sábado, 12 de janeiro de 2019

Nilto Maciel (As Pontas da Estrela)


Os bêbados de Palma ainda diziam besteiras em torno do parto feliz e inesperado da Beata, quando no bar de Pedro Mateiro entrou, correndo, a figura agitada e esvoaçante de Bemtevi, suado e assustado.

– Que aconteceu, homem de Deus? Alguma desgraça?

– Diga logo: caiu alguma igreja?

O novidadeiro encostou-se na parede, acocorou-se e sentou-se no chão sujo de cusparadas e cinzas de cigarro. Deu três suspiros e se disse curado da carreira. Abriu a boca para contar as esperanças dos outros. Nenhuma palavra disse, como a deixar que as badaladas da meia-noite penetrassem no seu assombro. Os grandes relógios das igrejas e os cucos dos sobrados mais uma vez se confundiam na babel do tempo.

Nem bem o alto-falante irradiou o cântico da Ave-Maria, o sol aquela poça de sangue medonha em cima da serra, a notícia do parto da Beata encheu de luto as ladeiras de Palma. Depois, um ventinho frio inundou o ar de pedaços de bilhetes comprometedores, cartas amorosas e outras fúteis anotações, a anunciar a Pedro Mateiro mais uma rodada.

– O menino nasceu...

– De novo?

As garrafas gargalharam nas prateleiras e o polvo de Palma despertou, com seus mil braços a agitarem-se nas janelas.

– Nasceu com uma ...

– Cabeça?

– Não, uma estrela.

Pedro saltou o balcão e se uniu aos bêbados. E todos beberam e pediram cigarros a Pedro. Bem perto e bem longe do bar, janelas e portas se abriram, de repente. Alvoroçavam-se as ruelas de Palma, escura e misteriosa.

– Deixe de doidice, rapaz.

– É verdade, uma estrela bem na testa.

Nenhuma mentira durava mais de um dia na cidade e o padre toda madrugada gritava endemoninhado contra os luxuriosos e levantadores de falso. As velhinhas tremiam sobre os sofridos joelhos e desmaiavam.

Não podia ser. Explicasse a coisa direito. Quem já tinha visto nascer uma pessoa com uma estrela na testa?

– Dizem que é uma estrela de cinco pontas.

– E é ruim?

Como podia saber uma coisa daquelas? Por acaso se chamava Camões ou Cego Aderaldo? Além do mais, não tinha certeza do número exato de pontas. Uns falavam em cinco, outros em seis.

A cada palavra, mais se complicava o narrador. Quiseram saber então qual a pior das estrelas, se a de cinco ou a de seis pontas.

Também isso não sabia explicar Bemtevi. Além do mais, a cada hora nascia mais uma ponta. Sim, pela última informação, já eram dez.

– O que será isso, meu Deus?

– Não sei. Só sei que, quanto mais se contam as pontas, mais elas são.

Abandonaram os copos os bebedores, persignaram-se todos e, ajoelhados, rezaram aos pés do balcão.

– Maldição!

– Obra do Capiroto.

Na calçada, Bicudo dormia desde a boca da noite. A primeira notícia abateu-se sobre sua embriaguez como uma marretada: mais duas talagadas e a baba escorreu e os olhos se cerraram. De novo tombou sobre si mesmo, a maldizer-se. A meia-noite despertou-o do sonho de amor. E ouviu estrelas e retomou o fio perdido da meada.

– É o filho de Efigênia?

– E do gringo.

Podia ser do padre, do padre podia ser. Ou do sacristão, de algum cristão. Ou era filho do cão?

– Homem, não diga isso.

Lembraram-se do fenômeno da estrela na testa. Como podia ser essa tal estrela? Cheia de pontas, brilhante, rosário de contas, cintilante?

Um dedo apontou para o Cruzeiro do Sul e todos os olhos bêbados dançaram no céu estrelado.

– Amarela?

Não se sabia bem a cor. Falou-se primeiro na cor do ouro. Outras cores do arco-íris, porém, já andavam de boca em boca.

– Então não é uma estrela.

Quem ali sabia os mistérios do céu?

– É muito pequena?

– Do tamanho de uma testinha?

Se nada sabia Bemtevi, por que jurava ser uma estrela aquilo que podia ser uma lágrima, talvez um pingo d’água, insignificante grão de areia? Deixasse então de mistérios, ou não dissesse mais nada.

E Bicudo propôs fossem ver o menino.

Não podiam. A casa permanecia fechada a quatro chaves. Do lado de dentro, só a Beata e a parteira, e o menino com sua estrela.

Pedro coçou a cabeça, contou seus bêbados e olhou para a rua por cada uma das portas.

– Você viu o menino?

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Caldeirão Poético XIX



CECY B. CAMPOS
Juiz de Fora/MG

ÁLBUM

Desfolhando o velho álbum de retratos,
que jazia abandonado em alguma prateleira,
relembrei pessoas, que estavam esquecidas,
e não reconheci imagens que eram minhas.
O tom amarelado esmaecia
sorrisos jovens que ficaram tristes:
tirava o viço de vidas tão distantes
e que, um dia, foram parte de minha vida.
Entre as velhas amizades retratadas,
revi amigos dos quais eu lembro os nomes
e outros, dos quais, nada mais resta,
porque ficaram perdidos pelo tempo.
Ao contemplar aquelas fotos desbotadas,
vou rejuntando, aos poucos, os pedaços
de uma história que nem sei se já vivi.
_____________

FLORBELA ESPANCA
Vila Viçosa/Portugal 1894 – 1930 Matosinhos/Portugal

TARDE NO MAR

A tarde é de ouro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas, 
São as asas do sol, agonizantes...
____________________

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE

GATU’S BAR 

Tira gosto é cajarana
Para Pitú, Ypióca,
Mas eu prefiro paçoca
Sempre que vou a Santana
Eu tomo uma boa cana
Para poder me esquentar…
Sem saber onde parar
Vou seguindo pelo faro
Você sabe aonde paro?
Eu paro no GATU’S BAR.

Voltando liso, sem grana,
Deixo esta bela cidade
No bolso levo saudade
Quando saio de Santana
Bom boêmio não se engana
Quando é noite de luar…
Eu sei que vou viajar
Nesta estrada traiçoeira
Pra tomar a saideira
Eu paro no GATU’S BAR.
______________________

JÚLIA DA COSTA
Paranaguá/PR, 1844 – 1911

SONHOS AO LUAR

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Serás por acaso o eco
De meu triste cogitar?...

Eu também amo a saudade
Que me inspira a solidão;
Amo a lua que me fala
Do passado ao coração.

Como tu choro uma noite
De luar que se ocultou;
Como tu choro a esperança
De uma aurora que passou.

Quem és tu, bardo noturno
Que me fazes meditar?...
Quem és tu que na minh’alma
Vens de manso dedilhar?...

Serás inda a sombra errante
De uma noite que morreu?...
Meigo raio de ventura
Que em meu seio se escondeu?...

Quem és tu? Dize quem és
Branca sombra lá do céu!
Dize o nome do teu canto
Que eu dir-te-ei quem sou eu!
__________________

MARCOS ASSUMPÇÃO
Niterói/RJ

GIRASSÓIS E CORTESÃS

Eu não sei como domar a fera
que insiste em habitar em mim.
Fera fere à faca a carne fraca
e essa vontade de ir embora.

Um milhão de pensamentos luz.
Solidão que bate e desespera
e nas entre linhas do poeta
toda dor transformará canção.

Eu carrego um gosto de sal
e a chuva das manhãs.
Nas minhas mãos, girassóis
pra enfeitar as cortesãs.
___________________________

NEMÉSIO PRATA 
Fortaleza/CE

GLOSA

Mote:
Um sonho lindo que eu tive
onde tudo era harmonia
acordei... não me contive...
Era um sonho!... Que agonia!
José Feldman (Maringá/PR)

Glosa:
Um sonho lindo que eu tive
trouxe-me doces lembranças
quando jovem, em aclive,
via na vida esperanças!

Fora uma bela visão
onde tudo era harmonia
dando-me viva impressão
do quão feliz eu seria!

Hoje em infausto declive
na vida, sem me por freio,
acordei... não me contive...
foi só mais um devaneio!

Que o sonho fosse verdade
era tudo o que eu queria,
mas quedei-me à realidade:
Era um sonho!... Que agonia!
__________________

VÂNIA M. DINIZ
Brasília/DF

TERNURA

O olhar era intenso,
Como brilhantes faiscantes,
Admiráveis,
Imutáveis.

Havia neles,
Mais do que o brilho,
O regozijo pela vida,
E o fulgor da esperança.

Fixavam um ponto distante,
Como perdidos no sonho,
Quimeras incandescentes,
De longa duração.

Nada parecia irreal,
Na intensidade do momento,
Refletido em soberbas pupilas.

Sinônimo era ternura,
Da expressão a mais linda,
Que enxerguei um dia...
___________________________

WALT WHITMAN
Estados Unidos, 1819 – 1892

ENQUANTO EU LIA O LIVRO

Enquanto eu lia o livro, a famosa biografia:
- Então é isso (eu me perguntava)
o que o autor chama
a vida de um homem?
E é assim que alguém,
quando morto e ausente eu estiver,
irá escrever sobre a minha vida?
(Como se alguém realmente soubesse
de minha vida um nada,
quando até eu, eu mesmo, tantas vezes
sinto que pouco sei ou nada sei
da verdadeira vida que é a minha:
somente uns poucos traços
apagados, uns dados espalhados
e uns desvios, que eu busco
para uso próprio, marcando o caminho
daqui afora.)

Vinicius de Moraes (A um jovem poeta)



O almoço que tivemos outro dia, meu caro Jovem Poeta - e três poetas éramos nós em três idades da existência tão importantes como os trinta, os quarenta e os cinqüenta -, deixou-me triste. Triste porque o seu descaminho, a sua angústia, a sua neura são sintomáticos de uma luta inglória. Você, que ainda é puro e sabe o quão fundamental é ela para a sua aventura de poeta, fica irado contra os outros, ao sentir que a sua presente agressividade é fruto de um complexo de culpa. É você, não os outros, quem está em crise. E se os outros também o estiverem, razão a mais para você afirmar-se em sua luta, que é a luta de todo poeta, para ajudá-lo a sair dela. Pois você não auxiliará ninguém, muito menos a si mesmo, se seu coração não estiver limpo de ressentimento e sua luta contra "o outro" não for constante. "O outro", não preciso dizer, é você próprio. É o súcubo que, todos, temos dentro de nós; o ser calhorda, comprável com a moeda da mentira e da lisonja, que de repente adota a gratuidade como norma, por isso que a paixão é mais insaciável que o infinito aberto em cima. E a paixão não se vende nunca.

Cada poeta é uma coisa em si, mas todos os poetas devem o mesmo à Poesia: a própria vida. Há, o poeta, que queimar-se e causar sempre mal-estar aos que não se queimam. Há que ser o grande ferido, o grande inconformado, o grande pródigo. Há que viver em pranto por dentro e por fora, de alegria ou de sofrimento, e nunca dizer "não" a ninguém, nem mesmo àqueles que optaram pelo não chorar. Há que também não ter o pejo do ridículo, da intriga ou da risota alheia. Quando Gide, ao ver Verlaine bêbado e maltratado, numa rua de Paris, por um grupo de jovens que o perseguiam e caçoavam com empurrões e doestos, contrariou voluntariamente o impulso de socorrê-lo preferindo deixá-lo entregue a um destino que sabia já traçado - que grande página deixou de escrever sobre a covardia humana, sobre o mal da disponibilidade e a tristeza do egoísmo! Veriaine, o pobre Verlaine, talvez dentre os poetas o que mais amou e sofreu... 

Você meu caro Jovem Poeta, que foi dotado de talento e de beleza, não tem o direito de negar-se ao seu martírio. Só ele pode tornar a sua poesia emocionante. Só ele pode salvá-lo do formalismo em que caem os que se recusam a estar sempre despertos. É preciso que todos vejam a luz que seu coração transverbera, mesmo coberto por bons panos. Não negue o seu olhar de poeta aos homens que precisam dele, mesmo tendo o pudor de confessá-lo. Abra a sua camisa e saia para o grande encontro!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Trova 340 - Carolina Ramos


Mário Quintana em Prosa e Verso 5



VIAGEM FUTURA

Um dia aparecerão minhas tatuagens invisíveis:
marinheiro do além, encontrarei nos portos
caras amigas, estranhas caras, desconhecidos tios mortos
e eles me indagarão se é muito longe ainda o outro mundo...

JOGOS PUERIS

O que nos acontece nada tem com a gente
o que nos acontece
são simples acidentes que chegam de olhos fechados
num jogo de cabra-cega
e m
esmo a morte
é aquela conhecidíssima, aquela antiga brincadeira
de fingir de estátuas...

AH, MUNDO...

Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
— rotos e felizes! —
por essas estradas do mundo.

PREPARATIVOS PARA A VIAGEM

Uns vão de guarda-chuva e galochas,
outros arrastam um baú de guardados...
Inúteis precauções!
Mas,
se levares apenas as visões deste lado,
nada te será confiscado:
todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho
— a sua única felicidade!
E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor...
os próprios Anjos te invejarão.

RETRATO DO POETA NA IDADE INGRATA

A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva:
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba:
e cada fio era uma baioneta-calada contra o mundo:
tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar — naquilo — onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a fonte oculta...

Só tu soubeste achar-me... e te foste!

SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª-feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem — um dia — uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente...

E iria jogando pelo caminho a casca dourada
e inútil das horas.

A CASA GRANDE

... mas eu queria ter nascido numa dessas casas de meia-água
com o telhado descendo logo após as fachadas
só de porta e janela
e que tinham, no século, o carinhoso apelido
de cachorros sentados.
Porém nasci em um solar de leões.
(... escadarias, corredores, sótãos, porões, tudo isso...)
Não pude ser um menino da rua...
Aliás, a casa me assustava mais do que o mundo, lá fora.
A casa era maior do que o mundo!
E até hoje
— mesmo depois que destruíram a casa grande —
até hoje eu vivo explorando os seus esconderijos...

O BAÚ

Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma ideia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!

Fonte:
Mário Quintana. Esconderijos do Tempo. 
Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

Nilto Maciel (A Beata de Palma)


Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder. Uma dezena de meninos sujos me cercou. Disputavam entre si o direito de carregar minha maleta, o jornal e até o cigarro que eu fumava. Desfiz-me deste, distribuí para cada deles uma folha do jornal e entreguei a carga mais pesada a um rapaz musculoso.

Ao chegarmos à porta da pensão, acenderam-se as luzes da rua. Um poste aqui, outro acolá. Entre um e outro, notei mais tarde, parecia não haver luz nenhuma. Nem nossas sombras se projetavam ao chão.

Arrependi-me cedo de ter despedido o carregador. Vistoriei o quarto, tomei um banho e saí. Por pouco não me perdi naquele labirinto de ruelas, becos sem saída, florestas de árvores nas praças, coretos, igrejas, capelas. Sim, além da majestosa igreja matriz, outras dez se espalhavam pela cidade. Apesar disso, diziam os jornais, nem na capital se cometiam mais crimes per capita: estranhos casos de suicídio, roubos, homicídios e até estupros horrorosos. Tantas igrejas e tantos pecados, lamentavam.

Eis a razão de minha viagem.

Não, minto. Levou-me àquela aventura a história da existência de uma beata em Palma. Talvez eu conseguisse fazer a melhor reportagem do mês ou mesmo do ano e melhorar minha situação no jornal.

Chamava-se Maria Efigênia e até do nome dela me agradei. Devia contar uns trinta e poucos anos de idade. Na verdade, devia ter sido de uma beleza exuberante nos seus verdes anos, como diziam, porque ainda parecia bela, apesar da vida que levava.

Fazia uns dez anos que Efigênia se havia feito beata, dia e noite a rezar, a cuidar das igrejas, dedicada a todos os santos.

Nas ruas, a molecada se divertia quando ela passava, coberta de véus, abraçada aos missais, amarrada de terços e rosários, vestida da cabeça aos pés, silenciosa, solitária, perdida em si mesma. Divertiam-se os moleques e depois, coitados!, apanhavam como nunca. Porque os pais sabiam com quem mexiam seus filhos: Maria Efigênia era filha da mais importante família de Palma.

Além da meninada, só havia outra classe de gente que ousava dirigir-se à beata: os bêbados. Para cada igreja havia cinco bares na cidade. E a frequência destes talvez fosse maior do que a das casas de pasto espiritual.

Se os pequenos moleques causavam irritação, os frequentadores dos bares chegavam ao exagero de dirigir à beata indecorosas piadas. Ela, porém, seguia seu caminho altaneira, imune às porcarias daqueles perdidos.

Junto aos católicos não consegui nada. Ninguém quis me dar atenção. O padre fez-me um sermão, falou de escândalo. E fui bater nos bares.

No primeiro dia não encontrei um só bêbado capaz de articular meia palavra. E para mim aquilo não bastava. A reportagem da beata eu queria de mil palavras.

– Aquele conhece tudo aqui – disse-me o dono do bar, apontando para um sujeito cabeludo, que cochilava no batente. – É poeta, sabe tudo quanto é verso de cor – informou-me ainda.

– Se me contar tudo em prosa, dou-me por satisfeito – brinquei.

O homem olhou-me assustado e bebeu uma golada de cachaça.

Cheguei cedo no dia seguinte ao bar. E o poeta já havia se servido do quinto copo.

Não sei se ele me contou uma de suas histórias decoradas ou se improvisou a da beata. Não tenho dúvida, porém, de que tudo nele era rimado e metrificado.

Um dia apareceu na cidade um bonito rapaz, um estrangeiro.

E como Maria Efigênia fosse quase uma menina ainda e o tivesse conhecido, por ele apaixonou-se. Meses depois o rapaz foi expulso de Palma. Acusado de dois pecados graves: o de não ser católico e o de seduzir a formosa donzela Efigênia.

Ao saber da expulsão do namorado, a mocinha chorou muito, tornou-se triste, calada, solitária. E como fosse católica e meia, a exemplo de sua família e da maioria dos habitantes da cidade, trocou as brincadeiras por rezas, as amigas pelos santos, sua casa pelas igrejas. Sobretudo pela matriz.

Nesse trecho, o poeta calou-se, bebeu mais e riu.

– Não quer saber mais nada?

Para mim a história tinha chegado ao fim. Mas aquela pergunta me deixou intrigado.

– Conte mais então.

– Pergunte por que a beata frequentava mais a matriz.

Só havia uma explicação: a matriz é a igreja principal, a maior, a mais bonita.

O poeta chamou-me para um canto e concluiu:

– A coitada da donzela
  cria que o amado dela
  fosse o Cristo do altar:
  quando se punha a rezar,
  conversava hora por hora
  co’o namorado de fora.

A reportagem não me rendeu nada e até perdi uns trocados a caminho da estação – os mesmos meninos sujos me pediram para levar a maleta. Talvez fossem aqueles que apanhavam dos pais por só terem uma diversão – a beata.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Amilton Maciel Monteiro (Poemas Recolhidos) V


NÃO CHORES MEU AMOR

Não chores  meu amor, pois tudo passa;
abalos fazem parte do viver...
A vida sem os sustos perde a graça
e o júbilo do riso renascer!

Transtorno, tal e qual a carapaça,
é criação visando proteger
a todos nós, se, quando, uma desgraça 
quer liquidar com nosso bel-prazer.

Mas o desgosto ainda tem um jeito
de não deixar o nosso pobre peito
sofrer demais, até à eternidade.

Passado o sobressalto, que alegria!
Pois ela volta e, muitas vezes, cria
na gente até maior felicidade!

“IDEM”

Se alguém me diz: “eu gosto de você”,
eu digo “idem”.  Mas, bem ao contrário,
se outro me disser que sou otário,
lhe digo “um tudo bem”,  sabe por que?

Porque por natureza eu sou hilário!
Jamais dei bola para “quelelê”...
Tenho este jeito por pura mercê 
de Deus que à briga me fez refratário!

Nasci para viver só na amizade,
sem distinção..., com toda a sociedade.
Nem ligo à propensão de cada um...

Felicidade é o que desejo a todos,
para não ver ninguém vivendo em  lodos...
mas com amor fadado ao bem comum!

SEU SORRIR

Eu fico tão feliz com seu alô,
por carta, viva voz, ou celular,
que até me esqueço que sou bisavô,
deixo a bengala e quero saltitar!

 Do jeito como estou, borocoxô; 
só faço versos para me animar,
passo calado o dia em meu bistrô,
bolando assunto para me inspirar...

 Assim, quando você reaparece,
com seu alô gostoso de se ouvir, 
minha alegria nesse instante cresce!

 Sinto a felicidade bem de perto,
pois sei que o seu alô traz seu sorrir,
que é tudo o que eu preciso. Estou bem certo!.

CARTAS DE DEUS

Meus filhos são as cartas carinhosas
que Deus constantemente me encaminha,
com advertências por demais valiosas,
tendo por intuito me manter na linha...

Seus conselhos são lindos como as rosas;
e é raro haver algum que me apezinha;
no  geral são só frases amorosas
por meio de carícia comezinha...

Os afagos e beijos dos meus filhos, 
tomando a forma até de trocadilhos
e aforismas, alegram o meu humor...

E ainda estou aos poucos entendendo
que as cartinhas de Deus que eu ando lendo,
sugerem é que eu aumente o meu amor!

Fonte: O Poeta

Carlos Drummond de Andrade (Dois no Corcovado)


O sol apareceu, como no primeiro dia da Criação. E tudo tinha mesmo ar de primeiro dia da Criação, com o mundo a emergir, hesitante, do caos. Três dias e três noites a tempestade esmigalhara árvores, pedras, casas, caminhos, postes, viadutos, veículos, matara, ferira, enlouquecera. Vistas do alto, as partes esplêndidas da cidade continuavam esplêndidas, mas entre elas as marcas de destruição exibiam-se como chagas de gigante. Os homens entreolharam-se.

Estavam salvos. Salvos e ilhados no alto do Corcovado.

A estrada tinha acabado, o telefone tinha acabado, a energia tinha acabado, e, por azar, não havia rádio de pilha para pegar notícias. Decerto, lá embaixo providenciavam a recuperação das estradas, mas quando se lembrariam deles, pequena fração humana junto da estátua? Daí, lá tem bar, um bar dispõe de lataria e garrafas para um ano. Não, um ano é demais, até uma hora é demais para eles que passaram meia semana isolados e fustigados pelo aguaceiro entre céu e terra.

Os mais moços não quiseram esperar, foram abrir caminho a golpes de imprudência. Mocidade pode mais o impossível do que o possível — e descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com certeza chegaram a salvamento, como acontece aos doidos. Os que ficaram sentiram inveja e despeito. A turma de trabalhadores não vinha remover as barreiras caídas. O dia passou. A noite foi inquieta. Parentes lá embaixo esperavam aflitos, se é que não tinham morrido.

A mais bela paisagem do mundo — dizem os cartazes de turismo; eles também achavam que sim, mas como suportá-la na manhã seguinte, se a vista aumentava a angústia, pela impossibilidade de alcançar aqueles sítios, pura miragem?

— Evém um helicóptero! — gritou alguém, e veio mesmo, mas passou sem pousar; ia revezar a turma da torre da radiopatrulha, mais adiante. O pessoal do Cristo que se pegasse com o Cristo, a cuja sombra trabalha — pensariam talvez as pessoas que, embaixo, cuidavam de tudo.

Dos dez que ganham a vida na montanha, seis já tinham descido. Os quatro restantes, enervados, não tinham mais de que conversar. O sol brilhando, a cidade se refazendo, eles presos ali, prisão sem grade, à espera de serem lembrados. O pico virou ilha, tudo mais era oceano sem navio.

Dois não aguentaram mais; despediram-se como presidiários antes de tentar fuga. Prometeram levar notícias dos que ficaram: o gerente e o garçom do bar. Estes, por acaso, moram no mesmo subúrbio: Cachambi. Olham sempre na mesma direção, como se, por absurdo, quisessem distinguir o aceno de mão longínqua. Isto os reúne mais; desfaz um vínculo e cria outro, espontâneo. O gerente não é mais um velho patrão, o outro não é mais empregado. Vivem uma só experiência, fora das leis de trabalho. E se o garçom tentasse descer? Ainda é forte, pode tentar. “Você não tem obrigação de me fazer companhia.” Mas ele não tenta, para não abandonar o outro: “Não iria deixar o senhor sozinho”. O gerente nunca imaginara ouvir uma coisa dessas. O próprio garçom ficou espantado depois que a disse. Era pra valer. Amanhã ou depois serão recolhidos — sabemos nós, não eles. Tempo não se mede pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança. E nessa situação, insignificante para nós, ilimitada para eles, dois homens descobrem-se um ao outro.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Contos e Lendas do Mundo (Mali: Como Apareceram os Animais)


De acordo com um velho mito dos Dogones, do Mali, o mundo foi criado pelo deus Amma. Foi este quem colocou as pessoas na Terra... Mas como é que os animais lá chegaram primeiro?

Amma, o Criador fez o mundo. Primeiro, pegou num gigantesco pote de barro e coseu-o num forno até ficar incandescente. Depois, envolveu-o em cobre vermelho e atirou-o para o céu, fazendo aparecer a luz.

 - Tu és o meu Sol! - declarou.

A seguir, agarrou num pote mais pequeno que, depois de pôr ao rubro no seu forno, cobriu de cobre branco - hoje conhecido por latão - e atirou-o para a outra ponta do céu.

- Tu és a minha Lua! - disse.

Depois, arrancou um pedaço ao Sol, partiu-o em mil pedacinhos que espalhou por todo o céu.

- Vós sois as minhas Estrelas! - acrescentou.

Depois disto, agarrou num bocado de barro e criou a Terra.

- Tu és a Terra Mãe, minha esposa! - declarou.

Posto isto, fez cair a primeira chuvarada na Terra, de onde nasceram gêmeos.

Os gêmeos pareciam-se muito com os humanos que Amma viria a criar mais tarde, mas tinham língua de lagarto e cauda de serpente. Foram os primeiros filhos de Amma: Água e Luz.

Água e Luz foram ter com o pai ao céu e olharam, lá de cima, para a esplendorosa mãe, a Terra.

- Ela não tem roupa! - exclamou Luz.

- Nesse caso, temos de a vestir - retorquiu Água.

Juntos, Água e Luz fizeram crescer erva e as plantas brotaram, cobrindo assim a nudez da mãe. Ainda hoje é assim: as plantas precisam de água e luz para crescer.

A seguir, o Criador moldou o Primeiro Homem e a Primeira Mulher em barro, colocou-os na Terra e insuflou-lhes vida. Os dois, por sua vez, tiveram oito filhos - dois pares de gêmeos e dois pares de gêmeas - que formaram o primeiro povo dos Dogones.

Uma vez mais, Água e Luz olharam para a mãe, agora coberta de verdura, e acharam que precisava de mais roupa.

- Que estão a fazer? - perguntou Anima, o pai.

- Estamos a tecer uma saia de caniços e arbustos para a mãe vestir – explicaram, enquanto o pai se sentava ao seu lado no céu. Os três foram conversando, enquanto Água e Luz trabalhavam.

Nenhum deles percebeu, no entanto, que o entretecer dos caniços e a inserção das folhas criara um vento que levou as suas palavras até à superfície da Terra. Aí, as pessoas escutaram-nas e, como vinham dos deuses, compreenderam-nas. Começaram então a falar uns com os outros, nascendo, assim, a linguagem humana.

Anima, Água e Luz olharam, satisfeitos, para o novo mundo que tinham acabado de criar.

- Está pronto - declarou Amma. - O meu povo vive feliz.

- Mas a Terra é tão grande! - comentou Luz. - Não poderia ter mais gente a habitá-la?

O pai retirou então um pouco de luz reluzente ao Sol e criou as pessoas de pele negra reluzente que andam pelo mundo. Para arranjar as pessoas de pele mais clara, pegou num pouco de luar e, por fim, colocou todas na Terra Mãe.

- Agora o vosso trabalho terminou, pai! - disse Água. - Podeis orgulhar-vos do mundo lindo que criastes.

Os três retiraram-se então para descansar no céu.

As primeiras pessoas adoraram o seu lar. E adoravam o Sol, que brilhava durante o dia, e a Lua que os banhava com o seu luar, à noite.

Adoravam as plantas e as árvores, assim como a terra que pisavam.

Apreciavam imensamente a chuva que caía do céu e a linguagem que lhes chegava através da brisa e que aprenderam a utilizar para comunicar entre si.

- O nosso Criador é um deus sábio e generoso - disse um jovem -, mas na nossa linguagem há palavras para coisas que nunca vi. De que animais fala Ele? Têm nomes tão variados... Se ao menos pudéssemos ver essas criaturas fantásticas!!

- Mas, se esses animais não se encontram na Terra, onde poderão estar? - quis saber a mulher.

- Ora, na própria casa de Amma, claro! - respondeu o homem. - Esses animais devem viver no céu. Temos de Lhe pedir que nos mande alguns.

A jovem riu.

 - Se o Criador quisesse que partilhássemos a Terra com eles, já os teria aqui posto ao nosso lado.

 O jovem concordou.

- Nesse caso, só nos resta ir até ao céu e roubá-los! - declarou, triunfantemente.

 Ficou combinado que um grupo deles subiria até ao céu e escolheria um macho e uma fêmea de cada animal.

 - Como é que iremos levá-los para baixo? - perguntou um.

 - Construiremos uma pirâmide gigantesca de madeira. - sugeriu o jovem. - Não sabemos que tamanho têm esses animais, mas podemos colocar os maiores no fundo e os mais pequenos no topo.

 - Mas como é que traremos a pirâmide de volta à Terra quando estiver cheia? - perguntou outro.

 - Baixá-la-emos com uma corda grossa! - respondeu a jovem.

 - Pensaste em todos os pormenores! - elogiou um.

- Então, mãos à obra! - exclamou um outro.

Assim que a pirâmide ficou pronta, o grupo de pessoas trepou por ela, do alto de uma colina e, chegadas ao céu, maravilharam-se com o reino que lá havia. Havia girafas, hipopótamos, leões, antílopes, besouros, aves, peixes e todo o tipo de animais que podemos imaginar - todos a pastar, correr, voar e nadar por cima das nuvens.

- Que lindos! - exclamou o jovem, boquiaberto.

- Cala-te - ordenou a jovem -, pois o Criador pode estar por perto e se souber que viemos aqui roubar-lhe os animais, não ficará nada satisfeito.

- Não são todos os animais - corrigiu o jovem. - Apenas um macho e uma fêmea de cada.

Foi assim que, rápida e sorrateiramente, o primeiro povo dos Dogones conduziu os animais, dois a dois, para a pirâmide de madeira que construíra - ficando os maiores em baixo e os mais pequenos em cima - até esta ficar cheia e muito pesada.

 - Encontramos muito mais animais do que alguma vez imaginei! – confessou o jovem. - Não podemos fazer baixar a pirâmide com uma corda, pois é demasiado pesada. A corda partir-se-ia e ela cairia na Terra...

- Podíamos puxá-la até aqui abaixo - sugeriu um, apontando para o magnífico arco-íris que unia o céu e a Terra.

- Mas ganharia velocidade e tombaria violentamente sobre a Terra. - lembrou a jovem com um suspiro.

As pessoas já começavam a impacientar-se, receosas de que Amma, Água e Luz pudessem aparecer a qualquer momento, apanhando-os a meio daquele roubo atrevido.

- Já sei! - exclamou o jovem. - Com a ajuda da corda, desceremos a pirâmide pela ponte do arco-íris. Tanto uma como o outro devem ser suficientes para suportar o peso. Iremos à frente da pirâmide para abrandar a descida!

Todos concordaram, mas, a certa altura, alguém perguntou:

- A que é que ataremos a outra ponta da corda?

O jovem, sem proferir palavra, agarrou na extremidade livre da corda e atou-a ao Sol.

- E agora, levemos os animais para a Terra ! - declarou.

Deve ter sido uma visão fantástica e inacreditável: um grupo de pessoas a arrastarem, lentamente, arco-íris abaixo, uma pirâmide gigantesca, em direção à Terra. Imagine-se o que deve ter sido para aqueles que observavam e aguardavam que regressassem sãos e salvos. Calcule-se o horror que sentiram quando, mal a pirâmide pousou, intacta, no chão, se ouviu um retumbante CRAC!

A corda arrancara um pedaço ao Sol... e tanto a corda como o fragmento rodopiavam pelo céu, em direção a eles.

Quando o fragmento de Sol atingiu um arbusto, que se incendiou violentamente, lançando labaredas cor de laranja para o ar, as pessoas fugiram a bom fugir. Nunca tinham visto chamas e estavam assustadas.

 - Amma fez isto para nos castigar! - gritou um homem que tivera demasiado medo para ir com os outros.

- Que tolice - declarou o jovem. - Hoje, além dos animais, recebemos um presente extra. Vejam como este fogo liberta calor e luz... Pode ser um instrumento para a humanidade!

 Dito isto, abriu a porta da pirâmide e os casais de animais começaram a sair.

 As aves levantaram voo, os mamíferos, os insetos e os répteis partiram para as florestas e planícies, e os peixes foram para a água... e a Terra Mãe acolheu-os de bom grado pois tinha muito para lhes oferecer.

 Lá em cima, no céu, Amma, Luz e Água olharam para a Terra.

- As pessoas que eu criei são criaturas muito ardilosas - comentou Amma. - Mas os animais parecem felizes no seu novo mundo e a vossa mãe cuida muito bem deles. A partir de agora, só têm de se respeitar uns aos outros. Deixá-los-ei ficar... pelo menos por enquanto.

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