quinta-feira, 6 de junho de 2019

Monteiro Lobato (A Vingança da Peroba)


A CIDADE DUVIDARÁ DO CASO. Não obstante, aquele monjolo de João Nunes no Varjão foi durante meses o palhaço da zona. Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia Pedro Porunga, mestre monjoleiro de larga fama, fungavam-se à conta do engenho risos sem fim.

Sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados pelo espigão do Nheco — e por malquerença antiga. Levantara Nunes uma paca, certo domingo; mas ao dobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um Porunguinha que casualmente lenhava por ali. Zás! Certeiro golpe de foice dá com ela em terra.

Até aí nada.

Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto de presente ao legítimo dono. Legítimo, sim, porque, afinal de contas, aquela paca era uma paca de nomeada. Sabida como um vigário, dizia Nunes, nem cachorro mestre, nem mundéu, podiam com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do outro lado não ignorava isso. Paca velha e matreira tem sempre a biografia na boca dos caçadores. Paca muito conhecida, portanto; moradora em suas terras. Paca de Nunes, homessa. Ora, justamente no dia em que, numa batida feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha?

— Mas é uma criança!

Sim, mas o pai não aprovou? Não disse, entre risadas, “o Nunes que se fomente?”. Haviam de pagar! Veio daí a malquerença. O espigão vinha do período um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.

Agravava a dissensão uma rivalidade quase de casta. Pertencia Nunes à classe dos que decaem por força de muita cachaça na cabeça e muita saia em casa. Filho homem só tinha José Benedito, de apelido Pernambi, um passarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete anos. O resto era uma récula de “famílias mulheres” — Maria Benedita, Maria da Conceição, Maria da Graça, Maria da Glória, um rosário de oito mariquinhas de saia comprida. Tanta mulher em casa amargava o ânimo do Nunes, que nos dias de cachaça ameaçava afogá-las na lagoa como se fossem uma ninhada de gatos. O seu consolo era amimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no eito, a ajudá-lo no cabo da enxada, enquanto o mulherio inútil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol. Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga. A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço pegou lesto no vício. Bebia e fumava, muito sorna, com ares palermas de quem não é deste mundo. Também usava faca de ponta à cinta.

— Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta, não é homem — dizia Nunes.

E cônscio de que já era homem, o piquirinha batia nas irmãs, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de muitas outras coisas próprias de homem. Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na pinga, Pedro Porunga casara com mulher sensata, que lhe dera seis “famílias”, tudo homem.

Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito. Plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha dois monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duas porcas de cria. Caçava com espingarda de dois canos, “imitação Laporte”, boa de chumbo como não havia outra. Morava em casa nova, bem coberta de sapé de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas à mão por dentro, coisa muito fina. Já Nunes — pobre do Nunes! — não punha na terra nem um alqueire de semente. Teve égua, mas barganhou-a por um capadete e uma espingarda velha.

Comido o porquinho, sobrou do negócio o caco da pica-pau, dum cano só e manhosa de tardar fogo. Sua casa, de esteios com casca e portas de imbaúba rachada, muito encardida de picumã, prenunciava tapera próxima. Capado, nenhum. Galinhada escassa.

Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama; andava de barriga às costas, com bernes no toitiço. O pobrezinho não caminhava dez passos sem que parasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros, tentando inutilmente abocar o parasita inatingível. Que preasse. Cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preás atolambadas. E tudo mais no Varjão afinava pela mesma tecla.

Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negócio duma besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeu-lhe aquilo no fundo da alma. Era atrepar demais.

— Quê! Já roncam assim? — braveteou. — Pois hei de mostrar à Porungada quem é o João Nunes Eusébio dos Santos, da Ponte Alta!

E entrou-se, desde aí, de grandes atarefamentos. A mulher pasmava da súbita reviravolta do marido, duvidando e esperando.

— Durará esse fogo? Quem sabe?!

Planejava Nunes grandes coisas, roça de três alqueires, conserto da casa, monjolo...

Aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.

— Monjolo? Ché, que esperança!

Nunes, metido em brios, roncou:

— Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto até moinho! Hei de fazer a Porungada morder a munheca de inveja. Vai ver!...

Com assombro de todos não ficou em prosa fiada a promessa. Nunes remendou mal e mal a casa, derrubou um capoeirão descansado de oito anos e, num esforço de mouro, meteu na terra nove quartas de milho.

Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou:

— Eh! Aquilo é fogo de jacá velho. Calor de pinguço não dura...

O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em janeiro o milho desembrulhava pendão, muito medrado de espigas. Nunes não cabia em si. Visitava as roças muito contente da vida, unhando os caules viçosos já em pleno arreganhamento da dentuça vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se da cabelugem louro-translúcida. Segurava então a barbica do queixo e sonhava opulências futuras, balanceando prós e contras. Os contras já estavam de fora. Só havia prós. E concluía, entrando em casa, para a mulher:

— Este ano quebro um milhão desgramado!

Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados os lucros. Não foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução de tal vulto, porém, não se toma assim do pé para mão: era preciso meditar, calcular. E Nunes imaginava... O chóó-pan do futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornelo de música do céu.

— Hei de mostrar ao Porunga que ele não é o único monjoleiro do mundo. Empreito o serviço com o compadre Teixeirinha da Ponte Alta.

A mulher botou as mãos na cabeça.

— Nossa Virgem! É coisa de louco! Pois o compadre nem braço tem...

— Bééé! — urrou Nunes, estomagado. — Cale essa boca! Mulher não entende das coisas...

E ela, nas encolhas:

— Tá bom. Depois não se queixe.

— Bééé! — rematou o marido.

Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relações familiares. Quando ali roncava o “bééé”, mulher, filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silêncio. Sabiam por dolorosa experiência pessoal que o ponto acima era o porretinho de sapuva.

Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razão, porque o Teixeirinha Maneta era um carapina ruim inteirado, dos que vivem de biscates e remendos. Só a um bêbado como o Nunes bacorejaria a ideia de meter a monjoleiro um taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma vista. Mas era compadre e acabou-se. “Bééé!”

Uma nova semana passou Nunes em trabalhos de “maginação”. Coçava lentamente a cabeça, pitava enormes cigarrões, muito absorto, com os olhos no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim. Rumou à Ponte Alta e trouxe de lá o velho carapina, com a ferramenta capenga. Só restava resolver o problema da madeira. Nas suas terras não havia senão pau de foice. Pau de machado, capaz de monjolo, só a peroba da divisa, velha árvore morta que era o marco entre os dois sítios, tacitamente respeitada de lá e de cá. Deitá-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado — como lhe fizeram à paca.

Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.

— Está resolvido: derrubo a peroba!

Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não raiava a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes. Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do bando, interpelou:

— Com ordem de quem, seu...

— Com ordem da paca, ouviu? — revidou Nunes provocativamente.

— Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia sua.

— Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... — retrucou Nunes apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa.

Pedro continha-se a custo.

— Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...

— Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira “cuia” que passar o rumo!...

Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta:

— Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!…

A Porungada, afinal, abandonou o campo — para não haver sangue.

— Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita lágrima por amor disso...

— Bééé!... — estrugiu Nunes triunfalmente.

Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar vitorioso de Nunes.

— Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro!

E assombrou o velho com muitos lances heroicos, quebramentos de cara, escoras de três e quatro, o diabo.

— O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta.

A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memória. Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo acachaçado, comemorativo do triunfo, até que uma soneira letárgica os derreou pelo chão.

Com a derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo sacudindo a cabeça, a cismar...

— Que monjolo sairá disto, mãe do céu!...

Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte à peroba, muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco antigo, e a feitura do monjolo teve início com grande quebradeira de corpo. Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só. Pasmava daquilo, e do ajutório que ao braço perfeito dava o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que Nunes respondia com outros, sempre tendentes a patentear a ruindade dos Porungas.

Falquejado o toro, correram um barbante embebido num mingau de carvão.

— Pegue nesta ponta, compadre — dizia o velho. — Agora estique; isso.

E tomando entre os dedos o meio do cordel — plaf —, chicoteava a madeira, riscando nela um traço negro. Nunes revelou grande vocação para esfria-verruma. Esfria-verrumas são os “empaliadores” dos carapinas. Sentam-se com uma nádega à beira da banca e durante horas pasmam do rebote correr na tábua encaracolando fitas, ou do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da enxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam: “É Grive? (Greaves) Quanto custou?”. E quando sai da madeira a verruma, quente da fricção, pegam-na e põem-se a soprá-la muito sérios.

Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho a machado e enxada. Depois rasgou as furas da haste e afeiçoou a munheca. Prontas que foram, atacou o pilão. Escava que escava, em três dias pô-lo de banda, concluso. Restava somente aparelhar a “virgem”.

— O compadre sabe a história do pau de feitiço?

Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa alguma, tirante emborcar o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o esquadrejamento da “virgem”, Maneta narrou o caso que ouvira ao pai, o Teixeirão serrador, madeireiro de fama.

— Em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato toda vida, lidei com toda casta de árvore, desdobrei desde imbaúba e embiruçu até bálsamo, que é raro por aqui. Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho do mato. E de tanto lidar com paus, fiquei na suposição de que as árvores têm alma, como a gente.

— Te esconjuro! — espirrou Nunes.

— Isto dizia lá o velho; eu por mim não dou opinião. E têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. Não vê como gemem certos paus ao caírem? E outros como choram tanta lágrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora pois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de Deus.

— Lá isso...

— Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qual é, a modo que peitado pra desforra dos mais. É o pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o machado no cerne desse pau pode encomendar a alma pro diabo, que está perdido. Ou estrepado, ou de cabeça rachada por um galho seco que despenca de cima, ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não escapa. Não adianta se precatar: a desgraça peala mesmo, mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada. “Isto dizia o velho — e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada do Figueirão, alembra-se?, morreu o filho de Chico Pires. Estava cortando um guamerim quando, de repente, soltou um grito. Acode que acode, o moço estava com o peito varado até as costas. Como foi? Como não foi? Ninguém entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e disse: ‘É feitiço de pau...’. Como este um, quantos casos? O mundo está cheio. Sebastiãozinho da Ponte Alta fez uma casa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. Pois não é que a cumeeira arreia e estronda a cabeça do rapaz? Por isso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por ali perto não tinha havido desgraça. Era para ver se o feitiço estava solto ou preso, e precatar-se.”

Com estas e outras ia Maneta florejando de lérias as horas de serviço, enquanto dava os derradeiros retoques no engenho. Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que é pouco — e ele batia tapas amigos na peroba-vermelha.

— Aí, minha velha! Mansinha, hein? Há de chamar-se Tira-prosa — tiraprosa de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh!

Recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito à custa dum ancorote de cachaça, que esvaziaram a meio.

Dias depois, bem fincado, bem socado o pilão, o monjolo recebeu água. Aberta a bica, um jorro de enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou para o “inferno”.[16] A engenhoca gemeu na “virgem” e alçou o pescoço. O cocho despejou a aguaceira — chóó! A munheca bateu firme no pilão — pan!

Nunes pulava de alegria.

— Conheceu, porungada choca, quem é João Nunes Eusébio da Ponta Alta?

Mas não lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da menina a palmear, nem os ladridos de Brinquinho que, espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontapés. Queria mais. Correu à espingarda, espoletou-a e, erguendo-a para o “outro lado”, desfechou. Mas o caco velho da pica-pau não compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alçada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou com ela para longe, embrulhada num palavrão. Lembrou-se depois de três foguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los; atacou-os em direção aos Porungas.

— Cheira essa pólvora, cuiada!

Infelizmente as bombas, muito úmidas, negaram fogo por sua vez.

— Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega também.

Não negou. E a prova foi roncarem logo para ali como dois gambás. No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com grande sentimento do Nunes, que perdia nele um companheirão. Quanto ao monjolo, como não houvesse milho a pilar, ficou sua estreia para quando se quebrasse a roça. Cessaram as chuvas de verão. Entrou o outono, refrescado, limpo. Amarelaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Começou a quebra. Muito impaciente, Nunes debulhou o primeiro jacá recolhido e atochou o pilão. Ai! Não há felicidade completa no mundo. O engenho provou mal. Não rendia a canjica. Desproporcionada ao cocho, a haste não dava o jogo da regra.

A mão, por muito leve ou por defeito de esquadria na “virgem”, guinava à esquerda ao bater, espirrando milho para fora. Por mal dos pecados, à primeira chuvinha o pilão entrou a rever água. Fora escavado em madeira ventada. Não prestava.

Nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se a reparar tantas “torturas”. Diminuiu o peso ao macaco, engrossou as águas, amarrou ali, especou acolá, calafetou fendas. Consumiu dias em luta surda contra as manhas do mal engonçado. Mas a peste do mostrengo respondia a cada arranjo com uma reincidência de desalentar.

O pobre homem explodiu, então. Da boca lhe espirraram injúrias sem fim contra o patife do carapina.

— Excomungado do diabo de maldelazento de maneta...

Impossível meter no papel todas as contas do rosário; as miúdas inda cabem, mas as graúdas não podem sair do Varjão. Além de injúrias, ameaças. Que iria à Ponte Alta rachar o compadre a foice; que lhe vazava a outra vista; que...

Num desses desabafos a tola da mulher meteu a colher torta no meio.

— Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o “queixo-duro” não fez caso...

Ai! Nunes, que só esperava por aquilo, passou a mão na sapuva e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova de consertar ladrão.

— Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno! Aprende a fazer monjolo, porco sujo! — e malhava...

A mulher sumiu-se aos pinotes mato adentro, seguida do mulherio miúdo; e por oito dias andou em esfregações de salmoura pela polpa avergoada. Nunes, porém, melhorou consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da bílis.

A nova de tais sucessos chegou à Porungada. Pedro, exultante, não teve mão de si, quis ver com os próprios olhos a caranguejola que o vingava tão a pique. Meditou um plano, e lá um dia transpôs o espigão, rumo à casa do rival. Voltou uma hora depois espremendo risos fungados.

— Eh, eh, minha gente! Vocês não calculam. Quando quebrei o serrote já ouvi o barulho — chóó-pan —, uma ronqueira dos diabos! Disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh!

Fui chegando. Nunes, jururu, estava debulhando milho na porta. Quando me viu entreparou, amode que assombrado.

— É de paz! — eu disse, e me plantei diante dele. — Dois chefes de família, inda mais vizinhos, não podem viver toda a vida assim, de focinho “trucido” um pro outro. O que foi, foi. Acabou-se. Toque.

Ele relanceou os olhos pro lado da ronqueira — eh, eh! — e muito desconchavado me espichou a mão sem abrir o bico.

— Traga um café! — gritou pra dentro.

Enfiei os olhos pela casa: estava “assim” de mulherada na cozinha! Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversava sem graça, amarradinha. Por fim especulei:

— E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?

Nunes amarelou que nem esta folha!

— É bonzinho, rende bem...

— Quero ver” — disse eu —, se não é curiosidade...

— Pois vá — respondeu, sem se mexer do lugar.

Eu fui.

Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem na casa do diabo! Só se vê amarrilhos de cipó e espeques e macacos. A haste tem nove palmos e o cocho a mó que tem dez!...

— Quiá! quiá! quiá! — cacarejou a roda, que em matéria de monjolo era entendidíssima.

— A mão não pesa, home, não pesa nem arroba e meia! A “virgem” está errada e fora do prumo. Milho está que está alvejando o chão. A mão pincha duma banda.

Os Porunguinhas babavam.

— Então, roncar ele ronca?

— Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas, socar? O boi soca! Nem três litros rende por dia. Homem, gentes, aquilo é coisa que só vendo!

A cara dos Porungas, anuviada desde o incidente da peroba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos do despique. As nuvens foram escurentar os céus do Varjão. Era um nunca se acabar de troças e pilhérias de toda ordem. Inventavam traços cômicos, exageravam as trapalhices do mundéu. Enfeitavam-no como se faz ao mastro de são João. Sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os Porunguinhas iam atando cada qual o seu buquê, de modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente cômica. A palavra ronqueira entrou a girar nas vizinhanças como termo comparativo de tudo quanto é risível ou sem pé nem cabeça.

Aos ouvidos de Nunes foram bater tais rumores. O orgulho, muito medrado no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhe como fruta verde colhida antes do tempo. Mas impossibilitado de vingar-se deu de criar um rancor surdo contra a Ronqueira, que, trôpega, lá ia malhando, dia e noite, chóó-pan, muito lerda, muito parca de rendimento. Para acalmar a bílis Nunes dobrou as doses de cachaça.

A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da vida, esmolambada, sem mais esperanças de arranjo para aquele homem. Sempre rentando o pai, sorníssimo, Pernambi parecia um velhinho idiota. Não tirava da boca o pito e cada vez batia mais forte no mulherio miúdo. Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a cabeça, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua gente. E assim, meses.

Afinal, veio a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso foi que o inocente pagou o crime do pecador, como é da justiça bíblica. Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo da Pedra Branca, outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de Ronqueira. Era demais.

— Até aquele cachorro do Cuitelo! — gemeu o mísero, passando a mão na garrafa.

Sorveu um gole e:

— Pernambizinho, vem cá. Bebe com teu pai, meu filho.

O menino não esperou novo convite: bebeu um, dois e três goles, estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo. Mal tonteado pelos eflúvios do álcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu. Nunes estirou-se ao sol para dormir.

Era um dia feio de agosto. Céu turvo do fumo das queimadas. Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas carbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes. Transcorrida uma hora o bêbedo acordou, relanceou em torno os olhos mortiços.

— Quedele Pernambi? — disse às filhas acocoradas à soleira da porta.

As meninas não sabiam do irmão.

— Chamem Pernambi — engrolou o bêbedo, recaindo em cochilo.

Uma das pequenas saiu no encalço do menino. Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se lhe houvessem desossado o pescoço. Da boca escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas. Súbito, um grito lancinante ao longe alvoroçou a casa.

A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, para à porta, orienta-se e corre para onde há voz. As filhas disparam-lhe atrás, rumo ao monjolo. Silêncio trágico.

Depois novos gritos — gritos em coro —, gritos de desespero.

— Coitadinho do meu filho! — uivava lá longe a mãe.

Nunes soergue-se, amparado ao portal.

— Que é isso? — grunhe.

Ninguém lhe responde. Não há ninguém por ali.

Mas no monjolo recrudesce a grita. Para lá segue o bêbedo, cambaleante. Em caminho dá de cara com a mulher, que voltava descabelada, a falar sozinha.

— Que é que foi, mulher?

Arrostando com o marido, a pobre mãe afuzila nos olhos um raio de cólera incoercível.

— O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É a tua pinga, homem à toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá ver, desgraçado!...

Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa num quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão. Para fora, pendentes, duas pernas franzinas — e o monjolo impassível, a subir e a descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pelanca... Esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemência Nunes corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.

— Chegou teu dia, desgraçado!

Cena lúgubre foi aquela! Entre rugidos de cólera o louco arremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. Uma pancada na mão — toma Barbazu! Outra na haste — rebenta demônio! Outra no pilão — estoura feiticeiro do diabo! E pan, pan, pan — dez, vinte, cem machadadas como nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijeza de pulso. Cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da peroba assassina. E lascas. E achas...

Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra a matéria bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já um monte escavacado de peças em desmantelo, o mísero caboclo tombou por terra, arquejante, abraçado ao corpo inerte do filho. Instintivamente sua mão trêmula apalpava o fundo do pilão em procura da cabecinha que faltava.

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Trova 355 - Cláudio de Cápua

Pintura a óleo, de Marco Martins (Mogi das Cruzes/SP)

Carolina Ramos (O Cachorro)


— É assim mesmo. Eu saio arrastando o meu cachorro pela coleira e ele anda que é uma beleza! Quando, às vezes, parece cansado, e tomba para o lado, dou-lhe um chute na barriga e ponho-o de pé, num instante. Não raro, quando se ressente de alguma coisa, emperra, fica pesado e guincha como um mico ou gane como cão hidrófobo! Então, viro-o de patas para cima e resolvo a questão. Depressinha, acaba a chiadeira e a ganição. O bicho desliza manso, sem mais criar problemas.

Se alguém se sentisse escandalizado com as palavras de dona Rosa, que sossegasse. Dona Rosa não era nada do que insinuava ser ou do que se pensasse que fosse. Aquela figurinha miúda, algo roliça, alegre, não tinha nada de desalmada. Incapaz de maltratar qualquer animal, até que amava os bichos. Não era à-toa que seu quintal vivia cheio de gatos, de cães vadios que, sem atritos, vinham atrás de sobras, preferindo sua casa a qualquer outra da vizinhança.

A cena descrita com veemência pela mulher, muda completamente de feitio, tão logo se saiba que o "cachorro" arrastado pela "coleira" curta, nada mais era que o "malão" tamanho família, que acompanhava a dona em suas múltiplas viagens, tirado pela alça. O malão, sim! Aquela mala grandona, à qual dona Rosa chamava, carinhosamente, de "cachorro". Quando tombava cansado, recebia aquele pé na barriga, ou pernada com o lado do pé, que acertava em cheio no âmago, equilibrando o peso descentralizado pela queda. A "chiadeira”? A "ganiçâo”? — Nada mais que uma rodinha emperrada, que se negava estridentemente a continuar a marcha e posta a funcionar de imediato, com manobras que dona Rosa conhecia de sobejo.

Aí está. As aparências nem sempre condizem com a verdade. E as palavras podem ter duas faces, mudando inteiramente a feição dos fatos.

Dona Rosa gostava dessa confusão. Divertia-se com ela. Pela sua simpatia, era querida no bairro. Quando vista com o malão preso à coleira, sempre havia alguém, solícito, pronto a tentar aliviar-lhe o peso. E a recusa não se fazia esperar.

— Deixe disso. Minha mala não pesa nada. É cachorrinho ensinado. Às vezes, até é ele quem me puxa. É só encontrar um declivezinho e assume, lépido, a dianteira, me forçando a domar-lhe a afoiteza. .

— E, então, lá se vai a senhora de passeio, outra vez?! Deixe estar, que tem rodinhas nos pés... o que não é nada mau...

— É isso mesmo, seu Luiz. E ai de mim se assim não fosse! Com um filho em cada canto, enredados nos seus mundos, que seria de mim enfiada dentro de casa? O jeito é me largar por aí, puxando meu "cachorrinho". Tenho casa aberta aonde quer que eu vá... e vou mesmo! Uma hora, pra Minas... outra, pra São Paulo... Ceará... ou pra onde um filho manda dizer que montou moradia. Não demora nadinha e estou apontando por lá. E não meço sacrifícios!

E não media mesmo! Dona Rosa já não era tão nova, mas, não era tão velha assim, que tivesse que medir fôlego. Enquanto o tivesse, poderiam apostar, como certo, encontra-la, com frequência, na trilha de um ônibus, puxando seu "cachorro". Voltava em poucos dias, remoçada. Cansada, sim, mas, já de olhos perdidos no horizonte, tramando a próxima partida. Também, o que poderia desejar uma professora aposentada, viúva, e sem maiores compromissos?

Naquela manhã nublada, dona Rosa bateu o portão, trancando-o. Vestia roupa, inconfundível, de viagem uma daquelas calças compridas de tergal, renovadas amiúde, por não aguentarem por muito tempo a ralação que a dona lhes impunha. Blusa solta, bolsa a tiracolo, recheada, como empada, de mil e um pertences, confessáveis e inconfessáveis, indispensáveis à comodidade de uma mulher em trânsito.

Já andara meia quadra, quando lembrou-se que esquecera algo de muito importante, o "walkman". Habituara-se a viajar com música e não dispensava esse prazer. A princípio, constrangera-se de usá-lo, como qualquer adolescente. Logo, acostumara-se. Era acomodar-se na poltrona do ônibus e lançar mão dele. Aquela gostosura... relaxante! Interrompida, apenas, pela perseguição às estações que escapavam, vencidas pela distância e substituídas por outras não buscadas.

Dona Rosa consultou o relógio escondido sob a manga. Cedo ainda. Tinha já a passagem na bolsa, comprada com antecedência. Tempo de sobra.

Deu meia volta, resolvida a recuperar o objeto esquecido. Tomado de surpresa, o "cachorro" emperrou. Arrastado, deu início à ganiçâo. Tombou de lado, Um puxão na coleira pô-lo de pé. Agredido pelo chute disciplinador, equilibrou as entranhas.

Aberto o portão e a porta, mais adiante, o malão foi deixado na área, obediente, à espera.

O "walkman" estava logo ali, bem à mão, sobre a mesa, onde esquecido.

O que a senhora, de calças de tergal, bolsa a tiracolo e rodinhas nos pés, não esperava jamais, é que seu "cachorro", sempre obediente, resolvesse fazer das suas, vingando-se, quem sabe, das pernadas, volta e meia, recebidas. A deslizar, mansamente, pela área em ligeiro declive, o malão insinuou-se, portão afora, saltou o meio fio e foi gazetear no meio da rua.

O guincho dos pneus e o baque, quase simultâneos, alarmaram dona Rosa, que acudiu apressada, esquecendo, uma vez mais, o aparelho sobre a mesa. Horrorizou-se, vendo, bem à sua porta, alguns curiosos atraídos pelo acidente. Lembrou-se do malão, só quando o viu esfacelado, mostrando, indefeso, as intimidades. Atropelado, o "cachorro" de estimação oferecia as entranhas ao bando de urubus que o rodeavam.

Por instantes, dona Rosa perdeu a ação.

A vítima foi reconhecida por alguém da vizinhança. Seu Luiz, sempre atento aos passos da vizinha, acudira prestativo, pondo termo às más intenções da molecada:

— É o malão de dona Rosa, gente! Deixem tudo aí.

— É minha, sim.,, a mala é minha! Meu Deus, como aconteceu isso? — A pilhagem foi interrompida.

Olhos úmidos, visivelmente transtornada, dona Rosa recolheu, uma a uma, as "tripas" do seu "cachorro", devolvendo-as ao "ventre" rasgado. Alguém, possivelmente seu Luiz, ajudou-a carregar o malão desengonçado para o interior da casa. No dia seguinte, o lixeiro levaria o corpo vazio, e com ele, a passagem superada.

Dona Rosa rejeitou um tantão de outros malões oferecidos pelos filhos. Todos eles bem superiores ao atropelado. "Cachorros de luxo", com "pedigree" garantido pela "griffe" do fabricante. Não quis nenhum. Passou a encarar o acidente como espécie de premonição do que lhe poderia acontecer. Retirou, dos pés, as rodinhas hipotéticas que a levavam de lá para cá, com cansaço às vezes, mas sempre feliz. Perdeu o gosto pelas viagens. E pela vida, também. Não mais a preocuparam as calças de tergal puídas pelo excesso de uso, nem os zipers das bolsas, rebentados continuamente, por sempre abusar deles. Deixou de olhar o horizonte e de correr atrás da aventura.

Até que um dia, sem saber como, embarcou para o desconhecido, sem "cachorro" de estimação... e sem passagem de volta.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Caldeirão Poético XXIII


AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Amor

Na fórmula do amor, os componentes
que não podem faltar de nenhum jeito
são raros; já os demais são bem frequentes,
de uso, ou não, sem nenhum preconceito.

No entanto, há alguns itens eficientes,
que, se um faltar, já surge algum defeito,
perdendo-se a receita e os agentes;
tal caso é o do perdão, de raro efeito!

A fineza no trato, a educação,
o respeito devido a todo irmão
de qualquer raça condição, ou cor...

O trato diferente com a mulher,
tenha ela as origens que tiver,
são componentes raros do amor!

ANTONIO JUSTO
Portugal

Quem Sou


Um rio, um mar
Um monte, um vale
A Freita no Arda
Ao Douro a chegar
Um casco sem velas
A quilha do convento
No capricho do vento
Só espuma a formar
Sou Arouca no porto
A nação a boiar
Nas ondas de um povo
Sem rumo levar

ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Coser


Sempre gostei de brincar
com linhas coloridas, agulhas, botões ...

Costurava para boneca
Ajudava minha mãe
arrumar meias furadas...
ela brincava também!
Colocava na meia uma bolinha
e o buraco aparecia...
Mais tarde,
Cronos costurou minha vida,
juntou retalhos,
cortou, alongou, desmanchou
refez modelos...
As roupas velhas não dei jeito...
muito surradas!

Agora costuro
Palavras.
Não furo mais meus dedos!

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE


O inverno se me avizinha
e no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando rastro em meu rosto!

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

O Mar e Eu...


MOTE:

Velho mar, soturno e rude,
entre nós, que afinidade:
- Gemendo a mesma inquietude!
- Chorando a mesma saudade!
Helvécio Barros
Macau/RN, 1909 – 1995, Bauru/SP


GLOSA:
Velho mar, soturno e rude,
contigo, me identifico,
viver sem ti, nunca pude,
longe de ti, triste eu fico!

Um para o outro, nascemos!
Entre nós, que afinidade:
É por isso que vivemos
juntos, a felicidade!

É linda a tua atitude,
se eu choro, choras comigo,
- gemendo a mesma inquietude!
És mar, meu melhor amigo!

Em dias lindos de Sol,
sorrimos a alacridade...
Mas te encontro, no arrebol,
- chorando a mesma saudade!

JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP


Se a vitória é consequência
dos degraus da falsidade,
os valores da aparência
jamais compram dignidade.

MIA COUTO
Moçambique

Destino


à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

NEI GARCEZ
Curitiba/PR


Trovador é ortopedista
muito especializado,
pois, toda Trova em revista,
diagnostica o "pé quebrado".

ÓGUI LOURENÇO MAURI
Cantanduva/SP


Procura Deixar Saudade!

Por que tens tanta ambição
Nos triunfos materiais,
Se nós temos por missão
Reter só os bens morais?

Por que pensas em acúmulo
De bens tangíveis que assanham,
Se sabemos que, além-túmulo,
Eles não nos acompanham?

Por que não formas riqueza
De ações espirituais,
Que te ligam, com certeza,
Ao Plano para onde vais?

Por que não ousas, então,
Iniciando tua obra,
Repassar para um irmão
Tudo aquilo que te sobra?

Quando de teu desenlace
Rumo à Espiritualidade,
Na Terra, por sua face,
Procura deixar saudade!

OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçu/SP

Re-pouso


E, na grande sala vazia,
entre os lustres e o lustro
que o chão de tacos
mantém,
mantenho os pés
de frente aos seus
e, neles, re-pouso,
pouso
meus passos.

Exausto, mas
inda insisto em crer
nos sonhos,
na estrada que inda
tenho
a minha frente...

Enfrento a contradança
com o destino
como se enfrenta a luz
do palco
e, mesmo oscilante,
opaco,
mesmo em crise
com o que tenho
a oferecer,
re-pouso em seus pés
e, neles, pouso
enfim
a minha alma.

OLYMPIO COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Livrarias populares
lembram divinos recantos
onde estantes são altares,
onde os livros são os santos.

PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR


A Gente e o Tempo
 
E o tempo é presente
Dando voltas no passado
Ao encontro do futuro
Que ainda está ausente.

E com ele a vida embala,
Embalando nossa gente,
desde o dia da explosão
em que abrimos nossa mente.

E o tempo nos carrega
Por caminhos nem pensados
Aonde vai, a gente leva
Leva todos irmanados.

Como ondas e marolas
Vamos indo com o tempo
Carregamos na memória
como o sopro de um vento...

Como as flores coloridas
Na carona desse tempo,
Se transformam em mais vidas
Polinizadas pelo vento.

Somos nós ou é o tempo
que carrega a toda história,
Tão ligeiro ou tão lento
Sem perdermos a memória!

TERESINKA PEREIRA
Estados Unidos
 
Estátuas

Os heróis
nas estátuas
são lembrados pelas
gerações futuras.
Seria isto uma
recompensa
ao seu esforço
humanitário?
Mas as estátuas
abandonadas
são cobertas de plantas:
uma sincera homenagem
da Natureza.

VIVALDO TERRES
Itajaí/SC

Aqui não somos nada


Já não te vejo tão bonita e atraente!
Como nos tempos...
Que te amei perdidamente.

Ao te encontrar nas ruas, ou em salões.
Feliz ou infelizmente,
Já não me chamas atenção,

Com aquele rosto deslumbrante...
Que me encantava!
E me deixava vencido,
E com aquele sorriso zombador.
Que me deixava...
Mais e mais entristecido!

Agora sentes que perdeste aquele encanto...
Aquele charme que feria e magoava,
O tempo fez questão de castigar-te.
Para saberes que tudo muda,
E que aqui não somos nada.

Arthur de Azevedo (Como o Diabo as Arma!)


O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.

Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.

Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas… como chegar à fala?… Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.

Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme.

O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.

O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:

– Preciso muito falar-lhe.

– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.

– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?

– Quando quiser.

– Amanhã?

– Amanhã, seja! Sabe onde é?

– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.

– Por quê?

– Depois lhe direi.

– Bom. Esperá-lo~ei às dez e meia.

– Adeus!

– Até amanhã!

E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.

No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.

– Mas por que todo este mistério? – perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.

– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.

– Quem? O tal Paulino?

– Conhece-o?

– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?

– Da mulher de quem?… do Paulino?…

– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!

– Mas de que Paulino fala a senhora? – perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.

– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!

– Os amantes da mulher?!…

– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!…

– Os outros?… Então são muitos?!…

– Mais de um é, com certeza… Já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.

– Deve ser o Gouveia!

– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pince-nez azul…

– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!…

E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral.

A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.

– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia…

– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!

E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d’água.

No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.

Ora, aí tem como o diabo as arma!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Ryoki Inoue (Tendências de mercado) Parte 1


Já no instante em que um escritor se propõe a escrever um romance best-seller, ele deve se preocupar com as tendências de mercado, ou seja, com o tipo de leitura que está sendo sucesso.

POR DENTRO DO LIVRO

Em resumo, o autor deve correr atrás da demanda. Assim, é importante que ele conheça:

• As temáticas atuais
• Tamanho do livro
• A tendência da linguagem a ser utilizada
• A morfologia do livro
• A tiragem
• O preço
• A distribuição
• As temáticas atuais

Lembro que estamos pondo em pauta apenas livros de ficção. Isso quer dizer que discutiremos apenas as temáticas para romances, novelas e contos. Assim, as seguintes temáticas têm, ultimamente, despertado o interesse do público — e consequentemente dos editores:

• Problemas de esfera social
• Aventuras de modo geral
• Problemas de esfera psicológica
• Temáticas para leitura de lazer
• Assuntos místicos e esotéricos
• Infantis e infanto juvenis1

PROBLEMAS DE ESFERA SOCIAL

Neste item estão incluídos os romances de tema policial, político, político-policial, dramas que abarcam os problemas de distribuição de renda e cultura, conflitos que envolvem as religiões, sua aceitação e papel na sociedade.

Pertencem a esta classe de romances aqueles que falam do amor, mesmo porque podemos dizer que a base maior de qualquer sociedade — para desespero dos sociólogos teóricos — é realmente o amor. Logo, não há nada mais social do que o amor...

Também estão incluídos os romances de ficção histórica e todos aqueles cujos temas dizem respeito à relação do homem com o meio ambiente, com seus semelhantes e com ele mesmo — desde que convivendo em sociedade.

Estamos falando das tendências de mercado atuais. Isso não quer dizer — que fique bem claro — que estejamos obrigados a produzir romances sobre a atualidade. Podemos, é evidente, localizar nossa história em qualquer parte do tempo, passado, presente e até mesmo futuro. O que importa é que consigamos focar nosso texto em problemas da sociedade na época em que acontece a nossa história, e de preferência de uma forma tal que seja possível ao leitor relacioná-los com os problemas e conflitos vivenciados nos dias de hoje.

AVENTURAS DE MODO GERAL


Aqui devem ser incluídos os romances que falam única e exclusivamente de aventuras inventadas. Que só aconteceram na cabeça do autor.

Segundo Vladimir Propp, etnólogo soviético e um dos maiores estudiosos da fábula (por definição, toda e qualquer narrativa fantasiosa, portanto o melhor sinônimo para ficção), ela é composta por trinta situações, muito embora diversas fábulas tenham apenas parte delas. O importante é notar que a sequência dessas situações se repete sempre.

Com o devido respeito ao ilustríssimo Propp, achamos por bem reduzir um pouco essa lista de situações; depois de muito enxugar, chegamos à conclusão que o núcleo das fábulas pode ser composto por nove situações, que se repetem em qualquer história de aventura:

• A temporalidade é no passado
• Alguém infringe uma regra
• Alguém descobre essa infração
• Surge o herói
• O infrator é perseguido
• Acontece uma luta entre o herói e o infrator
• O herói apanha o infrator
• O infrator é punido
• O herói é premiado

Os livros modernos de aventura — especialmente os infantojuvenis — encaixam-se perfeitamente nessa matriz, ainda que as infinitas variações os levem a ser completamente diferentes uns dos outros. E, na realidade, a coisa não é nem um pouco diferente nos livros de aventuras para os adultos... Basta ver as obras de James Clavell (Changi é um ótimo exemplo), ou as de Somerset Maugham (Histórias dos mares do sul, O fio da navalha).

continua…


Fonte:

terça-feira, 4 de junho de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 3


Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Canário)


Casara-se havia duas semanas. E por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:

— Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.

— Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?

— Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá. 

O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:

— Vai, meu bem.

Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.

— Primeiro me tragam um vidro de éter e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.

Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.

E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver.

Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.

Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.

No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.

— Ui!

Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?

— Ele estava precisando mesmo era de éter — concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Goulart Gomes (Poetrix) II


A LINHA E O NÓ

novelo de linhas temperadas
ato lonjuras com nós de saudades
alço voo nas cores do silêncio

APRENDIZ DE FEITICEIRO

demorou, mas aprendi:
o meio do mundo
não é o meio de mim

ATAVISMO BÍBLICO

primeva
seria Lilith
ou seria Eva?

BIO

de tanto comer livros
o menino inchou
vomitou alguns

CIGARRAS

um amor que se desgarra
como uma cigarra
implodida

CONFUSO

não sou o tao
o mundo out
me deixa yin

DIVID-IR

de mim, resta-me pouco:
aos seus olhos, este
em seus braços, outro

GENÉRICOS

quanto mais desconheço
os gerentes
mais amo as serventes

(G)ESTAÇÕES

juras de amor eterno
nas folhas caídas do outono
não chegaram ao inverno

MINHA MÁXIMA

a cada nova manhã
ressuscito com a certeza
da minha culpa cristã

NAVEGAR É PRECISO II

folha caída
navegando na sarjeta
barco de formigas

OFERENDA

Meu Senhor do Bonfim,
Ganesh, Trismegisto, Exu,
Abram as portas pra mim!

PAISAGEM

no leito azul do céu
uma nuvem branca
desnuda a sua anca

PULSAR

em meu corpo vibram
cósmicas supernovas
esperando teus beijos

ROSA-DOS-VENTOS

olhos de Capitu
desgovernando-me a bússola
sem noite, sem céu, sem sul

TRANSITRIX
ou
POETRIXTA NO TRÂNSITO
ou
UM POETA GUIA SEU VEÍCULO NO TRÂNSITO DE SALVADOR LEMBRANDO QUINTANA

esses ônibus que aí estão, atravancando meu
caminho
eles, lotação; eu, unozinho

Fonte:
Livro enviado pelo autor:
Goulart Gomes. Minimal. Salvador/BA: Copigraf, 2011

Lygia Fagundes Telles (A Presença)


Quando entrou pela alameda de pedregulhos e parou o carro defronte do hotel, o casal de velhos que passeava pelo gramado afastou-se rapidamente e ficou espiando de longe. O velho porteiro que o atendeu no balcão de recepção também teve um movimento de recuo. Ele pousou a mala no chão e pediu um apartamento. Por quanto tempo? Não estava bem certo, talvez uns vinte dias. Ou mais. O velho examinou-o da cabeça aos pés. Forçou o sorriso paternal, disfarçando o espanto com uma cordialidade exagerada, mas o jovem queria um apartamento? Ali, naquele hotel?! Mas era um hotel só de velhos, quase todos moradores fixos antiquíssimos, que graça um hotel desses podia ter para um jovem? Depois das nove da noite, silêncio absoluto porque todos dormiam cedíssimo. E a comida tão insípida, sem gordura, sem sal, com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas - pois não eram velhos? E velhos têm problemas de saúde, tantas doenças reais e imaginárias, artritismo, bronquite crônica, asma, pressão alta, flebite, enfisema pulmonar... Sem falar nas doenças mais dramáticas, ocioso enumerar tudo. A própria velhice já era uma doença. Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital? Nos hospitais ao menos havia uma esperança, os pacientes saírem curados, mas a doença da velhice era sem cura e com a agravante de piorar com o tempo. Injusto oferecer-lhe esse quadro de decadência que apesar de mascarada (os hóspedes pertenciam à burguesia) era por demais deprimente. O prazer com que a juventude se vê refletida num espelho! mas a velhice ali concentrada chegava a ser tão cruel que os espelhos acabaram por ser afastados. Na última reforma, foram removidos os que apresentavam sinais mais acentuados de decomposição nas manchas porosas e bordas amarelecidas, contraídas sob o cristal como um fino papel queimando brandamente. 

Com esses, foram levados também os espelhos maiores da sala de refeições e que ainda estavam em bom estado. A substituição nunca foi providenciada e nem se voltou a falar no assunto, mas seria preciso? Era evidente o alivio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos: mais do que suficientes os espelhos menores dos banheiros, apenas o essencial para uma barba, um penteado. Um irrisório carmim. E a quantidade de espelhos na inauguração do hotel! (Estaria o jovem com disposição para ouvir mais?) Bem, tinha sido há cinquenta anos. Nessa época, não passava de um rapazola que ajudava a carregar a bagagem. As famílias chegavam com os carros pejados de malas, caixas, pajens, crianças, bicicletas. Nas longas temporadas de verão, a piscina (que ainda se conservava apesar dos rachões) ficava fervilhante. As danças até de madrugada. O jogo. E as competições na quadra de tênis, as cavalgadas pelo campo, o hotel dispunha de ótimos cavalos. Charretes. Mas aos poucos os hóspedes mais velhos foram dominando à medida que os mais jovem começaram a rarear, não sabia explicar o motivo, o fato é que a transformação - embora lenta - fora definitiva. Um museu-mausoléu. Que jovem podia se sentir bem num hotel assim? Se ele prosseguisse pela mesma estrada por onde viera, alguns quilômetros adiante encontraria um hotel excelente, tinha várias setas indicando o caminho, ficava num bosque bastante aprazível. E pelo que ouvira contar, o ambiente era alegre. Jovial.

Ele tirou os documentos do bolso da jaqueta de couro e colocou-os no mármore do balcão: queria um apartamento nesse hotel e só não insistiria se o regulamento tivesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedar-se ali.

O velho porteiro passou as pontas dos dedos vacilantes na gola puída do uniforme pardo. Já não sorria quando examinou os documentos do recém-chegado. Devolveu-os. Os olhos de um azul-pálido estavam frios. Talvez não tivesse sido suficientemente claro, talvez, mas o fato é que se ele não se importava com a presença dos velhos, era bem provável que os velhos se importassem (e quanto) com a sua presença. Tão fácil de entender, como um jovem assim sagaz não entendia? Os velhos formavam uma comunidade com seus usos, seus costumes. Uniram-se e a antiga fragilidade, tão agredida além daqueles portões, foi se transformando numa força. Num sistema. Eram seres obstinados. Na secreta luta para garantir a sobrevivência, perderam a memória do mundo que os rejeitara e se não eram felizes, pelo menos conseguiram isso, a segurança. O direito de morrer em paz. No segundo andar do hotel, por exemplo, vivia uma atriz de revista que fora muito famosa. Muito amada. Reduzida agora a um simples destroço, fechara-se na sua concha, apavorada com a curiosidade do público, com o realismo da imprensa ávida por fotografá-la na sua solidão, mas o que vocês querem de mim? ela gritou ao repórter que conseguiu apanhá-la numa cilada e publicar a foto com a manchete que a fez chorar dois dias. Quando o elevador quebrou, só ela, que ainda andava com certa agilidade, continuou no segundo andar, os outros foram transferidos para o primeiro por causa da escada. 

Nesse andar morava um antigo ídolo de atletismo que chegara a duas olimpíadas. Vivia num cadeira de rodas. E como não lia jornais nem ligava a televisão (quem quisesse, tinha seu televisor particular) conseguira esquecer que a corrida com a tocha acesa prosseguia gloriosa sem ele. Esqueceu, assim como foi esquecido. As medalhas e troféus que nos primeiros tempos de invalidez não podia nem ver estavam agora expostos na estante do seu quarto; às vezes os olhava mas sem a antiga emoção, integrados na sua senilidade como o saco de água quente ou a cadeira. O vizinho era um comerciante esclerosado que em poucos anos regredira à juventude, depois à adolescência e agora estava ficando criança de novo. Mas uma criança que era protegida até pelo mais neurastênico dos hóspedes, um homossexual que morava com um gato velhíssimo. Tivera na mocidade uma experiência trágica: quando o amigo tentou matá-lo, todos ficaram sabendo o que desesperadamente procurara esconder, ambos tinham família e eram conhecidíssimos. 

Hoje, é claro, ninguém se importava com isso mas naquele tempo foi só rejeição. Sofrimento. Reencontrara um certo equilíbrio naquele hotel, vendo as gêmeas da paciência abrir o leque do baralho no taciturno exercício do silêncio. Ouvindo a gorda solteirona do bandolim tocar pontualmente aos sábados. Relendo na pequena biblioteca (escassos volumes já gastos) Os Três Mosqueteiros. Ou O Conde de Monte Cristo. Uma tênue cinza baixara sobre suas cabeças. Sobre seus guardados. Agora chegara um jovem para ficar. Para lembrar (e com que veemência) o que todos já tinham perdido, beleza, amor. 

Um jovem com dentes, músculos e sexo - perfeito como um deus, não, não precisava rir, antiga medida de todas as coisas. Essa medida eles esqueceram. Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória. E passara o tempo das revoluções, ninguém queria renovar mas conservar. Assegurar essa sobrevida, o que já significava um verdadeiro heroísmo, os mais fracos tinham morrido todos. Restaram esses, empenhados numa luta terrível porque dissimulada, eram dissimulados - será que estava sendo claro? Não eram bons.

Ele acendeu o cigarro e ofereceu outro ao porteiro que agradeceu, não podia fumar. Olhou o lustre com longos pingentes de cristal em formato de lágrimas pesadas de poeira. Sorriu enquanto apontava na direção do pequeno elevador dourado e redondo, "mas é lindo, parece uma gaiola!" Abriu o zíper da jaqueta de couro, fazia calor. O porteiro inclinou-se sobre o grosso caderno de registro, molhou a caneta no tinteiro mas ficou com a mão parada no ar. Arqueou as sobrancelhas fatigadas: será que o amigo não percebia que ia ser um importuno? Um intruso? Representava o direito do avesso. Ou o avesso desse direito? O problema é que ele, um simples porteiro, não podia sequer defendê-lo se a comunidade decidisse sutilmente pela sua exclusão. Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer, guardavam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte. Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida? O jovem se animara com a ideia da piscina. Mas se nessa mesma piscina coalhada de folhas aparecesse uma manhã seu belo corpo boiando, tão desligado quanto as folhas? Eles fechariam depressa a porta devido à correnteza de vento, os velhos não gostam de vento. E voltariam satisfeitos aos seus assuntos. Ao seu joguinho dos domingos, aquele loto tão alegre, os cartões sendo cobertos com grãos de milho enquanto o anunciador (nenhum estranho por perto?) vai cantando os números com as brincadeiras de costume, sempre as mesmas porque eles se divertem com as repetições, como as crianças: número vinte e dois, dois patinhos na lagoa? Quarenta e quatro, bico de pato! Número três, gato escocês! Tão brincalhões esses velhinhos...

O jovem riu, tirou os óculos escuros e sua fisionomia se acendeu, tinha palhetas douradas no fundo das pupilas. Por acaso o porteiro lia romance policial? Os romances da velhinha inglesa, não? Ah, preferia palavras cruzadas. Apanhou a mala. Se possível, um apartamento no segundo andar. O jantar era às sete, não? Ótimo, tinha tempo para dar umas boas braçadas, a tarde estava uma delícia. 

Nenhuma importância se a piscina estava abandonada, a água não era corrente? Pediria apenas que lhe levassem um pouco de gelo, gostava de bebericar na piscina. Não, não precisava de uísque, trouxera sua marca.

Uma velhinha de gargantilha lilás cruzou o saguão na sua cadeira de rodas empurrada por uma calma enfermeira de touca: ia gesticulando, brava, deixando escapar resmungos por entre as gengivas duras enquanto a outra seguia atrás, voltando-se para os lados e sorrindo, poor, poor darling! Hoje está meio irritada mas também, com oitenta e nove anos!... Poor, poor darling! O recém-chegado fez uma profunda reverência na direção de ambas e voltou-se para o porteiro que mostrava num sorriso constrangido a dentadura opaca. Quer dizer que insistia mesmo em ficar? Bem, tinha um apartamento bastante ensolarado no segundo andar, dando para a piscina. "Espero que o senhor fique satisfeito", acrescentou enquanto fazia sinal para um velho de avental até os joelhos, por favor, podia conduzir o novo hóspede? Em largas passadas o jovem galgou os degraus de veludo vermelho e foi esperar o empregado lá em cima, segurando a mala que em vão o velho tentou levar. Quando entrou no apartamento seguido pelo empregado com seu molho de chaves, aspirou com uma expressão de prazer o esmaecido perfume que parecia vir dos móveis antiquados, lavanda? E perguntou enquanto abria a mala se por ali não havia fantasmas, sempre sonhara com um hotel de fantasmas. Os fantasmas somos nós, respondeu-lhe o velho e ele riu alto. Tirou a garrafa de uísque. Ligou o toca-discos.

Quando subiu no trampolim, notou um vulto que espiava através da cortina rendada de uma das janelas. Baixou o olhar divertido para a água de um verde profundo, onde as folhas boiavam num ondulado calmo. Abriu os braços. Saltou. Enquanto nadava de costas, entreviu uma cabeça branca na fresta de uma janela do primeiro andar. Logo apareceu outra cabeça (de um homem?) que ficou um pouco atrás, na sombra. Chegou-lhe vagamente o fiapo triturado de uma discussão antes que a janela se fechasse com força. Ele deitou-se no banco de pedra e ali ficou de braços pendentes, a tanga vermelha escorrendo água, os olhos cerrados. Passou cariciosamente as pontas dos dedos no peito onde os pelos dourados de sol já começavam a secar. Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão: seus movimentos se fragmentavam em câmara lenta, calculados. No jantar, antes mesmo de provar a comida, despejou o sal, o molho inglês, a pimenta e bateu palmas vigorosas para os três velhos músicos - um pianista, um violinista e o careca do rabecão - que tocaram antigas peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo amargor na goiabada com queijo.

Ao se deitar, depois de ter tomado o chá-de-estrada servido às vinte e uma horas, ele já não se sentia bem.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles,. Mistérios. Ed. Nova Fronteira, 1981.

Guy de Maupassant (Luar)


Aquele nome de batalha ia bem ao cura Marignan. Era um sacerdote alto, magro, de alma reta, mas em perene estado de exaltação. Todas as suas crenças eram fixas, sem jamais sofrerem vacilações. Sinceramente acreditava conhecer seu Deus, penetrar-lhe os desígnios, os desejos, as intenções.

Quando passeava com passos largos pela alameda do pequeno presbitério, muitas vezes uma interrogação se erguia no seu espírito: "Por que Deus terá feito tal coisa?" Obstinava-se em procurar a resposta para aquele porquê, colocando-se mentalmente no lugar de Deus, e sempre a encontrava. 

Não seria ele quem murmuraria num impulso de piedosa humilhação: "Senhor, vossos desígnios são impenetráveis!" Dizia: "Sou o servo de Deus, preciso conhecer as razões que o movem, e adivinhá-las quando não as conhecer".

Todas as coisas na natureza lhe pareciam ter sido criadas com absoluta e admirável lógica. Os "Por que?" e os "Porque" sempre se equilibravam. As auroras haviam sido feitas para alegrar o despertar, os dias para amadurecer as colheitas, as chuvas para regá-las, as tardes para preparar o sono, e as noites escuras para dormir.

As quatro estações correspondiam perfeitamente às necessidades da agricultura; e nunca perturbara o sacerdote a suspeita de que a natureza não tem intenções e que, ao contrário, tudo quanto vive está sujeito às duas necessidades impostas pelas épocas, pelos climas e pela matéria.

Mas ele odiava a mulher, odiava-a inconscientemente, e desprezava-a por instinto. Aprazia-lhe repetir a frase de Cristo: "Mulher, o que há de comum entre ti e mim?" E acrescentava: "Dir-se-ia que o próprio Deus se sentia descontente com essa parte da sua criação". Para ele a mulher era bem a criança doze vezes impura de que fala o poeta. Era o tentador que arrastara o primeiro homem e que prosseguia sem cessar na sua obra de perdição, ente fraco, perigoso, misteriosamente perturbador. E, ainda mais do que o seu corpo, instrumento de danação, odiava-lhe a alma amorosa.

Muitas vezes sentira a ternura da mulher envolvê-lo e, embora se acreditasse inatingível, exasperava-o aquela necessidade de amor que constantemente fazia palpitar os corações femininos.

Deus, na sua opinião, criara a mulher apenas para tentar o homem e experimentá-lo. Urgia não se aproximar dela, a não ser com precauções defensivas, e o temor com que defrontamos as armadilhas. Com efeito, com seus braços estendidos e seus lábios entreabertos para o homem, ela bem que se assemelhava a uma armadilha.

Só as religiosas, a quem os votos tornavam inofensivas, mereciam a sua indulgência; assim mesmo, tratava-as com dureza, pois sentia que continuava viva em seus corações acorrentados, em seus corações humilhados, aquela eterna ternura que também o envolvia, embora fosse sacerdote.

Sentia-a nos seus olhares mais umedecidos pela piedade do que o olhar dos monges; nos seus êxtases, nos quais o sexo se misturava; nos seus arroubos amorosos para com o Cristo, que o indignavam por se tratar de amor de mulher, amor carnal; sentia aquela mesma ternura amaldiçoada na própria docilidade das religiosas, na doçura das suas vozes quando a ele se dirigiam, nos seus olhos baixos, e nas lágrimas resignadas que derramavam quando as tratava com aspereza.

E sacudia a batina ao deixar as portas do convento, e afastava-se com passos apressados como se fugisse a um perigo

O cura Marignan tinha uma sobrinha que vivia com a mãe numa casinha, nos arredores. Porfiava em fazer dela uma irmã de caridade. A moça era bonita, estouvada, zombeteira. Ouvia, sorrindo, os sermões do cura; e quando ele se zangava, abraçava-o com veemência, apertando-o contra o coração, enquanto que, involuntariamente, ele tentava desvencilhar-se do amplexo; dela lhe vinha, contudo, uma doce alegria, pois despertava no seu íntimo o instinto da paternidade, que dormita em todos os homens.

Muitas vezes, caminhando ao lado da sobrinha através dos campos, o cura falava-lhe de Deus, do seu Deus. Ela mal o escutava e olhava o céu, as plantas, as flores e o gosto de viver lhe transparecia nos olhos. Às vezes, corria para apanhar um inseto alado e exclamava ao trazê-lo: "Veja, titio, como é bonito: até sinto vontade de beijá-lo!" E aquele desejo de "beijar moscas", ou sementes de lilás, inquietava, irritava, revoltava o sacerdote que nele encontrava a inextirpável ternura sempre pronta a germinar no coração das mulheres.

E eis que um dia a mulher do sacristão, que cuidava da casa do cura Marignan, cautelosamente lhe contou que sua sobrinha tinha um namorado. A notícia causou ao sacerdote uma enorme emoção, e ele quase perdeu o fôlego, o rosto cheio de sabão, pois se barbeava.

Quando novamente se encontrou em estado de refletir e de falar, exclamou: - Não é verdade, você está mentindo, Mélanie!

Mas a camponesa colocou a mão no coração:

- Que Nosso Senhor me castigue se estou mentindo, senhor Cura. Estou lhe dizendo que ela sai todas as noites, nem bem a mãe se deita. Encontram-se à beira do rio. Se quiser vê-los, é só aparecer lá entre dez horas e meia-noite.

O sacerdote parou de arranhar o queixo e pôs-se a caminhar agitadamente, como costumava fazer em suas horas de graves meditações. E cortou-se três vezes, entre o nariz e a orelha, quando recomeçou a barbear-se.

Durante o dia inteiro permaneceu silencioso, quase estourando de cólera e indignação. Ao seu furor sacerdotal diante do invencível amor, juntava-se uma exasperação de pai espiritual, de tutor, de responsável pelas almas, enganado, roubado, ludibriado por uma criança; aquela mesma indignação egoísta dos pais a quem uma filha comunica que, sem consultá-los, e contra a vontade deles escolheu um marido.

Depois do jantar tentou ler um pouco, mas não conseguiu; sentia-se cada vez mais irritado. Ao soar das dez horas, apanhou a bengala, um formidável bastão de carvalho, que sempre o acompanhava nas suas saídas noturnas, quando ia ver algum doente. E olhou com um sorriso o maciço cacete que ameaçadoramente fazia girar no seu sólido punho de camponês. Depois ergueu-o no ar, de chofre, e rilhando os dentes, deixou-o cair sobre uma cadeira cujo espaldar foi parar no chão, rachado ao meio.

Abriu a porta para sair; porém, deteve-se à soleira, perplexo ante o esplendor de um luar como muito raramente se via.

E como era dotado de um espírito ardente, de um daqueles espíritos que deviam ter animado os Padres da Igreja, esses poetas sonhadores, subitamente se sentiu empolgado, emocionado pela grandiosa e serena beleza da noite clara.

No seu jardinzinho, inteiramente banhado por uma suave luminosidade, as árvores frutíferas, enfileiradas, desenhavam no chão, em silhueta, os galhos frágeis ainda mal revestidos de verdura; ao passo que a madressilva gigante, enroscada na parede da casa, exalava fragrâncias deliciosas e como que adocicadas, fazendo flutuar na noite tépida e transparente uma espécie de alma perfumada.

O cura Marignan pôs-se a respirar profundamente, sorvendo o ar como os bêbedos bebem vinho, e caminhando a passos lentos, encantado, maravilhado, quase esquecido da sua sobrinha.

Assim que chegou ao campo, deteve-se para contemplar a planície iluminada por aquela claridade acariciante, envolta pelo encanto terno e lânguido das noites serenas. Os sapos soltavam, continuamente, suas notas curtas e metálicas e, na distância, rouxinóis entremisturavam seus cantos trinados, que fazem sonhar sem obrigar a pensar, música leve e vibrante feita para o beijo, sob a fascinação do luar.

O pároco recomeçou a caminhar, sentindo o coração desfalecer, sem que soubesse por quê. Sentia-se como que enfraquecido, subitamente esgotado; tinha vontade de sentar-se, de aí permanecer, de contemplar, de admirar Deus através da sua obra.

Ao longe, acompanhando as ondulações do riacho, serpenteava uma longa fileira de choupos. Uma névoa fina, vapor branco que os raios da lua traspassavam, prateavam, e faziam cintilar, pairava sobre as ribanceiras, cingia-as, e envolvia o curso tortuoso da água numa espécie de algodão leve e transparente.

Mais uma vez o sacerdote estacou, invadido até o fundo da alma por um crescente e irresistível enternecimento.

E uma dúvida, uma vaga inquietação o assaltava; sentia modelar-se dentro dele uma daquelas perguntas que dirigia a si próprio, às vezes.

Por que Deus fizera aquilo? Já que a noite era destinada ao sono, à inconsciência, ao repouso, ao esquecimento de tudo, por que torná-la mais bela do que o dia, mais suave do que as auroras e as tardes, e por que aquele astro lânguido e sedutor, mais poético do que o sol, e tão discreto, que parecia fadado a iluminar coisas delicadas e misteriosas demais para a luz do sol, por que viera a tornar tão transparentes as trevas da noite?

Por que o mais harmonioso dos pássaros canoros não repousava como os outros e se punha a cantar na sombra perturbadora?

Por que aquele véu transparente atirado sobre o mundo? Por que aqueles frêmitos no coração, aquela emoção na alma, aquele langor na carne?

Por que aquela exibição de belezas que os homens não viam, pois dormiam em suas camas? A quem seria destinado aquele sublime espetáculo, aquele transbordamento de poesia que o céu atirava sobre a terra?

E o cura nada compreendia.

Eis que ao longe, à orla da campina, sob a abóbada do arvoredo imerso numa bruma luminosa, surgiram duas sombras, caminhando lado a lado.

O homem era mais alto e enlaçava os ombros da companheira e, de quando em quando, beijava-a na testa. Subitamente, animaram a paisagem imóvel que os envolvia como uma moldura divina para eles preparada. Ambos pareciam compor um único ser, o ser para o qual se destinava aquela noite calma e silenciosa; e caminhavam em direção ao sacerdote como uma resposta viva, a resposta que o Senhor atirava às suas interrogações.

Ele permanecia de pé, o coração palpitando, perturbado, e acreditava presenciar um episódio bíblico, tal como os amores de Ruth e Booz, a realização da vontade do Senhor num dos grandiosos cenários a que se referem os livros santos. Na sua cabeça começaram a ressoar os versetos do Cântico dos Cânticos, gritos ardentes, apelos carnais, toda a candente poesia daquele poema inflamado de ternura.

E ele disse consigo mesmo:

- Talvez Deus tenha feito noites iguais a essa para velar com um pouco de idealismo os amores dos homens.

Retrocedeu diante do par enlaçado que continuava a avançar. Contudo, tratava-se da sua sobrinha; agora, porém, indagava a si próprio se não iria desobedecer a Deus. Pois Deus não consentiria no amor, já que o envolvia abertamente em tamanho esplendor?

E o cura Marignan afastou-se depressa, aturdido, quase envergonhado, como se tivesse penetrado num templo no qual não tivesse o direito de entrar.

Fonte:
Guy de Maupassant. Contos.