sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Antonio Carlos de Barros (República Rio Grandense)



20 de setembro – Dia do Gaúcho


No ano em curso, 2019, transcorre o 184º (centésimo octogésimo quarto) aniversário do início do Movimento Farroupilha. Esse Movimento custou o sacrifício de muitas vidas ao Império Brasileiro e ao Rio Grande de São Pedro, foi a luta interna Brasileira de maior duração, perfazendo 9 (nove) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias.

O Movimento Farroupilha teve início em 19/09/1835 e encerrou em 28/02/1845. Podemos dividir esse Movimento em duas etapas distintas à saber:
REVOLUÇÃO FARROUPILHA – 1835 a 1836
GUERRA FARROUPILHA        - 1836 a 1845.



A Revolução estava tramada, através dos Irmãos componentes da primeira Loja Maçônica do Rio Grande do Sul, a Philantropia & Liberdade, sob a obediência do Grande Oriente Nacional Brasileiro. Essa Loja se originou da "Sociedade Literária Correntino", embrião e baluarte do Movimento Farroupilha. Bento Gonçalves da Silva foi o seu primeiro Presidente sendo portanto, no linguajar Maçônico, o primeiro Venerável Mestre dessa Loja Maçônica.

O planejamento estratégico e logístico das primeiras ações revolucionárias foi desenvolvido entre as colunas desse Templo Maçônico, que existe até hoje e está sediado em Porto Alegre/RS, tendo ali sido firmado o Pacto Revolucionário Farroupilha em 18 de
setembro de 1835.

As causas do conflito foram várias, políticas, econômicas, militares e sociais, mas foi essa última que reuniu os diferentes seguimentos sociais no ideal comum e revolucionário, unindo negros, índios e brancos.

A província de São Pedro (Estado do Rio Grande do Sul) era totalmente abandonada pelo poder central. Inexistia uma única escola pública, as estradas eram precárias, não havia uma ponte construída, a infraestrutura era nenhuma. O Império, que nem mesmo as fronteiras defendiam, eram alvos constantes de invasões castelhanas.

As milícias formadas por cidadãos comuns que, esporadicamente viam-se obrigados relegar a um segundo plano suas atividades diárias e fazer às vezes de exército para defender a Pátria. Apesar do seu continuado sacrifício nessas batalhas de fronteiras e apesar da riqueza da Corte advinda do cultivo do café, apesar do massacre de sua população masculina dizimada pelas guerras, apesar do infindável luto das mulheres Gaúchas, o Rio Grande do Sul não recebia qualquer atenção ou reconhecimento por parte do Império. O descontentamento do povo era total. Em cada casa luzia um candeeiro revolucionário, iluminando as consciências para a rebelião necessária. Havia necessidade de mudanças imediatas e já que pelas palavras não houvera efeitos, quem sabe pelas armas o Rio Grande do Sul faria valer os seus direitos.

Como sendo o homem indicado para comandar a rebelião, e com o apoio total da Maçonaria Gaúcha, Bento Gonçalves da Silva tudo organizou na campanha, principalmente acercando-se de liberais valorosos, marcando o dia 20 de setembro de 1835 para a definitiva explosão armada, desenvolvendo o seguinte plano militar:

Finalidade. Conquistar Porto Alegre e derrubar o Presidente da Província, expulsando junto com o seu suporte militar o Comandante das Armas e assumir o controle total da Província.

Objetivo. Conquistar o controle de Alegrete, São Borja, Cruz Alta e respectivas áreas de influências. Conquistar ainda o controle político e militar de Bagé, São Gabriel, Rio Pardo, Piratini, Encruzilhada, Triunfo, Cachoeira e Viamão.

Para isto, Bento Gonçalves já contava com o apoio das unidades de linha de Jaguarão, Bagé, Rio Pardo e São Gabriel.

Bento Gonçalves da Silva e demais revolucionários, juntaram-se nas imediações da Azenha, com outros revoltosos, em torno de 400(quatrocentos), comandados por José Gomes Vasconcellos Jardim e Onofre Pires e partiram para atacar Porto Alegre, em 19 de Setembro de 1835.

No Dia 20 de Setembro de 1835, Porto Alegre era tomada pelo exercito Farrapo, deflagrando assim, a mais longa luta armada enfrentada pelo Império Brasileiro: A Revolução Farroupilha.

Na batalha do Seival os Farroupilhas derrotaram as Tropas Imperiais. Aproveitando o entusiasmo da vitória, General Antônio de Souza Neto Proclamou a República Rio-Grandense, em 11 de setembro 1836, lendo o seguinte texto aos cavaleiros que se encontravam em formação: “Bravos Companheiros da 1ª Brigada de Cavalaria!!! Ontem obtivestes o mais completo triunfo sobre os escravos da Corte do Rio de Janeiro! São sem número as injustiças feitas pelo Governo Imperial!!! Seu despotismo é o mais atroz!!! Os Rio-Grandenses não estão mais dispostos a sofrer a prepotência de um Governo tirânico, arbitrário e cruel!!! Em todos os ângulos da Província bradamos por Independência, República, Liberdade ou Morte!!! Camaradas! Gritemos pela primeira vez!
VIVA A REPÚBLICA RIO-GRANDENSE!!!
VIVA A INDEPENDÊNCIA!!!
VIVA O EXÉRCITO REPUBLICANO!!!
 “Proclamamos a Independência desta Província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-Grandense”
.

A declaração foi realizada no campo dos Meneses, onde trocaram a Bandeira Imperial pela da Bandeira Nacional da República Rio-Grandense. É realizada a Eleição Presidencial, sendo eleito o General Bento Gonçalves da Silva.

Chegada ao Pampa de BENTO GONÇALVES, fugiu do Presídio da Bahia, com o auxílio da Maçonaria e do Cônego Antônio das Mercês.  Bento Gonçalves assume a Presidência.

Criação do HINO RIO-GRANDENSE, Letra de Francisco Pinto da Fontoura e Música de José Joaquim de Medanha.

Como a aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade.

Refrão
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.

Mas não basta pra ser livre
Ser forte aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo.
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra.

Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra.


Em 1966, durante o Regime Militar, a seguinte estrofe foi oficialmente retirada.

Entre nós reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos


A partir de 1836, aqui se instalou a República Rio-Grandense, com Bandeira, Hino, Moeda, Imprensa, Impostos e Instituições Governamentais próprias.

Quis Deus o nosso Grande Arquiteto Do Universo guiar os Contendores Irmãos na mesma Luz, para a busca da PAZ, pela: LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE.

A então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul voltou a ser integralmente parte do Brasil em 28 de Fevereiro de 1845 pelo lado Farrapo e 01 de março de 1845 pelo lado do Império, quando foi assinada a paz entre Farroupilhas e Imperiais.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Imagem da Revolução Farroupilha: https://escolaeducacao.com.br

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Trova 359 - Milton S. Souza


Carlos Drummond de Andrade (Caso de Ceguinho)


— Não viu o letreiro: “É expressamente proibida a entrada”?

— Desculpe, mas… O senhor não está percebendo?

A bengala branca palpava terreno. Era cego. Um rapaz tão bem-apanhado! Duas ou três funcionárias aproximaram-se, enquanto o servidor que fizera a pergunta, encabulado, ia dando o fora. Os óculos pretos do ceguinho (todo cego é ceguinho, no coração da gente) ocultavam-lhe pudicamente o mal. Cercado de moças, pareceu mais à vontade, e dirigiu-se a uma delas, por acaso a mais bonita:

— Sei que não é permitido, peço mil desculpas… A necessidade me obriga a isso. Não, não é auxílio. Eu vendo blusas, soutiens, essas coisinhas, compreende?

As moças entreolharam-se, o regulamento não admite comércio em repartição, ainda mais repartição da Fazenda. Mas, pode haver regulamento para ceguinhos? E aquele era tão bem-apanhado. E há sempre necessidade, desejo ou curiosidade de uma blusa nova, um baby-doll. Todas estavam precisadas de alguma coisa, todas estavam, por assim dizer, nuas. Então a moça a que ele recorrera tomou a iniciativa de comprar. Os homens fingiram não perceber a infração. O ceguinho abriu a valise de avião e foi tirando seus artigos. Gabava-lhes a renda finíssima, a qualidade da espuma de látex, o elástico substituível. Pedia licença para estender a blusa no peito das moças, para que vissem o efeito.

Compraram tudo de que precisavam ou não, ele agradeceu à madrinha — porque a essa altura já a considerava madrinha:

— A senhorita me deu sorte. Santa Luzia que a faça muito feliz!

E, apertando-lhe o braço, com efusão:

— Posso pedir mais uma caridade?

Podia. Era acompanhá-lo a outras salas. Ele temia ser mal recebido outra vez. Com o seu anjo da guarda não haveria perigo. E lá se foram, ela guiando, ele vendendo. Que confiança adquirira rapidamente na moça! Ia amparado a seu braço, talvez com um pouco de exagero. Ela ia pensar isso — mas arrependeu-se antes de pensar. Um pobre ceguinho!

Quando extirparás de teu coração, Adelaide, a erva má da suspeita?

Pois com tanto cuidado, ainda assim ele tropeçou em alguém no corredor, e teve de agarrar-se a ela, com expressão ansiosa no rosto. Sua respiração era apressada, tinha as mãos quentes. Que susto! Ficou assim algum tempo, como aninhado em sua benfeitora. Não seria tempo demais? Ela ia de novo achar esquisito. Seria mesmo cego, o rapaz? Aqueles óculos indevassáveis… Conteve-se, antes de sentir-se mais uma vez uma infame pecadora:

— Não é melhor o senhor ir embora? Deve estar cansado, já vendeu bastante…

Ele entendia que não, estava disposto a vender até o fim do expediente, com uma fada a protegê-lo, não é todos os dias que se encontra uma fada no caminho. Ela o foi encaminhando para perto do elevador, dizendo-lhe que não era fada coisa nenhuma, era uma simples datilógrafa mensalista, ele protestava, queria de novo sentir-se aconchegado, defendido, gabava-lhe o perfume… O elevador abriu-se. Com suavidade e firmeza ela o impeliu para dentro, pediu ao cabineiro que tivesse cuidado com o ceguinho — se é que ele era mesmo ceguinho.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.

Antônio Augusto de Lima (Poemas Escolhidos)


A SERENATA

Plenilúnio de maio em montanhas de Minas!
Canta ao longe uma flauta, e um violoncelo chora.
Perfuma-se o luar nas flores das campinas,
Sutiliza-se o aroma em languidez sonora.

Ao doce encantamento azul das cavatinas,
Nessas noites de luz mais belas do que a aurora,
As errantes visões das almas peregrinas,
Vão voando a cantar pela amplidão afora.

E chora o violoncelo e a flauta ao longe canta.
Das montanhas, cantando, a névoa se levanta,
Banhada de luar, de sonhos, de harmonia.

Com profano rumor, porém, desponta o dia,
E na última porção da névoa transparente,
A flauta e o violoncelo expiram lentamente.

DE TARDE

Eu vi voando caminho do Ocidente,
O bando ideal de minhas ilusões;
Do sol, um raio trêmulo, dormente,
Dourava-as com seus últimos clarões.

Para longe corriam doidamente
A crença, o amor, meigas aspirações...
Creio até, que entre as aves, tristemente,
Iam partindo os nossos corações.

Além, além... e os pássaros risonhos,
Foram-se todos. Vênus lacrimosa
Brilhou. No mais, deserta a imensidade.

Não! No ocaso do sol e de meus sonhos,
Ficou, ainda a pairar triste e formosa,
A ave formosa e triste da saudade.

ESPERANÇA E SAUDADE

Sorte falaz a que nos guia a vida!
Por que há de ser tão rápida a ventura,
Que só a amamos quando é já perdida
Ou depende de uma época futura?

O que ao presente, mal nos afigura,
Era esperança, há pouco apetecida,
E uma vez no passado, eis que perdura
Como saudade que não mais se olvida.

Há sempre queixas do atual momento,
E entre as datas se eleva o pensamento,
Como uma ponte de sombrio aspeto.

Em busca da ventura que ignoramos,
Temos saudade ao bem que não gozamos,
Ilusão de ilusões, sonho completo.

FLOR MARINHA

Há nos seus ademanes curvilíneos,
A doce languidez da vaga esquiva.
Seus olhos são dois fúlgidos escrínios
De gemas com que o afeto nos cativa.

Flor das espumas, dos corais sanguíneos,
Nenhum tem de seus lábios a cor viva.
Quanto aos cabelos, meu amor define-os:
"Fios de ébano em onda fugitiva".

Não sou homem do mar, contudo afago
Na alma um doido capricho, um sonho vago,
Um vago sonho singular talvez:

É de um dia, na praia, surpreendê-la,
E unir minha sorte à sorte dela,
Sobre o dorso espumante das marés.

O CÉTICO

"Percorro da ciência o labirinto,
Em tudo encontro um eco duvidoso:
Matéria vã, espírito enganoso,
Mentis, tudo é mentira, eu só não minto.

Vejo, é verdade, a vida e a vida sinto,
A caloria, a luz, a dor e o gozo,
A natureza em flor, o sol formoso
E o céu das cores da Aliança, tinto.

Mas quem, senão eu mesmo, vê tudo isto
E quem pode afirmar-me que eu existo,
Visões celestes, velhas nebulosas?"

E em seu crânio a razão desponta e morre,
Como o santelmo fátuo, que discorre
Na solidão das minas tenebrosas.

PAISAGEM NOSTÁLGICA

Deixei meu berço por destino incerto,
Mas a paisagem, guardo-a na pupila.
Guardo-a no coração, donde se estila
Toda a essência das lágrimas que verto.

Sons de sino perdidos no deserto...
Campanários da quase oculta Vila...
Serros magoados que a distância anila,
Mais formosos de longe que de perto.

Não vos esquecerei, por me lembrardes,
Enquanto prantear do alto das tardes,
A estrela Vésper que me viu partir.

Do astro do sonho onde minha alma adeja,
Quando colher as asas, só deseja,
No vosso seio maternal dormir.

VOLTA AO PASSADO

Quis rever em memória o santo abrigo
Onde deixei as ilusões dormindo.
"Vou despertá-las", murmurei, partindo,
"E hei de trazê-las outra vez comigo".

Nova e última ilusão. No sítio antigo,
Jardim outrora florescente e lindo,
Já ninguém dorme. Tudo é morto e findo.
Só de cada ilusão resta um jazigo:

Campas sem epitáfio... Agora é tudo
Um cemitério pavoroso e mudo,
Bem que inda de flores se alcatife.

E dos ciprestes na última avenida,
Vejo a última ilusão que me convida,
Martelando nas tábuas de um esquife!

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 73


Cecy Barbosa Campos (O Artista)


Era um menino bonito, quieto, educado. Na escola, cumpria suas obrigações com eficiência, mas nunca mostrava muito entusiasmo. No recreio, ao invés de participar das correrias e brincadeiras usuais aos garotos de sua idade, preferia sentar-se numa pedra grande, que ficava próxima ao campinho de futebol e, com um graveto na mão, absorver-se, elaborando desenhos na terra úmida que havia no local.

Apesar de seu distanciamento, era estimado pelos colegas. Vez por outra, algum deles se aproximava, sentava-se na pedra ou no chão ao lado e conversava com o "artista" - como o chamavam - até que a agitação característica da idade interrompia o assunto, por mais interessante que fosse.

Assim foi levando a vida, e o tempo passando. Como não causava problemas, era aceito pelos pais e irmãos que não se aprofundavam na questão e ignoravam o seu transitar silencioso sem tentar analisar aquela situação ou considerar se ela era, de fato, normal.

Não havia preocupação financeira na família, de modo que os filhos não tinham obrigações além do estudo.

Ingressando na Universidade, após três anos de curso, os pais lhe perguntaram se já estava próxima a formatura. A resposta surgiu com a maior tranquilidade:

– Não vou me formar, O que ensinam lá, não me interessa. Os rumos que vou tomar são diferentes.

Atônitos, os pais não souberam o que dizer. Passadas algumas semanas, o filho avisou que iria viajar para continuar suas pesquisas e observações pelo mundo. Ninguém conseguiu arrancar-lhe explicações. Disse que não se preocupassem, e que enviaria notícias. Não precisava de dinheiro, pois da mesada que recebia pouco gastava.

De fato, ao contrário dos irmãos, nunca fora de pedir nada e parecia não tomar conhecimento dos depósitos que os pais faziam mensalmente, para os filhos. Usava as roupas que ganhava nos aniversários e natais, principalmente dos de casa, que o consideravam relaxado com a aparência, embora, admitindo que ele era dono de uma elegância natural. Mantinha-se limpo, mas, moda para ele, não queria dizer nada.

Por alguns breves telefonemas e mensagens eletrônicas ainda mais sucintas, os pais iam tendo suas notícias. Souberam que fazia sucesso na Europa e nos Estados Unidos quando depararam com uma entrevista cujo título, "Jovem artista brasileiro fala das obras que produz usando elementos da natureza, tais como terra, folhas e sucata em geral", chamou-lhes a atenção.

Tempos depois, reapareceu em seu país. O estilo era o mesmo; roupas despojadas, um tanto ultrapassadas, largas e confortáveis. Os cabelos tinham crescido e passara a usar sandálias. Bonito, quieto, educado, com um olhar sonhador que transmitia ingenuidade quase infantil.

Ganhava muito dinheiro, mas casara-se mal e a mulher, aplicando-lhe um golpe, levou tudo que ele havia adquirido, deixando-lhe os bolsos e o coração vazios. Não ficou muito tempo em casa dos pais. Sentia-se incomodado com a presença daqueles que sempre conhecera e com as perguntas das quais preferia se esquivar. Não entendia porque as pessoas se interessavam tanto pela vida uns dos outros.

Resolveu partir. Desta vez, soube-se que iria rumo à Amazônia, pois a floresta mais diversificada do planeta poderia proporcionar-lhe novas ideias. Como era de seu feitio, não deu indicações de seu destino. Na verdade, nem ele mesmo sabia.

Ao chegar lá, deixar-se-ia levar pelas águas dos rios, ou pelo vento que sacudia os ramos das árvores.    Ficassem tranquilos que suas notícias chegariam.   

Passaram-se meses. Finalmente, o pai recebe um comunicado vindo do Serviço de Saúde de uma cidadezinha do interior do Amazonas. Pediam a presença de alguém que pudesse identificar um homem branco aparentando pouco mais de trinta anos e que, pelas peças que produzia demonstrava ser artista plástico. Como o homem dificilmente pronunciava uma palavra, pois estava muito debilitado, só após várias tentativas e investigações descobriram aquele endereço e solicitavam a vinda de algum conhecido ou pessoa da família que pudesse encaminhá-lo a tratamento ou levá-lo de volta a casa.

Em lá chegando, o pai, que fora acompanhado do filho mais novo, teve um choque. Encontrou o rapaz magro e abatido, definhando sobre um catre mal-cheiroso. Quase nada restava que lembrasse o jovem de porte elegante e olhos sonhadores. Observando mais detalhadamente, notou que a linha do queixo mostrava a obstinação que marcara a sua vida, sempre isolada dos demais.

O reencontro emocionado mostrou ao artista o sofrimento do pai e a existência de um amor que, até então, não havia percebido.

Sem forças para falar, permaneceu em silêncio, condição que, afinal, era a sua característica. Entretanto, o pai percebeu o brilho que ressurgiu em seu olhar e teve certeza de que, com o cuidado e a atenção de todos, o filho renasceria para a vida.

Retirado num pequeno avião daquele humilde barraco em que se alojara, foi conduzido para um hospital em Manaus, do qual, seria transportado para a casa da família logo que o tratamento inicial o permitisse.

A assistência dos pais, a companhia da mãe, que logo veio ao encontro do filho, e as visitas frequentes dos irmãos fizeram com que seu ânimo retornasse surpreendentemente.

A atitude dos pais mudara em relação a ele. Sentia-se amado, o que não havia notado até então. Ele era o filho que passava despercebido, pois, como não dava trabalho e não participava de farras e bebedeiras, propiciara aos pais uma vida confortável à qual o acomodaram, achando que não precisavam preocupar-se com ele.

A indiferença causa o mais doloroso dos sentimentos. Machuca mais do que a raiva ou a agressão. Sentindo-se ignorado, o rapaz sofria com a sua invisibilidade. Contudo, descortinava agora os caminhos que se abriam a sua frente e se sentia feliz e disposto a percorrê-los.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXVI


OTIMISMOS

Falas só por falar, não que a vida te doa,
não que o mundo te faça desejar um fim.
Quanta gente acharia a tua vida boa
e quantos sonhariam ter um mundo assim...

Tens mais que um rei - que importa se não tens coroa?
Tens teu lar, teu trabalho, e crianças no jardim...
Não andes por aí te maldizendo à toa,
nem a vida e tão má'... nem o mundo é tão ruim...

Falas só por falar... Pensa, a ficarás mudo
ao ver que te pertencem os maiores bens
do mundo, e que afinal a tua vida, é tua!

Basta olhar ao redor, tomar posse de tudo!
Ninguém, por mais que tenha, há de ter o que tens;
se tudo é teu: - o céu, o mar, a praia, a rua!

PALAVRAS

Ah! como me parece inútil tudo quando
sobre nós tenho escrito e hei de ainda compor...
não há verso que valha uma gota de pranto
nem poema que traduza um segundo de dor.

Nem palavra que exprima a singeleza e o encanto
de um pedaço do céu, de um olhar, de uma flor!
Ah! como me parece inútil tudo quanto
na vida, tenho escrito sobre o nosso amor.

Não devia existir a palavra... Devia
existir tão somente a infinita poesia
dos gestos e da luz, - que o amor do meu enlevo

quando o sinto, é profundo, indefinido e imenso,
mas se o chão tão grande quando nele penso
parece-me tão pouco se sobre ele escrevo!

PALAVRAS À TUA TIMIDEZ ...

Antes se arrepender de um gozo ja' vivido
mesmo tendo custado aflição e amargura,
do que o arrependimento de se ter perdido
o que podia ser, ventura . . . ou desventura.

Antes o coração ferido e a alma cheia
de imagens a emoções, de prazeres e amores,
que um destino vazio sobre um chão de areia,
- sem arvores, sem sons, sem fontes a sem flores.

Antes essa certeza amarga, mas sentida,
esse gosto de fel que é mais doce no fundo,
que a imensa solidão de quem fugiu da Vida
e covarde impressão de quem fugiu do mundo!
.......................

Por que temer a vida pelo sofrimento?
Por que preocupações inúteis te consomem?
- O mesmo amor que dói, causa contentamento,
e que falta faria o sofrimento ao homem!

Não transformes a vida em teu próprio degredo
nem queiras perguntar o que ninguém responde.
Abre os olhos, e avança! Abre os bravos, sem medo!
É na vida que a estranha resposta se esconde.

PARADOXO

A dor que abate, e punge, e nos tortura,
que julgamos as vezes não ter cura
e o destino nos deu e nos impôs,

- é pequenina, é bem menor, e até
já não é dor talvez, dor já não é
dividida por dois !

A alegria que às vezes num segundo
nos dá desejos de abraçar o mundo
e nos põe tristes sem querer, depois,

-aumenta, cresce, e bem maior se faz,
já não é alegria é muito mais,
dividida por dois.
..........

Estranha essa aritmética da Vida
nem parece ciência, parece arte,
compreendo a dor menor, se dividida,
não entendo, é aumentar nossa alegria
se essa mesma alegria
se reparte !

PARAÍSO PERDIDO

Penso isto: penso que devemos fugir para nos mesmos.

Não são apenas os amigos que nos levam sem reação,
são os cinemas, os teatros, as horas que perdemos nas ruas
quando nosso quarto se fecha silencioso, sem tempo
e esperanças.

Não são apenas as horas que o trabalho me rouba
inapelavelmente, e que não me serão devolvidas.

É a nossa vida, feita sem tempo e de desencontros,
sem pausa para a criação, sem paz para o recolhimento,
sem silêncio para o pensamento, sempre ininterrupta,
passando por nós, enquanto nos deixamos ficar sem alcançá-la...

Penso isto : só a fuga para nos mesmos seria a salvação.
Conheço um amigo pintor que se encontrou em Itatiaia
e ouve o canto dos pássaros e das águas junto às Agulhas Negras.

Meu amor: sinto que vamos chegando à hora em que
devemos voltar ao Paraíso,
ou jamais o reconquistaremos.

PIANO DE BAIRRO

Na rua sossegada onde moro, - à tardinha,
quando em sombras o céu lentamente escurece,
- um piano solitário, em surdina, - parece
acompanhar ao longe a tarde que definha...

Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha,
seus acordes pelo ar tem murmúrios de prece...
- Ah! Quem não traz como eu também, na alma sozinha,
um piano evocativo que nos entristece?

Há sempre um velho piano de bairro, esquecido
na memória da gente, - e que nas tardes mansas
sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido.

Seus monótonos sons, seus estudos sem cor,
repetem no teclado branco das lembranças
o inconcluso prelúdio de um longínquo amor!

POR QUÊ?

Por que não hei de colher a flor e o fruto
com uma só mão ?

Por que sempre este duplo gesto, no destino
das coisas bipartidas, se sou um só
e se és uma somente...

Por que serás a flor, hoje serás a flor,
e hei de colher o fruto noutro corpo
que nunca foi botão ?

Ah! se fosses flor e fruto, como outrora,
para que pudesse te colher como dantes
com o mesmo gesto fiel, e a mesma ânsia…

PRECE

Bendita sejas tu em meu caminho!
Bendita sejas tu, pela coragem
com que fizeste de um amor selvagem
esse amor que se humilha ao teu carinho!

Bendita sejas, porque a tua imagem
suaviza toda angústia e todo espinho...
Já não maldigo a insipidez da viagem,
nem me sinto só, nem vou sozinho...

Bendita sejas tantas vezes quantas
são as aves no céu; e são as plantas
na terra; e são as horas de emoção

em que juntos ficamos, de mãos dadas,
como se nossas vidas irmanadas
vivessem por um mesmo coração!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Lima Barreto (O Feiticeiro e o Deputado)


Nos arredores do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no município Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.

Conheciam-no no lugar, que, antes do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de Inhangá, por “feiticeiro”; o mesmo, certa vez a ativa polícia local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo de “feiticeiro”.

É bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de sua chegada e na extravagância de sua maneira de viver.

Fora mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas. Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e sem relações quase.

A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômodo de cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo, no sopé do morrete, em torno do poço de água salubre, as couves reverdesciam nos canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.

Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer coisa.

Toda a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:

— “Seu” Ernesto tem visto como a seca anda “brava”.

— É verdade.

— Neste mês “todo” não temos chuva.

— Não acho… Abril, águas mil.

Se lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.

À tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as tardes são longas, ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina Comédia, o Robinson e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.

A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois todo o sofrimento vem dele.

Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este que nos provoca a dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa amar plenamente…

Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar, que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.

Um dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:

— “Seu” Ernesto: viraram a cabeça de meu filho… Deu “pa bebê”… “Tá arrelaxando”…

— Minha senhora, que hei de eu fazer?

— O “sinhô” pode, sim! “Conversa cum” santo…

O solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre rapariga, disse-lhe docemente estas simples palavras:

— Não beba, rapaz. E feio, estraga—não beba!

E o rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.

Este incorrigível bêbado, a quem atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do “homem” um pássaro branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu voo rasteiro, as árvores todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.

Com essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.

Houve mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o que era de outro; mas o escriturário do posto, “Seu” Almada, contrariava-o, dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um segundo!…

O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.

A opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.

Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.

Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança de ciência…

O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mané Bitu, a doce compaixão de sua alma terna e afeiçoada…

De manhã e à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar as utilidades de que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele município de Inhangá, hoje burocraticamente chamado – “Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista”.

Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um elegante senhor, bem-posto, polido e cético.

O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o vendeiro Bitu, representando o “capital” da localidade, receberam o parlamentar com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.

Mostraram-lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos porcos… Por fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de assessores, o doutor Chupadinho convidou:

— Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidados da ciência, em algum manicômio.

E o escriturário acrescentou:

— Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com que as outras idades fabricavam os seus santos.

E o Mané Bitu:

— É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso dizer dele.

O deputado, sempre cético e complacente, concordou em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.

O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na várzea, à beira da estrada.

O deputado olhou-o e o solitário, ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada, voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia procurar reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que pudesse o “feiticeiro” dizer qualquer coisa, correu até ele e abraçou-o muito e demoradamente.

— És tu, Ernesto?

— És tu, Braga?

Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.

Quando saíram, Almada perguntou:

— O doutor conhecia-o?

— Muito. Foi meu amigo e colega.

— É formado? indagou o doutor Chupadinho.

— É.

— Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizeram-me crer isso; o povo, porém…

— Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…

— Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.

E os quatro voltaram em silêncio para a sede do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Paulo Leminski (L) "Depois de hoje"


Carolina Ramos (Os Três)


Eram três. Três marginalizados que a fatalidade confinou na mesma cela. E quando a vida, aranha traiçoeira, teceu sua teia, teve o cuidado de envolvê-los muito bem, com fios viscosos, de maneira que não mais se separassem.

Três: — "Bá", o gaúcho, bravo como o diabo, que acumulava no costado sabe-se lá quantas mortes! “Mengo", carioca, alma de cuíca gemedora, cumprindo pena sem saber se, fruto inocente da violência urbana, ou culpado, pela contribuição pessoal, para um todo violento, ainda que por interferência mínima. Certo, é que estava entre as grades, com maior ou menor culpa, a batucar nas paredes o protesto ritmado contra o peso excessivo da mão da lei, pousada sobre seus ombros. O terceiro era mineiro. Desconfiado, sim, entremeando estágios de mutismo, com fases de loquacidade desenfreada. Pagava o pecado, amargo, da cupidez incontrolada. Estupros vários. Um deles seguido de morte.

Eram três diabos, vindos de pontos diferentes, a arder na mesma fornalha da Pauliceia. Entendiam-se. Chegavam às confidências. Arquitetavam planos para o futuro. E desses planos a violência não constava.

A boa conduta dos três presidiários chegou aos altos escalões, com retorno satisfatório.

A notícia de que poderiam passar as festas natalinas em liberdade condicional, junto às famílias, foi recebida com particular entusiasmo pelo gaúcho.

— Bá! Presente de Pai Noel! Melhor, só a liberdade definitiva!

A alma queixosa do "Mengo" despertou como cuíca em Quarta-feira de Cinzas, melancólica, gemendo em surdina, num canto da cela.

O mineiro, ou "Mineirão", nome de guerra, introverteu-se. Deixou-se engolir pelo silêncio, no canto oposto.

Sem eco, a alegria do gaúcho esmoreceu como gaita murcha:

— E então?! — indagou, desafiante, aos dois vultos encolhidos.

A única resposta veio, soluçada, lá das bandas cariocas:

— Belo presente, meu! Mas, só mesmo pra quem tem sapato. Quem não tem família, fica como noix, no tanto faix, como tanto feix!

"Mineirão" nem deu sinal de vida. Enrustido em si mesmo, era cápsula, hermética, resguardando os próprios pensamentos. Ostra, fechada, preservando a pérola.

As lembranças das confidências trocadas fizeram-se presentes na cabeça eufórica do Bá. A verdade é que os dois companheiros de reclusão não tinham família e, portanto, não tinham, também, motivos para partilhar da alegria que lhe inflava o peito atlético.

— Duro não ter ninguém lá fora! Duro demais, tche!...

No ermo da cela, um raio de magnanimidade acoplou-se sobre os cabelos negros e lisos do gaúcho, que decidiu a questão:

— Nada de tristeza, amigos... os dois vão comigo. Tenho uma casa, tche... tenho uma guapa chinoca e uma guria que é uma beleza! Onde comem três... comem cinco! Estamos conversados.

Piscou o olho malicioso, acariciando os fartos bigodes:

— Vais provar o chimarrão, mineiro velho! E tu também, Mengão. Os dois vão conhecer os pampas, ao sentir o mate quentinho escorregar goela abaixo, até a cuia roncar de gozo. Barbaridade! não há coisa melhor no mundo! Só mesmo o beijo da minha chinoca consegue ganhar dessa gostosura! Bah!

Na penumbra da cela, dois pares de olhos ganharam brilho.

Ninguém interrompeu o devaneio gauchesco. Logo, havia festa antecipada, ao toque dos preparativos para a partida.

Presentes! Precisavam levar presentes. Ao menos, para a menina.

O mineiro, vasculhando os "trens", encontrou a caixinha de guardar badulaques, feita, por ele mesmo, de fósforos queimados. Trabalho paciente, que deveria agradar a chinoca do Bá.

Isto lembrou ao Mengo o porta-lápis, elaborado no seu lazer forçado, com palitos de sorvetes, que, com certeza, a guria do gaúcho não desprezaria, se pintada de cores vivas e adornada de desenhos.

Às vésperas do Natal, as portas do presídio do Carandiru abriram-se prazerosamente, dando passagem aos três amigos que, findas as festas e expirada a licença, assumiam o compromisso de retomar, para cumprimento do restante da pena.

Bem... o tempo não para...

A guria do "Bá" tinha já quinze anos, desabrochara. Por isso mesmo, o coração deslumbrado do Mengo chegou-lhe às mãos, dentro do porta-lápis, espremido, latejante de amor, desses tais amores que eclodem à primeira vista!

Com o "Mineirão" a coisa não foi diferente. Só que, por azar, a graça da chinoca é que lhe roubou o sossego. Ficou doidinho de todo, ao ver de perto o decantado beijo trocado pelo par gaúcho. Sentiu, a seco, o gosto doce do chimarrão, antes mesmo de tê-lo provado. Não o sabia amargo!

Na primeira oportunidade, atacou. Todos os seus impulsos reprimidos vieram à tona. A gaúcha, subjugada, cravou-lhe as unhas de gata brava, riscando-lhe a face, de alto abaixo, em linhas paralelas, que logo se tingiram de rubro.

Nada precisou ser dito para que o gaúcho, sem mesmo ter visto a cena, tomasse sentido do que se passara.

Uma bala certeira vingou-lhe a honra insultada,

"Mineirão" foi cumprir o resto da pena em terras mais quentes.

"Bá", inapelavelmente, dobrou a sua.

E “Mengo” ao transportar para cela uma esperança doce, tomou mais curtos e mais suaves seus dias de penitente. Nem "mermo" a mão da justiça parecia pesar-lhe sobre os ombros. Abafou dentro da alma a voz gemedora da cuíca. Trocou-a por outra, lírica e seresteira, de violão cantador!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Lição (2)

2a. parte do conteúdo do Folhetim Literato Desiderata - Tema: Lição

Sílvia Araújo Motta
Belo Horizonte/MG

A FOLHA CAÍDA


Aquela “Folha” quis mostrar caída
que era o momento certo para amar...
Quem sabe até, por ser também sofrida
quis dar a chance para a luz brilhar.

A folha seca pela dor vencida,
envelhecida veio às mãos, lembrar:
-Terceira idade pode ser querida
para envolver quem quer beijar, sonhar.

Beijos nas mãos selou adeus, que a lua
pode antever, por sua vez, soluços,
da alma, que também foi quase sua.

Fim da viagem, folha foi ao chão...
Quanta saudade! Sento e me debruço!
Computador já pode ver lição.
___________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Quando acaba a fantasia
e se busca a aprendizagem,
lição é sabedoria
que a alma acolhe, de passagem.
___________________________
Milton S. Souza
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS


No entrevero, metido, que alegria,
deixo a chuva molhar meu coração,
pois eu sei, esta chuva que desliza
traz na seiva esta paz de cada irmão,
e a palavra precisa que preciso
para ser bom aluno na lição.
_____________________
JB Xavier
São Paulo/SP


Meu pai me ensinou: ”Reflita!”
Nunca esqueci a lição:
“a velhice não se evita.
maturidade é opção!”
________________________________
Gilson Faustino Maia
Petrópolis/RJ

RENASCIMENTO


Nasce outra rosa no jardim florido,
nasce o perfume, o amor, a poesia,
tão logo raia o sol de um novo dia
e morre a madrugada sem gemido.

Levanto o meu olhar enternecido
e vejo um horizonte que extasia,
de luz e cores, tudo em harmonia,
cenário que me deixa comovido.

E eu choro a minha humana imperfeição
diante do esplendor da natureza,
sem sentir do Universo esta lição:

se o passado morreu, viva a certeza
de um novo amor que invade o coração
matando a dor, o pranto e a tristeza.
______
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


O fim do mundo receio,
e acabe tanta beleza,
que o dirigente anda alheio
à lição da natureza.
___________________________
Carlos Drummond de Andrade
Itabira do Mato Dentro/MG, 1902 – 1987, Rio de Janeiro/RJ

ENTRE O SER E AS COISAS


Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.

N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.
______________________
A. A. de Assis
Maringá/PR


A história, através dos anos,
ensina a grande lição:
– o destino dos tiranos
será sempre a solidão!
____________________________
João Felinto Neto
Mossoró/RN

DISLATE


Talvez minhas palavras sejam tolas,
minhas ações, inconsequentes;
as minhas brincadeiras, ironia;
eu próprio seja falho e negligente.
O meu discurso seja sátira;
minha seriedade, uma piada.
O meu humor seja mau gosto;
o meu dislate, permanente.
Meu riso entre dentes, atimia;
a minha faina seja ociosa;
meu pranto, uma lição jocosa
e o jeito infantil, idiotia.
Talvez a minha vida seja um fracasso;
meus versos, um engodo imoral.
Em epítome, sou um gracejo nefasto.
Meu desejo, um esboço anormal.
_____
António José Barradas Barroso
Paredes/Portugal

Quando me falam de glória,
cada vez mais me convenço
que a guerra, na nossa história,
é lição pra ter bom senso.
__________________________
Guerreiros Mura
Manacapuru/AM

A SEDUÇÃO DO BOTO COR-DE-ROSA


Todo o meu pecado
Foi amar uma linda sereia do mar
E como lição herdei a maldição
De viver nas águas contemplando a solidão
Os mistérios e as mágoas dos rios a imensidão

Mas o feitiço das escuridão
Quebrou-se ao luar
O boto cor-de-rosa emergiu
Dele o encanto surgiu
De boto a um lindo rapaz
Astucioso e sagaz
Do fundo do rio Solimões
Uniu-se dois corações

Veio seduzir a cirandeira bela
Dançarina, dançarina
De sua paixão
Com fitas brancas e amarelas
Dança a dança, dança a dança
Da sedução

Está se deslumbrando senhor
Uma linda estória de amor
Com a cirandeira bela fogosa
Amor do boto cor-de-rosa.
__________________________
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


Ao seu filho, desde cedo,
ministre a boa lição:
em vez de armas de brinquedo,
ponha um livro em sua mão!
______________________
Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. É em ti mesmo que se coloca o enigma da existência: ninguém o pode resolver senão tu!
Friedrich Nietzsche
(Röcken/Lutzen/Alemanha, 1844 – 1900, Weimar/Alemanha

______________________
Prof. Garcia
Caicó/RN


Trago uma lição comigo
que aprendi desde criança:
Quem tem um cachorro amigo,
não perde nunca a esperança!
______________________
Desconhecido

NADA É POR ACASO


Se as coisas fossem perfeitas
Não existiriam lições de vida
Não haveriam arrependimentos
E nem descobertas...
Se tudo fosse perfeito
Mãos não se uniriam
E sonhos não seriam valorizados.
Se tudo fosse perfeito
Olhares não se completariam
E gestos passavam despercebidos.
Se tudo fosse perfeito
As lágrimas não existiriam
As palavras seriam perfeitas.
Se tudo fosse perfeito
Eu pularia no abismo
Sem medo da morte
Pois asas eu ganharia...
Se tudo fosse perfeito
Eu atravessaria o oceano
Sem medo de ser levada pelas ondas
Sem receios de me perder em suas profundezas.
Se tudo fosse perfeito
Dores não existiriam
E a cura não seria procurada...
Se tudo fosse perfeito
Não haveria a busca pela perfeição...
Nada é por acaso
Pois nem o destino
É Perfeito.

Na vida nada acontece por acaso.
O que você faz hoje,
pode fazer a diferença
em sua vida amanhã.

Arthur de Azevedo (Em Sonhos)


– Ora, sempre há sonhos muito esquisitos! – exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

– Com quem sonhaste? – perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!

– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

– Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.

– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!

– Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!… Eu não queria!… D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!…

– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .

– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!…

– Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!

– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!…

– Sim, tens razão, César… Sonhos são sonhos… uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.

– Ora, ainda bem que te chegas à razão!.

E não se falou mais nisso: a discussão passou… como um sonho.

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.

– Que é isto? – perguntou César despertando. – Ergueste hoje mais cedo?

– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

– Sim?… Com quem sonhaste?.

– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.

– Sonhei; que tem isso?… Que culpa tenho eu?

– Conta-me o teu sonho.

– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

– Margarida! Nunca esperei que tu…

– Deixa-te disso!… Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!.

O César saltou da cama furioso:

– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

– Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Isabel Furini (Palestra em Maringá, dia 24 de setembro)


Em 24 de setembro, a partir das 15h30m, na 38º Semana Literária do SESC & Feira do Livro, Maringá, PR, a poetisa e educadora Isabel Furini ministrará uma palestra sobre produção poética. Também serão lidos poemas de poetas maringaenses.

O evento será na UEM (Universidade Estadual de Maringá)  Bloco E 46 - Sala 07, as 15h30.

Serão abordados os seguintes assuntos:

- A Linguagem Poética

- A Poesia como receptáculo

- A teoria dos anéis

- Reflexão sobre a Poesia nas redes sociais.

Na continuação, serão lidos poemas de poetas de Maringá, e leitura de dois poemas de autoria de Isabel Furini. Também serão lidos poemas curtos de poetas de Curitiba: Daniel Mauricio, Jandira Zanchi, Decio Romano, Elciana Goedert, Neyd Montingelli e Geraldo Magela, além de Maria Antonieta Gonzaga Teixeira, de Castro e da poetisa Fla Quintanilha.

Após o recital, serão sorteados entre os presentes, livros dos autores lidos.

No final do evento, os maringaenses, poeta Jaime Vieira e poeta trovador José Feldman receberão Medalhas de Mérito Cultural pelo trabalho que realizam em prol da Literatura.

SÁ de Carvalho (Poemas Escolhidos) 2


ANJO

Senti o meu coração estrangulado...
Desorientada e assustada quebrei-me igual galho seco,
verguei-me sob o peso da dor!
Nesse funesto momento surge,
com sua luminosidade, um vulto que se põe a me afagar,
a tecer em mim a rede da esperança,
a ligar os elos da confiança e a envolver-me no anel da segurança!
Tal ser segura as minhas mãos e me conduz!
Ao embalar meu espírito e aquietar a emoção,
combate o meu medo!
Iluminada criatura, creio que sua missão
é enveredar-me na caminhada por paz!
Não sei como viveria se meu anjo partisse...
Ao derramar sua magnificência sobre mim
acolhe-me, aconchegadamente, sob suas asas protetoras;
enche o tempo e o espaço, hora vazios, com amor angelical!
Eu lhe dou o nome de amigo...
Eu o chamo de amor...
Nele reconheço o anjo que veio me ressuscitar!

CONSUMIÇÃO

Roço, ao passar por você, no seu braço,
sinto na alma uma energia flâmea,
um incontido desejo de abraçá-lo...
Imagino o meu corpo ardente ao seu entrelaçado,
um no outro, num abraço apertado,
coração com coração, num dueto compassado,
almas flamejantes à procura do passado!
Ah, esse incontrolável tremor excitado
estigma desses lábios ansiosos,
lábio sedentos os meus , os teus...
(os teus enganosos, displicentes, cínicos, maldosos),
negam-me uma tênue ternura latente,
aumentam, em mim. essa dor pungente.
O tempo passa acelerado
e em breve não mais o verei...
Contento-me com parcas migalhas:
olhares furtivos e rápidos toques de mão...
Mergulho nesse olhar azulado
perdendo-me na dor dessa infindável solidão!

domingo, 15 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 72


Monteiro Lobato (Vidinha Ociosa)


APÓLOGO


O velho Torquato dá relevo ao que conta à força de imagens engraçadas ou apólogos. Ontem explicava o mal da nossa raça: preguiça de pensar. E restringindo o asserto à classe agrícola:

— Se o Governo agarrasse um cento de fazendeiros dos mais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquele canto e uma floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse uma mesa com papel, pena e tinta, e lhes dissesse: “Ou vocês pensam meia hora naquele papel ou botam abaixo aquela mata”, daí a cinco minutos cento e um machados pipocavam nas perobas!...

A MESMICE

Um coronel inglês suicidou-se “tired of buttoning and unbuttoning” — cansado de abotoar e desabotoar a farda.

A vida em Oblivion é um perpétuo “buttoning and unbuttoning” que não desfecha no suicídio.

Salvam-na a botica e o jogo. A botica, porque nela há uma sessão permanente de mexerico, e o mexerico é a ambrosia dos lugarejos pobres. E o jogo, porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra, e quem ganhou vai alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. Dessa forma escapam todos ao cansaço da mesmice.

A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticário do interior para uso de sua cidade-aldeia, onde correm os dias tão iguais e parecidos que só por meio dela podemos distinguir uma segunda duma terça ou quarta-feira.

Um só dia tem feição própria: o domingo. Assinala-o a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que surge pelas ruas a tomar sol no corpo de toda gente.

Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente extramuros dão ares de sua graça. Há mercado cedo, missas até as onze; depois, pelo resto da tarde, continuam a assinalar o Dia do Senhor caboclos e negros encachaçados, aglomerados pelas vendas. Vendem elas mais pinga nesse dia do que durante a semana inteira. Todos voltam para casa mais ou menos chumbeados. Os “de cair” dormem na cidade. Os de pinga exaltada, no xadrez. E assim transcorre o belo domingo sem necessidade de irmos à folhinha para sabermos que dia é.

TOURADAS

Transformaram o antigo velódromo em circo de touros; metade das arquibancadas virou Sombra, a mil-réis; e a outra metade, Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de cetim amarelo e verde está um inteligente pegado a laço e imensamente bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso; cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som completo — e o povo ri-se.

Toureiro de verdade há um, o Antônio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completam a cuadrilla.

A cada passinho Corajoso berra para o inteligente: “Dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquilo”. E o pobre-diabo se vê tonto para conciliar uma burrice inata com os deveres do cargo.

O povo vaia ou aplaude num tom amolecado que é toda a graça da festa. Reles, mas divertido. “Feche a boca, negro! Está com fome?” (isto para um toureiro mulato). “Recolham esse canivete aleijado!” (para um zebuzinho preto muito magro). “Hu! hu! Tira leite dessa vaca, ó canudo de pito!”

Uma farpa fere um boi na veia; o sangue começa a correr. Enternecimento geral. Para-se a tourada para remendar-se o boi. Laçam-no, cosem-lhe a ferida — operação demorada que consome vinte minutos. Tomado de piedade, o povo não consente que farpeiem os restantes.

Há palhaço — um palhaço que faz jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Moleza. Tem preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a correr. Lá quando a banda de música ataca a valsa Amoureuse, o ladrão atravessa a arena dançando. Mas dança com tamanha preguiça que o povo rompe num berreiro: “Lincha o cínico! Mata!”. E chovem-lhe em cima toda sorte de desaforos — e cascas de pinhão...

Remata a festa a “pantomina”, como diz o programa. Consiste no Pançudo, figura de um cômico prodigioso. Tem tanto de largo como de alto. Perfeita esfera encimada por uma cabeça e “embaixada” por dois pés. É um homem acolchoado. Mal aparece, em passinhos miúdos e lentos, uma voz o denuncia: “É o Zé de Mamã! Aí, negro safado!”. E toda a gente morre de rir, adivinhando o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investe, marra-o, arremessa-o longe. Os toureiros reerguem-no. Nova investida, novo rebolar. E assim até que o touro, desconfiado, se recuse à pagodeira. Soa por fim o toque de recolher e, todo esburacado, com a palhaça à mostra, lá vai para os bastidores o pobre Zé de Mamã, rolado qual uma pipa.

A ENXADA E O PARAFUSO

Cada terra com seu uso. O nosso teatrinho sempre usou campainha para as chamadas. Campainha é eufemismo. Havia lá dentro uma enxada velha, pendurada de um arame, com um parafuso de cama, cabeçudo, ao lado. Os sinais eram batidos ali.

Veio um mambembe pernóstico e calou a enxada, substituindo os seus sonidos por três pancadas no assoalho.

No primeiro dia o povo da plateia entreolhou-se ao ouvir aquilo, e lá pelo poleiro houve risadas e assobios. O delegado resolveu intervir.

— Este mambembe parece que está mangando conosco!

Explicações. O empresário provou que aquele sistema era a última moda de Paris. Os espectadores remexeram-se, desconfiados. Estavam nessa indecisão, quando o major dirimiu a pendenga com o peso de sua autoridade:

— Mas isto aqui não é Paris!...

— Bravos! Bravos!

E a velha enxada sonorosa voltou a ser tangida com o parafuso de cabeça.

RABULICES


Nos dias de júri reúnem-se os advogados e rábulas na antessala do tribunal, os primeiros a virem, os últimos a saírem, como gente que procura gozar, bem gozado, um ambiente poucas vezes fornecido pelas circunstâncias. E, como peixes n’água, à vontade, dão trela à comichão mexeriqueira da rabulice, esquecendo-se em interminável prosa sobre processos, atos judiciários, movimento forense, nomeações, negócios profissionais, pilhérias jurídicas. As cabeças estão abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e fatos jurídicos, de modo a só tomarem conhecimento das relações entre o fato e a lei escrita, e nunca entre o fato e a lei natural — o que é próprio do filósofo. Na natureza só veem coisas fungíveis, infungíveis, móveis, imóveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de enfiteuse — a carne e o osso, enfim, da propriedade. Essa janelinha que o artista e o filósofo trazem aberta para a natureza bruta, ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão de forças em perene esfervilhar, outra como oceano de paixões onde se debate o Homo — animal filho da natureza, todo ele vegetação viçosa de instintos irredutíveis —, o homem de leis abre-a para a rede de fios que a Lei trama e destrama, fios que atam os homens entre si ou à Natureza convertida em propriedade.

E toda a maranha velhaca que isso é engloba-se dentro da mais bela concepção do idealismo — a Justiça.

PÉ NO CHÃO

Fica no extremo da rua o Grupo Escolar, de modo que a meninada passa e repassa à frente da minha janela. Notei que muitas crianças sofriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a uma delas:

— Que doença de pés é essa? Bicho arruinado?

O pequeno baixou a cabeça com acanhamento; depois confessou:

— É “inconomia”.

Compreendi. Como nos Grupos não se admitem crianças de pé no chão, inventaram as mães pobres aquela pia fraude. Um pé vai calçado; o outro, doente de imaginário mal crônico, vai descalço. Um par de botinas dura assim por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado, transfere-se a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em funções. Destarte, guardadas as conveniências, fica o dispêndio cortado pelo meio. Acata-se a lei e guarda-se o cobre.

Benditas sejam as mães engenhosas!

BARQUINHA DE PAPEL

Quando chove, logo que passa o aguaceiro e o enxurro transforma a rua num sistema de rios e riachos lamacentos, começam a derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque-chefe da rua, vira estaleiro. Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha de frente também deita, a medo, a sua; e quem seguir esta barquinha verá o rapaz moreno, que mora na outra esquina e está à janela, correr à sarjeta, apanhá-la e ler risonho a mensagem a lápis da sua namorada...

O HEREGE

Os filhos do capitão Zarico brincam todos os dias debaixo da minha janela. É a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora. A preta Esméria fica o tempo todo com o caçula ao colo, vigiando-os. Ainda hoje estava lá, às voltas com o pequerrucho.

— Quem tirou o toucinho daqui?

— Foi o gato.

— Que é do gato?

— Está no mato.

— Que é do mato?

— O fogo queimou.

— Que é do fogo?

— A água apagou.

— Que é da água?

— O boi bebeu.

— Que é do boi?

— Está dizendo missa...

— Credo! — resmungou a preta. — Tão pequenino e já herege como o pai...

JUQUITA

É Juquita o terror da bicharia miúda. Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã encontrei-o a brincar com um sanhaço semimorto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando passei.

— Não viu o meu sanhaço? — perguntou-me.

— Com certeza algum gato o pegou — sugeri.

— Gato! — e Juquita riu-se com a maior comiseração da minha ingenuidade. — Não há gato que tenha coragem de chegar perto de mim.

O JESUÍNO

Quando os juízes de fato se fecham (ou são fechados) na sala secreta, ficam à porta de guarda os dois oficiais de justiça. O único interessante é o Jesuíno, mulato velhusco, grandalhão, lento no falar como um carro de boi ladeira acima.

Desfila o seu rosário de aventuras, onde ele sempre trunfa às avessas. Tem absorvido muita pancada, e até cargas de chumbo. Como é homem da lei, não reage senão por meio da lei. É comezinho ir citar um caboclo na roça, ser hospedado a guatambu e vir dar conta ao juiz da façanha com vergões pelo corpo, galos na testa, e às vezes descadeirado. Considera a pancada um osso do ofício. Conta de um soco tão violento que o derribou a duas braças de distância.

Como os valentões exageram as proezas, Jesuíno exagera os martírios que padeceu a bem da lei.

Isso no fundo é ganância de gorjetas. A parte por amor da qual levou pancada paga-lhe os galos.

Mas nesse caso do soco há um apêndice — para os colegas, onde não há de vir gorjeta. Conta que mal se ergueu, meio tonto, e se aprumou, o escachameirinho veio-lhe para cima de porrete e o desancou sem dó. Mas ele afinal atracou-se ao bicho e conseguiu ferrar-lhe as munhecas no gasnete. Deitou o “sojeito” no chão, socou um joelho na boca do estômago, e leu-lhe na cara o mandado. Só não disse com que mão tirou do bolso o papel (pois as duas estavam ferradas no pescoço do intimado). Mas é pormenor sem importância esse. Depois fugiu a cavalo. Diz que a arma do oficial de justiça é a pena. O “sojeito” puxa pela garrucha; o oficial puxa da pena, tira o papel do bolso, e — Espere aí! Vá berrando e pregando tiros enquanto eu escrevo; vamos a ver quem pode mais!

Carlyle esqueceu de incluir no seu livro famoso esta categoria do herói obscuro da intimação judicial.

Para realce da sua grandeza de alma, contraposta à ferócia do “sojeito”, Jesuíno conta como este lhe apareceu no dia seguinte ao pega. Jesuíno disse consigo: “Vou mostrar como se recebe um inimigo com civilização”. Fê-lo entrar, mandou vir café e não tocou na sova. A folhas tantas o homem quis explicar a sua loucura da véspera. Jesuíno interrompeu: “Eu nada tenho contra o senhor, porque o senhor agravou e esbofeteou mas foi o doutor Juiz e é com ele que tem de avir-se”.

Com esta sutileza vai traspassando ao meritíssimo a bordoeira velha — porque afinal, como “homem”, nunca levou pancada. “Queria só ver esse peitudo que erguesse a mão para mim! Ia parar no inferno!”

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sábado, 14 de setembro de 2019

Lição (1)

Os versos a seguir são integrantes do Folhetim Literário Desiderata n. 10 - Tema: Lição
 

Josafá Sobreira
Rio de Janeiro/RJ


Certa lição da vovó
coube ao meu pai me ensinar:
"Nunca, filho, corte um nó
que tu possas desatar!"
______________
Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

LIÇÃO


Em cada dia que nós vivemos
aprendemos uma lição...
A família nos ensina a ter sempre
um bom coração, gentileza e educação.
Assim estaremos prontos
para quem nós vamos encontrar
em nosso peregrinar...

A lição que a vida nos dá,
muitas vezes nos complica,
mas se temos sabedoria,
o coração não implica,
com facilidade resolve o dilema
e bom senso nos dá à dica.
A calma e a paciência
nos ajudam na tarefa
qualquer situação, resolvemos
a desavença, com calma e gentileza

Se observamos a natureza
muitas lições nos ensina...
tudo universo tem equilíbrio,
tudo roda e movimenta no silêncio...
a árvore cresce sem barulho,
a semente na terra brota,
o rio corre para o mar
contorna as pedras sem reclamar!

Mas, sempre terá algumas feridas
provocadas das lições...
que não foram bem cumpridas
deixando grandes arranhões...
Todas as rosas mais perfumadas
têm espinhos em profusão!
___________________________

Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ


A formiga na labuta,
nos dá profunda lição:
não se curva ao peso e à luta,
vive em perfeita união.
__________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

LIÇÃO DE PAI


Meu filho, toma atenção,
tens que saber a lição
e a tabuada de cor,
faz a cópia com cuidado
e, na escola, preparado,
vai mostrar ao professor.

Verás que fica contente
por te saber diligente,
com vontade de saber,
se a lição não entenderes,
acabando os teus deveres,
vem depois comigo ter.

Repara, filho, que a vida
pra se levar de vencida
é com trabalho e atenção,
e apesar da pouca idade,
precisas de ter vontade
pra aprenderes a lição.

Num tempo já mais distante,
quando te achares diante
do que tu julgas saber,
lembra-te do que ensinei
“eu só sei que nada sei”,
que é lição para aprender.
______________________
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Nunca digas com certeza:
-não comerei deste pão!
Cada instante é uma surpresa,
cada dia é uma lição.
______________________
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN


Da ingratidão praticada
eu tirei uma lição:
Perdoar, não pesa nada,
pesado…É pedir perdão!

_______________________________

Gabriela Pais
Almada/Portugal

LIÇÃO COM PROVA


A vida é uma lição
que por vezes faz tremer,
tanto oprime o coração  
como mostra o alvorecer.

A vida é uma lição,
um livro de matemática
de fundamental didática,
de rigor e exatidão,
apresenta a solução
a cada dia que passa,
se erro não acha, este grassa.

Vida abrigo temporal
alentos de ventos brandos,
de silêncios cerrados,
livro de leitura real
de função estrutural
uma lição pra refletir,
no bem ou mal a existir.

É óbvio e comum o error
Tanto se pode refazer
ou deixar o rio correr,
rosa com espinho, a dor,
intuir a lição primor,
Um passo de cada vez
a tratar com sensatez.

Todos os dias aprendemos
voamos pelo Universo
com um destino diverso
e a lição murchos revemos
um sonho real queremos,
um destino generoso
mas às vezes tão penoso.
________________________
Valdereis de Jesus Ururahy
Rio de Janeiro/RJ


A lição que mais ensinou,
nos foi dada por Jesus,
que ao seu algoz perdoou,
mesmo pregado na cruz !
___________________________
Amadeu Rodrigues Torres
Viana do Castelo/Costa Verde, 1924 – 2012, Braga/Portugal

PROESEMAR FACILIDADES


Métrica, rima, ritmos, a parafernália
Usual, secular caiu de escantilhão
Nalguns, acaso e sorte tentam ritmação,
Mas os versos protestam como em represália.

Prosa e verso já calçam a mesma sandália
E aplaudem Mallarmé só por embirração
Co´a diferença e leis de discriminação,
Não obstante as lições da Fonte de Castália.

Mas quem quer lição hoje de outrem, afinal,
Se o raso quer assentar praça em general
E o poetrasto bisonho é Camões em Constância?

Fazem-me rir a crítica e a sua bitola:
Muita vez, não se sabe quem lidera a bola,
Se a amizade, a nesciência, a cor, a petulância.
______________________________
António José Barradas Barroso
Parede/Portugal


Aprender, durante a vida,
com mestres, toda a lição,
era a forma garantida
duma linda educação.
____________________________
Nemésio Prata
Fortaleza/CE

PRA QUEM QUER FAZER SONETO!


Soneto, peça rara da poesia,
tem rima, ritmo, métrica e estrutura,
motivo muitas vezes de agonia
pra quem, fazer soneto, se aventura.

A rima dá o tom da “melodia”,
a métrica mostra sua “escultura”,
no ritmo está sua “sonoplastia”,
e na estrutura a sua “assinatura”!

Composto de tercetos e quartetos,
depois dos dois quartetos, atenção,
os dois tercetos fecham o soneto.

Aviso: pode o Poeta, nos tercetos,
ser livre pra rimar. Pronta a “lição”,
agora é só botar no branco o preto!
_____________________________
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

Há uma lição que sem cola
pelo estudante é sabida:
na vida a melhor escola
é a grande escola da vida.
___________________________
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

LIMERIQUES URBANOS III


Professor, é com letra de mão?
Sim! cursiva nesta lição.
Quem escreve de pé
tendo no aluno fé,
é professor de profissão.
____________________________
Eliana Dagmar
Amparo/SP


Só o amor sabe de cor
esta divina lição:
– nenhuma ofensa é maior
que a grandeza do perdão!

André Kondo (O Jardim)


O prior do templo de Daitoku, em posição meditativa, aguardava o discípulo que havia cometido a profanação. No Daisen-in, estava cercado pelo venerável jardim zen. A brisa soprava, dando a impressão de que era ela quem ondulava os pedriscos que formavam a seca paisagem. Enquanto isso, um vento já corria pelos corredores do santuário, carregando a tempestuosa sentença que pesava sobre o discípulo: a morte.

Daitoku-ji não era um templo qualquer. Fundado aproximadamente em 1325, havia prosperado na época de Nobunaga e Hideyoshi, os maiores senhores da guerra que o Japão já havia testemunhado. Ambos eram duros na arte da guerra, porém, suaves na arte do chanoyxi. Dois guerreiros aficionados pela cerimônia do chá, que atingiu o requinte da perfeição em Daitoku-ji. Havia sido neste templo que mestre Sen no Rikyu recebeu o seu treinamento zen, elevando o simples ato de beber chá a uma requintada arte, um ritual para elevação da alma.

Há relatos, alguns dizem lendas, de que a fama e a importância de Sen no Rikyu elevaram o seu ego. Rikyu ostentou uma imagem de si próprio no alto do Sanmon, um dos principais portões do templo. Tal atitude custou-lhe a vida. O senhor de todo o Japão, Toyotomi Hideyoshi, guerreiro de humilde origem que havia chegado ao topo por sua sagacidade, ordenou que Rikyu extinguisse o seu ego. Condenado à morte, o seu chá esfriou, para sempre.

Ao profanador discípulo havia sido escolhida a mesma pena. Uma sentença assim proferida por um senhor da guerra até era esperada, porém, ordenada por um prior budista? Todos os monges do templo eram contra a pena de morte, porém, respeitavam sobremaneira o velho prior. Confiavam em sua sabedoria. Assim, observaram, impassíveis, o discípulo a caminho de seu fim.

O que fizera o infrator para merecer tal sentença? A profanação do sagrado jardim zen de Daisen-in, do complexo de templos de Daitoku, era o motivo.

Ante a chegada do condenado, o prior se levantou.

— Primeiro, gostaria de explicar, mais uma vez, a importância de nosso jardim — disse o prior.

O discípulo ruborizou. Mais uma vez, teria que se confrontar com seu ato de vandalismo, sua vergonhosa ação.

— Veja, este jardim não é apenas um monte de pedriscos esparramados pelo pátio, como muitos leigos o veem. Em cada elemento de nosso jardim encontramos uma íntima relação, que demonstra o nosso lugar no universo. Nas ondas desenhadas com os pedriscos, podemos ver o nosso vínculo com a natureza e o destino. Tudo está neste jardim: mutável, imutável, efêmero, eterno… E tudo deve fluir... em equilíbrio...

Com o coração apertado, o discípulo ouvia com atenção.

— Estamos diante do Grande Oceano... Além, no fim da jornada, podemos ver a árvore Bodhi, debaixo da qual o satori foi alcançado e o Buda abençoado com a iluminação.

O vasto pátio coberto de pedriscos, cuidadosamente dispostos como ondas de um grande oceano era um importante local de meditação. Após algumas horas naquele recanto, o prior pediu que o discípulo o acompanhasse pela lateral do Hojo, levando-o até outra parte do jardim: o Mar Interno.

Ali, demoraram-se por mais algumas horas, meditando. Em seguida, se dirigiram para outro canto, onde uma "cascata" de pedriscos brancos descia de uma rocha que representava o mítico Monte Horai. Circundando o sagrado monte, outras rochas representavam o céu e a terra.

Todos os pedriscos do jardim pareciam fluir, naturalmente, como a água: o Grande Oceano, o Mar Interno, a Cascata... o Rio da Vida. Ao chegar nas proximidades deste seco rio, o discípulo passou a se sentir mal. Estava próximo da prova de seu crime, de seu ato de leviandade que o condenara. Prior e discípulo demoraram-se por mais algumas horas diante de uma rocha em forma de barco que singrava o rio de pedriscos. Finalmente, com mais três passos apenas, depararam-se com algo que quebrava a harmonia de todo o jardim.

— E isto, creio que você poderia explicar melhor o que seria — disse o prior ao discípulo.

As mãos trêmulas, os olhos lacrimosos, o coração palpitando, a vergonha, a profanação, o indigno ato... O discípulo caiu de joelhos, diante de sua falha realizada por puro capricho do ego. Em meio a correnteza do rio de pedriscos, represada pelo "Muro", que representa o ponto em que todas as humanas dúvidas convergem, havia um elemento alheio que destoava de tudo. Atravessando o muro, os pedriscos voltavam a fluir no Rio da Vida, mais largo...

Porém, antes do "Muro", o ego.

— Compreendeu o seu ato? Compreendeu que tudo neste jardim é a representação pura da realidade que nos cerca? — perguntou o prior.

— Sim, mestre.

— Sabe que todo ato gera uma consequência...

— Sim.

— Está preparado para morrer? Extinguir o seu ego?

O discípulo, com lágrimas nos olhos, concordou com a cabeça, compreendendo a sabedoria do prior. E cumpriu a sentença, simplesmente, apagando o próprio nome, traçado com o dedo nos pedriscos do jardim.

Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLIX) "O olho da rua vê"


Cecy Barbosa Campos (o Bom Ladrão)


Pensava em suas crianças. Magrinhas e famintas não davam sossego à mulher que, de jovem viçosa e decidida, passara a uma sombra do que fora, com os olhos sem brilho, desgastada pela lida com os sete filhos e três abortos.

As palavras do Zé ecoavam em seus ouvidos: "Olha cara, tu é bobo. Pega um carro, leva pra oficina do Manolo, que ele te dá um dinheiro bom pelo desmanche".

Hesitava. Afinal, nunca fizera nada grande. Só pequenos furtos, quando pegava uma carteira distraída em cima do balcão, umas frutinhas no supermercado. coisas pequenas que o deixavam em perigo e não resolviam nada. Tinha, sim, que ter coragem e fazer alguma coisa que melhorasse a sua situação.

Enquanto pensava, tomou uma pinga e observou o casal que chegara no Monza cinza, estacionado quase em frente ao bar, em local proibido.

O homem começava a ficar embriagado, e a mulher, rindo muito, parecia mais "alegre" do que ele.

Saindo do bar, parou para olhar o carro e viu que a chave estava na ignição. Achou que era um sinal, e que não poderia perder a oportunidade.

"Pegar o carro e levar pro Manolo. Tudo ficaria resolvido em pouco tempo".

O motor estava bom, e o Monza, apesar de velho, funcionava perfeitamente. Empolgado, pisou no acelerador sentindo-se um herói até que, quase chegando, assustou-se com um choro de criança.

Num primeiro impulso, achou que era um dos seus filhos e, olhando para trás, verificou que, deitado no banco, estava um bebê que acordara assustado, provavelmente, pelos solavancos da estrada e as curvas bruscas que o motorista fazia.

Firmino parou o carro imediatamente. Deixou a direção e pegou o bebê, embalando-o carinhosamente. Como pai experiente, verificou que a fralda precisava ser mudada e, olhando melhor, viu que no carro havia uma sacola. Abriu-a e encontrou o que necessitava para a limpeza e troca. Acabada a função, deu conta do que acontecera: o casal resolveu beber e deixou a criança sozinha no carro. Revoltado, pegou no celular e chamou a polícia informando que deixaria o carro naquele local, a estrada que levava ao Buraco do Bode, e que o resgate devia ser rápido, pois havia uma criança no carro.

Ajeitou o bebê o mais confortavelmente possível e saiu correndo, pois não poderia ser encontrado por ali.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Caldeirão Poético XXXIII


AFONSO LOPES DE ALMEIDA
(1888-1953)

VOLTA À TERRA


Abre os braços, do Céu, à minha alma, o Cruzeiro...
Abre os braços de luz... Vou chegar! Vou chegar!
O vento já me traz das florestas o cheiro,
E é um balanço de berço o balanço do Mar...

Longe como eu do ninho, é para o ver primeiro
Que aquela ave levanta o vôo e sobe no ar.
Volta agora este Mar das terras de Janeiro,
Onde rio se fez, para as poder entrar!

É meu, todo, este Céu! É meu este braseiro
Em que se queima o Sol à luz crepuscular!
És meu, vento de terra, amoroso e fagueiro!

Na lua que desponta, olhai! vem o meu luar!
E abro os braços também, como faz o Cruzeiro,
A esta Lua, a este Céu, a este Vento, a este Mar!

ALCEU WAMOSY (1895-1923)

DUAS ALMAS


Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

AUTA DE SOUSA (1876-1901)
NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

LEGADO


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

GILKA MACHADO (1893-1980)

NONA REFLEXÃO


Amei o Amor, ansiei o Amor, sonhei-o
uma vez, outra vez (sonhos insanos!)...
e desespero haja maior não creio
que o da esperança dos primeiros anos.

Guardo nas mãos, nos lábios, guardo em meio
do meu silêncio, aquém de olhos profanos,
carícias virgens, para quem não veio
e não virá saber dos meus arcanos.

Desilusão tristíssima, de cada
momento, infausta e imerecida sorte
de ansiar o Amor e nunca ser amada!

Meu beijo intenso e meu abraço forte,
com que pesar penetrareis o Nada,
levando tanta vida para a Morte!...

GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969)

SILÊNCIO

Silêncio - voz do amor, voz da alma, voz das coisas,
suave senhor dos céus, dos claustros e das grutas;
quebra-te o encanto o vôo, em trêmulas volutas,
do bando singular das lentas mariposas!

Silêncio - alma da dor de pálpebras enxutas;
reino branco da paz, dos círios e das lousas;
quando me calo, és tu, só tu, Silêncio, que ousas
falar-me, e quando falo, és só tu que me escutas!

Irmão gêmeo da morte, ó mística linguagem
com que se fala a Deus! Meu coração selvagem
segreda-te a impressão que à flor da alma resvala:

e tu lhe fazes, mudo, a confidência triste
que te faz a mudez de tudo quanto existe,
porque és, Silêncio, a voz de tudo o que não fala!

JORGE DE LIMA (1893-1953)

PAIXÃO E ARTE

Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O Verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum amor inocente, (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.

MARTINS FONTES (1884-1937)

ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA


Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro
De prata. E, entre cem joias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E ao fim beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.