quarta-feira, 5 de junho de 2019

Carolina Ramos (O Cachorro)


— É assim mesmo. Eu saio arrastando o meu cachorro pela coleira e ele anda que é uma beleza! Quando, às vezes, parece cansado, e tomba para o lado, dou-lhe um chute na barriga e ponho-o de pé, num instante. Não raro, quando se ressente de alguma coisa, emperra, fica pesado e guincha como um mico ou gane como cão hidrófobo! Então, viro-o de patas para cima e resolvo a questão. Depressinha, acaba a chiadeira e a ganição. O bicho desliza manso, sem mais criar problemas.

Se alguém se sentisse escandalizado com as palavras de dona Rosa, que sossegasse. Dona Rosa não era nada do que insinuava ser ou do que se pensasse que fosse. Aquela figurinha miúda, algo roliça, alegre, não tinha nada de desalmada. Incapaz de maltratar qualquer animal, até que amava os bichos. Não era à-toa que seu quintal vivia cheio de gatos, de cães vadios que, sem atritos, vinham atrás de sobras, preferindo sua casa a qualquer outra da vizinhança.

A cena descrita com veemência pela mulher, muda completamente de feitio, tão logo se saiba que o "cachorro" arrastado pela "coleira" curta, nada mais era que o "malão" tamanho família, que acompanhava a dona em suas múltiplas viagens, tirado pela alça. O malão, sim! Aquela mala grandona, à qual dona Rosa chamava, carinhosamente, de "cachorro". Quando tombava cansado, recebia aquele pé na barriga, ou pernada com o lado do pé, que acertava em cheio no âmago, equilibrando o peso descentralizado pela queda. A "chiadeira”? A "ganiçâo”? — Nada mais que uma rodinha emperrada, que se negava estridentemente a continuar a marcha e posta a funcionar de imediato, com manobras que dona Rosa conhecia de sobejo.

Aí está. As aparências nem sempre condizem com a verdade. E as palavras podem ter duas faces, mudando inteiramente a feição dos fatos.

Dona Rosa gostava dessa confusão. Divertia-se com ela. Pela sua simpatia, era querida no bairro. Quando vista com o malão preso à coleira, sempre havia alguém, solícito, pronto a tentar aliviar-lhe o peso. E a recusa não se fazia esperar.

— Deixe disso. Minha mala não pesa nada. É cachorrinho ensinado. Às vezes, até é ele quem me puxa. É só encontrar um declivezinho e assume, lépido, a dianteira, me forçando a domar-lhe a afoiteza. .

— E, então, lá se vai a senhora de passeio, outra vez?! Deixe estar, que tem rodinhas nos pés... o que não é nada mau...

— É isso mesmo, seu Luiz. E ai de mim se assim não fosse! Com um filho em cada canto, enredados nos seus mundos, que seria de mim enfiada dentro de casa? O jeito é me largar por aí, puxando meu "cachorrinho". Tenho casa aberta aonde quer que eu vá... e vou mesmo! Uma hora, pra Minas... outra, pra São Paulo... Ceará... ou pra onde um filho manda dizer que montou moradia. Não demora nadinha e estou apontando por lá. E não meço sacrifícios!

E não media mesmo! Dona Rosa já não era tão nova, mas, não era tão velha assim, que tivesse que medir fôlego. Enquanto o tivesse, poderiam apostar, como certo, encontra-la, com frequência, na trilha de um ônibus, puxando seu "cachorro". Voltava em poucos dias, remoçada. Cansada, sim, mas, já de olhos perdidos no horizonte, tramando a próxima partida. Também, o que poderia desejar uma professora aposentada, viúva, e sem maiores compromissos?

Naquela manhã nublada, dona Rosa bateu o portão, trancando-o. Vestia roupa, inconfundível, de viagem uma daquelas calças compridas de tergal, renovadas amiúde, por não aguentarem por muito tempo a ralação que a dona lhes impunha. Blusa solta, bolsa a tiracolo, recheada, como empada, de mil e um pertences, confessáveis e inconfessáveis, indispensáveis à comodidade de uma mulher em trânsito.

Já andara meia quadra, quando lembrou-se que esquecera algo de muito importante, o "walkman". Habituara-se a viajar com música e não dispensava esse prazer. A princípio, constrangera-se de usá-lo, como qualquer adolescente. Logo, acostumara-se. Era acomodar-se na poltrona do ônibus e lançar mão dele. Aquela gostosura... relaxante! Interrompida, apenas, pela perseguição às estações que escapavam, vencidas pela distância e substituídas por outras não buscadas.

Dona Rosa consultou o relógio escondido sob a manga. Cedo ainda. Tinha já a passagem na bolsa, comprada com antecedência. Tempo de sobra.

Deu meia volta, resolvida a recuperar o objeto esquecido. Tomado de surpresa, o "cachorro" emperrou. Arrastado, deu início à ganiçâo. Tombou de lado, Um puxão na coleira pô-lo de pé. Agredido pelo chute disciplinador, equilibrou as entranhas.

Aberto o portão e a porta, mais adiante, o malão foi deixado na área, obediente, à espera.

O "walkman" estava logo ali, bem à mão, sobre a mesa, onde esquecido.

O que a senhora, de calças de tergal, bolsa a tiracolo e rodinhas nos pés, não esperava jamais, é que seu "cachorro", sempre obediente, resolvesse fazer das suas, vingando-se, quem sabe, das pernadas, volta e meia, recebidas. A deslizar, mansamente, pela área em ligeiro declive, o malão insinuou-se, portão afora, saltou o meio fio e foi gazetear no meio da rua.

O guincho dos pneus e o baque, quase simultâneos, alarmaram dona Rosa, que acudiu apressada, esquecendo, uma vez mais, o aparelho sobre a mesa. Horrorizou-se, vendo, bem à sua porta, alguns curiosos atraídos pelo acidente. Lembrou-se do malão, só quando o viu esfacelado, mostrando, indefeso, as intimidades. Atropelado, o "cachorro" de estimação oferecia as entranhas ao bando de urubus que o rodeavam.

Por instantes, dona Rosa perdeu a ação.

A vítima foi reconhecida por alguém da vizinhança. Seu Luiz, sempre atento aos passos da vizinha, acudira prestativo, pondo termo às más intenções da molecada:

— É o malão de dona Rosa, gente! Deixem tudo aí.

— É minha, sim.,, a mala é minha! Meu Deus, como aconteceu isso? — A pilhagem foi interrompida.

Olhos úmidos, visivelmente transtornada, dona Rosa recolheu, uma a uma, as "tripas" do seu "cachorro", devolvendo-as ao "ventre" rasgado. Alguém, possivelmente seu Luiz, ajudou-a carregar o malão desengonçado para o interior da casa. No dia seguinte, o lixeiro levaria o corpo vazio, e com ele, a passagem superada.

Dona Rosa rejeitou um tantão de outros malões oferecidos pelos filhos. Todos eles bem superiores ao atropelado. "Cachorros de luxo", com "pedigree" garantido pela "griffe" do fabricante. Não quis nenhum. Passou a encarar o acidente como espécie de premonição do que lhe poderia acontecer. Retirou, dos pés, as rodinhas hipotéticas que a levavam de lá para cá, com cansaço às vezes, mas sempre feliz. Perdeu o gosto pelas viagens. E pela vida, também. Não mais a preocuparam as calças de tergal puídas pelo excesso de uso, nem os zipers das bolsas, rebentados continuamente, por sempre abusar deles. Deixou de olhar o horizonte e de correr atrás da aventura.

Até que um dia, sem saber como, embarcou para o desconhecido, sem "cachorro" de estimação... e sem passagem de volta.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Caldeirão Poético XXIII


AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Amor

Na fórmula do amor, os componentes
que não podem faltar de nenhum jeito
são raros; já os demais são bem frequentes,
de uso, ou não, sem nenhum preconceito.

No entanto, há alguns itens eficientes,
que, se um faltar, já surge algum defeito,
perdendo-se a receita e os agentes;
tal caso é o do perdão, de raro efeito!

A fineza no trato, a educação,
o respeito devido a todo irmão
de qualquer raça condição, ou cor...

O trato diferente com a mulher,
tenha ela as origens que tiver,
são componentes raros do amor!

ANTONIO JUSTO
Portugal

Quem Sou


Um rio, um mar
Um monte, um vale
A Freita no Arda
Ao Douro a chegar
Um casco sem velas
A quilha do convento
No capricho do vento
Só espuma a formar
Sou Arouca no porto
A nação a boiar
Nas ondas de um povo
Sem rumo levar

ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Coser


Sempre gostei de brincar
com linhas coloridas, agulhas, botões ...

Costurava para boneca
Ajudava minha mãe
arrumar meias furadas...
ela brincava também!
Colocava na meia uma bolinha
e o buraco aparecia...
Mais tarde,
Cronos costurou minha vida,
juntou retalhos,
cortou, alongou, desmanchou
refez modelos...
As roupas velhas não dei jeito...
muito surradas!

Agora costuro
Palavras.
Não furo mais meus dedos!

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE


O inverno se me avizinha
e no espelho, a contragosto,
vejo que o tempo caminha
deixando rastro em meu rosto!

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

O Mar e Eu...


MOTE:

Velho mar, soturno e rude,
entre nós, que afinidade:
- Gemendo a mesma inquietude!
- Chorando a mesma saudade!
Helvécio Barros
Macau/RN, 1909 – 1995, Bauru/SP


GLOSA:
Velho mar, soturno e rude,
contigo, me identifico,
viver sem ti, nunca pude,
longe de ti, triste eu fico!

Um para o outro, nascemos!
Entre nós, que afinidade:
É por isso que vivemos
juntos, a felicidade!

É linda a tua atitude,
se eu choro, choras comigo,
- gemendo a mesma inquietude!
És mar, meu melhor amigo!

Em dias lindos de Sol,
sorrimos a alacridade...
Mas te encontro, no arrebol,
- chorando a mesma saudade!

JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP


Se a vitória é consequência
dos degraus da falsidade,
os valores da aparência
jamais compram dignidade.

MIA COUTO
Moçambique

Destino


à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

NEI GARCEZ
Curitiba/PR


Trovador é ortopedista
muito especializado,
pois, toda Trova em revista,
diagnostica o "pé quebrado".

ÓGUI LOURENÇO MAURI
Cantanduva/SP


Procura Deixar Saudade!

Por que tens tanta ambição
Nos triunfos materiais,
Se nós temos por missão
Reter só os bens morais?

Por que pensas em acúmulo
De bens tangíveis que assanham,
Se sabemos que, além-túmulo,
Eles não nos acompanham?

Por que não formas riqueza
De ações espirituais,
Que te ligam, com certeza,
Ao Plano para onde vais?

Por que não ousas, então,
Iniciando tua obra,
Repassar para um irmão
Tudo aquilo que te sobra?

Quando de teu desenlace
Rumo à Espiritualidade,
Na Terra, por sua face,
Procura deixar saudade!

OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçu/SP

Re-pouso


E, na grande sala vazia,
entre os lustres e o lustro
que o chão de tacos
mantém,
mantenho os pés
de frente aos seus
e, neles, re-pouso,
pouso
meus passos.

Exausto, mas
inda insisto em crer
nos sonhos,
na estrada que inda
tenho
a minha frente...

Enfrento a contradança
com o destino
como se enfrenta a luz
do palco
e, mesmo oscilante,
opaco,
mesmo em crise
com o que tenho
a oferecer,
re-pouso em seus pés
e, neles, pouso
enfim
a minha alma.

OLYMPIO COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Livrarias populares
lembram divinos recantos
onde estantes são altares,
onde os livros são os santos.

PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR


A Gente e o Tempo
 
E o tempo é presente
Dando voltas no passado
Ao encontro do futuro
Que ainda está ausente.

E com ele a vida embala,
Embalando nossa gente,
desde o dia da explosão
em que abrimos nossa mente.

E o tempo nos carrega
Por caminhos nem pensados
Aonde vai, a gente leva
Leva todos irmanados.

Como ondas e marolas
Vamos indo com o tempo
Carregamos na memória
como o sopro de um vento...

Como as flores coloridas
Na carona desse tempo,
Se transformam em mais vidas
Polinizadas pelo vento.

Somos nós ou é o tempo
que carrega a toda história,
Tão ligeiro ou tão lento
Sem perdermos a memória!

TERESINKA PEREIRA
Estados Unidos
 
Estátuas

Os heróis
nas estátuas
são lembrados pelas
gerações futuras.
Seria isto uma
recompensa
ao seu esforço
humanitário?
Mas as estátuas
abandonadas
são cobertas de plantas:
uma sincera homenagem
da Natureza.

VIVALDO TERRES
Itajaí/SC

Aqui não somos nada


Já não te vejo tão bonita e atraente!
Como nos tempos...
Que te amei perdidamente.

Ao te encontrar nas ruas, ou em salões.
Feliz ou infelizmente,
Já não me chamas atenção,

Com aquele rosto deslumbrante...
Que me encantava!
E me deixava vencido,
E com aquele sorriso zombador.
Que me deixava...
Mais e mais entristecido!

Agora sentes que perdeste aquele encanto...
Aquele charme que feria e magoava,
O tempo fez questão de castigar-te.
Para saberes que tudo muda,
E que aqui não somos nada.

Arthur de Azevedo (Como o Diabo as Arma!)


O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.

Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.

Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas… como chegar à fala?… Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.

Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme.

O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação.

O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:

– Preciso muito falar-lhe.

– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.

– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?

– Quando quiser.

– Amanhã?

– Amanhã, seja! Sabe onde é?

– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.

– Por quê?

– Depois lhe direi.

– Bom. Esperá-lo~ei às dez e meia.

– Adeus!

– Até amanhã!

E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.

No dia seguinte à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.

– Mas por que todo este mistério? – perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.

– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.

– Quem? O tal Paulino?

– Conhece-o?

– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?

– Da mulher de quem?… do Paulino?…

– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!

– Mas de que Paulino fala a senhora? – perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.

– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!

– Os amantes da mulher?!…

– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!…

– Os outros?… Então são muitos?!…

– Mais de um é, com certeza… Já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.

– Deve ser o Gouveia!

– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pince-nez azul…

– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!…

E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral.

A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.

– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia…

– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!

E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d’água.

No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.

Ora, aí tem como o diabo as arma!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Ryoki Inoue (Tendências de mercado) Parte 1


Já no instante em que um escritor se propõe a escrever um romance best-seller, ele deve se preocupar com as tendências de mercado, ou seja, com o tipo de leitura que está sendo sucesso.

POR DENTRO DO LIVRO

Em resumo, o autor deve correr atrás da demanda. Assim, é importante que ele conheça:

• As temáticas atuais
• Tamanho do livro
• A tendência da linguagem a ser utilizada
• A morfologia do livro
• A tiragem
• O preço
• A distribuição
• As temáticas atuais

Lembro que estamos pondo em pauta apenas livros de ficção. Isso quer dizer que discutiremos apenas as temáticas para romances, novelas e contos. Assim, as seguintes temáticas têm, ultimamente, despertado o interesse do público — e consequentemente dos editores:

• Problemas de esfera social
• Aventuras de modo geral
• Problemas de esfera psicológica
• Temáticas para leitura de lazer
• Assuntos místicos e esotéricos
• Infantis e infanto juvenis1

PROBLEMAS DE ESFERA SOCIAL

Neste item estão incluídos os romances de tema policial, político, político-policial, dramas que abarcam os problemas de distribuição de renda e cultura, conflitos que envolvem as religiões, sua aceitação e papel na sociedade.

Pertencem a esta classe de romances aqueles que falam do amor, mesmo porque podemos dizer que a base maior de qualquer sociedade — para desespero dos sociólogos teóricos — é realmente o amor. Logo, não há nada mais social do que o amor...

Também estão incluídos os romances de ficção histórica e todos aqueles cujos temas dizem respeito à relação do homem com o meio ambiente, com seus semelhantes e com ele mesmo — desde que convivendo em sociedade.

Estamos falando das tendências de mercado atuais. Isso não quer dizer — que fique bem claro — que estejamos obrigados a produzir romances sobre a atualidade. Podemos, é evidente, localizar nossa história em qualquer parte do tempo, passado, presente e até mesmo futuro. O que importa é que consigamos focar nosso texto em problemas da sociedade na época em que acontece a nossa história, e de preferência de uma forma tal que seja possível ao leitor relacioná-los com os problemas e conflitos vivenciados nos dias de hoje.

AVENTURAS DE MODO GERAL


Aqui devem ser incluídos os romances que falam única e exclusivamente de aventuras inventadas. Que só aconteceram na cabeça do autor.

Segundo Vladimir Propp, etnólogo soviético e um dos maiores estudiosos da fábula (por definição, toda e qualquer narrativa fantasiosa, portanto o melhor sinônimo para ficção), ela é composta por trinta situações, muito embora diversas fábulas tenham apenas parte delas. O importante é notar que a sequência dessas situações se repete sempre.

Com o devido respeito ao ilustríssimo Propp, achamos por bem reduzir um pouco essa lista de situações; depois de muito enxugar, chegamos à conclusão que o núcleo das fábulas pode ser composto por nove situações, que se repetem em qualquer história de aventura:

• A temporalidade é no passado
• Alguém infringe uma regra
• Alguém descobre essa infração
• Surge o herói
• O infrator é perseguido
• Acontece uma luta entre o herói e o infrator
• O herói apanha o infrator
• O infrator é punido
• O herói é premiado

Os livros modernos de aventura — especialmente os infantojuvenis — encaixam-se perfeitamente nessa matriz, ainda que as infinitas variações os levem a ser completamente diferentes uns dos outros. E, na realidade, a coisa não é nem um pouco diferente nos livros de aventuras para os adultos... Basta ver as obras de James Clavell (Changi é um ótimo exemplo), ou as de Somerset Maugham (Histórias dos mares do sul, O fio da navalha).

continua…


Fonte:

terça-feira, 4 de junho de 2019

Silmar Bohrer (Gamela de Versos) 3


Fonte:
Livro enviado pelo autor
Silmar Bohrer. Gamela de versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Canário)


Casara-se havia duas semanas. E por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:

— Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.

— Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?

— Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá. 

O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:

— Vai, meu bem.

Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.

— Primeiro me tragam um vidro de éter e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.

Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.

E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver.

Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.

Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.

No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.

— Ui!

Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?

— Ele estava precisando mesmo era de éter — concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Goulart Gomes (Poetrix) II


A LINHA E O NÓ

novelo de linhas temperadas
ato lonjuras com nós de saudades
alço voo nas cores do silêncio

APRENDIZ DE FEITICEIRO

demorou, mas aprendi:
o meio do mundo
não é o meio de mim

ATAVISMO BÍBLICO

primeva
seria Lilith
ou seria Eva?

BIO

de tanto comer livros
o menino inchou
vomitou alguns

CIGARRAS

um amor que se desgarra
como uma cigarra
implodida

CONFUSO

não sou o tao
o mundo out
me deixa yin

DIVID-IR

de mim, resta-me pouco:
aos seus olhos, este
em seus braços, outro

GENÉRICOS

quanto mais desconheço
os gerentes
mais amo as serventes

(G)ESTAÇÕES

juras de amor eterno
nas folhas caídas do outono
não chegaram ao inverno

MINHA MÁXIMA

a cada nova manhã
ressuscito com a certeza
da minha culpa cristã

NAVEGAR É PRECISO II

folha caída
navegando na sarjeta
barco de formigas

OFERENDA

Meu Senhor do Bonfim,
Ganesh, Trismegisto, Exu,
Abram as portas pra mim!

PAISAGEM

no leito azul do céu
uma nuvem branca
desnuda a sua anca

PULSAR

em meu corpo vibram
cósmicas supernovas
esperando teus beijos

ROSA-DOS-VENTOS

olhos de Capitu
desgovernando-me a bússola
sem noite, sem céu, sem sul

TRANSITRIX
ou
POETRIXTA NO TRÂNSITO
ou
UM POETA GUIA SEU VEÍCULO NO TRÂNSITO DE SALVADOR LEMBRANDO QUINTANA

esses ônibus que aí estão, atravancando meu
caminho
eles, lotação; eu, unozinho

Fonte:
Livro enviado pelo autor:
Goulart Gomes. Minimal. Salvador/BA: Copigraf, 2011

Lygia Fagundes Telles (A Presença)


Quando entrou pela alameda de pedregulhos e parou o carro defronte do hotel, o casal de velhos que passeava pelo gramado afastou-se rapidamente e ficou espiando de longe. O velho porteiro que o atendeu no balcão de recepção também teve um movimento de recuo. Ele pousou a mala no chão e pediu um apartamento. Por quanto tempo? Não estava bem certo, talvez uns vinte dias. Ou mais. O velho examinou-o da cabeça aos pés. Forçou o sorriso paternal, disfarçando o espanto com uma cordialidade exagerada, mas o jovem queria um apartamento? Ali, naquele hotel?! Mas era um hotel só de velhos, quase todos moradores fixos antiquíssimos, que graça um hotel desses podia ter para um jovem? Depois das nove da noite, silêncio absoluto porque todos dormiam cedíssimo. E a comida tão insípida, sem gordura, sem sal, com pratos sem nenhuma imaginação dentro de dietas rigorosas - pois não eram velhos? E velhos têm problemas de saúde, tantas doenças reais e imaginárias, artritismo, bronquite crônica, asma, pressão alta, flebite, enfisema pulmonar... Sem falar nas doenças mais dramáticas, ocioso enumerar tudo. A própria velhice já era uma doença. Um jovem assim saudável passar suas férias num hotel tão frio quanto um hospital? Nos hospitais ao menos havia uma esperança, os pacientes saírem curados, mas a doença da velhice era sem cura e com a agravante de piorar com o tempo. Injusto oferecer-lhe esse quadro de decadência que apesar de mascarada (os hóspedes pertenciam à burguesia) era por demais deprimente. O prazer com que a juventude se vê refletida num espelho! mas a velhice ali concentrada chegava a ser tão cruel que os espelhos acabaram por ser afastados. Na última reforma, foram removidos os que apresentavam sinais mais acentuados de decomposição nas manchas porosas e bordas amarelecidas, contraídas sob o cristal como um fino papel queimando brandamente. 

Com esses, foram levados também os espelhos maiores da sala de refeições e que ainda estavam em bom estado. A substituição nunca foi providenciada e nem se voltou a falar no assunto, mas seria preciso? Era evidente o alivio dos hóspedes livres daquelas testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos: mais do que suficientes os espelhos menores dos banheiros, apenas o essencial para uma barba, um penteado. Um irrisório carmim. E a quantidade de espelhos na inauguração do hotel! (Estaria o jovem com disposição para ouvir mais?) Bem, tinha sido há cinquenta anos. Nessa época, não passava de um rapazola que ajudava a carregar a bagagem. As famílias chegavam com os carros pejados de malas, caixas, pajens, crianças, bicicletas. Nas longas temporadas de verão, a piscina (que ainda se conservava apesar dos rachões) ficava fervilhante. As danças até de madrugada. O jogo. E as competições na quadra de tênis, as cavalgadas pelo campo, o hotel dispunha de ótimos cavalos. Charretes. Mas aos poucos os hóspedes mais velhos foram dominando à medida que os mais jovem começaram a rarear, não sabia explicar o motivo, o fato é que a transformação - embora lenta - fora definitiva. Um museu-mausoléu. Que jovem podia se sentir bem num hotel assim? Se ele prosseguisse pela mesma estrada por onde viera, alguns quilômetros adiante encontraria um hotel excelente, tinha várias setas indicando o caminho, ficava num bosque bastante aprazível. E pelo que ouvira contar, o ambiente era alegre. Jovial.

Ele tirou os documentos do bolso da jaqueta de couro e colocou-os no mármore do balcão: queria um apartamento nesse hotel e só não insistiria se o regulamento tivesse uma cláusula que proibisse um jovem de vinte e cinco anos de hospedar-se ali.

O velho porteiro passou as pontas dos dedos vacilantes na gola puída do uniforme pardo. Já não sorria quando examinou os documentos do recém-chegado. Devolveu-os. Os olhos de um azul-pálido estavam frios. Talvez não tivesse sido suficientemente claro, talvez, mas o fato é que se ele não se importava com a presença dos velhos, era bem provável que os velhos se importassem (e quanto) com a sua presença. Tão fácil de entender, como um jovem assim sagaz não entendia? Os velhos formavam uma comunidade com seus usos, seus costumes. Uniram-se e a antiga fragilidade, tão agredida além daqueles portões, foi se transformando numa força. Num sistema. Eram seres obstinados. Na secreta luta para garantir a sobrevivência, perderam a memória do mundo que os rejeitara e se não eram felizes, pelo menos conseguiram isso, a segurança. O direito de morrer em paz. No segundo andar do hotel, por exemplo, vivia uma atriz de revista que fora muito famosa. Muito amada. Reduzida agora a um simples destroço, fechara-se na sua concha, apavorada com a curiosidade do público, com o realismo da imprensa ávida por fotografá-la na sua solidão, mas o que vocês querem de mim? ela gritou ao repórter que conseguiu apanhá-la numa cilada e publicar a foto com a manchete que a fez chorar dois dias. Quando o elevador quebrou, só ela, que ainda andava com certa agilidade, continuou no segundo andar, os outros foram transferidos para o primeiro por causa da escada. 

Nesse andar morava um antigo ídolo de atletismo que chegara a duas olimpíadas. Vivia num cadeira de rodas. E como não lia jornais nem ligava a televisão (quem quisesse, tinha seu televisor particular) conseguira esquecer que a corrida com a tocha acesa prosseguia gloriosa sem ele. Esqueceu, assim como foi esquecido. As medalhas e troféus que nos primeiros tempos de invalidez não podia nem ver estavam agora expostos na estante do seu quarto; às vezes os olhava mas sem a antiga emoção, integrados na sua senilidade como o saco de água quente ou a cadeira. O vizinho era um comerciante esclerosado que em poucos anos regredira à juventude, depois à adolescência e agora estava ficando criança de novo. Mas uma criança que era protegida até pelo mais neurastênico dos hóspedes, um homossexual que morava com um gato velhíssimo. Tivera na mocidade uma experiência trágica: quando o amigo tentou matá-lo, todos ficaram sabendo o que desesperadamente procurara esconder, ambos tinham família e eram conhecidíssimos. 

Hoje, é claro, ninguém se importava com isso mas naquele tempo foi só rejeição. Sofrimento. Reencontrara um certo equilíbrio naquele hotel, vendo as gêmeas da paciência abrir o leque do baralho no taciturno exercício do silêncio. Ouvindo a gorda solteirona do bandolim tocar pontualmente aos sábados. Relendo na pequena biblioteca (escassos volumes já gastos) Os Três Mosqueteiros. Ou O Conde de Monte Cristo. Uma tênue cinza baixara sobre suas cabeças. Sobre seus guardados. Agora chegara um jovem para ficar. Para lembrar (e com que veemência) o que todos já tinham perdido, beleza, amor. 

Um jovem com dentes, músculos e sexo - perfeito como um deus, não, não precisava rir, antiga medida de todas as coisas. Essa medida eles esqueceram. Com sua simples presença, iria revolver tudo: a revolução da memória. E passara o tempo das revoluções, ninguém queria renovar mas conservar. Assegurar essa sobrevida, o que já significava um verdadeiro heroísmo, os mais fracos tinham morrido todos. Restaram esses, empenhados numa luta terrível porque dissimulada, eram dissimulados - será que estava sendo claro? Não eram bons.

Ele acendeu o cigarro e ofereceu outro ao porteiro que agradeceu, não podia fumar. Olhou o lustre com longos pingentes de cristal em formato de lágrimas pesadas de poeira. Sorriu enquanto apontava na direção do pequeno elevador dourado e redondo, "mas é lindo, parece uma gaiola!" Abriu o zíper da jaqueta de couro, fazia calor. O porteiro inclinou-se sobre o grosso caderno de registro, molhou a caneta no tinteiro mas ficou com a mão parada no ar. Arqueou as sobrancelhas fatigadas: será que o amigo não percebia que ia ser um importuno? Um intruso? Representava o direito do avesso. Ou o avesso desse direito? O problema é que ele, um simples porteiro, não podia sequer defendê-lo se a comunidade decidisse sutilmente pela sua exclusão. Por mais tolos que esses velhos pudessem parecer, guardavam o segredo de uma sabedoria que se afiava na pedra da morte. Era preciso lembrar que usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida? O jovem se animara com a ideia da piscina. Mas se nessa mesma piscina coalhada de folhas aparecesse uma manhã seu belo corpo boiando, tão desligado quanto as folhas? Eles fechariam depressa a porta devido à correnteza de vento, os velhos não gostam de vento. E voltariam satisfeitos aos seus assuntos. Ao seu joguinho dos domingos, aquele loto tão alegre, os cartões sendo cobertos com grãos de milho enquanto o anunciador (nenhum estranho por perto?) vai cantando os números com as brincadeiras de costume, sempre as mesmas porque eles se divertem com as repetições, como as crianças: número vinte e dois, dois patinhos na lagoa? Quarenta e quatro, bico de pato! Número três, gato escocês! Tão brincalhões esses velhinhos...

O jovem riu, tirou os óculos escuros e sua fisionomia se acendeu, tinha palhetas douradas no fundo das pupilas. Por acaso o porteiro lia romance policial? Os romances da velhinha inglesa, não? Ah, preferia palavras cruzadas. Apanhou a mala. Se possível, um apartamento no segundo andar. O jantar era às sete, não? Ótimo, tinha tempo para dar umas boas braçadas, a tarde estava uma delícia. 

Nenhuma importância se a piscina estava abandonada, a água não era corrente? Pediria apenas que lhe levassem um pouco de gelo, gostava de bebericar na piscina. Não, não precisava de uísque, trouxera sua marca.

Uma velhinha de gargantilha lilás cruzou o saguão na sua cadeira de rodas empurrada por uma calma enfermeira de touca: ia gesticulando, brava, deixando escapar resmungos por entre as gengivas duras enquanto a outra seguia atrás, voltando-se para os lados e sorrindo, poor, poor darling! Hoje está meio irritada mas também, com oitenta e nove anos!... Poor, poor darling! O recém-chegado fez uma profunda reverência na direção de ambas e voltou-se para o porteiro que mostrava num sorriso constrangido a dentadura opaca. Quer dizer que insistia mesmo em ficar? Bem, tinha um apartamento bastante ensolarado no segundo andar, dando para a piscina. "Espero que o senhor fique satisfeito", acrescentou enquanto fazia sinal para um velho de avental até os joelhos, por favor, podia conduzir o novo hóspede? Em largas passadas o jovem galgou os degraus de veludo vermelho e foi esperar o empregado lá em cima, segurando a mala que em vão o velho tentou levar. Quando entrou no apartamento seguido pelo empregado com seu molho de chaves, aspirou com uma expressão de prazer o esmaecido perfume que parecia vir dos móveis antiquados, lavanda? E perguntou enquanto abria a mala se por ali não havia fantasmas, sempre sonhara com um hotel de fantasmas. Os fantasmas somos nós, respondeu-lhe o velho e ele riu alto. Tirou a garrafa de uísque. Ligou o toca-discos.

Quando subiu no trampolim, notou um vulto que espiava através da cortina rendada de uma das janelas. Baixou o olhar divertido para a água de um verde profundo, onde as folhas boiavam num ondulado calmo. Abriu os braços. Saltou. Enquanto nadava de costas, entreviu uma cabeça branca na fresta de uma janela do primeiro andar. Logo apareceu outra cabeça (de um homem?) que ficou um pouco atrás, na sombra. Chegou-lhe vagamente o fiapo triturado de uma discussão antes que a janela se fechasse com força. Ele deitou-se no banco de pedra e ali ficou de braços pendentes, a tanga vermelha escorrendo água, os olhos cerrados. Passou cariciosamente as pontas dos dedos no peito onde os pelos dourados de sol já começavam a secar. Riu silenciosamente enquanto apanhava o copo que deixara no chão: seus movimentos se fragmentavam em câmara lenta, calculados. No jantar, antes mesmo de provar a comida, despejou o sal, o molho inglês, a pimenta e bateu palmas vigorosas para os três velhos músicos - um pianista, um violinista e o careca do rabecão - que tocaram antigas peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo amargor na goiabada com queijo.

Ao se deitar, depois de ter tomado o chá-de-estrada servido às vinte e uma horas, ele já não se sentia bem.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles,. Mistérios. Ed. Nova Fronteira, 1981.

Guy de Maupassant (Luar)


Aquele nome de batalha ia bem ao cura Marignan. Era um sacerdote alto, magro, de alma reta, mas em perene estado de exaltação. Todas as suas crenças eram fixas, sem jamais sofrerem vacilações. Sinceramente acreditava conhecer seu Deus, penetrar-lhe os desígnios, os desejos, as intenções.

Quando passeava com passos largos pela alameda do pequeno presbitério, muitas vezes uma interrogação se erguia no seu espírito: "Por que Deus terá feito tal coisa?" Obstinava-se em procurar a resposta para aquele porquê, colocando-se mentalmente no lugar de Deus, e sempre a encontrava. 

Não seria ele quem murmuraria num impulso de piedosa humilhação: "Senhor, vossos desígnios são impenetráveis!" Dizia: "Sou o servo de Deus, preciso conhecer as razões que o movem, e adivinhá-las quando não as conhecer".

Todas as coisas na natureza lhe pareciam ter sido criadas com absoluta e admirável lógica. Os "Por que?" e os "Porque" sempre se equilibravam. As auroras haviam sido feitas para alegrar o despertar, os dias para amadurecer as colheitas, as chuvas para regá-las, as tardes para preparar o sono, e as noites escuras para dormir.

As quatro estações correspondiam perfeitamente às necessidades da agricultura; e nunca perturbara o sacerdote a suspeita de que a natureza não tem intenções e que, ao contrário, tudo quanto vive está sujeito às duas necessidades impostas pelas épocas, pelos climas e pela matéria.

Mas ele odiava a mulher, odiava-a inconscientemente, e desprezava-a por instinto. Aprazia-lhe repetir a frase de Cristo: "Mulher, o que há de comum entre ti e mim?" E acrescentava: "Dir-se-ia que o próprio Deus se sentia descontente com essa parte da sua criação". Para ele a mulher era bem a criança doze vezes impura de que fala o poeta. Era o tentador que arrastara o primeiro homem e que prosseguia sem cessar na sua obra de perdição, ente fraco, perigoso, misteriosamente perturbador. E, ainda mais do que o seu corpo, instrumento de danação, odiava-lhe a alma amorosa.

Muitas vezes sentira a ternura da mulher envolvê-lo e, embora se acreditasse inatingível, exasperava-o aquela necessidade de amor que constantemente fazia palpitar os corações femininos.

Deus, na sua opinião, criara a mulher apenas para tentar o homem e experimentá-lo. Urgia não se aproximar dela, a não ser com precauções defensivas, e o temor com que defrontamos as armadilhas. Com efeito, com seus braços estendidos e seus lábios entreabertos para o homem, ela bem que se assemelhava a uma armadilha.

Só as religiosas, a quem os votos tornavam inofensivas, mereciam a sua indulgência; assim mesmo, tratava-as com dureza, pois sentia que continuava viva em seus corações acorrentados, em seus corações humilhados, aquela eterna ternura que também o envolvia, embora fosse sacerdote.

Sentia-a nos seus olhares mais umedecidos pela piedade do que o olhar dos monges; nos seus êxtases, nos quais o sexo se misturava; nos seus arroubos amorosos para com o Cristo, que o indignavam por se tratar de amor de mulher, amor carnal; sentia aquela mesma ternura amaldiçoada na própria docilidade das religiosas, na doçura das suas vozes quando a ele se dirigiam, nos seus olhos baixos, e nas lágrimas resignadas que derramavam quando as tratava com aspereza.

E sacudia a batina ao deixar as portas do convento, e afastava-se com passos apressados como se fugisse a um perigo

O cura Marignan tinha uma sobrinha que vivia com a mãe numa casinha, nos arredores. Porfiava em fazer dela uma irmã de caridade. A moça era bonita, estouvada, zombeteira. Ouvia, sorrindo, os sermões do cura; e quando ele se zangava, abraçava-o com veemência, apertando-o contra o coração, enquanto que, involuntariamente, ele tentava desvencilhar-se do amplexo; dela lhe vinha, contudo, uma doce alegria, pois despertava no seu íntimo o instinto da paternidade, que dormita em todos os homens.

Muitas vezes, caminhando ao lado da sobrinha através dos campos, o cura falava-lhe de Deus, do seu Deus. Ela mal o escutava e olhava o céu, as plantas, as flores e o gosto de viver lhe transparecia nos olhos. Às vezes, corria para apanhar um inseto alado e exclamava ao trazê-lo: "Veja, titio, como é bonito: até sinto vontade de beijá-lo!" E aquele desejo de "beijar moscas", ou sementes de lilás, inquietava, irritava, revoltava o sacerdote que nele encontrava a inextirpável ternura sempre pronta a germinar no coração das mulheres.

E eis que um dia a mulher do sacristão, que cuidava da casa do cura Marignan, cautelosamente lhe contou que sua sobrinha tinha um namorado. A notícia causou ao sacerdote uma enorme emoção, e ele quase perdeu o fôlego, o rosto cheio de sabão, pois se barbeava.

Quando novamente se encontrou em estado de refletir e de falar, exclamou: - Não é verdade, você está mentindo, Mélanie!

Mas a camponesa colocou a mão no coração:

- Que Nosso Senhor me castigue se estou mentindo, senhor Cura. Estou lhe dizendo que ela sai todas as noites, nem bem a mãe se deita. Encontram-se à beira do rio. Se quiser vê-los, é só aparecer lá entre dez horas e meia-noite.

O sacerdote parou de arranhar o queixo e pôs-se a caminhar agitadamente, como costumava fazer em suas horas de graves meditações. E cortou-se três vezes, entre o nariz e a orelha, quando recomeçou a barbear-se.

Durante o dia inteiro permaneceu silencioso, quase estourando de cólera e indignação. Ao seu furor sacerdotal diante do invencível amor, juntava-se uma exasperação de pai espiritual, de tutor, de responsável pelas almas, enganado, roubado, ludibriado por uma criança; aquela mesma indignação egoísta dos pais a quem uma filha comunica que, sem consultá-los, e contra a vontade deles escolheu um marido.

Depois do jantar tentou ler um pouco, mas não conseguiu; sentia-se cada vez mais irritado. Ao soar das dez horas, apanhou a bengala, um formidável bastão de carvalho, que sempre o acompanhava nas suas saídas noturnas, quando ia ver algum doente. E olhou com um sorriso o maciço cacete que ameaçadoramente fazia girar no seu sólido punho de camponês. Depois ergueu-o no ar, de chofre, e rilhando os dentes, deixou-o cair sobre uma cadeira cujo espaldar foi parar no chão, rachado ao meio.

Abriu a porta para sair; porém, deteve-se à soleira, perplexo ante o esplendor de um luar como muito raramente se via.

E como era dotado de um espírito ardente, de um daqueles espíritos que deviam ter animado os Padres da Igreja, esses poetas sonhadores, subitamente se sentiu empolgado, emocionado pela grandiosa e serena beleza da noite clara.

No seu jardinzinho, inteiramente banhado por uma suave luminosidade, as árvores frutíferas, enfileiradas, desenhavam no chão, em silhueta, os galhos frágeis ainda mal revestidos de verdura; ao passo que a madressilva gigante, enroscada na parede da casa, exalava fragrâncias deliciosas e como que adocicadas, fazendo flutuar na noite tépida e transparente uma espécie de alma perfumada.

O cura Marignan pôs-se a respirar profundamente, sorvendo o ar como os bêbedos bebem vinho, e caminhando a passos lentos, encantado, maravilhado, quase esquecido da sua sobrinha.

Assim que chegou ao campo, deteve-se para contemplar a planície iluminada por aquela claridade acariciante, envolta pelo encanto terno e lânguido das noites serenas. Os sapos soltavam, continuamente, suas notas curtas e metálicas e, na distância, rouxinóis entremisturavam seus cantos trinados, que fazem sonhar sem obrigar a pensar, música leve e vibrante feita para o beijo, sob a fascinação do luar.

O pároco recomeçou a caminhar, sentindo o coração desfalecer, sem que soubesse por quê. Sentia-se como que enfraquecido, subitamente esgotado; tinha vontade de sentar-se, de aí permanecer, de contemplar, de admirar Deus através da sua obra.

Ao longe, acompanhando as ondulações do riacho, serpenteava uma longa fileira de choupos. Uma névoa fina, vapor branco que os raios da lua traspassavam, prateavam, e faziam cintilar, pairava sobre as ribanceiras, cingia-as, e envolvia o curso tortuoso da água numa espécie de algodão leve e transparente.

Mais uma vez o sacerdote estacou, invadido até o fundo da alma por um crescente e irresistível enternecimento.

E uma dúvida, uma vaga inquietação o assaltava; sentia modelar-se dentro dele uma daquelas perguntas que dirigia a si próprio, às vezes.

Por que Deus fizera aquilo? Já que a noite era destinada ao sono, à inconsciência, ao repouso, ao esquecimento de tudo, por que torná-la mais bela do que o dia, mais suave do que as auroras e as tardes, e por que aquele astro lânguido e sedutor, mais poético do que o sol, e tão discreto, que parecia fadado a iluminar coisas delicadas e misteriosas demais para a luz do sol, por que viera a tornar tão transparentes as trevas da noite?

Por que o mais harmonioso dos pássaros canoros não repousava como os outros e se punha a cantar na sombra perturbadora?

Por que aquele véu transparente atirado sobre o mundo? Por que aqueles frêmitos no coração, aquela emoção na alma, aquele langor na carne?

Por que aquela exibição de belezas que os homens não viam, pois dormiam em suas camas? A quem seria destinado aquele sublime espetáculo, aquele transbordamento de poesia que o céu atirava sobre a terra?

E o cura nada compreendia.

Eis que ao longe, à orla da campina, sob a abóbada do arvoredo imerso numa bruma luminosa, surgiram duas sombras, caminhando lado a lado.

O homem era mais alto e enlaçava os ombros da companheira e, de quando em quando, beijava-a na testa. Subitamente, animaram a paisagem imóvel que os envolvia como uma moldura divina para eles preparada. Ambos pareciam compor um único ser, o ser para o qual se destinava aquela noite calma e silenciosa; e caminhavam em direção ao sacerdote como uma resposta viva, a resposta que o Senhor atirava às suas interrogações.

Ele permanecia de pé, o coração palpitando, perturbado, e acreditava presenciar um episódio bíblico, tal como os amores de Ruth e Booz, a realização da vontade do Senhor num dos grandiosos cenários a que se referem os livros santos. Na sua cabeça começaram a ressoar os versetos do Cântico dos Cânticos, gritos ardentes, apelos carnais, toda a candente poesia daquele poema inflamado de ternura.

E ele disse consigo mesmo:

- Talvez Deus tenha feito noites iguais a essa para velar com um pouco de idealismo os amores dos homens.

Retrocedeu diante do par enlaçado que continuava a avançar. Contudo, tratava-se da sua sobrinha; agora, porém, indagava a si próprio se não iria desobedecer a Deus. Pois Deus não consentiria no amor, já que o envolvia abertamente em tamanho esplendor?

E o cura Marignan afastou-se depressa, aturdido, quase envergonhado, como se tivesse penetrado num templo no qual não tivesse o direito de entrar.

Fonte:
Guy de Maupassant. Contos.

domingo, 2 de junho de 2019

Jaqueline Machado (Jardim de Trovas)


Acredito na vitória
de quem somente o bem faz.
O mal nunca leva à glória...
E sempre destrói a paz.

A dona beata, tão crente,
sempre a rezar e a rezar...
Mas um tanto displicente:
olha o padre sem parar...

A fuga não leva a nada,
meu caminho eu sigo em frente.
Em toda e qualquer estrada,
há um anjo guardando a gente.

Ah!... essa beleza de amar
é um segredo inconfessável.
Loucura que faz sonhar,
ir além do imaginável.

Amar jamais é pecado.
Ama quem sabe viver
Este é meu simples recado
para quem pensa em morrer.

A minha Mãe natureza,
que nada deixa faltar,
me faz saber, com certeza
que vale a pena sonhar...

A palavra tem poder,
não vale a pena chorar...
Para plantar ou colher,
sempre é preciso esperar...

Cadeirante e bem feliz!
Mulher doce... sonhadora...
Eu tenho dó de quem diz
que tu não és vencedora!

Criança é pingo de luz,
é benção, é caridade...
É força que nos conduz
pelos vales da verdade...

Debruçado na lagoa,
qual Narciso a se mirar,
pescador jamais enjoa
de sonhar e de pescar...

Deficiente: adjetivo
bem inculto e sem moral
pois corrompe o objetivo
de todo ser especial...

Deus, com máxima grandeza,
nada nos deixa faltar.
Pois, com primor e nobreza,
está sempre a nos guiar!

Doce Europa dos meus sonhos,
eu quero te conquistar...
E, com mil planos risonhos,
em teus mares navegar...

É na fonte dos teus lábios,
que eu extraio o mel da vida.
Mágico licor dos sábios,
que faz a alma embevecida.

Este é o Brasil de igualdade
que nós pedimos a Deus:
política de verdade
para todos filhos seus!!!

Eu sou mesmo a calmaria.
Eu sou mesmo a tempestade:
feliz na tua alegria,
tempestuosa na saudade...

Hão de surgir os bons dias,
de luz, paz e mais amor...
Dos Orixás, profecias
que o bem vai vencer a dor.

Irmão: és parte de mim.
Graça divina de Deus!!!
Nem mesmo depois do fim
ouvirás meu triste adeus...

Mamãe, ainda em seu ventre,
já absorvia a leitura:
as tuas palavras dentre
todas, ressoavam ternura...

Mas onde mora a verdade?
No bem, no mal ou na dor:
Onde está a realidade?
Respostas estão no amor!

Minha vizinha espiava,
pelo vidro da janela,
o que eu fazia ou comprava...
Tudo era da conta dela...

Moça, cadeirante e bela,
cheia de graça e esplendor...
Todo mundo fala nela:
parece fonte de amor!

Na cadeira, bem sentada,
eu senti algo diferente:
do alfinete, a alfinetada
num lugar muito indecente...

Na cadeira do hospital,
ela de pernas cruzadas,
e o velho, passando mal,
deu algumas espiadas...

Na cela do meu cavalo
sempre levo sonhos mil...
O gaúcho, em seu embalo,
conquistou todo o Brasil...

Nanâ, Isis ou Maria!
Te multiplicas em tantas.
Mãe feita de poesia...
És a mais bela das santas...

Natal é paz, muito amor,
momento de refletir
a missão do redentor
e o pão nosso repartir...

O aposentado lamenta,
pois com essa grana magra
ele quase nem se aguenta:
– Não dá nem para o Viagra...

O mar é espelho da lua
e a lua espelho do mar...
Na lua cheia sou tua.
Sereia nua a te amar...

Ó meu Brasil, terra amada
de belezas sem igual,
mesmo tão pouco cuidada
és lindo cartão postal...

O meu nome é liberdade,
minha sina é sempre amar.
Eu sou livre de verdade,
quando consigo sonhar...

O velhinho apaixonado
foi em busca da conquista...
Porém, sem grana, ó coitado,
ficou largado na pista...

“Pedalada” objetiva
a falcatrua moral:
eu pago e tu me incentiva
a lavar nota fiscal.

Oyá, formosa menina,
o teu sorriso me encanta.
Entre as rosas tu me ensina
a rezar feito uma santa...

Para o cidadão de bem,
servir é uma obrigação.
Ele transmite a que vem,
sem procurar gratidão.

Preciso ter ousadia
e cumprir minha missão
de esmagar a covardia
com cada aperto de mão.

Rogo a ti, meu Santo Antônio,
tu que vigias meu lar,
me mandes um matrimônio,
pra não morrer sem casar...

Santo Antônio, meu amigo,
eu preciso me casar...
Não me deixes à perigo...
Pra tia não vou ficar !!

Siga! Não perca a esperança...
Enquanto existir na vida
um sorriso de criança
a missão será cumprida...

Fonte:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Jaqueline Machado e Chico Xavier. Coleção Terra e Céu. vol. XXX. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Ricardo Ernesto Rose (Dona Nena)


Ela vivia sozinha numa casa de madeira, sem pintura, no final de um caminho de areia grossa e amarelada, ladeado pelos enferrujados postes do telégrafo, onde mais tarde seria o início da avenida Anchieta. O terreno, sem cerca, era tomado por goiabeiras, cajueiros, chapéus de sol, e compartilhado por galinhas, alguns gatos e três cachorros. De lá, caminhava-se uns quinze minutos para chegar ao centro da vila de Peruíbe.

Mesmo afastada do convívio da vila, dona Nena era conhecida no núcleo de ruas em torno da praça e da pequena igreja. Na modesta vila de pescadores, relativamente isolada, com pouca comunicação com os grandes centros, a velha senhora despertava curiosidade e um certo temor.

Ninguém conhecia as origens de dona Nena. Os antigos lembravam que quando eram jovens ela já tinha certa idade, e sempre vivera ali naquela casa isolada, perto da praia e junto ao rio Preto. Gentil mas reservada, a velha não tinha amigos e pouco falava com as pessoas. Participava da missa nas manhãs de domingo, mas, quieta e pensativa, voltava para casa logo após a bênção final. Havia, mas ninguém sabia exatamente o quê, algo de misterioso nessa senhora.

Entre os peruibenses de então, principalmente os mais velhos, circulavam muitas histórias sobre ela. O velho Vital, pescador aposentado, comentava que conhecia “a velha Nena” desde a infância, e que nunca a havia visto de aparência mais jovem. Tinha certeza, dizia, que a velha seria uma bruxa e, ali em Peruíbe, teria descoberto uma erva que lhe adiava a morte.

A vizinha de Vital, dona Mocinha, cujos antepassados eram caiçaras e guaranis que sempre haviam vivido na região, dizia que a velha seria uma feiticeira; que devia ter algum pacto com a morte e com o mundo do além.

De fato, o comportamento de dona Nena causava muita estranheza entre aquelas pessoas simples. Nos dias frios e úmidos de outono, quando a forte garoa e o vento sudeste mantinham todos em casa à volta dos fogões a lenha, a velha senhora havia sido vista diversas vezes, coberta por grosso casaco, caminhando na praia gesticulando e como que conversando com alguém. A mesma cena foi testemunhada em três outras ocasiões, exatamente às vésperas dos naufrágios de pequenos barcos de pesca, nos quais morrem pescadores da vila. Houve até quem dissesse ter observado, ao anoitecer, escondido na alta vegetação que existia perto da praia, dona Nena falando com dois vultos, que depois de abraçarem a velha, caminharam em direção às ondas e desapareceram no mar.

Certo dia, assim disseram os moradores, dona Nena desapareceu da cidade, junto com seus animais. Sobrou apenas a casa vazia, que foi se degradando até por fim ser demolida. Das árvores, uma ou outra ainda continua ali até hoje. Dizem as más línguas que a velha tivera uma visão de como a cidade se transformaria, e que por isso teria resolvido ir para outras paragens.

Num desses dias de garoa e vento, passando pela praia ao anoitecer, tive a impressão de ter visto o vulto recurvado de uma velha, caminhando para a água e por fi desaparecer no
mar. Mas acho que foi só impressão.

Fonte:
Academia Peruibense de Letras (org.). Rosa do abismo - 9ª Coletânea da Academia Peruibense de Letras. São Paulo/SP: All Print, 2018.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XIV


MORRER

Quando estamos a sós... quando o teu corpo enlaço
e mergulho o meu rosto em teus cabelos soltos,
por Deus que nem eu sei o que sinto, o que faço,
há em mim a confusão de desejos revoltos!

Tendo os lábios aos teus longamente apertados,
misturo em nossas bocas nossa própria Vida,
e ao  te sentir pesar em meus braços, vencida,
o mundo é um caos que gira em meus olhos cerrados...

Quando encontro em meu corpo o teu corpo macio,
os seios soltos, nus... fremindo no meu peito,
- abraço-te numa ânsia ! ... e depois que te estreito
sou como um tronco em queda a soltar-se num rio!

Eu te quero e desejo! ... Esse amor que me dás
é uma alucinação que cega os meus sentidos...
Meus braços te enlaçando, querem sempre mais
até que os nossos corpos rolem confundidos...

Não há nada no mundo, eu junto a ti, sou franco!
Desprezo a terra inteira, e todos os tesouros
para poder beijar o teu pescoço branco
e desmanchar com as mãos os teus cabelos louros!

Não há mundo, se te ouço num débil socorro
a debater-se em vão e a murmurar: "sou tua!
cobre-me de carícias que me sinto nua
e aperta-me ao teu peito que em teus braços, morro!" .

Quando estamos a sós... calados, esquecidos,
nosso amor é um incêndio esplêndido, sensual,
e julgamos morrer ao seu calor, vencidos
ao sublime estertor de um desejo imortal !

MOSAICO

Cada verso que escrevo, vez em quando
retalho-o da minha alma, e assim um dia
terei a colcha imensa da poesia
que com a agulha do ideal vou costurando...

Um verso... um outro mais... e enfim um bando
de versos, e a minha alma - quand’iria?
- com os pedaços da minha fantasia
vai de novo em meus livros se formando...

É o jogo de paciência do meu sonho,
que vou fazendo aos poucos, muito em calma,
com as pedrinhas dos versos que componho...

Solto-os... E embora os deixe assim dispersos,
vou desenhando a imagem da minha alma
sobre o estranho mosaico dos meus versos !

MÚSICA

Silêncio... Solidão... - sinto pelo ar que existe
em surdina, no céu, tempestuoso e cinzento,
- um ritmo... um compasso... um solo muito lento...
de uma obra de Chopin... nervosamente triste...

Repentinos clarões !... Lá pelo espaço se ouvem
entre a voz dos trovões e os sons das ventanias,
os brados de aflição... de estranhas sinfonias
lembrando a orquestração da "nona" de Beethoven...

Há música nos céus... Há música em minha alma...
Ficou na natureza um Liszt interpretando
a rapsódia de amor que enche a noite de calma...

Já não há no infinito as tormentas e o caos...
- O azul, traz de Mozart o tom sereno e brando,
e o arvoredo cicia as músicas de Strauss !...

NOITE

Há na expressão do céu um mágico esplendor
e em êxtase sensual, a terra está vencida...
- deixa enlaçar-te toda... A sombra nos convida,
e uma noite como esta é feita para o amor...

Assim... - Fica em meus braços, trêmula e esquecida,
e dá-me do teu corpo esse estranho calor,
-  ao pólen que dá vida, em fruto faz-se a flor,
e o teu corpo é uma flor que não conhece a vida...

Há sussurros pelo ar... Há sombras nos caminhos...
E à indiscrição da Lua, em seu alto mirante,
encolhem-se aos casais, os pássaros nos ninhos...

Astros fogem no céu... ninguém mais pode vê-los...
procuram, para amar, a noite mais distante,
e eu, para amar, procuro a noite em teus cabelos!…

NOITE DE JUNHO

Escancaro a janela aos céus, de par em par...
Noite fria de junho. O céu negro e cinzento.
Lá na altura há balões tocados pelo vento
e há foguetes rasgando a amplidão, sem parar...

Sem querer... sem sentir... eu me ponho a pensar
e a saudade me invade o peito e o pensamento...
-A luz dos foguetões, de momento a momento,
é um cometa sem rumo em difusão pelo ar...

A cidade está quieta... Os ruídos distanciados
dos fogos ; muito ao longe, espalham nostalgia
por sobre a placidez friorenta dos telhados...

E ao jogo dos balões que o céu todo acendeu,
vai passando em minha alma a visão fugidia
de um antigo S. João que há muito já morreu!…

NOIVA
 
Ei-la toda de branco. Aos pés, o imenso véu
como em flocos de espuma, espalhado no chão...
No ar, dentro do olhar, cabe inteirinho um céu,
e leva um céu maior dentro do coração...

Nos lábios... Ah! nos lábios o sabor do mel,
e uma carícia em flor se entreabre em cada mão,
- e que tremor no braço, ao deixar no papel
o nome dela, o dele... os dois desde então...

Quem lhe falou da vida ? A vida é um sonho, a vida
é esse caminho azul, esse estranho embaraço
de sentir-se ao seu lado adorada e querida...

Aos seus pés, como nuvem branca, o imenso véu...
Quem dirá, que ao seguir apoiada ao seu braço
não pensa que caminha em direção ao céu ?…

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.