segunda-feira, 13 de maio de 2019

Sophia de Mello Breyner Andresen (O Silêncio)


Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou­-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-louças com duas medidas de sonasol (detergente) e de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a louça e os talheres por água limpa e os pôs a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a lavar a louça estivesse a lavar a sua alma.

A luz sem abajur da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas - o muro, a porta, o espelho - mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a louça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tornava em si a ordem e o silêncio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca, Joana respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação noturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade. Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente.

A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia, mas reconhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noite.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.

E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença. A felicidade e essa felicidade era no seu centro unidade.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas.

Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia deformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. , Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida. E assim como a água começa a invadir o interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. Ás vezes erguia a cara e então via-se o rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem.

Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:

- Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo, como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

- Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem cobriu­-lhe os cabelos com o xale, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.

Fonte:
Sophia de Mello Breyner Andresen. Histórias da Terra e do Mar.

Arthur de Azevedo (Às Escuras)


Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição de entrar cada um com dez mil réis.

D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes do Cachapão.

D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada.

Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia.

O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido… um beijo.

– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como? Quando?

– Ora! Assina você queira…

– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder. Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião não poderia fazer o ladrão.

Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes e não os perdia de vista.

Mas o Lírio, que era fértil em ideias extraordinárias, combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás.

Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.

Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou
de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:

– Aquela autorização está de pé?

– Que autorização?

– Posso furtar o beijo?

– Quando quiser.

– Bom; vamos dançar esta quadrilha.

Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:

- Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice!

E arrastou o Lírio para o meio da sala.

De repente, ficou tudo às escuras.

Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:

– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!

E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

domingo, 12 de maio de 2019

Trova 350 - Nei Garcez


Carolina Ramos (Interlúdio)


Porta aberta. Entrou. Nunca fora chegada a templos. Porta aberta é convite. Os pés, lacerados pela caminhada sem pressa e sem destino, esmolavam repouso. Maltratados pelo pranto, os olhos abençoaram a penumbra suave de um misticismo acolhedor.

Sequer dobrou os joelhos. Largou o corpo moído num dos bancos. Duro, e de encosto reto, mas, sempre um banco. O olhar inexpressivo percorreu, vagarosa e desinteressadamente, o interior da Basílica. Cheia de santos. Vazia de fiéis. Hora não propícia para rezas. Só os infelizes se lembram de Deus nas horas não propícias, ou não convencionais.

Pincéis de luz, através da paleta dos vitrais, criavam, no piso austero, abstrações coloridas. Tentou descobrir formas. Não deu. Ergueu a cabeça. Reencontrou os mesmos altares. Os mesmos santos. A mesma nave por ela mesma percorrida, vinte anos antes, levada pelo braço do pai… o longo véu arrastado atrás de si — alva nuvem de sonhos ingênuos e de ilusões, as mais puras. Os mesmos vasos floridos de branco… rendas, laços de cetim. Outra noiva deveria chegar, ainda naquela tarde. Tudo o sugeria. Nem o tapete parecia outro. Talvez fosse o mesmo. Deveria ser o mesmo: noivas não pisam... flutuam... não desgastam. Sim, seria a mesma passadeira rubra que guiara seus passos até o portal da "felicidade"! Sorriu com amargura. Ainda conseguia sorrir! Mais uma noiva a pisaria, levando nas mãos, trêmulas e frias, o poético ramalhete de sonhos. Seriam trêmulas e frias, ainda, as mãos das noivas de agora? Esta, a chegar, talvez não usasse véu tão longo. Talvez, nem usasse véu. Quem sabe, apenas uma grinalda florida lhe ornasse os cabelos. Ou nem isso! Os costumes mudam. Os sonhos, estes sim, seriam iguais. Os sonhos não mudam nunca! — Toda mulher só tem um único objetivo, quando chega ao templo nupcial: — oficializar um direito. O direito de continuar a sonhar com a felicidade. Depois… bem, depois... somente a vida decide os rumos de um depois.

— "Meus Deus... e agora?" Vinte anos compunham o seu depois e rompia-se o vínculo.

— "E agora, meu Deus?!" — Quase inconscientemente, deixou-se escorregar, caindo de joelhos e ocultando o rosto entre as mãos nervosas.

Muita luta, muita amargura, muita angústia calada e o desquite, finalmente, assinado. — "Livre! Livre!" Tinha vontade de gritar a Deus e a todo mundo, para que todos se conscientizassem da verdade que custava a aceitar. Livre afinal! Aguentara demasiado! Suportara o máximo!

— "E agora?!" — Olhou a Virgem, no altar mor. Era mulher e santa, compreenderia. Queria pedir... precisava pedir... pedir o quê?!

Queria uma esperança... precisava de uma esperança... mas, esperança de quê?! Sentia-se só. Só e minúscula, dentro de um mundo enorme e repleto de gente estranha e adversa. Sentia-se indefesa! Não só isto, indefesa e, acima de tudo, aterrorizada!

Tentou rezar —"Ave Maria"… Palavras… palavras que nada lhe diziam de especial. Por que não — "Salve Maria?" — Saudação e pedido de socorro, a um tempo. E era de socorro, urgente, que carecia! Completou: — "Salve, Maria, a minha fé em Deus. Minha fé nas criaturas. Minha fé na vida!"

Ouviu pios e bater de asas aflitas, perto do púlpito.

Chegou-se para a ponta do banco, procurando melhor visão. Uma filhote de andorinha debatia-se, desastradamente, ensaiando o primeiro voo. Caíra do ninho, do telhado, ou de algum nicho. Junto, o carinho materno estimulando esforços; mostrando como a coisa deveria ser feita; depositando no bico faminto, ávido, a força indispensável para não ser vencido. Andorinhas, certamente, têm vocação religiosa, gostam de igrejas e vestem batina preta, de peito branco. Alguém já teria dito isto. Esquecida dos próprios problemas, a mulher solitária, ligou-se, com emoção, ao esforço aflitivo das duas avezinhas. O afã de arrancar ao solo o filhote indefeso, emprestava vigor sobrenatural ao empenho materno. No chão, o perigo, a morte, ou, pior que ela, o cativeiro.

No espaço, a amplitude, a vida, a liberdade! Inúmeras tentativas falhas. Saltos e quedas frequentes. E, afinal, o voo gratificante da vitória!

Respirou, aliviada, retornando a si mesma.

Há quanto tempo ali estava?! As horas também têm asas, voam!

Não rezara uma Ave Maria, sequer! Tornou a fitar a Virgem. Também mulher. Também mãe. Também amarga conhecedora do mundo, de suas infâmias e cruezas.

Desistiu das fórmulas. Quase num suspiro, balbuciou:

— "Senhora, estou aqui. Peço forças. Preciso, urgentemente, de forças!"

Duas lágrimas mornas, deslizaram devagarinho, acariciando a face ainda jovem, mas, sofrida. Ergueu-se, atirando um beijo à Virgem, com as pontas dos dedos.

Fora, o sol ainda queimava. Do mar, logo à frente, vinha uma canção travessa. Cruzou a avenida. Descalçou as sandálias, antes de pisar a areia. Praia deserta. Após o ardor natural, os pés feridos agradeceram o beijo salgado das ondas. Caminhou ao longo da orla, chapinhando espumas, catando búzios e conchas rosadas.

Lavou a alma. O mar tem sabor de pranto, ou o pranto tem sabor de mar?

No azul, gaivotas, ou albatrozes, planavam aparentemente descompromissados, flechando, de imprevisto, o dorso arrepiado das águas, em busca de alimento. A velha luta pela sobrevivência! O galope do pensamento trouxe, na garupa, a realidade de volta. Essa mesma luta, também era agora, sua. Só, e inteiramente sua!

Lembrou-se do templo. Da avezinha e seu filhote.

Sentiu-se um pouco andorinha, Não um, mas, três irrequietos filhotes a esperavam no lar. Lar que pedia continuidade e reconstrução.

Encheu o peito de decisão. Sacudiu as "penas" e, sem mais delongas... "voou" para o ninho.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) X


FATALISMO

 Se eu for contar, hão de sorrir talvez...
- é o fim de um grande amor sereno e nobre
que um fatalismo estranho já desfez
com razões torpes que este mundo encobre...

Morreu... e que se apague de uma vez,
- que dele nada subsista ou sobre...  
- onde a pureza e o amor?... se a vida fez
um nascer rico e o outro nascer pobre.

Que guardem esse amor. Eu o desconheço!
Não tenho em moedas o seu alto preço
e sou feliz por ser tão desgraçado !

Que o guardem!.. . Para os ricos! Para os reis!
- o amor que eu quero não tem preço ao lado,
não tem correntes, nem conhece leis!

FIM...

Nem foi mesmo preciso que você falasse,
era um pressentimento antigo dentro de mim,
há muito, na expressão que havia em sua face
via que o nosso amor ia chegando ao fim...

Hoje, para encontrá-la, eu quase que não vim...
Era o medo covarde deste desenlace...
E tudo terminou... e foi melhor assim
talvez, para você, que tudo terminasse...

Nosso amor, - e ninguém há de saber por que,
morreu (bem que o sentimos pelo nosso olhar),
e não somos culpados nem eu, nem você...

E o que é estranho afinal é que tudo acabasse,
sem que nenhum de nós falasse em terminar,
- e assim como se tudo ainda continuasse...

FRAQUEZA

Espero-te... E sei bem que eu só que te espero...
Aqui me tens... Constante e eterna é a expectativa!
Por que hei de ser assim sempre ingênuo e sincero
por mais que experiência eu tenha, e a vida eu viva?

Chegarás... e terás uma resposta esquiva
ao que te perguntar... E eu que tanto te quero
renderei novamente a minha alma cativa,
enquanto sorrirás feliz... e eu desespero...

Há um imenso poder nessa tua humildade,
e esse teu ar de mansa ternura e meiguice
estraçalha aos teus pés toda a minha vontade...

Que fazer? Hei de sempre perdoar o que fazes...
E se choras, nem sei... Esquecendo o que disse
sou eu que enxugo o pranto e ainda proponho as pazes!

FREIRA

Em teu calmo semblante e em teu olhar parado
há perdido -  bem sei - um mistério qualquer...
- quem sabe se pecaste... e se foi teu pecado
quem te fez esquecer que és bela e que é mulher...

Hoje és santa... O passado passou --- é passado...
- dele já não terás uma ilusão sequer,
e o amor que se tornou funesto e amargurado,
sepultas no silêncio... e em teu árduo mister...

Mais à frente está a vida... a vida humana e bela!
- teu presente é uma prece; teu passado: um poema;
teu futuro: um rosário, um altar, uma cela...

Evadida do mundo - ao ver-te, à luz do dia
- não sei se te admiro a renúncia suprema,
ou se lastimo a tua imensa covardia!

FUGA

Amo um lugar assim, amo os lugares
onde há montanhas, selvas, passarinhos...
- onde o giz alvacento dos luares,
à noite, faz rabiscos de caminhos...

Que bom ficarmos sempre assim, sozinhos...
quantas coisas depois, para lembrares!
Esta calma varanda... os meus carinhos...
Um silêncio... que é música, nos ares...

A porteira lá embaixo... a estrada, o fim...
Ah! Se pudéssemos nos esquecer
para onde segue aquela estrada, assim...

Ah! Se pudéssemos pensar que aquela
estrada , ali adiante vai morrer...
- Como a vida, meu Deus, seria bela!

GATA ANGORÁ

Sobre a almofada rica e em veludo estofada
caprichosa e indolente como uma odalisca
ela estira seu corpo de pelúcia, - e risca
um estranho bordado ao centro da almofada...

Mal eu chego, ela vem... ( nunca a encontrei arisca)
-sempre essa ar de amorosa; a cauda abandonada
como uma pluma solta, pelo chão deixada,
e o olhar, feito uma brasa acesa que faísca!

Mal eu chego, ela vem... lânguida, preguiçosa,
Roçar pelos meus pés a pelúcia prata,
como a implorar carícias, tímida e medrosa...

E tem tal expressão, e um tal jeito qualquer,
- que às vezes, chego mesmo a pensar que essa gata
traz no corpo escondida uma alma de mulher!

IDEAL DE AMOR

Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu ...

Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
aquela que procuro e que há de ser só minha...

Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestígio de afeição sequer...
- se para ele eu não for o seu sonho primeiro
desde já renuncio a outro lugar qualquer...

Somente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor somente assim posso sentir...
- hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esperança feliz que doure o seu porvir...

Para um perfeito ideal... para encher a minha vida
ser toda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquele amor que um dia não foi meu!

Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
- para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Leonardo Boff (A Águia e a Galinha)


Certa vez, um camponês andando pela floresta, encontra caído ao chão um ninho de águia, com um filhote bastante machucado, que havia caído junto com o ninho do galho mais alto, de uma das árvores mais altas do local.

Com pena da ave, levou-a para sua casa e tratou-a dia a dia. Aos poucos foi se recuperando, e o nosso camponês, sem ter onde deixá-la, acabou colocou-a no galinheiro, junto com as suas galinhas.

E, assim, a aguiazinha foi crescendo e aprendeu a se comportar exatamente como as galinhas.

Os anos se passaram. Certo dia, o camponês recebeu a visita de um naturalista que, ao ver a águia no galinheiro, afirmou:

"Este pássaro não é uma galinha, é uma águia, a rainha das aves, aquela que voa mais alto e que mais perto chega do céu e do sol. A maior de todas as aves".

O camponês confirmou o que ouviu, mas retrucou:

"Não. Ela já foi uma águia. Ela foi águia quando nasceu, mas hoje é uma galinha. Veja, ela se comporta exatamente igual às galinhas".

O naturalista não se conformou e pediu ao camponês para deixá-lo libertar a águia. O camponês não tinha nada a opor, mas advertiu:

"Não adianta. Você verá que ela não é mais uma águia, pois eu não sei há quanto tempo ela já está aqui e durante todos esses anos ela sempre se comportou como uma galinha".

O naturalista pegou a águia e disse:

"Você sempre foi, é e sempre será uma águia. Você nasceu para voar muito alto, para ser a maior de todas as aves, a mais poderosa. Você não é uma simples galinha. Vamos, voe em direção ao céu e ao sol, pois é o seu destino".

A águia olhou para baixo, viu as galinhas e pulou para o chão, ficando entre elas. O camponês comentou:

"Não lhe disse? Ela perdeu o espírito de águia e agora é uma simples galinha".

O naturalista não se conformou e retrucou:

"Não. A natureza dela não é essa. Amanhã vamos levá-la para o alto da montanha mais alta, lá ela verá o sol e voará como uma águia que é".

E assim fizeram. No dia seguinte levaram a águia até o alto da montanha mais alta e o naturalista repetiu:

"Vamos! Você é uma águia, uma das mais belas criações de Deus. Você foi feita para vencer, não pode continuar agindo como uma simples galinha. Voe. Observe o céu e o sol, eles são os seus objetivos, e não a terra, o chão de um galinheiro".

A princípio a águia, de forma muito medrosa, procurou as galinhas, mas como não as encontrou por perto, passou nervosamente a bater as suas enormes asas, com quase 3 metros de envergadura; aos poucos foi criando coragem e depois de algumas tentativas frustradas e de muito medo conseguiu alçar pequenos voos. Mais um pouco e ela se sentiu com a coragem necessária para voar em direção ao sol e ao céu; e lá foi ela, galhardamente, realizar o seu projeto de vida, para o qual havia sido criada.
_________________________

Nós, seres humanos, também viemos ao mundo para realizar todos os nossos projetos e sonhos...

Ao longo da vida, entretanto, alguns perdem essa coragem e desistem de buscar a sua própria realização, desfigurando-se completamente.

Acomodam-se e se deixam levar pelos obstáculos e dificuldades que a vida apresenta. Não conseguem reter o espírito de luta que faz de alguns os grandes vencedores, mas que nasceu com todos nós.

A águia é uma ave de rapina e nisto ela é exatamente o oposto do que temos de ser ao longo da nossa vida e da nossa profissão, porque não nascemos para viver de "expedientes de rapina", mas sim da nossa maravilhosa capacidade de construir sempre um mundo melhor para todos, sejam eles nossos familiares, clientes ou empresas, pois ao produzir, seja o que for, estamos melhorando a vida de todas as pessoas.

Mas, assim como a águia, viemos ao mundo para realizar grandes e bonitos "voos ao longo da vida", transformar os nossos sonhos em realidade e . . . vencer.

Às vezes, a vida nos apresenta situações em que é difícil ser águia e sairmos "voando" em direção ao céu dos nossos sonhos e ao sol das nossas realizações, mas temos de ACREDITAR SEMPRE que isto é uma situação passageira e que logo voltaremos a ter o espírito de vitória com que nascemos, lutando para buscar sempre a plena realização de todos os nossos sonhos.

Assim como a águia, viemos ao mundo com a missão de superar todos os obstáculos que se apresentarem, pois temos de, todos os dias, começar sempre tudo de novo -- não adiantará absolutamente nada o sucesso ou o fracasso...de ontem -- e não importa o que já aconteceu, tenha sito ótimo ou péssimo, pois o que importa mesmo é ... o que você fará acontecer hoje !!!

Semelhante à águia, busque ser a realização da obra maior de Deus e lute sempre, pois é isso que diferencia os que vencem... dos que se lamentam..

Fonte:
Leonardo Boff. A Águia e a Galinha.

sábado, 11 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XII


Luís de Camões (A B C em motes)


AAAA
 
Ana quisestes que fosse
o vosso nome da pia,
para mor minha agonia.
 
Apeles, se fora vivo
e a ver-vos alcançara,
por vós retratos tirara.
 
Aquiles morreu no templo,
contemplando de giolhos;
eu, quando vejo esses olhos.
 
Artemisa sepultou
a seu irmão e marido;
vós a mim, e a meu sentido.

B
 
Bem vejo que sois, Senhora,
extremo de formosura,
para minha sepultura.

CC
 
Cleópatra se matou
vendo morto a seu amante;
e eu por vós, em ser constante.
 
Cassandra disse de Tróia
que havia ser destruída;
e eu por vós, d'alma e da vida.

DD
 
Dido morreu por Enéas,
e vós matais quem vos ama;
julgai se sois cruel dama!
 
Dianira, inocente,
da má morte causadora;
vós, da minha, sabedora.

E
 
Eurídice foi a causa
de Orfeu ir ao Inferno;
vós, de ser meu mal eterno.

FF
 
Fedra, só de puro amor,
morreu por seu enteado;
eu, morro de desamado.
 
Febo vai escurecendo
ante vossa claridade;
e eu, sem ter liberdade.

GG
 
Galatéia sois, Senhora,
Da formosura extremo;
e eu, perdido Polifemo.
 
Genebra, que foi rainha,
se perdeu por Lançarote;
e vós, por me dar a morte.

HH
 
Hércules, uma camisa
de chamas o consumiu;
minha alma, dês que vos viu.
 
Hébis e Dido morreram
com o rigor da mudança;
eu, vendo vossa esquivança.

JJJJ
 
Judit, que o duro Holofernes
degolou, se viva fora,
mate lhe dereis, Senhora.
 
Júlio César conquistou
o mundo com fortaleza;
vós a mim com gentileza.
 
Júlio César se livrou
dos inimigos com abrolhos;
eu, não posso desses olhos.
 
Jazia-se o Minotauro
preso no seu labirinto;
mas eu mais preso me sinto.

LL
 
Leandro se afogou
e foi sua causa Hero;
e a mim o que vos quero.
 
Leandro se afogou
no mar de sua bonança;
eu, no de vossa esperança.

MM
 
Minerva dizem que foi,
e Palas, deusas da guerra:
e vós, Senhora, da terra.
 
Medeia foi mui cruel,
mas não chegou a metade
de vossa grã crueldade.

NN
 
Narciso o siso perdeu
em vendo a sua figura;
eu, por vossa formosura;
 
Ninfas enganam mil Faunos
com seu ar e formosura;
e, a mim, vossa figura.

OO
 
Os olhos choram o dano
que em vos verem sentiram,
mas eu pago o que eles viram.
 
Orfeu com a doce harpa
venceu o reino de Plutão;
vós a mim, com perfeição.

PP
 
Páris a Helena roubou,
por quem Tróia foi perdida;
e vós a mim, alma e vida.
 
Pirro matou Policena,
perfeita em todos sinais;
e vós a mim me matais.

QQ
 
Quanto mais desejo ver-vos,
menos vos vejo, Senhora:
não vos ver melhor me fora.
 
Querendo ver a Diana,
Actéon perdeu a vida,
que eu por vós trago perdida.

RR
 
Remédio nenhum não vejo
que remedeie meu mal;
nem crueza à vossa igual.
 
Roma o mundo sujeita
com armas, saber, temor
vós a mim só por amor.

S
 
Sirena, na mor fortuna
com enganos vai cantando;
e vós, sempre a mim matando.

TT
 
Tisbe morreu por Píramo,
a ambos matou o Amor;
a mim, vosso desfavor.
 
Tisbe pelo seu amante
morreu com amor sobejo;
mas eu mais morto me vejo.

VV
 
Vênus, que por mais formosa
lhe deu Páris a maçã,
não foi quanto vós louçã.
 
Vênus levou a maçã
por vós não serdes, Senhora,
nascida naquela hora.

XX
 
Xpõ vos acabe em graça,
e vos faça piedosa
tanto, quanto sois formosa.
 
Xantopea tornou atrás
por Apônio a invocar;
e vós não, a meu chamar.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Redondilhas.

Alberto Braga (A Guerra)


Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha (
moinho movido a água) do Euzebio moleiro, e da margem oposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio Anselmo.

Eram dois velhotes viúvos, de bons sessenta anos, e amigos desde crianças. Para contradição do anexim popular, estes dois moleiros queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo oficio.

Parece que o rio, naquele sitio, era até mais pitoresco! Por detrás das azenhas descia a enfesta de uma cerrada devesa (
caminho orlado de árvores que limita um terreno) de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos (saquinhos estreitos e compridos) da fornada. Mesmo á orla havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As águas caídas nos açudes, vinham costeando uma gândara (charneca), escondiam-se em meio de um canavial, e surgiam depois mais límpidas até às rodas do moinho, que as marulhavam e batiam constantemente.

No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se amiúde, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas do outono principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a falar de um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois dizia o Euzebio:

- Anselmo, fala mais alto, que te não ouço.

- O que é? - perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.

O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:

- Não te entendo.

Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos anos que os tinha quase surdos de todo. Pobres velhos!

O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois anos, como um castelo! Ainda o dia vinha longe, já ele estava a trabalhar, que era um regalo a gente vê-lo.

- Lida como um mouro! - diziam os conhecidos.

E se havia esfolhada, ou espadelada, quem lá não faltava era ele.

O pai, que, noutros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, à boca da noite:

- Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os fregueses.

- Estava arranjado! - respondia o moço a rir. - Vosmecê já deu o que tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!

Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha mais fregueses a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a brincadeira.

E o velhote do pai, quando alguém lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.

O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ela Margarida, e era formosa, daquela formosura campesina, sem artificio, jovial e expansiva. Em dotes do coração - que é a principal beleza! - nem as mais virtuosas a excediam.

Desde pequenina foi Margarida criada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer agora paralelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como "Paulo e Virgínia".

Quando os quinze anos de Margarida, que era mais nova dois do que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos de infância, então principiou ele a olha-la com aquele respeito com que se olha para uma irmã mais velha.

Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrisolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.

Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor, fingia-se contrariada, carregava o sobrolho e mudava de conversa. Destas esquivas repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do moleiro.

- Margarida - dizia-lhe ele duma vez - se não quiseres casar comigo, hei de morrer solteiro.

- Não te faltam mulheres, Simão.

- E se te vejo ser d'outro - protestava o rapaz com as lágrimas nos olhos - não sei que faça, que me não mate.

E Margarida era tão cruel, que assim desprezasse o seu amigo e companheiro de infância?!

Nós veremos já até onde vai a dedicação de uma mulher.

       *       *       *       *       *

Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e de D. Miguel.

Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.

 - De mortos nem a conta se sabe!- diziam os mensageiros. Vai por aí até o fim do mundo!

- Jesus, Senhor! E então diz que é guerra de irmão contra irmão! Valha-nos Deus!

De uma vez, oito soldados e um furriel (
antigo posto militar correspondente ao atual terceiro-sargento) pararam á porta da azenha do Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados aflitivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou abraça--lo; mas, coitadinho!--como já lhe custava a andar, quando chegou à porta, ia o rapaz a subir a encosta.

Aos gritos da vizinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonizante e caiu desfalecida nos braços do pai.

As águas tinham engrossado com as últimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas criancinhas!

Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobressaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma batalha a pequena distancia.

Quando a tropa ali passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda ao ombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a Deus por ele.

Saiu do povoado sem ter visto o pai, nem Margarida. Levava o coração retalhado!

Assim que a filha do Anselmo o soube, quis logo ir ter aonde pudesse falar-lhe.

- Isso, Deus te livre! - disse-lhe do lado uma vizinha. - Se lá vais, lá ficas! E, de mais a mais, terás de falar com soldados! credo!

- Lá isso - atalhou a moça - também o Simão é soldado, tia Joaquina!

Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulâncias dos mortos e feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quase todos moribundos!

Nunca se tinha visto uma coisa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se os clamores da gente que se aglomerava para os ver. Destacavam-se algumas frases das ambulâncias:

- Ai! minha pobre mãe!

- Ai! meus ricos filhos!

E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.

Alguém dentre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulância:

- Meu... pai! Marga... rida! Eu morro!

E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito, e descair um braço fora do carro.

Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavalos insofridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava aflita. O retinir das molas da carreta, rodando nas lajes irregulares de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se mais de um carro, pegou no braço que bamboleava, estendido fora da ambulância, à mercê dos solavancos, reparou atentamente num anel que o morto levava, e principiou a gritar:

- O Simão! Morreu! morreu!

E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.

Quando um vizinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a notícia da morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a rezar, com os olhos postos num crucifixo, e um rosário entre os dedos.

- Reze-lhe por alma!- disse o vizinho a chorar.

O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou espantado:

- O que é? - e aplicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente.

- Morreu! - gritou-lhe o outro.

O Euzebio empalideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no vizinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da cama, e tirou de trás uma espingarda.

- Isso para que é, tio Euzebio? - perguntou-lhe o outro ao ouvido.

- Vou mata-los! - respondeu o moleiro com uma voz convulsa. - Vou mata-los!

Mas quando ia, com a espingarda ao ombro, a transpor a soleira da porta, cambaleou, e caiu fulminado para a outra banda...

Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou aflito a casa, esbaforido, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!...

       *       *       *       *       *

Ainda conheci, há muitos anos, o pai de Margarida.

Era por uma formosa manhã de abril.

O velho estava fora da azenha, sentado numa cadeira de entrevado, com os pés estendidos a uma réstia de sol. Em volta dele, chilreavam os passarinhos na ramaria frondosa do arvoredo.

Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça para o rio, e perguntava baixo, de si para si:

- E a Margarida?!...

E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as águas do rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1880.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Vinicius de Moraes (Conversa com Caymmi)


Sábado - o dia da Criação - cheguei ao Zum-Zum para fazer meu show com Caymmi e fui encontrar o baiano, como sempre, aboletado na copa, de papo com seus amigos, os garçons da boate. Paulinho Soledade, que eu desconfio fez o Zum-Zum (a dois passos de seu apartamento) muito mais para deleite próprio que do alheio (o que constitui um certificado de garantia) tem neste momento a melhor equipe de serviço da noite carioca: um pessoal que, desde o maitre até o último garçom, é simpático, eficiente e devotado à casa. Adolfo, o porteiro, por exemplo, que acaba de perder o irmão e quatro sobrinhos no rolamento da pedra da rua Euclides da Rocha, está lá firme no seu posto, imerso em sofrimento mas nunca desatento: uma instituição da noite!

Caymmi anda no auge da forma. Com a chegada de Nana, a sua "oncinha", e dos netinhos, da Venezuela, o baiano está nos seus quintais. Tudo nele respira saúde moral e realização. Não fosse a ausência de seu caçula Danilo, o flautista, a quem Caymmi mandou numa excursão à Europa, e sua felicidade seria integral. Dori está se firmando cada, vez mais como um dos jovens compositores mais importantes da última safra. E Stela, sua mulher, é aquele baluarte. De que mais precisa um homem?

Pedimos cada um um uisquinho, e eu disse a Caymmi:

- Você sabe, meu Caymmi, o que um bombeiro disse a meu filho Pedro? Simplesmente o seguinte: que tem uma pedra ali em cima do túnel da Barata Ribeiro, que pela sua tonelagem, se cair vai até a Nossa Senhora de Copacabana, fácil.

- Não me diga...

- Isso não é nada. Atrás de onde eu moro, ali na rua Diamantina, ao sopé do Corcovado, tem uma outra pedra, que, essa, vai cair mesmo. Os bombeiros estiveram lá e já fizeram evacuar três edifícios de apartamentos que ficam na trajetória de sua queda. Ela deve pesar umas dez toneladas.

Caymmi considerou seu uísque.

- Pois é, seu poeta... Veja você... Tudo por causa disto.

E apontou com os olhos um jarro de água à sua frente. Depois, seu olhar baixou um instante e ele se deixou estar, pensando...

- Ela tem um ar tão inocente, mas não é? Tão fresca, tão clarinha... No entanto, ninguém sabe o mal que isso faz!

Olhou-me de soslaio, num sestro muito seu:

- É capaz de devastar uma cidade...

Novo olhar:

- Dá tifo...

Mais outro:

- É por essas e outras que Dorival Caymmi nunca põe água no uísque…

E bebendo uma golada do seu, puro e sem gelo:

- É, meu irmão... Água é fogo!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Arthur de Azevedo (As Cerejas)


– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) XI


Consiglieri Pedroso (A Menina e o Bicho)


 Era uma vez um homem que tinha três filhas.

 Eram todas muito amigas dele, mas havia uma que ele estimava mais.

 Foi um dia à feira e perguntou às filhas o que é que elas queriam de lá. Uma delas disse:

– Um chapéu e umas botas!

 A outra disse também:

– Um vestido e um xale!

Mas a que ele estimava mais não lhe disse nada.

 O homem, muito admirado, perguntou:

– Ó minha filha, tu não queres nada?

– Não quero nada, disse ela. Quero que meu pai tenha saúde!

– Tu hás de também pedir uma coisa, seja o que for, que eu trago-te! - respondeu o pai.

Ela, para que o pai a deixasse, disse então:

– Quero que meu pai me traga um corte de goraz em campo verde.

O homem foi para a feira, comprou todas as coisas que as filhas lhe tinham pedido, e não fazia senão procurar o corte de goraz em campo verde. Mas não o encontrou. Era coisa que não havia. Por isso vinha muito triste para casa, porque era a filha que ele mais estimava.

 Quando vinha andando, aconteceu-lhe ver luzir uma luz no caminho, porque já era noite.

 Foi andando, andando, até chegar àquela luz.

 Era um pastor, que estava ali numa cabana. O homem chegou-se a ele e perguntou:

– Sabe-me dizer que palácio é aquele, e se me podiam dar agasalho!

O pastor respondeu muito admirado:

– Oh!, senhor, mas... naquele palácio não habita ninguém; aparece lá uma coisa, e todos têm medo de lá estar!

– Deixá-lo, disse o homem, não me hão de comer, e como não tem ninguém, vou lá dormir esta noite!

Foi. Encontrou tudo iluminado e muito rico e, entrando mais para dentro, viu uma mesa posta. Quando se ia a chegar à mesa, ouviu uma voz dizer:

– Come e vai-te deitar naquela cama que ali está, e pela manhã levanta-te e leva o que está em cima daquela mesa, que é o que a tua filha te pediu, mas, ao fim de três dias, hás de me trazer ela aqui.

O homem ficou muito contente por levar à filha o que ela tinha pedido, mas ao mesmo tempo ficou triste pelo que a voz lhe tinha dito.

 Deitou-se e ao outro dia levantou-se, foi direito à mesa e viu o corte de goraz em campo verde; agarrou nele e foi para casa.

 Apenas chegou, começaram as filhas de roda dele:

– Meu pai, que é que nos trouxe? Deixe ver.

O pai deu-lhes tudo quanto trazia.

 A outra filha, a que ele estimava mais, perguntou-lhe só se ele tinha saúde. O pai respondeu-lhe:

– Minha filha, venho contente e ao mesmo tempo triste! Aqui tens o teu pedido.

A filha respondeu-lhe:

– Oh! meu pai, eu tinha-lhe pedido isto, porque era coisa que não havia. Mas porque é que vem tão triste?

– Porque tenho de levar-te ao fim de três dias aonde me deram isto!

E contou tudo o que lhe tinha acontecido no palácio e o que a voz lhe tinha dito. A filha, quando ouviu tudo, respondeu:

– Não esteja triste, meu pai, que eu vou, e há de ser o que Deus quiser!

Assim foi. Ao fim de três dias o pai levou-a ao palácio encantado.

 Estava tudo iluminado, a mesa posta e duas camas feitas.

 Quando entraram, ouviram uma voz dizer:

– Come e deixa-te estar três dias com a tua filha, para ela não ter medo.

O homem esteve os três dias no palácio. No fim, foi-se embora, ficando a filha só.

 A voz falava com ela todos os dias, mas não se via ninguém.

 Ao fim de uns poucos dias, a menina ouviu cantar um passarinho no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É tua irmã mais velha que está para casar. E tu queres ir? - perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim. E tu deixas-me ir?

– Eu deixo - tornou a voz - mas tu não voltas!

– Volto, sim! – disse a menina.

A voz deu-lhe então um anel, para ela se não esquecer, e disse-lhe:

– Olha que ao fim de três dias vai um cavalo branco buscar-te; há de bater três pancadas: a primeira é para te vestires, a segunda é para te despedires e a terceira é para te montares. Se às três não estiveres em cima do cavalo, ele vem-se embora e deixa-te lá!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias, foi o cavalo branco bater três pancadas. A primeira a menina começou a vestir-se, à segunda despediu-se e à terceira montou a cavalo.

 A voz tinha dado à menina um caixote de dinheiro para levar ao pai e às irmãs, e por isso elas não queriam que ela tornasse para o palácio encantado, porque já estava multo rica.

 Mas a menina lembrou-se do que tinha prometido, e apenas se viu em cima do cavalo foi-se embora.

 No fim de certo tempo tornou o passarinho a cantar muito contente no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É a outra tua irmã que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim! E tu deixas-me ir?

– Eu deixo. - tornou a voz - Mas tu não voltas!

 – Volto, sim! - disse a menina.

  A voz disse, então:

 – Olha que se ao fim de três dias não vieres, ficas lá, e serás a rapariga mais desgraçada que há no mundo!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias veio o cavalo branco. Deu a primeira pancada, e a menina vestiu-se; deu a segunda, e a menina despediu-se; deu a terceira, e montou a cavalo e foi para o palácio.

 Passados tempos tornou o passarinho a cantar no jardim, mas muito triste, muito triste.

 A voz disse-lhe:

 – Tu ouves o passarinho?

 – Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

- É, sim, é o teu pai que está para morrer, e não morre sem se despedir de ti!

– E tu deixa-me ir? - perguntou a menina, muito triste.

– Deixo, sim, mas desta vez é que tu não voltas!

– Volto, sim! - disse a menina.

A voz disse-lhe:

– Não voltas, não, que as tuas irmãs não te deixam vir! E tu e mais elas, serão as raparigas mais desgraçadas deste mundo, se não voltares ao fim de três dias!

A menina foi, o pai estava muito mal e não podia morrer, mas apenas se despediu dela, morreu.

 As irmãs, como ela tinha perdido a noite, deram-lhe dormideiras e deixaram-na dormir.

 A menina pediu muito que a acordassem antes de vir o cavalo branco.

 As irmãs que fizeram? Não a acordaram e tiraram-lhe o anel do dedo.

 Ao fim de três dias veio o cavalo. Bateu a primeira pancada, bateu a segunda, bateu a terceira e foi-se embora, e a menina ficou.

 Ela andava muito satisfeita com as irmãs, porque não tinha o anel e já não se lembrava de coisa nenhuma.

 Daí a uns poucos dias, começou a fortuna a andar para trás, a ela e às irmãs.

 Até que uma vez as duas disseram-lhe:

 – Mana, tu não te lembras do cavalo branco?

  A menina lembrou-se, então, de tudo e disse a chorar:

 – Ai. que desgraça a minha! Ai, que me desgraçaram! Que é do meu anel?

  As irmãs deram-lhe o anel, e a menina, com muita pena, foi-se logo embora. Chegou ao palácio encantado, mas viu tudo muito triste, muito escuro e muito fechado.

 Foi direta ao jardim e encontrou um bicho muito grande, estendido no chão. O bicho, apenas a viu, disse-lhe:

 – Retira-te, tirana, que me dobraste o meu encanto! Agora serás a rapariga mais desgraçada do mundo, tu e as tuas irmãs!

  O bicho estava a acabar e, assim que disse isto, morreu. A menina voltou para as irmãs, muito triste e a chorar multo, meteu-se em casa sem comer nem beber, e dali a dias morreu também.

 As irmãs, essas ficaram cada vez mais pobres, por terem sido a causa disto tudo.

Antonio Cabral Filho (2º Colar ABC em Trovas)


Organizador: Antonio Cabral Filho - RJ
Tema - Fugacidade

Obs.: o primeiro verso se inicia com a letra A e a estrofe fecha com a letra B. Assim, o segundo trovador dará sequencia a partir da letra B, fechando na letra C. E assim por diante, cada trovador fará sua sequencia. Vale lembrar que não podemos fugir do tema nem repetir autores, exceto em caso de faltar quem queira continuar:
*FUGACIDADE*


01- A
Às vezes, sem mais nem menos,

foge-me do pensamento,
em aluviões pequenos,
Belezas do firmamento.
Antonio Cabral Filho - RJ


02 - B
Belezas do firmamento,
noites plenas de luar,
provocam meu pensamento
com um fugaz desejar.
Márcia Jaber - MG


03 - C
Com um fugaz desejar,
lembro o teu rosto e te espero,
mas não sei se vou aguentar
dor por não ter quem eu quero.
Claudia Bergamini - PR


4 - D
Dor por não ter quem eu quero
é uma dor passageira,
por isso eu não desespero
e vivo à minha maneira.
Antonio Francisco Pereira - MG


5 - E
E vivo à minha maneira,
sempre alegre e otimista,
dançando toda faceira,
formando-me uma passista...
Ester Figueiredo - RJ

6 - F
Formando-me uma passista
vou em meus sonhos bailar,
faço da vida uma pista,
giro até eu te encontrar!
Rita de Cássia - MG


7 - G
Giro até eu te encontrar
Pelas ruas, sem mutreta,
Vendo a vida a se lançar
Hoje e sempre na sarjeta.
Francisco Queiroz - RN


8 - H
Hoje e sempre na sarjeta
vejo n'água o meu reflexo,
mas é coisa do capeta,
ideia que não tem nexo!
Oliveira Caruso - RJ


9 - I
Ideia que não tem nexo
é achar que Jesus Cristo,
separa a gente por sexo,
jamais acredito nisto!
Aurineide Alencar - MS


10 - J
Jamais acredito nisto,
pois não é minha verdade:
somos a imagem de Cristo;
luz de intensa claridade.
Ronnaldo Andrade - SP


11 - L
Luz de intensa claridade
que mostra o abraço do irmão,
rápido, mas na verdade,
me tirou da escuridão.
Romilton Faria - MG

12 - M
Me tirou da escuridão
e está sempre ao meu lado,
dando paz ao coração:
não posso ficar calado.
Madalena Cordeiro - ES


13 - N
Não posso ficar calado
aos tormentos do coração
fique atento a este recado:
ouça cada pulsação!
Rita de Cássia - MG


14 - O
Ouça cada pulsação,
quando estamos bem juntinhos,
exaltado coração, 
perdido nos teus carinhos.
Claudia Bergamini - PR


15 - P
Perdido nos teus carinhos,
absorto de paixão,
eu percorro teus caminhos
querendo mais explosão.
Francisco Queiroz - RN

16 - Q
Querendo mais explosão
vivo a vida a te esperar
e com amor em profusão...
Rezo para te encontrar!
Dilercy Adler - MA

17 - R
Rezo para te encontrar
por essa estrada, meu bem.
Estou morrendo de amar,
saudade mata também.
Aurineide Alencar - MS


18 - S
Saudade mata também,
já dizia minha avó,
que teve seu grande bem.
Tanto sofrer. Quanta dó.
Dilercy Adler - MA

19 - T
Tanto sofrer. Quanta dó
quando o amor vai embora;
dia e noite sem xodó,
usurpa-se a minha hora.
Francisco Queiroz - RN


20 - U
Usurpa-se a minha hora
essa densa tão ferida,
de só ater-me no agora,
vivendo a arte com vida
Vanda Salles - RJ


21 - V
Vivendo a arte com vida
encontro a felicidade,
deixo a vida divertida,
xeque-mate na maldade.
Claudia Bergamini - PR

22 - X
Xeque-mate na maldade
isso é tudo o que mais quero,
grito de felicidade
sanfona  no meu bolero.
Madalena Cordeiro - ES


Fonte:
Trovadores do Brasil

Chico Anysio (Domingo em Madureira)


Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.

— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.

Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.

Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia­do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina — falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.

— Dorme, Climério, ainda é cedo.

— Cinco horas.

— É domingo.

Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em preservar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.

A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.

A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.

Esqueceu de dar descarga.

Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.

O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.

Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.

Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.

Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.

De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.

— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.

Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi­nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.

Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava resto de sono dos olhos.

De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.

— Que horas são?

— São cinco e meia.

As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.

Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.

Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de­pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro­longado. Pediu socorro ao marido.

— Coça aqui.

Ele coçou. Custou a achar o lugar.

— Todo mundo já acordou?

— As meninas. Júlio, não.

— Você já viu o leitão? — perguntou, sem interesse, en­quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. — O leitão cabe no forno?

— Hum, hum — ela fez que sim.

Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En­traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci­para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.

Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.

Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam­brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.

O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".

— Vai jogar?

— Bater uma bola.

Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.

Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.

— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém acordado, olho inchado, cara marcada de tra­vesseiro.

— Duas?

— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?

Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.

Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.

Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re­lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.

Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es­peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.

Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.

— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.

O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.

— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.

Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.

O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.

— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.

— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.

Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.

— E o reumatismo, comadre?

— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.

— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.

A chegada dos compadres endomingou mais a casa.

— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.

— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli­ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.

— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en­quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.

— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.

Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme­renciana usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.

Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre­chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.

— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.

— Manda brasa!

A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:

— Tá de lascar! Vira aqui.

E ele bebeu a oitava de um só gole.

O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.

Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.

— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.

Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.

— Tá demais, essa batida.

As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.

As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.

— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.

Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.

— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.

Climério providenciou, cortando um velho sapato.

— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.

— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.

Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.

A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.

Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.

Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.

A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.

— Nessa aqui eu caprichei.

Provou.

— Está uma brasa!

Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodê que in­sistia em usar. Mostrou que ia sair.

— Não vai almoçar, Julinho?

— Não dá, mãe, tô com pressa. Como um troço por aí.

Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.

Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!

O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.

Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do­mingo, dia bom pra sorrir.

Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.

— Vira, vira, vira. . .

— Vira, vira, vira. . .

Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.

Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar­cado por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.

Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.

Saíram Rui e as moças para um cinema provável.

O arroto de Climério avisou que ele acabara.

— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.

As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con­versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon­tos de tricô.

— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.

Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...

— Dormindo!

— Deixa.

Afinal, era domingo.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) III


Não meço o teu amor
Nem sequer dele peço provas
Me entrego sem temor
E em teus braços esqueço as horas.
Faça frio ou faça calor
Em ti eu me abrigo
Sentindo o coração falar pro teu,
Como é bom estar contigo.
=================================

Entre as pedras
Pequenas sementes de lua
Carregadas de meninice
Desejam viajar.
Basta um assopro
E os sonhos ganham voo
Nas asas do vento-garoto
Que sorridentes,
Se entregam ao livre planar.
=================================

Ainda passeia em minha pele
O teu cheiro cioso
Que transborda tão gostoso
Por entre as dobras do lençol.
A poesia encharcada de nós
Também ainda dança
No quarto desarrumado
Que bela lembrança!
Confundo os nomes
Esqueço os pronomes
E por instantes sou só teu.
=================================

Da pequena flor amarela
A rã fez um sol
Pra aquecer a alma dela
Que estava carente de amor
Mas o calor foi crescendo
E acabou recebendo
Da borboleta um protetor
Assim o dia ficou incrível
E a rã acabou descobrindo
Que o amor é o melhor cobertor.
=================================

No silencioso espelho d'água
Converso com o irmão gêmeo que nunca tive,
Mas que sempre me acompanhou
Quem sabe ele era os cochichos da alma
Indicando o caminho com setas
Mas que preferia chamar de intuição
No reflexo silencioso do espelho d'água
As imperfeições perfeitamente a mostra
Tiram a máscara do eu-narciso
Que se convence que somos breves
Bastando um pingo de chuva nas águas do tempo
A imagem vira onda
Zummmmm...
E a ilusão se acabou.
=================================

Poema infantil

Roinque, roinque, roinque
O porquinho está alegrete
Hoje é o seu aniversário
De presente ganhou sorvete.
Não importa o sabor
Sendo de frutas todos apetece
Pois além de tapiar o calor
De energia o corpo enriquece.
Roinque, roinque, roinque
O porquinho agradece.
=================================

Vindos da terra dos sonhos
Os pássaros outrora ciganos
Dão pausa aos cantos
Deixando que o encanto
Fique por conta
Do silêncio das cores.
Pássaros flores
Descansam suas asas
No campo fazem moradas,
Criam raízes
Conservam as matizes
E em flores se transformam.
Na paisagem bucólica
Meus olhos em ninho
Acolhem os passarinhos
Que só com o vento passeiam.
=================================

Somos presas
Indefesas
Contra as garras afiadas do tempo
Mas o amor e a amizade
São botox de verdade
Que amenizam
O sofrimento.
=================================

Caminhos traçados
Amarrotados nós.
Lembranças colhidas,
Onde eu e tu
Éramos nós.
Antevendo o fim
A razão procura
Novos recomeços,
Mas no verso do vento
Com o teu cheiro
Ainda estremeço.
Eta, coração travesso!
=================================

Grita em mim
Tuas palavras engasgadas
Palavras rasgadas
Palavras molhadas de adeus.
Grita em mim
O inesperado silêncio
O gesto do lenço
Antevendo o fim.
Grita em mim
A carne nua do desejo
Abafada pela ausência do beijo
Que voou em outra direção.
Grita em mim
O amor ainda latente
Vulcão em cinzas quentes
Cavando um sim pra ressurgir.
Ah! Como grita em mim,
O silêncio do teu olhar.

Fonte:
AVIPAF (Facebook)

Carolina Ramos (A Família Abano)



Seu Abano nascera de sete meses. Mirradinho. Pernas e braços finos, que nem caniço de bambu. Todo olhos e orelhas. Na pia batismal, recebeu o nome de Felizberto. Bertinho, para os pais. E, mais adiante, Abano, para quantos lhe medissem, com espanto, as orelhas avantajadas, que lembravam duas ventarolas. Orelhas teimosas. Levaram a mãe do menino ao desespero, na ânsia de vê-las fixas mais próximo da cabeça. Inúteis os esparadrapos, as fitas adesivas, as toucas de meia, as ataduras de gaze, que davam ao garoto a aparência de alguém fugido às trincheiras ou sobrevivente a alguma catástrofe.

Catástrofe mesmo, eram a tais orelhas! Rebeldes, insubordinadas, resistentes a qualquer medida disciplinatória! Por causa delas, Fellzberto, que a partir do nome, tinha tudo para ser feliz, não era. Vivia cercado de chacotas e deboches e piparotes. Alvo frequente das impertinências da molecada do bairro e, mais tarde, dos colegas de classe. Quem mais sofria, por ver sofrer o filho, era a infortunada mãe. Morreria sem se conformar! Felizberto, ou Bertinho, teve cedo o nome trocado. O apelido — Abano — impôs-se por força das circunstâncias. Ou, melhor dizendo, das evidências. Que bastava olhar, para aceitá-lo. E ninguém, jamais, questionou a troca de nomes. Abano cresceu carregando nos ombros o peso da alcunha.

O amor que nele eclodiu, por Giovana, foi paixão à primeira vista! A garota tímida, cabelo puxado para atrás, intencionalmente prendendo as pontas das orelhinhas rosadas, exerceu sobre ele uma atração irresistível. As orelhinhas, sempre escondidas, intrigavam-no. Despertavam-lhe suspeitas que o levaram a ousadias. Tão logo teve oportunidade, desvendou o mistério. A pretexto de um carinho, libertou uma das conchinhas rosadas que saltou, lépida como asa de borboleta, livre de amarras! Constrangimento por parte da moça. Emoção e íntimo júbilo iluminaram os olhos de Abano. Identificação total! Perfeita! Se duvidara, antes, dos próprios sentimentos, nada mais havia a temer!

Casaram-se pouco depois. Mais nove meses e nascia o primeiro filho, trazendo a marca registrada da família — orelhas de abano. Um após outro, no total de cinco, chegaram novos rebentos portando, sempre, as características inconfundíveis do pai e da mãe. Em consequência, a prole dividia entre si os mesmos desgostos, as mesmas angústias dessa herança indesejável, impossível de ser descartada.

E assim foi, até que preocupação maior assumiu o primeiro plano. Abano I, ou seja, o primeiro filho do casal, não mais escondeu o macabro interesse por bichos mortos. Virou esquartejador de primeira! Não havia gato, ou cachorro atropelado, que lhe escapasse. Nem rato morto. Nem passarinho. Não raro, horrorizava quem o surpreendia a abrir a barriga desses bichos, vasculhando o mórbido conteúdo, com minuciosidade alarmante! Isto custou-lhe muito pescoção. — "Que porcaria é essa, menino?!" E tome tabefe, E tome beliscão e castigo. — "Seu coisa ruim! Você matou o gato!"

— "Matei, não! Eu só tava vendo que recheio ele tinha!" — a defesa não convencia e lá vinham as palmadas e ameaças. O que não acontecia, era puxação de orelhas. Isso, não! Questão de honra familiar. Não se agride um patrimônio. Tudo, menos puxão de orelhas! A preocupação da família cresceu, até que veio o esclarecimento. Abano I decidira-se profissionalmente: — queria ser médico. Caso de vocação explícita, que tudo esclarecia. Alívio geral!

De pronto, o jovem passou de malfeitor a herói. As economias foram carreadas para o seu lado. Os esforços, não medidos. Tudo é nada, quando a meta é a concretização de um sonho! Diploma na mão, Dr. Abano I conquistara o título de Cirurgião Plástico, disposto a embelezar o mundo. E não perdeu tempo. Começou pela família, dando um jeito nela. Um ponto lá, outro cá, e as orelhinhas rebeldes da mãe, dos irmãos e do filho recém nascido, ocuparam, definitivamente, o lugar devido.

O velho Abano, origem de toda essa rebelião auricular anti-estética, foi o único que não se submeteu à técnica. Acostumara-se com o visual da família. Por isso mesmo, estranhou a mulher. Estranhou os filhos. Estranhou o neto. E, quando, afinal, se foi, levou consigo, conformado, aquelas mesmíssimas insubordinadas orelhas que Deus lhe dera e que, aos trancos, conseguira amar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.