terça-feira, 17 de julho de 2018

18 de Julho - Dia do Trovador


Trovas de Luiz Otávio

1
A Trova definitiva,
ideal do Trovador,
por mais que eu padeça e viva
eu jamais hei de compor…
2
Dura menos que um suspiro
ou como a folha que cai…
Mas quando penetra na alma,
a Trova fica… Não sai…
3
Enfrentando tantas provas,
ao desenrolar dos anos,
vou tirando da alma Trovas,
e enchendo-a de desenganos…
4
Estas Trovas foram sonhos
que um trovador já sonhou…
São uns farrapos tristonhos
de um grande amor que passou…
5
Este doce e grande amor,
esta saudade indiscreta,
fizeram de um trovador
o mais tristonho poeta…
6
É um prazer bem diferente
e de sabor sempre novo,
ouvir a trova da gente
andar na boca do povo!…
7
Há trovas, ricas, sonoras,
tem brilho, cintilação…
Lembram “foguetes de lágrimas”
nas noites de São João…
8
Longe de ti, triste eu passo,
se vivo mesmo, nem sei…
E, cada trova que faço
um beijo que não te dei…
9
Louvo a Deus por me ter dado
a sorte de trovador,
pois o mal quando é cantado,
diminui o seu rigor…
10
Mediunidade esquisita
de duração muito breve:
– a Trova – é o povo quem dita,
o trovador… só escreve…
11
Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos ...
12
Não desejo nem capela
nem mármore em minha cova…
Apenas escrevam nela
pequenina e humilde Trova…
13
Não digo não: “minha” Trova
quando faço um verso novo:
– não é minha e nem é nova
quando cai na alma do povo…
14
Nem sempre nós conseguimos
traduzir as nossas dores…
Quantas trovas ficam mortas
nas almas dos trovadores…
15
Nesta trova pequenina,
quero deixar o sabor,
do beijo que ainda há pouco
eu roubei do meu amor…
16
Ó trovas — simples quadrinhas
que têm sempre um quê de novo...
— Como podem quatro linhas
trazer toda alma de um povo?!
17
Pelo tamanho não deves
medir valor de ninguém.
Sendo quatro versos breves
como a trova nos faz bem.
18
“Pequena” – dizem zangados,
muitas vezes com desdém.
Jamais saberão, coitados,
que grandeza a trova tem!
19
Por estar em solidão
tu de mim não tenhas dó.
Com Trovas no coração,
eu nunca me sinto só!
20
Quando a Trova é mesmo boa,
é sempre assim que acontece:
– o dono fica esquecido,
mas a Trova não se esquece…
21
Saudade – brisa tristonha…
e o meu coração magoado
desprende Trovas… e sonha…
é um rosal despetalado…
22
Sou devoto, sou um crente!
Não zombes, não rias não…
Trago um rosário de Trovas
no fundo do coração…
23
Tão pequenina... parece
humilde e distante estrela...
porém, como a Trova cresce
quando alguém sabe entende-la!
24
Tirem-me tudo o que tenho
neguem-me todo o valor!
Numa glória só me empenho:
– a de humilde trovador!
25
Toda noite ao me deitar
(por certo você reprova),
eu me esqueço de rezar
e fico fazendo trova.
26
Toda trova herdou o espírito
navegante português…
Nasce…foge… corre o mundo
e abandona quem a fez…
27
Toma cuidado, poeta
com teu sentir mais profundo;
a trova é muito discreta:
– conta tudo a todo mundo…
28
Trovador, grande que seja,
tem esta mágoa a esconder:
a trova que mais deseja
jamais consegue escrever ...
29
Uma trova pequenina,
tão modesta, tão sem glória,
bem pouca gente imagina,
que também tem sua história.
30
Um trovador veterano
concorre e zomba: - é "barbada"!
Depois de entrar pelo cano,
bronqueia: foi marmelada!...

Olivaldo Júnior (Três Microcontos sobre Ausência)


O  DISCO 

Maria  era uma jovem senhora de cinquenta anos. Havia curtido sua juventude  com tudo a que tinha direito: música, festa e muitos amigos. Saudade!... 

Desse  tempo inesquecível, ficaram-lhe todos os discos de seu irmão, um mochileiro que não parava por mais de dois dias no mesmo lugar. Onde andará?... 

Um  dia, bateu-lhe uma vontade de escutar o compacto com a canção Vapor Barato. Por ironia, entre inúmeros “bolachões”,  foi o único que jamais encontrou. 

A  ESTRADA 

João  gostava mesmo era de estar na estrada. Homem de espírito livre, tinha cunhado suas asas à custa  de muito trabalho e, hoje, aos sessenta anos, voava. 

O  problema era a saudade que ia sentindo de tantas pessoas maravilhosas que conhecia pela estrada. Dizem que o mundo não tem fim. Pagaria para saber. 

Por  vezes, pedia carona, dormia em albergues, comia o que dava, não o que queria. Quem sai na estrada é pra caminhar! Morreu esta noite. Voou para o céu. 

O  CÉU 

São  Pedro tinha aberto a porta do céu, mas só o espírito de um cão sem dono que morrera atropelado entrou no Éden. É, o cão queria os ossos mais celestiais. 

O  céu ficou aberto, e isso causou um frio danado na Terra. “Será que ninguém quer vir para cá?” - pensou São Pedro, com seus botões. Seria preciso fazer algo. 

Assim,  pediu aos anjos que fizessem tabuletas, luminosos e um sem-número de cartazes indicando o caminho. Ninguém apareceu. Só mesmo o tal cachorro... 

Fonte: O Autor 

Alexei Bueno Finato (Poemas Avulsos)


DE TANTO VER

De tanto ver o que se perde e ser assim
O meu olhar é o se lembrar seco de um lago
Onde este quarto e este meu ser afundo e apago
No haver dos mortos feitos tela e próprio fim.

E o vento leva em meu armário o que há de mim,
O que nas roupas do que é morto sou um vago
Rosto de bronze que vomita um mar aziago
No qual me esqueço de onde vou pelo que vim.

Taça de vinho sem o vinho e sem a taça,
Segunda sombra que não vibra mas me vela
Quando em memória até o haver de hoje se passa...

E como um louco lembro ser o que é agora
Igual aos mortos recordando-me na tela
Em seu silêncio que é o meu Deus e a nossa hora.

LEVANTO-ME EM MEU QUARTO

Levanto-me em meu quarto, escuto as teias
Soprando, e abro a janela num impulso...
Lá embaixo a lua estranha toma o pulso
Do lago que tem febre em suas veias...

O vento então abraça-me as candeias,
E as chamas a chorar um choro insulso
Transformam-me as paredes num convulso
Festim de mais de mil sombras alheias.

Jamais eu fui tão só! Em torno a mim
Vultos riem e bebem, mas nas águas
Cabelos vão ao fundo, e tudo rui!

Barcos choram rondando o próprio fim.
Oh! lua! Oh! meu festim de tantas mágoas!
Ah! sombras dos luzeiros que eu não fui!

O MAGO

Eu amo os bosques e as ruínas e os conventos
E toda parte onde o mistério nos destrua,
Pois nada vale ir decifrar com gestos lentos
A mão sem causa que fez tudo e a tudo estua.

Era impossível que algo houvesse, e tais tormentos
Vêm de ainda assim este algo haver, enquanto a lua
Que por verdade não nascera assopra os ventos
Aos nossos olhos também falsos desta rua.

Oh! alamedas, catedrais, sombras pendentes,
Por ser sem fruto ainda buscar nos entregamos
De uma só vez a este mistério que encarnamos,

Numa volúpia de esquecer, da noite ausentes,
Como o mendigo que sem forças para a sorte
Se entrega inteiro à sua garrafa e à sua morte!

ORGULHO

De entre essas tantas faces cruas
Que nunca viste e nem te viram,
Desses pés todos que feriram
Num sonho oculto as pedras tuas,

Dessas mil mãos que à luz das luas
Atrás de alguém por ti seguiram
E em ti com outras mãos fremiram
Por sob os magros tetos, nuas,

Desses milhões de olhos sem brilho
Apenas eu, teu mais vil filho,
Fui quem te ergueu, Cidade informe,

Porque és em mim, enquanto afundas
Junto às legiões de que te inundas,
Morta, vivente, eterna, enorme!

O VENTO E AS ERVAS

O vento e as ervas que não sonham nunca,
Que há anos se encontram, mas não se conhecem;
O vento e as ervas que jamais se esquecem
Pois nem recordam do que o chão se junca;

O vento e as ervas que há um milênio tecem
Em se enfrentando uma imutável voz
Sem nunca ouvi-la, e que dão medo aos pós
Com gestos vãos que nem lhes obedecem,

A eles pertence a glória e o reino eterno
Pois não são nada, e nada dói ao nada,
Nem vão tão longe as maldições do inferno...

Rindo entre os gritos, se enforcando ao chão
Como bufões cuja alma foi roubada...
O vento e as ervas permanecerão.

POBRES PORTAS

Pobres portas negras das carpintarias
Recendendo a cedro... portas das quitandas
Pondo sacos sujos no ar entre as lavandas
Que sobem das portas das perfumarias...

Cheiros a sangrar tão cedo quanto os dias
Das portas dos talhos, a alma das viandas,
Perfumes de pães se erguendo em nuvens brandas
Lácteas quais lençóis, portas das leiterias

Com o odor da aurora, portas dos bazares
A barbante e a pano, dedos dos manjares
Nas portas de pasto, anônimas fragrâncias

De outro mundo e mofo a vir dos antiquários,
Portas do além, velas, cera, e sob os vários
Umbrais, o ar do porto, a porta das distâncias!

QUANDO A MANHÃ

Quando a manhã traspassa os ventres dos vitrais
Reis e rainhas de ninguém, sangrando as bocas,
Lembram com sede das suas taças... sons, cristais...
Onde o vazio é hoje o licor das cortes ocas.

Mas estas que ardem num museu, nem sabem mais
Dos seus senhores que não são, mas que usam toucas,
Pois, vinho ou vida, o nada é um só, a estranha paz
Que causa espanto nos cadáveres das loucas.

Ah! condenados a fingir... quando anoitece
Vítrea e menor uma outra morte apaga a dor
Dos seus semblantes de detrás, nunca esquecidos...

As mesmas faces onde um ódio enorme cresce
Se sopra alguma tempestade, e têm no alvor
Débeis sorrisos sem depois, desiludidos.

Alexei Bueno (1963)

Alexei Bueno Finato nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1963. Poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário. Entre os 16 e 19 anos, escreve os poemas publicados em seu primeiro livro, As Escadas da Torre, de 1981. Em seguida lança o livro Poemas Gregos e, em 1988, uma edição corrigida das duas obras anteriores com o título Poemas, e a obra Nuctemeron, de poemas em prosa escritos em 1982. A partir de 1994 trabalha como editor e crítico organizando as obras de escritores como Olavo Bilac (1865 - 1918), Jorge de Lima (1895 - 1953), Vinicius de Moraes (1913 - 1980), entre outros, para a editora Nova Aguilar. Como tradutor destacam-se os trabalhos O Corvo, do poeta Edgar Allan Poe (1809 - 1849), e Quimeras, de Gérard de Nerval (1808 -1855). 

Fonte:

Vinicius de Moraes (O Casamento da Lua)


O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça. 

É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros - ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva - que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez. 

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, com toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curam-se com o próprio amor - eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema da crescente palidez da Lua. 

Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-se eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a ideia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo. 

E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso que o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições. 

Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Milton S. Souza (Nem Sei Porque Sou Assim)


Nem sei porque sou assim:
Cada sonho que acalento
Se agarra tanto aqui dentro
Que vira parte de mim.

Fui assim desde criança
Sonhador incorrigível
Procurando no impossível
Uma luz ... uma esperança.
Pareço pombinha mansa
Mas não gosto de enganar
Se um sonho me faz voar
Nem um corisco me alcança.

O sonho nos assegura
Que o céu não é tão distante
Ele grita... e nos garante
Que vale a pena a procura.
Quem sonha se transfigura
Mudando o brilho do ollhar,
Que sonha pode mudar
Qualquer sorte... por mais dura.

Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.

Por isso é que choro tanto
Ao ver um sonho morrer
Sonhar é mais que viver:
É da vida ter o encanto.
Cada sonho é um acalanto
Que embala nossa alma...E traz
Um misto de guerra e paz
No feitiço do seu canto.

Um sonho pode fazer
O inverno virar verão,
Pode entrar num coração
Quietinho...sem ninguém ver
Pode até mesmo acender
Alguma estrela apagada,
E as vezes, sem trazer nada
Enche a gente de prazer.

Sonhar é uma forma bonita
De atender o que a alma exige
Somente um sonho corrige
qualquer vida mal escrita.
E quando a gente acredita
Torna reto o rumo torto
E até mesmo um sonho morto
Muitas vezes ressuscita

Se sonhando eu sempre vim
Porque é assim meu coração,
Pouco me importa a razão
Desse meu sonhar sem fim.
Nem sei porque sou assim:
cada sonho que acalento
se agarra tanto aqui dentro
que vira parte de mim.

Érika Lourenço Jurandy (Querida Mãe)


Aqui sentada na varanda, olhando para as nuvens que correm sem parar, lembro-me de quando te senti, pela primeira vez, em minha vida. Foi quando passei a enxergar, ainda com tenra idade. Sem entender o que era aquela imensidão azul acima da minha cabeça, vi algo tão lindo que, mais tarde, descobri ser o céu. Quantas vezes depois, deitada na grama verde e junto às belas flores que você me deu, contemplei aquele azul sem igual, com os matizes que só você sabe como pintar. Vi, nas nuvens brancas e fofinhas, as formas e histórias que você decidia me contar. E todas as vezes que estive desanimada, você tratou de me fazer ver o lindo cenário que, de graça, me oferecia, para acalmar meu coração.

Nas noites, me deu a lua e as estrelas, a luz delas e a ciranda dos astros, me mostrando que seu amor por mim era infinito, tão infinito quanto aquelas luzes brilhantes lá em cima. Fez-me, além de feliz por ter tanta beleza ao redor, uma quase poeta, trazendo inspirações nas noites frias ou com belo firmamento, com lua nova ou minguante, não importa. Sempre me deu uma noite para poder ver, me inspirar e descansar.

Mesmo sabendo da minha fobia por ambientes com grandes extensões de água, não deixou de preservar minha saúde e vida, me dando os rios, os lagos, as cachoeiras, os mares. Apesar de nunca me obrigar a ir até esses belos locais, ainda assim, deixa-os por mim, pois sabe das minhas necessidades físicas e tem plena consciência de que necessito de água para manter-me viva! Como boa e zelosa mãe, me respeita e cuida de mim, aceitando minhas limitações com suas belezas naturais e gratuitas.

Tendo em mente que eu necessitaria de irmãos, me deu muitos, de diferentes tipos e comportamentos, que possuem o nome de animais, embora prefira chama-los de irmãos menores – ou nem tanto! – que ainda não aprenderam a falar. Com eles aprendi o valor da vida, do amor verdadeiro, da amizade e devoção. Aprendi a respeitar os diferentes, a ter delicadeza, a ser mais humana. Com eles estou sempre perto de você.

Para deixar meus ambientes coloridos, frescos e sempre com bom ar, livre de perigos respiratórios, fez nascer as mais belas plantas, árvores e flores. Todas com seus coloridos, com seus orvalhos, com suas sínteses e fotossínteses. Complexas, belas e plenas. Raras, fáceis de encontrar. Tamanhos e folhagens variados, tanta criatividade que nem sei como consegue tanto para me ofertar. Além disso, providenciou que muitas pudessem me oferecer alimentos, os frutos deliciosos, que ajudam na minha saúde e alimentação saudável. Por que só uma mãe zelosa como você pensa em tudo, nos mínimos detalhes.

A terra que existe, com todas as suas propriedades e camadas, com todo o poder de fazer nascer e crescer, demonstra a sua vontade de me fazer ver que tenho solo que me proporciona alicerce para construir minha vida, nos mais variados sentidos.

Não tenho palavras para descrever o quanto és maravilhosa e o quanto sou grata por ter nascido no seu seio, sendo um de seus filhos. Gratidão é pouco para dar-te, diante de tudo o que faz por mim. 

Infelizmente, nem todos os meus irmãos sabem o valor que possui e o quanto devem cuidar de ti. Destroem tudo o que oferece de bom grado e ainda reclamam quando, em determinados momentos, se insurge contra os danos que lhe propiciam. Aliás, você nunca revida o mal que te fazem; tudo de ruim que atribuem a você não passa de consequências dos malfeitos que realizam, acreditando que não haverá efeito colateral. Não pensam eles, os filhos ingratos, que são vítimas de suas próprias condutas maculosas, porque você é uma mãe sem igual e, como tal, ama seus filhos, mesmo os não merecedores.

Ah minha mãe Terra, minha querida Mãe Gaia. Aquela que cuida de mim até o fim, fazendo com que voltemos a seu seio quando acreditamos que chegamos ao nosso fim, a morte. É nela que nos unimos a ti novamente, mostrando que todos somos seus filhos, nem sempre tão gratos, mas seus.

(Medalha de Prata no V Concurso de Literatura da Natureza, Categoria Prosa)

Fonte:

domingo, 15 de julho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 28


Ulysses Lins de Albuquerque (Cristais Poéticos)


QUADRAS

1
Quando na Terra surgias,
Cobriu-se o Espaço de um véu...
Vênus disse às Três-Marias:
"Falta uma estrela no Céu!"
2
Toda de branco, cismando, 
Pareces-me (e ver suponho) 
Uma garça se banhando
No lago azul do meu Sonho.
3
No deserto que me oprime, -  
 − Beduíno da Ilusão, −
És a miragem sublime
Que me deslumbra a visão.
4
Se ela sorrindo me fita,
Eu penso, e sei que é certeza:
Não há obra mais bonita
Nos reinos da Natureza.
5
Os amores que eternizam 
Lauras, Beatrizes, Leonores,
− Os que não se realizam −
São sempre os grandes amores.
6
Quando eu a vejo, tão bela, 
Fico logo sem ação,
Pois leio nos olhos dela 
Meu mandato de prisão.

POEMAS

ADEUS

Ah, para que falar na linda história
De um amor que talvez nem chegue ao fim!
Não. Vou guardá-la a um canto da memória,
Como um segredo a sepultar-se em mim.

Esse amor foi talvez a maior glória
Que em altos sonhos aspirei; e, enfim,
Não passa de miragem transitória...
— Para o poeta, quase tudo é assim!

Quero apenas dizer-te na hora extrema
Da despedida, neste pobre poema,
Uma palavra simplesmente: Adeus.

Mas neste Adeus minha alma, te enlaçando,
Ficará junto a ti, talvez — bailando,
Qual doida abelha — à flor dos lábios teus.

À MARGEM DE UM POEMA OLEGARIANO 
à minha neta Maria Regina

A cigarra cantou, cantou... e um dia,
Lá da ingazeira em flor, rolava ao chão.
As formigas cercaram-na. Caía
Ali perto, uma flor, na ocasião.

Delas, um bando diligente agia.
E uma pétala à flor colhendo, então,
Nela posta a boêmia, lá saía
O enterro... — Parecia procissão!

As que carpiam, longe, a companheira,
Foram pousar na copa da ingazeira
Que, a estremecer, deixando cair flor,

Salvava — junto às aves em cantigas —
O carinho, a nobreza das formigas,
Carregando a cigarra... num andor.

FALANDO AO CORAÇÃO 
a meu neto Rogério

Alto lá, coração! Refreia as ânsias
Que estão — eu sinto — a fermentar no peito.
Recorda bem aquelas circunstâncias
Em que me embaracei por teu respeito.

Vê que as águas dos rios às distâncias,
Nas margens, vão; mas retornando ao leito,
No húmus que espalham, cheio de fragrâncias
O vale, empós, lembra um jardim perfeito.

Segue esse exemplo, e escuta, velho amigo:
Já me impeliste às bordas do perigo
E hoje, à voz da razão subordinado,

Só me resta conter os teus arrancos.
Por ti, ganhei muitos cabelos brancos...
Tem paciência: ficas enjaulado!

NATAL 
a José Wamberto

Natal da minha infância! — Lá na aldeia,
Badala o sino. A celebrar em frente
Da ermida, o Padre Colombet folheia
O Missal... ergue os braços lentamente...

De em meio à multidão surge a voz cheia
De Joaquim Padre — o preto alto, imponente, —
E o som do seu Bendito empolga e enleia
A alma cristã daquela boa gente.

A casa de meu pai era um cortiço.
Até de madrugada em rebuliço
O pobre lugarejo (hoje é cidade...).

E agora eu, a evocar aquilo tudo,
Quando chega o Natal, — assisto, mudo,
Rolar a minha noite de saudade!

NINHO ABANDONADO 
a João Torres Bandeira

Que és hoje, peito meu? — Casa vazia,
Onde no entanto, as ilusões, outrora,
Ofertavam-me o vinho da Poesia,
Embalando-me aos cânticos da aurora.

Mas — por culpa, de quem? Nem sei! — um dia,
Todas, bailando, a rir, foram-se embora;
E desde então, na angústia que a excrucia,
Minha alma — esta alma de criança — chora.

E nunca mais um riso, um canto, um hino,
Foi quebrar o silêncio impressionante
Do ninho abandonado ao seu destino.

Apenas, alta noite, às gargalhadas,
Dele em redor, o vento frio, uivante,
Lembra um triste clamor de almas penadas.

PANTEÍSMO 
às minhas netas Ângela e Sílvia

Vinde, ó poetas, músicos, pintores,
Ver e ouvir o conjunto de beleza,
— O verde, sombra e luz, gorjeios, flores, —
Que em seu seio nos mostra a Natureza!

Quando, em êxtase, admiro esses primores
De harmonia, de graça, de pureza,
Vejo o mundo sorrir-me em róseas cores,
A vida para mim tem mais grandeza.

Quanto me empolga esse esplendor selvagem
Da floresta, e — um encanto na paisagem —
Da canafístula os festões de flor!

E eu sonhando em gravar tanta magia,
Numa tela, na pauta ou na poesia,
Sem ser poeta, músico ou pintor!

ROSA MURCHA

Como outrora eu te vi, graciosa e bela,
— Rosa humana de sonhos orvalhada!
Eras um misto, assim, de flor e estrela,
Irradiando o esplendor de uma alvorada.

Foram os anos perseguindo aquela
Rara beleza, aos poucos desgastada;
E à ação do tempo o encanto se esfacela
— Ah, murcha rosa! — e tudo em breve é nada!

Perfumaste de amor o meu caminho,
Na rósea quadra em que era um sonho a vida,
Para mim, junto a ti, Flor sem espinho!

— Ilusão da perdida mocidade!
Minha alma ainda te beija, enternecida,
E hoje sente um espinho: — é o da saudade.

VELHA MUSA 
à minha neta Maria Cristina

A velha Musa, há tempos escondida
De mim, volta de manso ao meu casebre,
Onde, por vezes, eu ardendo em febre,
Tive-a a velar-me — terna irmã querida.

Em alto canto o trovador celebre
A sua vinda. E a dar-me alento à vida,
Ela demore até que, desprendida
De minhas mãos, a harpa, a cair, se quebre.

Tendo-a a meu lado, não me atemorizo,
Mesmo quando entre sombras já diviso
A funérea visão que, em hora morta,

Ao redor dos enfermos baila e ronda...
Não estou só. Se ela me espreita e sonda,
Durmo tranquilo. Deixo aberta a porta.

Ulysses Lins de Albuquerque (1889 – 1979)

Ulisses (também grafado Ulysses) Lins de Albuquerque nasceu em Sertânia (PE) , em 9 de maio de 1889, filho de Manuel Coelho Lins de Albuquerque e de Teresa Lins de Siqueira. 

Funcionário público, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife. Foi professor interino, em 1904, e teve uma escola particular. Nomeado pelo governador Sigismundo Gonçalves, foi agente do Tesouro na Coletoria Estadual e agente fiscal do Imposto de Consumo em Pernambuco. Transferido para São Paulo, em 1938, atuou na advocacia e na indústria agropecuária, aposentou-se em 1940.. Em 1945, elegeu-se constituinte e, depois, deputado federal por Pernambuco, na legenda do Partido Social Democrático (PSD). Preocupado com o andamento das obras realizadas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF), destacou-se na defesa da construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso.

Após a promulgação da nova Carta (18/9/1946), passou a exercer o mandato na legislatura ordinária, tornando-se membro da Comissão de Transportes e Comunicações da Câmara. Reelegeu-se deputado federal nos pleitos de outubro de 1950 e de 1954 e, ao final do último mandato, em janeiro de 1959, deixou a Câmara, não voltando a exercer cargos públicos eletivos.

Foi membro da Academia Pernambucana de Letras e seu representante na federação das Academias do Brasil, sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e membro do Instituto Genealógico de Pernambuco.

Foi casado com Rosa Bezerra Lins de Albuquerque, com quem teve nove filhos.

Faleceu no Rio de Janeiro em 29 de dezembro de 1979.

Publicou Pedúnculos (1916), Ao sol do sertão (poesia, 1922), Mestres e discípulos (1927), De joelhos (com o pseudônimo de Bilac Sobrinho, 1930), Livro de Inach (1933), Um sertanejo e o sertão (memórias, 1957, 2ª ed., 1976), Chico Dandim (romance, 1974), O boi de ouro e outras histórias (1975), Fogo e cinza, Sertão mártir, Hino à gleba, Alma da terra, Estrada de espinho, Moxotó brabo, Sol poente e Três Ribeiras.

O arquivo de Ulisses Lins encontra-se depositado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.

Fontes:

Carlos Drummond de Andrade (Assalto)

Na feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra o preço do chuchu:

— Isto é um assalto!

Houve um rebuliço. Os que estavam perto fugiram. Alguém, correndo, foi chamar o guarda. Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de admirável serviço de comunicação espontânea, sabia que se estava perpetrando um assalto ao banco. Mas que banco? Havia banco naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia ser assaltado?

— Um assalto! Um assalto! — a senhora continuava a exclamar, e quem não tinha escutado escutou, multiplicando a notícia. Aquela voz subindo do mar de barracas e legumes era como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a ocorrência grave, que fatalmente se estaria consumando ali, na claridade do dia, sem que ninguém pudesse evitá-la.

Moleques de carrinho corriam em todas as direções, atropelando-se uns aos outros. Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era o instinto de propriedade que os impelia. Sentiam-se responsáveis pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes rasgavam-se, melancias rolavam, tomates esborrachavam-se no asfalto. Se a fruta cai no chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do transportador. Em ocasiões de assalto, quem é que vai reclamar uma penca de bananas meio amassadas?

— Olha o assalto! Tem um assalto ali adiante!

O ônibus na rua transversal parou para assuntar. Passageiros ergueram-se, puseram o nariz para fora. Não se via nada. O motorista desceu, desceu o trocador, um passageiro advertiu:

— No que você vai a fim de ver o assalto, eles assaltam sua caixa.

Ele nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre abandonar o veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o homem desde a idade da pedra até a idade do módulo lunar. Outros ônibus pararam, a rua entupiu.

— Melhor. Todas as ruas estão bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé.

— É uma mulher que chefia o bando!

— Já sei. A tal dondoca loura.

— A loura assalta em São Paulo. Aqui é a morena.

— Uma gorda. Está de metralhadora. Eu vi.

— Minha Nossa Senhora, o mundo está virado!

— Vai ver que está caçando é marido.

— Não brinca numa hora dessas. Olha aí sangue escorrendo!

— Sangue nada, tomate.

Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto fora a uma joalheria, as vitrinas tinham sido esmigalhadas a bala. E havia joias pelo chão, braceletes, relógios. O que os bandidos não levaram, na pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo duas pessoas, e três estavam gravemente feridas.

Barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso abrir caminho a todo custo. No rumo do assalto, para ver, e no rumo contrário, para escapar. Os grupos divergentes chocavam-se, e às vezes trocavam de direção: quem fugia dava marcha a ré, quem queria espiar era arrastado pela massa oposta. Os edifícios de apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pelo e contemplar lá de cima. Janelas e balcões apinhados de moradores, que gritavam:

— Pega! Pega! Correu pra lá!

— Olha ela ali!

— Eles entraram na Kombi ali adiante!

— É um mascarado! Não, são dois mascarados!

Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena distância. Foi um deitar-no-chão geral, e como não havia espaço, uns caíam por cima de outros. Cessou o ruído. Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso?

— Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor de barriga, pensando que era metralhadora!

Caíram em cima do garoto, que soverteu na multidão. A senhora gorda apareceu, muito vermelha, protestando sempre:

— É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.