoveram porque acharam o caso muito bonito, muito comovente. E num instante repararam também que a criadinha estava uma mocetona já. Carecia se casar. Que maravilha, Rosa se casava! Havia de ter filhos! Elas seriam as madrinhas... Quase se desvirginavam no gozo de serem mães dos filhos da Rosinha. Se sentiam até abraçadas, apertadas e, cruz credo! faziam cada pecadão na inconsciência...

— Rosa!

— Senhora?

— Venha cá!

— Já vou, sim senhora!

Ainda não sabiam se o João era bom mas parecia. E queriam gozar o encafifamento de Rosa e do moço, que maravilha!

Apertados nos batentes da porta relumearam dezoito anos fresquinhos.

— Rosa, olhe aqui. O moço veio pedir você em casamento.

— Pedir o que!...

— O moço diz que quer casar com você.

Rosa fizera da boca uma roda vermelha. Os dentes regulares muito brancos. Não se envergonhou. Não abaixou os olhos. Rosa principiou a chorar. Fugiu pra dentro soluçando. Dona Carlotinha foi encontrar ela sentada na tripeça junto do fogão. Chorava gritadinho, soluçava aguçando os ombros, desamparada.

— Rosa, que é isso! Então é assim que se faz!? Se você não quer, fale!

— Não! Dona Carlotinha, não! Como é que vai ser! Eu não quero largar da senhora!...

Dona Carlotinha ponderou, gozou, aconselhou... Rosa não sabia pra onde ir se casasse, Rosa só sabia tratar de dona Carlotinha... Rosa pôs-se a chorar alto. Careceu tapar a boca dela, salvo seja! pra que o moço não escutasse, coitado! Afinal dona Ana veio saber o que sucedia, morta de curiosidade.

João ficou sozinho na sala, não sabia o que tinha acontecido lá dentro, mas porém adivinhando que lhe parecia que a Rosa não gostava dele.

Agora sim, estava mesmo atordoado. Ficou com vergonha da sala, de estar sozinho, não sei, foi pegando no chapéu e saindo num passo de boi-de-carro. Arredondava os olhos espantado. Agora percebia que gostava mesmo da Rosa. A tábua dera uma dor nele, o pobre!

Foi tarde de silêncio na casa dele. O pai praguejou, ofendeu a menina. Depois percebendo que aquilo fazia mal ao filho se calou.

No dia seguinte João atirou o pão no passeio e foi-se embora. Lhe dava de supetão uma coisa esquisita por dentro, vinha lá de baixo do corpo apertando, quase sufocava e a imagem da Rosa saía pelos olhos dele trelendo com a vida indiferente da rua e da entrega do pão. Graças a Deus que chegou em casa! Mas era muito sem letras nem cidade pra cultivar a tristeza. E Rosa não aparecia pra cultivar o desejo... No domingo ele foi um zagueiro estupendo. Por causa dele o Lapa Atlético venceu. Venceu porque derrepentemente ela aparecia no corpo dele e lhe dava aquela vontade, isto é, duas vontades: a... já sabida e outra, de esquecimento e continuar dominando a vida... Então ele via a bola, adivinhava pra que lado ela ia, se atirava, que lhe incomodava agora de levar pé na cara! quebrar a espinha! arrebentasse tudo! morresse! porém a bola não havia de entrar no gol. João naturalmente pensava que era por causa da bola.

Rosa quando viu que não deixava mesmo dona Ana e dona Carlotinha teve um alegrão. Cantou. Agora é que o besouro entra em cena... Rosa sentiu uma calma grande. E não pensou mais no João.

— Você se esqueceu do paliteiro outra vez!

— Dona Ana, me desculpe!

Continuou limpando a casa ora bem ora mal. Continuou ninando a boneca de louça. Continuou.

Essa noite muito quente, quis dormir com a janela aberta. Rolava satisfeita o corpo nu dentro da camisola, e depois dormiu. Um besouro entrou. Zzz, zzz, zzzuuuuuummmm, pá! Rosa dormida estremeceu à sensação daquelas pernas metálicas no colo. Abriu os olhos na escureza. O besouro passeava lentamente. Encontrou o orifício da camisola e avançava pelo vale ardente entre morros. Rosa imaginou uma mordida horrível no peito, sentou-se num pulo, comprimindo o colo. Com o movimento, o besouro se despegara da epiderme lisa e tombara na barriga dela, zzz tzzz... tz. Rosa soltou um grito agudíssimo. Caiu na cama se estorcendo. O bicho continuava descendo, tzz... Afinal se emaranhou tzz-tzz, estava preso. Rosa estirava as pernas com endurecimentos de ataque. Rolava. Caiu.

Dona Ana e dona Carlotinha vieram encontrá-la assim, espasmódica, com a espuma escorrendo do canto da boca. Olhos esgazeados relampejando que nem brasa. Mas como saber o que era! Rosa não falava, se contorcendo. Porém dona Ana orientada pelo gesto que a pobre repetia, descobriu o bicho. Arrancou-o com aspereza, aspereza pra livrar depressa a moça. E foi uma dificuldade acalmá-la... Ia sossegando sossegando... de repente voltava tudo e era tal-e-qual ataque, atirava as cobertas rosnava, se contorcendo, olhos revirados, hum... Terror sem fundamento, bem se vê. Nova trabalheira. Lavaram ela, dona Carlotinha se deu ao trabalho de acender fogo pra ter água morna que sossega mais, dizem. Trocaram a camisola, muita água com açúcar...

— Também por que você deixou janela aberta, Rosa...

Só umas duas horas depois tudo dormia na casa outra vez. Tudo não. Dois olhos fixando a treva, atentos a qualquer ressaibo perdido de luz e aos vultos silenciosos da escuridão. Rosa não dorme toda a noite. Afinal escuta os ruídos da casa acordando. Dona Ana vem saber. Rosa finge dormir, desarrazoadamente enraivecida. Tem um ódio daquela coroca! Tem nojo de dona Carlotinha... Ouve o estalo da lenha no fogo. Escuta o barulho do pão atirado contra a porta do passeio. Rosa esfrega os dedos fortemente pelo corpo. Se espreguiça. Afinal levantou.

Agora caminha mais pausado. Traz uma seriedade nunca vista ainda, na comissura dos lábios. Que negrores nas pálpebras! Pensa que vai trabalhar e trabalha. Limpa com dever a casa toda, botando dez dedos pra fazer a comida, botando dois braços pra varrer, botando os olhos na mesa pra não esquecer o paliteiro. Dona Carlotinha se resfriou. Pois Rosa lhe dá uma porção de amizade. Prepara chás pra ela. Senta na cabeceira da cama, velando muito, sem falar. As duas velhas olham pra ela ressabiadas. Não a reconhecem mais e têm medo da estranha. Com efeito Rosa mudou, é outra Rosa. E uma rosa aberta. Imperativa, enérgica. Se impõe. Dona Carlotinha tem medo de lhe perguntar se passou bem a noite. Dona Ana tem medo de lhe aconselhar que descanse mais. E sábado porém podia lavar a casa na segunda-feira... Rosa lava toda a casa como nunca lavou. Faz uma limpeza completa no próprio quarto. A boneca... Rosa lhe desgruda os últimos crespos da cabeça, gesto frio. Afunda um olho dela, portuguesmente, à Camões. Porém pensa que dona Carlotinha vai sentir. A gente nunca deve dar desgostos inúteis aos outros, a vida é já tão cheia deles!... pensa. Suspira. Esconde a boneca no fundo da canastra.

Quando foi dormir teve um pavor repentino: dormir só!... E se ficar solteira! O pensamento salta na cabeça dela assim, sem razão. Rosa tem um medo doloroso de ficar solteira. Um medo impaciente, sobretudo impaciente, de ficar solteira. Isso é medonho! É UMA VERGONHA!

Se vê bem que nunca tinha sofrido, a coitada! Toda a noite não dormiu. Não sei a que horas a cama se tornou insuportavelmente solitária pra ela. Se ergue. Escancara a janela, entra com o peito na noite, desesperadamente temerária. Rosa espera o besouro. Não tem besouros essa noite. Ficou se cansando naquela posição, à espera. Não sabia o que estava esperando. Nós é que sabemos, não? Porém o besouro não vinha mesmo. Era uma noite quente... A vida latejava num ardor de estrelas pipocantes imóveis. Um silêncio!... O sono de todos os homens, dormindo indiferentes, sem se amolar com ela... O cheiro de campo requeimado endurecia o ar que parara de circular, não entrava no peito! Não tinha mesmo nada na noite vazia. Rosa espera mais um poucadinho. Desiludida, se deita depois. Adormece agitada. Sonha misturas impossíveis. Sonha que acabaram todos os besouros desse mundo e que um grupo de moças caçoa dela zumbindo: Solteira! às gargalhadas. Chora em sonho.

No outro dia dona Ana pensa que carece passear a moça. Vão na missa. Rosa segue na frente e vai namorar todos os homens que encontra. Tem de prender um. Qualquer. Tem de prender um pra não ficar solteira. Na venda de seu Costa, Pedro Mulatão já veio beber a primeira pinga do dia. Rosa tira uma linha pra ele que mais parece de mulher-da-vida. Pedro Mulatão sente um desejo fácil daquele corpo, e segue atrás. Rosa sabe disso. Quem é aquele homem? Isso não sabe. Nem que soubesse do vagabundo e beberrão, é o primeiro homem que encontra, carece agarrá-lo sinão morre solteira. Agora não namorará mais ninguém. Se finge de inocente e virgem, riquezas que não tem mais... Porém é artista e representa. De vez em quando se vira pra olhar. Olhar dona Ana. Se ri pra ela nesse riso provocante que enche os corpos de vontade.

Na saída da missa outro olhar mais canalha ainda. Pedro Mulatão para na venda. Bebe mais e trama coisas feias. Rosa imagina que falta açúcar, só pra ir na venda. É Pedro que traz o embrulho, conversando. Convida-a pra de-noite. Ela recusa porque assim não casará. Isso pra ele é indiferente: casar ou não casar... Irá pedir.

Desta vez as duas tias nem chamam Rosa, homem repugnante não? Como casá-la com aqueles trinta-e-cinco anos!... No mínimo, de trinta-e-cinco pra quarenta. E mulato, amarelo pálido já descorado... pela pinga, Nossa Senhora!...

Desculpasse, porém a Rosa não queria casar. Então ela aparece e fala que quer casar com Pedro Mulatão. Elas não podem aconselhar nada diante dele, despedem Pedro. Vão tirar informações. Que volte na quinta-feira.

As informações são as que a gente imagina, péssimas. Vagabundo, chuva, mau-caráter, não serve não. Rosa chora. Há de casar com Pedro Mulatão e se não deixarem, ela foge. Dona Ana e dona Carlotinha cedem com a morte na alma.

Quando o João soube que a Rosa ia casar, teve um desespero na barriga. Saiu tonto, pra espairecer. Achou companheiros e se meteu na caninha. Deixaram ele por aí, sentado na guia da calçada, manhãzinha, podre de bebedeira. O rondante fez ele se erguer.

— Moço, não pode dormir nesse lugar não! Vá pra sua casa!

Ele partiu, chorando alto, falando que não tinha a culpa. Depois deitou no capim duma travessa e dormiu. O sol o chamou. Dor-de-cabeça, gosto ruim na boca...

E a vergonha. Nem sabe como entra em casa. O estrilo do pai é danado. Que insultos! seu filho disto, seu não-sei-que-mais, palavras feias que arrepiam...

Ninguém imaginaria que homem tão bom pudesse falar aquelas coisas. Ora! todo homem sabe bocagens, é só ter uma dor desesperada que elas saem. Porque o pai de João sofre deveras. Tanto como a mãe que apenas chora. Chora muito. João tem repugnância de se mesmo. De-tarde quando volta do serviço, a Carmela chama ele na cerca. Fala que João não deve de beber mais assim, porque a mãe chorou muito. Carmela chora também. João percebe que se beber outra vez, se prejudicará demais. Jura que não cai noutra, Carmela e ele suspiram se olhando. Ficam ali.

Ia me esquecendo da Rosa... Conto o resto do que sucedeu pro João um outro dia. Prepararam enxoval apressado pra ela, menos de mês. Ainda na véspera do casamento, dona Carlotinha insistiu com ela pra que mandasse o noivo embora. Pedro Mulatão era um infame, até gatuno, Deus me perdoe! Rosa não escutou nada. Bateu o pé. Quis casar e casou. Meia que sentia que estava errada porém não queria pensar e não pensava. As duas solteironas choraram muito quando ela partiu casada e vitoriosa, sem uma lágrima. Dura.

Rosa foi muito infeliz.

Fonte:
Mário de Andrade. Os Contos de Belazarte. 
RJ: Nova Fronteira.