domingo, 5 de janeiro de 2020

Antonio Cabral Filho (10. Colar de Trovas) Tema: Esperança


01
Haverá  sempre esperança
onde houver cheiro de flores,
inocência  de criança
*e sonho de trovadores!*
Neiva Fernandes
(RJ)

02
E sonho de trovadores,

servidos na caminhada,
em que só vão sonhadores,
*sedentos pela chegada.* 
Antonio Cabral Filho
(RJ)

03
Sedentos pela chegada

águas tranquilas buscando,
e ao longo da caminhada
*a muitos dessedentando*.
Gilberto Cardoso
(RN)

04
A muitos dessedentando

na busca, a sede matar;
pois o líquido dosando.
*tem saúde  salutar.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

05
Tem saúde salutar,

só assim talvez alcança,
futuramente um lugar.
*Todos cheios de esperança.*
Adriano Bezerra
(RN)

06
Todos cheios de esperança,

úteis ao mundo seremos.
Com coração de criança,
*muita coisa mudaremos.*
Gilberto Cardoso
(RN)

07
Muita coisa mudaremos.

Só depende da atitude.
Exigirá que empenhemos,
*toda nossa juventude*.
Antonio Cabral Filho
(RJ)

08
Toda nossa juventude,

tem tempo de validade,
dependendo da atitude
*nos resta apenas saudade.*
Neiva Fernandes
(RJ)

09
Nos resta apenas saudade,

se esperança e salvação,
mais solidariedade,
*nos negarem uma mão.*
Antônio Cabral Filho
(RJ)

10
Nos negarem uma mão

é falta de consciência,
luz e amor no coração
*do ser que não tem decência!...*
Luiz Cláudio
(RN)

11
Do ser que não tem decência

devemos manter distância,
ente sem nenhuma  essência
*mostrando só petulância*.
Maria Zilnete
(RJ)

12
Mostrando só petulância,

jamais irá aprender.
O homem com sua arrogância,
*a esperança vai perder!*
Gleyde Costa
(RJ)

13
A esperança vai perder

somente quem  não tem fé,
é  preciso ver pra crer,
*quem for como São Tomé!*
Aurineide Alencar
(MS)

14
Quem for como São Tomé

terá sempre um bom Cristo,
para reforçar a fé
*que precisa pelo visto.*
Prof. Roque
(RS)

15
Que precisa pelo visto,

que seja sem confusão,
que o melhor seja previsto,
*na Santa Paz meu irmão.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

16
Na Santa paz meu irmão

com  esperança em nosso lar
eu peço a Deus proteção
*para Ele nos ajudar.*
Neiva Fernandes
(RJ)

17
Para Ele nos ajudar,

medito com atenção.
Esperança no meu lar,
*almejo com devoção!*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

18
Almejo com devoção

com  muita fé e esperança,
com sincero coração
*alegre feito criança.* 
Madalena Cordeiro
(ES)

19
Alegre feito criança,

levo amor no coração,
distribuindo esperança,
*a quem ama seu irmão*.
Antônio Cabral Filho
(RJ)

20
A quem ama seu irmão

o bem sempre lhe deseja,
guardando-o no coração
*com esperança que almeja!...*
Luiz Cláudio
(RN)

21
Com a esperança que almeja ,

O ser humano é feliz.
É muito grande a peleja ,
*o que o objetivo condiz !*
Gleyde Costa Campos
(RJ)

22
O que o objetivo condiz

o que temos na lembrança
quando o coração nos diz...
*Haverá  sempre  esperança.*
Neiva Fernandes
(RJ)


Fonte:
Trovadores do Brasil

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Sgiathán Dearg e a filha do rei do Mundo Ocidental

Noinín, filha do rei do Mundo Ocidental, saiu, um dia, a passear e, enquanto caminhava, viu o pássaro Sgiathán Dearg e considerou que era o mais belo que jamais se lhe deparara.

— Seria feliz se pudesse estar com esta ave! — exclamou.

Sgiathán Dearg esvoaçou em torno dela durante uns momentos, aproximou-se mais e acabou por desaparecer no bosque.

A filha do rei saiu a passear no dia seguinte, o pássaro tornou a aparecer e ela pensou que era ainda mais belo e tentou apanhá-lo, mas não conseguiu. No terceiro dia, o pássaro esvoaçou ainda mais perto. — Gostava tanto de ter esta admirável ave! — exclamou ela.

Sgiathán Dearg aproximava-se cada vez mais. Por fim, logrou apanhá-lo, acariciou-o, beijou-o e levou-o para casa.

Em seguida, pediu que lhe levassem uma gaiola espaçosa, onde o introduziu e conservou no seu quarto, dando-lhe de comer todas as iguarias que ela própria consumia.

A noite, a criada entrou no aposento e, na gaiola, viu um homem em vez de um pássaro. Quando ela se retirou, Noinín voltou-se para Sgiathán Dearg, que lhe explicou:

— Estou sob a influência do feitiço da rainha de Gleann Dearg. Todas as manhãs sou um pássaro, mas à noite recupero a minha forma normal e converto-me em homem. Fico aqui empoleirado e constrangido, entregue ao meu sofrimento. Liberta-me da gaiola, ainda que por pouco tempo, até ao amanhecer.

Ela abriu a porta da gaiola e conversaram até ao romper da alvorada, quando o homem voltou a transformar-se em pássaro, mas não voltou para a gaiola, e a jovem não conseguiu apanhá-lo. Manteve-se no quarto e, quando abriram a porta, saiu disparado e ficou a esvoaçar em redor do castelo.

No quarto dia, Noinín foi passear, para ver se conseguia voltar a apanhá-lo. Estava ansiosa e não se sentia tão bem-disposta como em outras ocasiões. Seguiu atrás de Sgiathán Dearg, rapidamente, esforçando-se por capturá-lo. Assim continuaram durante grande parte do dia, até que chegaram a uma colina. Perto do topo, ela esforçou-se mais uma vez por apanhá-lo, mas, de repente, a encosta abriu-se e ele desapareceu através da abertura, que se tornou a fechar com prontidão. A filha do rei ficou assim abandonada num lugar que não conhecia, pelo que passou a noite na colina, com a esperança de que Sgiathán reaparecesse na manhã seguinte.

No entanto, amanheceu, e o pássaro continuava ausente. Noinín achava-se perante um grande problema e dominada por profunda angústia, consciente de que os pais e demais familiares deviam estar alarmados com a situação. Por fim, começou a afastar-se da colina e caminhou durante todo o dia, até que começou a anoitecer e avistou um belo castelo ao longe. Ao aproximar-se, deparou-se-lhe uma porta enorme ricamente ornamentada, alta e magnífica. Bateu e surgiu uma mulher, que inquiriu:

— Que pretendes, minha filha? Para onde te diriges?

— Venho pedir alojamento para esta noite.

— Tê-lo-ás, assim como jantar, pois deves estar faminta, depois de um longo percurso. És forasteira nesta região, onde passa muito pouca gente. Queres dizer-me como te chamas?

— Sou do Mundo Ocidental e o meu nome é Noinín.

— Que te trouxe para estes lados?

A jovem descreveu toda a história, sem omitir um único pormenor — como conhecera Sgiathán Dearg e o capturara, para depois o perder e perseguir pela segunda vez, vagueando sem rumo definido, até que avistara o castelo.

— Queres entrar para o meu serviço? perguntou, no final, a mulher.

– Sim.

Não se sabe que salário Noinín pediu, nem se chegou a receber algum, porém a mulher explicou-lhe:

— Trabalharás para mim durante um ano e um dia. Suponho que não sabes a quem pertence este castelo!

— De fato, não faço a menor ideia.

— Trata-se da casa do vento e eu sou a rainha do vento.

Quando tinham decorrido três quartas partes do ano, Noinín teve um filho, mas cumpriu todo o período combinado. A mulher nunca lhe encontrou qualquer defeito, nem falou mal dela. No entanto, no termo do prazo, decidiu:

— Não podes continuar aqui. Não quero uma criança a crescer em minha casa. Tens plena liberdade para ir para onde quiseres e trabalhar noutro lugar. — Fez uma pausa e acrescentou: — Ofereço-te este anel. Quando olhares através dele, não terás fome nem sede e verás tudo à tua volta, esteja perto ou distante, à vista ou oculto.

Noinín partiu com o filho e viajou até quase anoitecer. Nessa altura, olhou através do anel, descobriu um elegante castelo e dirigiu-se para lá. Do lado da frente, havia uma porta e um belo prado. Ela bateu e apareceu uma mulher de aspecto agradável.

— Que pretendes?

— Preciso de alojamento por uma noite. Venho de longe e estou muito cansada. Não avistei qualquer casa, além desta.

— Terás alojamento, porque é muito pouco frequente aparecer alguém. Entra. — Noinín seguiu-a, e ela perguntou: — Diz-me quem és.

— Noinín, do Mundo Ocidental. Procuro uma casa para servir.

— Durante quanto tempo?

— O que desejares, mas espero que me seja permitido conservar o meu filho junto de mim.

— Com certeza. Porque não?

— Ele não provoca problemas — assegurou a jovem. — Basta dar-lhe de comer. Não é travesso nem incomodativo.

— Ficarás ao meu serviço um ano e um dia — decidiu a mulher.

Noinín serviu na nova casa com boa vontade. O que a criança não crescia de dia, fazia-o ao longo da noite e, se não era de noite, crescia durante o dia, e ninguém pode imaginar o que aumentava.

— Sabes que casa é esta? — perguntou a mulher.

– Não.

— Não me parece bem que uma pessoa sirva sem saber onde. É a casa da lua e eu sou a rainha da Lua.

As relações entre ambas eram satisfatórias e Noinín uma serviçal excelente: conhecia todos os trabalhos e executava-os o melhor que sabia. Quando transcorreu um ano e um dia, a rainha declarou:

— O teu filho está a crescer muito depressa e tudo indica que será enorme. Não podemos permitir que uma pessoa assim viva mais tempo nesta casa.

— Então, tenho de partir — admitiu Noinín -, pois não posso continuar aqui sem ele.

— Antes de saíres, dar-te-ei um presente. — A mulher entrou num aposento do castelo e reapareceu com um gorro com desenhos e uma varinha. — Pode acontecer ires a um lugar e não saberes onde estás ou como sair de lá. Se tal acontecer, basta pores este gorro e dizer "Desejo encontrar-me neste ou naquele sítio, ou nesta ou naquela rua", para te veres lá imediatamente. Com a varinha, podes abrir caminho através de qualquer lugar ou restituir uma pessoa enfeitiçada à sua forma anterior.

Noinín aceitou o gorro e a varinha, abençoou a mulher e partiu. Durante todo o dia não viu senão páramos e lugares silvestres. Ao anoitecer, lembrou-se do anel que tinha consigo desde que estivera na casa do vento, olhou através dele e avistou um grande castelo, com um pátio nas traseiras e um prado em frente. Quando lá chegou, bateu à porta, que foi aberta por uma mulher formosa.

— Que pretendes ou esperas encontrar aqui?

— Alojamento para esta noite, se estiveres disposta a oferecer-me - respondeu a jovem.

— Dar-te-ei, porque é muito pouco frequente ver uma pessoa desconhecida nestes lados. Que idade tem o teu filho?

— Um ano, três meses e dois dias.

— Se é tão jovem, quando crescer será o maior herói do mundo. Queres entrar para o meu serviço?

– Sim.

— Agora, fala-me de ti. Conta-me tudo e com sinceridade.

Noinín narrou toda a história. No final, a mulher perguntou:

— Sabes que castelo é este?

– Não.

— A casa do Sol e eu sou a rainha do Sol.

A jovem executou perfeitamente o serviço até decorrer um ano e um dia. Não se pode descrever nem explicar como a criança crescia continuamente, nem quanto media.

— Não podemos ter um homem assim cá em casa — anunciou a rainha do Sol. — Deves preparar-te para partir, mas podes ficar mais um dia comigo. Passaste muitas dificuldades e ainda conhecerás mais do que possas imaginar, mas talvez acabes por encontrar dias melhores.

Noinín ficou mais um dia e, na manhã seguinte, viu três corvos diante da janela numa colina. Naquele momento, as aves lutavam umas com as outras.

— E uma pena ver dois matar um — disse o filho.

— Não te preocupes com os corvos — respondeu Noinín. – Não é fácil saber se convém ou não que te intrometas.

Quando anunciou à rainha que tencionava partir na manhã seguinte, esta última discordou.

— Não irás ainda. Gosto da tua companhia. Quero conversar contigo mais tempo.

Na manhã imediata, viram os três corvos pela segunda vez.

— E uma pena ver dois matar um — observou o filho.

— Já te disse ontem que não te preocupasses com isso — lembrou-lhe Noinín.

— Mas preocupo-me! Tenho de ajudar o terceiro corvo.

— Não o farás — decidiu, e, nesse dia, impediu-o de ir ter com as aves.

Mais tarde, falou com a rainha:

— Estou a causar-te mais problemas do que devia e a atrasar-me demasiado.

— Fica comigo hoje, e não te pedirei mais. Tenho algumas outras coisas para te dizer.

Mais uma vez, os três corvos lutavam, dois contra um.

— É uma pena ver dois matar um — tornou a repetir o filho. – Tenho de ajudar o terceiro.

— E difícil manter-te afastado da peleja — reconheceu Noinín, e desta vez não se opôs.

— Tenho uma irmã que afastaram de mim há muitos anos – informou a rainha do Sol. — Agora, que viajarás por lugares solitários e estranhos, abre bem os olhos para veres se a descobres. E impossível prever se voltarás a passar por aqui, mas se tal acontecer avisa-me. Dar-te-ei uma toalha de mesa que, caso necessites, te proporcionará comida e bebida em abundância. Aqui a tens.

O filho dirigiu-se à colina onde se encontravam os corvos.

— É uma vergonha dois tentarem matar um.

— Mais valia que te preocupasses contigo, em vez de vires incomodar-nos — replicou uma das aves.

— Seja como for, vou pôr termo a isto. A partir de agora, só lutará um contra um e o terceiro comigo.

O filho de Noinín lutou com um dos corvos, que voava à sua volta e sobre a sua cabeça, disposto a abatê-lo, quando o jovem lhe apontou a espada e deu uma estocada. O sangue da ave jorrou para a sua mão e, quando a agitou, atingiu outro corvo. Ato contínuo, este transformou-se no homem mais elegante do mundo. Quando o rapaz se deu conta do sucedido, disse ao segundo corvo:

— Não tenho nada contra ti que não tenha contra este.

Salpicou-o de sangue e viu que se convertia num homem como o anterior.

Noinín despediu-se da rainha e empreendeu a marcha com os dois homens e o filho. Os homens iam à frente e, quando começava a anoitecer, chegaram a uma abertura estreita numa enorme escarpa, que se fechou no momento em que eles acabavam de a transpor. Noinín puxou da varinha oferecida pela rainha da Lua e aplicou uma pancada, depois outra e finalmente uma terceira. A passagem abriu-se e ela desceu ao Mundo Inferior, à terra mais magnífica que se podia conceber. Os dois homens encontravam-se lá, na sua frente. Reataram o caminho, que se prolongou por muito tempo. Havia luz a jorros e um campo admirável, com cada zona melhor e mais admirável que as precedentes.

Noinín lembrou-se então do gorro e pô-lo na cabeça, ao mesmo tempo que dizia:

— Desejo que se abra caminho até Gleann Dearg.

Abriu-se imediatamente e eles viajaram longo tempo, não se sabe quanto, até que chegaram a Gleann Dearg, mas não podiam ver nada, porque estava tudo coberto de pó, neblina e um feitiço ofuscante. Encontravam-se esgotados e debilitados pela fome, e não se avistava comida em parte alguma. Noinín lembrou-se então da toalha que trouxera da casa do Sol e não tencionava utilizar até que se visse muito necessitada. Estendeu-a no chão e verificou que estava coberta de comida e bebida em abundância. Todos comiam com prazer, quando surgiu um cisne, que se apoderou da melhor iguaria e voou para longe. Passado pouco tempo, reapareceu e levou outra.

— Se voltas a fazer isso, utilizo a varinha — ameaçou o filho.

O cisne apareceu pela terceira vez, e descia suavemente, quando o filho de Noinín pegou na varinha e o atingiu com ela. No instante imediato, o cisne caiu no chão, transformado numa bela mulher, a irmã da rainha do Sol, que disse a Noinín:

— Esperei durante muito tempo pela chegada do filho de Sgiathán Dearg para quebrar o feitiço que me subjugava. Bem sei que te trouxe nesta direção. Agora, fica aqui. Estes dois heróis proteger-te-ão até que voltemos. O jovem e eu partiremos juntos. E partiram os dois.

— Não tardarás a ver o rei — referiu a cunhada do Sol ao filho de Noinín -, pois ele já sabe que vamos, mas não quem somos. Quando te perguntar quem és e onde vais, responderás que és o filho de um pai e de uma mãe da Irlanda do Norte, já falecidos, e viajas com a tua irmã. Procuras um lugar em que ela possa ficar a servir. Ele aceitar-me-á então para criada de quarto da filha. Tu ficarás nas proximidades, pois eu sairei a dar uma volta todas as noites. Em virtude do cargo que exercer lá, poderei inteirar-me do que se passa no castelo.

Com efeito, o rei de Gleann Dearg contratou a cunhada do Sol para ficar ao serviço da filha. No dia seguinte, a princesa e a criada saíram a passear.

— Isto é um lugar escuro e solitário — disse esta última. — Como consegues suportar a vida aqui, onde só há nevoeiro espesso?

— Não te preocupes — replicou a filha do rei. — Vem comigo, para darmos uma volta.

Andaram até chegar a um castelo, que, outrora, devia ter sido suntuoso. Na porta, havia uma aldrava, e a princesa indicou, apontando-a:

— Puxa-a. — A criada obedeceu. — Agora olha em volta.

A terça parte da planície estava iluminada com intensidade. Tornou a puxar a aldrava, e a luz propagou-se a dois terços. Ao terceiro puxão, a iluminação foi total.

— A minha mãe enfeitiça esta planície todas as manhãs para toda a gente, exceto para si própria, e permanece assim até à noite. Nessa altura, fica tão escura para ela como para os outros, mas se um homem conhece o segredo dos puxões da aldrava, pode iluminar a planície, como nós acabamos de fazer.

Na noite seguinte, a criada saiu para se encontrar com o filho de Noinín. Passearam juntos e andaram longamente, até que chegaram ao castelo parcialmente em ruínas.

— Na sua época, era suntuoso — disse ela.

— Ainda hoje se nota.

— Puxa essa aldrava, mas com força.

Ele obedeceu, e a terça parte da planície tornou-se visível.

— Torna a puxar — indicou a criada.

Desta vez, tornaram-se visíveis dois terços. Ao terceiro puxão, toda a planície resplandecia.

— Também a podes arrancar, se quiseres.

O filho de Noinín assim fez, e o feitiço de Gleann Dearg desapareceu por completo.

— Agora, puxa a deste lado da porta.

No momento seguinte, uma voz proferiu:

— Sou Fear an Fháinne. Que pretendes de mim?

— Quero que a rainha e a sua filha não voltem a enfeitiçar esta planície e Sgiathán Dearg venha imediatamente.

O poder da rainha terminou nesse momento e, pouco depois, Sgiathán Dearg encontrava-se entre eles. Quando o filho de Noinín atingiu o pássaro Sgiathán Dearg com a varinha, este transformou-se num herói mais formoso que qualquer outro homem e acompanhou-os ao lugar onde Noinín e os outros o aguardavam.

— Tinhas-me visto antes? — perguntou Noinín.

— Sim — respondeu Sgiathán Dearg. — Com certeza.

— Porque não me procuraste ou foste atrás de mim, em vez de me deixares só no mundo, a lamentar-me e a vaguear por lugares solitários?

— Não estava dentro das minhas possibilidades. Dominava-me a magia da rainha de Gleann Dearg, que me obrigava a permanecer no seu castelo como homem todas as noites, exceto três em cada sete anos. Foram essas que passei no do teu pai ou perto dele. De resto, se te encontrasse sob a forma de pássaro, que poderia fazer por ti?

— Absolutamente nada — reconheceu Noinín.

O seu filho mantinha relações excelentes com a jovem princesa de Gleann Dearg. Amavam-se muito, casaram e ficaram a viver nesse país.

— Voltemos para a nossa casa e deixemos isto ao meu filho -propôs Noinín.

— Não desejo outra coisa — declarou Sgiathán Dearg.

E puseram-se a caminho em direção ao Mundo Superior — os dois heróis que tinham sido corvos e a cunhada do Sol acompanharam-nos. Quando passaram perto da casa do Sol, Noinín sugeriu:

— Podíamos pernoitar aqui.

Assim fizeram. A rainha do Sol acolheu-os com entusiasmo, mostrando-se encantada e contente.

— Conheces esta mulher? — perguntou Noinín.

— Não — respondeu a rainha.

— Contaste-me que tinhas uma irmã que foi separada de ti há muitos anos.

— Sim, mas era então muito jovem. Não conheço esta mulher.

Noinín trouxera de Gleann Dearg a aldrava que convocava Fear an Fháinne e chamou-o.

— Explica à rainha que esta mulher é a sua irmã — ordenou-lhe.

Fear an Fháinne narrou a história, a rainha acreditou e ele desapareceu imediatamente.

— O meu marido jaz aqui convertido numa pedra — informou a rainha. — Foi a rainha de Gleann Dearg que o reduziu a essa forma. Dá-lhe saúde e força de novo. Liberta-o.

— Puxa essa aldrava — indicou-lhe Noinín. — Convoca tu própria Fear an Fháinne.

A rainha obedeceu. Ato contínuo, Fear an Fháinne devolveu ao Sol a sua força e brilho, encontrando-se perante a sua rainha, tão ágil e em bom estado como sempre.

Todos passaram a noite com alegria e prazer. Na manhã seguinte, ressuscitaram o corvo morto, o terceiro irmão. Os três homens que haviam sido corvos e lutado permanentemente na colina diante da casa do Sol eram irmãos de Sgiathán Dearg que também tinham sido enfeitiçados pela rainha de Gleann Dearg e continuariam a defrontar-se entre si, se não fossem resgatados.

Noinín regressou ao seu lar no Mundo Ocidental, acompanhada de Sgiathán Dearg e dos seus três irmãos.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

sábado, 4 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 153


Isabel Furini (Ao Amanhecer)


A. A. de Assis (Marilinda, Heroica Mulher)


Godô, que assinava Godofredo, chegou para tentar a vida na cidade nova. As ruas poeirentas assistiam ao erguimento simultâneo de centenas de casas, de madeira quase todas. Os moradores, por volta de cinco mil pioneiros, denunciavam pelo sotaque suas diferentes origens. Godô estava pronto para incorporar-se àquela aventura: vinha com algum capital, um jipe, muita esperança de enricar com a loja que planejava abrir.

No Fagundes Hotel, na Pensão Familiar e na Hospedaria Dona Chica não havia quarto disponível, tudo lotado. Godô não teve alternativa senão pedir pousada numa das casas da “zona”, quarteirão afastado do centro, onde cheirosas mulheres davam colo aos solitários do lugar. Marilinda, vasta morena de fartos cabelos negros, abriu o quarto e o coração para acolher o hóspede. Ele, se quisesse, poderia ficar ali até alugar uma casa. Pagaria cama e comida; os carinhos seriam de graça. Marilinda, por uma dessas razões que a razão desconhece mas sempre aplaude, gostara dele, assim de primeira olhada.

Em vez de alugar, Godô decidiu construir uma casa, com espaço para montar a loja na frente. Agradava-lhe, porém, a mordomia oferecida pela generosa hospedeira. Continuaria lá por uns três meses, o tempo que fosse necessário. Achava melhor do que hotel ou pensão: tinha conforto e companhia. Mais tarde, de alguma forma, compensaria Marilinda, tão bondosa era, embora bem mais Mari do que linda fosse.

Terminada a construção, Godô montou estoque (secos, molhados, armarinhos, de um tudo), mobiliou a casa, mudou, abriu a loja, formou logo promissora freguesia. Sozinho de noite, sentia saudade; convidou então Marilinda para governanta. Ela aceitou chorando de feliz, saiu da “zona”, acomodou-se na casa do amigo. Trabalhava de cozinheira, arrumadeira, balconista, lavadeira. Terminado o expediente, acalorava o repouso do patrão.

Solteiro, solteirão para bem dizer, com seus quarenta e tantos, ele jamais se casara. Por falta de tempo, dizia. Homem trabalhador, desde muito moço vinha juntando para se estabelecer num lugar de futuro. Ora se deu, todavia, que Marilinda um dia súbito embarrigou. O passado dela, mais por precisão do que por sem-vergonhice, não era lá essas coisas, desde menina na difícil vida-fácil. Mas coração puro estava ali, mulher leal, de serventia total, nunca reclamava, nada exigia, era toda uma oferta constante de trabalho e ternura ao patrão, agora futuro pai do seu primeiro filho, acidentalmente gerado.

Godô não ficou bravo não. Antes se emocionou até, com a ideia de ganhar herdeiro. Abraçou a companheira, abriu um vinho. Mas a situação dos dois não poderia continuar daquele jeito, a criança teria que nascer em lar organizado, era urgente providenciar o casamento nos conformes da lei, da fé e dos costumes, o passado dela pouco importaria.

Providenciou roupas melhores para a noiva, matriculou-a na escola para aprender as letras, as contas e os bons modos. Queria a mãe do seu filho devidamente transformada em dama,  que deveras ela  merecia,  tão  dedicada  a  ele  desde  o  dia  em  que ali chegara desospedado  e  cansado.  Era a amiga,  a  confidente,  a  servidora,  a  parceira  de  cama   e conversa. Seria injustiça descartá-la, agora que os negócios vinham rendendo e ela trazia no ventre a continuação dele, o filho não encomendado porém bem-vindo.

O bebê nasceu direitinho, e macho. A mãe queria o nome de Godozinho, o pai preferiu José, homenagem ao avô que o criara. Marilinda teve mais quatro, formando com José bonita prole de três meninos e duas meninas. A loja crescendo sempre, junto com a cidade. Godô agora barrigudo, cabeça calva, prestígio grande no lugar, vereador, diretor de várias entidades, só não o lançaram candidato a prefeito porque ele de fato não quis: temia perder fregueses. Aceitou ser presidente do orfanato: queria ajudar as crianças pobres, principalmente as filhas de mães solteiras. Heroicas mulheres, dizia, dando Marilinda como exemplo. Ela teve a sorte de se casar; outras no entanto lutavam sozinhas, marginalizadas. O orfanato iria acolher suas crianças não encomendadas mas bem-vindas, como o José. E assim se fez.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 5



1
Abaixa teu dedo em riste
e, antes que alguém, te descubra...
Sente a humildade que existe
nas cores da tarde rubra!
2
Afasta indignos clamores,
e falsas juras secretas,
que em meio a tantos pastores
há muitos falsos profetas!
3
A manhã, de alma serena,
e a tarde, de alma tristonha;
juntas, vão dosando a pena
da solidão de quem sonha!
4
Ao dedilhar minha lira,
bem cedo, ao romper da aurora,
a voz do vento suspira
gemendo como quem chora!
5
Ao fim da tarde, eu medito,
e percebo a contra gosto,
que a tristeza do infinito
se faz presente em meu rosto!
6
Ao rever a mocidade,
depois de velho e cansado...
Vi a sombra da saudade
nas cinzas do meu passado!
7
À tarde, o que me apavora,
é ver que a melancolia
nos meus olhos também chora
nas horas finais do dia!
8
Buscando cores mais belas,
Deus ouvindo os meus apelos...
Pintou brancas aquarelas
nas telas dos meus cabelos!
9
Carrego em minha mochila,
um brinquedo, amigo e irmão:
Meu pião, que ainda cochila
quando gira em minha mão!
10
Carro-de-bois, teu gemido
fez no sertão nossa história;
teu canto triste e sofrido
é culto em nossa memória!
11
Cerejeira, não se zangue,
que as suas cores florais,
têm a cor rubra do sangue
da luta dos samurais!
12
Com vingança não se encerra
tudo que o mundo desfaz...
Em vez de pactos de guerra
façamos tréguas de paz!
13
Corrupção - é o lado injusto
da mente perversa, insana,
que esquece o preço do custo
do resto da raça humana!
14
Cruzando nossos destinos,
nossas mãos, guardam segredos,
que meus dedos peregrinos
vão revelando em teus dedos!
15
Descalça vai para a escola,
a menina, e não se cansa...
leva sonhos na sacola
e em cada passo a esperança!
16
É bem mais pesada a cruz
que arrasta o velho andarilho,
quando o olhar quase sem luz,
é a luz dos olhos do filho!
17
Guardo esta velha cartilha
que foi luz dos olhos teus,
como centelha que brilha
nas trevas dos olhos meus!
18
Esquece a angústia incontida,
ama esse doce quebranto;
que em cada etapa da vida,
há lágrima, há riso e pranto!
19
Jangada - nos teus acenos,
não há sinais de maldade...
Mas em teus gestos serenos,
oceanos de saudade!
20
Mantém as mãos estendidas,
não firas outros irmãos...
Vê na cruz, que há mãos feridas
pelo perdão de outras mãos!
21
Mesmo por rumos incertos,
com Deus, fiz minha aliança:
Fazer dos braços abertos,
a grande cruz da esperança!
22
Nos braços de alguém que sonha,
ouço uma voz aos pedaços
de uma viola tristonha,
com saudade de outros braços!
23
O pão da vida é melhor,
e a massa cresce e se espalha,
tendo o sabor do suor
do rosto de quem trabalha!
24
O velho ancião, em seus passos,
já se arrasta entre os escombros,
como quem se entrega aos braços
da cruz que pesa em seus ombros!
25
O vento que beija a flor,
no galho onde a flor se arrancha,
nem deixa marcas no amor,
nem deixa mágoas nem mancha!
26
Quando a noite me tortura,
e a solidão me aquartela,
o vento triste murmura
soletrando o nome dela!
27
Quando a paixão me incendeia,
entre os gradis do meu teto...
Apago a luz da candeia
e acendo o fogo do afeto!
28
Quando, no amor, eu me aperte,
começo a fazer resumos...
Em busca de um rumo certo
para o amor que não tem rumos!
29
Sabiá, teu triste canto,
no alçapão que te prendeu,
em mim, dói do mesmo tanto
que em ti, tanto já doeu!
30
Se a seca, com seus ressábios,
deixa mil sonhos vazios...
Decreta a morte nos lábios
das margens secas dos rios!
31
Se há heróis, que se eternizam,
sendo sombras de outros sóis...
Na vida, todos precisam,
gravar seus atos de heróis!
32
Se placas mais luminosas
dão brilho a lutas inglórias...
Há derrotas dolorosas
que ofuscam falsas vitórias!
33
Sino!... Por que tanto alarde?
Há mais pranto em teu cantar...
Se és mesmo o pastor da tarde,
a tarde não quer chorar!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó/RN: Ed. do Autor, 2018.
Livro enviado pelo autor.

Rachel de Queiróz (O Quente e o Apertado)


Sempre defendi com paixão a teoria de que o homem não nasceu para viver nestas imensas cidades — formigueiros onde se concentra. Que a natureza humana pede espaços abertos, as distâncias curtas, os ares limpos, o viver natural do campo.

Mas outro dia essas minhas crenças — que na verdade exprimem as preferências mais veementes do meu coração — viram-se abaladas depois da leitura de um artigo não assinado, em jornal. Dizia o anônimo articulista que, ao contrário do que se clama, o homem não gosta de viver no campo, realmente detesta viver no campo. Que o homem acima de tudo é um animal gregário e só lhe apraz andar em bandos e enxames, como formigas ou abelhas.

A gente pensando — vai ver que é isso mesmo. O maior castigo que se pode impor a um homem é a solidão. Pior que os açoites ou correntes, há o castigo intolerável: o confinamento solitário. A natureza profunda do ente humano repugna ver-se isolada do convívio dos seus semelhantes, e o pior de todos os castigos é aquele que fere a nossa natureza profunda.

Vê-se aquele horror de pessoas amontoadas nas horas do rush nos trens da Central — é horror sim, mas logo se descobre que as pessoas gostam daquilo. Senão, davam um jeito. Não se dá jeito a coisas mais difíceis? Mas sentir-se amontoado, compactamente aglutinado, perdida a nossa identidade dentro do grupo, disso, obscuramente é que se gosta.

Que é que o homem entende por divertimento? Carnaval, procissão, barraquinha, quermesse, parada, baile: — aperto, multidão.

Recordo uma noite de carnaval no velho Highlife, tanta gente pulando no salão que dava para desmaiar. Chamamos nosso primo que viera conosco:

— Vamos para o jardim, aqui está quente e apertado demais!

E o primo, enxugando o suor do rosto, vermelho e sem fôlego, deixando-se arrastar por um tentáculo de cordão que ia passando perto:

— Mas eu gosto é de quente e de apertado!

É isso a gente: o quente e o apertado.

O camponês vive nos seus matos e só tem uma ideia: fugir dali, largar aquelas brenhas e aquela solidão, procurar a cidade, a aglomeração humana. Então deixa o sertão e a serra e se tocam todos, ele e os demais, para Rio e São Paulo, qualquer cidade grande, em procura de vida melhor, sim, mas principalmente em busca daquela atração maior de todas: a pululante companhia humana.

Aliás, pensando bem, a gente só se engana com isso porque quer. Desde os começos do tempo que o homem se agrega, se amontoa. Partindo do casal logo se chega à família, à tribo, à horda, ao povo, à nação, ao império. Quanto mais gente, melhor. O objetivo é congregar, uns porque aspiram a dominar os mais, que aceitam ser dominados conquanto a dominação lhes permita continuarem como unidades do rebanho. Rebanho: está aí o que o homem gosta de ser. Inventa palavras bonitas, nacionalismo, catequese, divisão dos frutos da civilização; mas o que ele quer mesmo é a proximidade, o toque, o cheiro, o convívio do chamado próximo. Bem próximo. A inefável promiscuidade.

Desde o índio. Toda a mata é deles, são uns poucos milhares, às vezes poucas centenas. Porque não se espalham para a caça e a pesca cada um com o seu arco e o seu landuá? Qual, têm que viver amontoados, juntam-se em ocas coletivas onde a tribo inteira dorme mais apertada do que marinheiros num porão de navio.

E as cidades antigas, dos hititas à Idade Média? Em qualquer cabeça de morto levantavam um muro em círculo e toca a apinhar gente ali dentro, As ruas eram corredores, os andares se trepavam uns sobre os outros. Não foram os americanos que inventaram as moradas coletivas, superpostas indefinidamente: já as havia no burgo medievo, já as havia em Roma e na Babilônia. Os americanos, dispondo de melhor técnica, apenas lhes aumentaram a altura.

E, falando em americano — por que dispondo eles de toda a vastidão do continente, foram se amontoar aos milhões dentro da pequena ilha de Manhattan, entre os dois braços de um rio? E de tal forma se multiplicaram e comprimiram que, literalmente, espirraram para o ar? Não foi necessidade de defesa, nem escassez territorial, nem riqueza especial daquele solo — ali eram apenas uns alagadiços doentios. Foi mesmo a atração da promiscuidade.

E favela? Por que, tendo em redor o morro inteiro, os barracos se apertam uns sobre os outros num espaço mínimo?

E rei? Pra fugir à solidão da grandeza, reúne multidões na sua corte. O palácio de Versalhes era uma aldeia formigante.

É inútil clamar e reagir contra a megalópole, pois para ela é que o mundo anda. Só quem ama o campo e deseja viver no mato em solidão, são alguns poucos excêntricos, misantropos, intelectuais sofisticados. O resto da massa humana, Deus lhe botou na alma o mesmo instinto gregário da abelha, que só sabe, só quer viver concentrada na colmeia, cada uma no seu alvéolo. Nem que morra por isso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 152


Nota:
A busca da chamada Terra Sem Mal é uma constante no jeito de ser e da concepção de mundo do povo Guarani. É um lugar intocado onde não existe nem rivalidades, violência e falta de reciprocidade. Um espaço mítico onde o teko porã (“bom proceder”) predomina em relação ao teko marã (“mal proceder”) e o mba’e meguã (“coisa má”) simplesmente inexiste. (Fonte: Terra sem Males)

Carolina Ramos (O Perdão)


O homem olhou-se no espelho, Não gostou do que viu. Por mais boa vontade que tivesse, não poderia deixar de constatar que o visto, não era aquilo que desejava ver! Estava velho! Velho, sim! Quantos anos teria?! Nunca se detivera em pensar nisto!

A verdade é que já nascera velho, barba branquinha como a neve… e que branquinha sempre seria, como se verões e primaveras jamais houvessem passado por ele.

Apertou entre os dedos o anel de gordura que lhe circundava o ventre e acrescentou a contragosto: — Velho e barrigudo! — péssimo binômio, abominado até mesmo pelos menos vaidosos. Reagiu em tempo: — Velho, sim, porém, nem tão barrigudo como o personificavam por aí, estufado de múltiplos enchimentos ao redor da cintura, a simular uma obesidade exagerada, que, na verdade, não era sua!

Detestava os papais-noéis que badalavam sinos às portas das grandes lojas, a arrematar a missão com aquele grotesco Ho… ho... ho!, sempre forçado e inoportuno! Todos eram de meia idade, tentando simular uma velhice robusta, que não chegava aos pés da sua, transpirando em bicas, dentro daquele casacão vermelho, acolchoado, pés metidos naquelas botas negras de cano alto, sem dispensar, é claro, as barbas postiças, nem sempre impolutas quanto às que ele penteava agora frente ao espelho. Todos, sem exceção, empenhados em simular a simpatia bonachona, que o “Bom Velhinho" deveria ter, para a todos conquistar.

Papai Noel verdadeiro, olhou-se novamente ao espelho. Viu-se cansado! Cansado como realmente estava! Pernas pesadas, corpo doído, desejoso de atirar-se numa poltrona, entregue a uma soneca sem fim!...

Pela primeira vez, não sentia ânimo para se desincumbir da tarefa que, durante toda vida, a cada dezembro, aguardava com entusiasmo e carinho, saudoso do sorriso das crianças à espera de sua chegada. Depois de tantos anos de dever cumprido, doía-lhe na alma a constatação de que o mundo repudiava o sonho, roubando à inocência das crianças, aquela fantasia, tão pura, do velhinho com um saco cheio de presentes para distribuir entre aquelas que se comportavam bem, durante o ano todo!

Chamavam-no agora de velhinho atrevido, malfeitor, usurpador das glórias natalinas, com suas bochechas coradas e sadias, que atraiam as atenções, não só dos pequeninos, mas, também, de famílias inteiras, a cercar sua figura de carinhos, fazendo dele alvo das alegrias de infinitos Natais, em detrimento do objetivo principal, que era lembrar o sublime nascimento do Menino Jesus!

Coração retalhado e cheio de angústia. Papai Noel indagava a si mesmo se acaso, não seria mesmo aquele velho atrevido, que se insinuava nos lares, a eclipsar as homenagens pertencentes ao Santo Menino, adormecido no presépio, e, por ele tanto amado?! Se assim fosse, não haveria dúvidas — era, mesmo, um grandessíssimo ladrão!

Batia no peito contrito: — Sim, talvez fosse mesmo um desprezível ladrão! E dos piores! — Roubara... e continuava a roubar, nada menos que, o Espírito do Natal!

A dor de consciência o exauria. Sugava-lhe as forças! Mas, o senso do dever o impelia a continuar. As crianças esperavam por ele. Precisava terminar de vestir-se para a longa viagem.

Lá fora, as parelhas de renas, atreladas ao trenó, impacientavam-se, pisoteando a neve e sacudindo os guizos, para chamá-lo ao dever.

Papai Noel procurou apressar-se! As pernas cansadas, enfiadas nas botas pesadas como chumbo, tentaram arrastá-lo até o trenó. Mas... a noite, fria, chegou primeiro, envolvendo-o com seu manto bordado de estrelas!

Papai Noel dobrou os joelhos e estendeu-se no alvo lençol da neve macia. Adormeceu... e só acordou no céu!

Naquele Natal, as crianças de todo o mundo regalaram-se com os presentes, deixados por seus pais nos sapatinhos, dispostos sobre o fogão, antes de irem para a cama.

Conformado, Pai Noel sentiu que não fizera falta! Em troca, tinha agora ao seu redor uma legião de anjinhos irrequietos a lhe pedir histórias, encantados com o seu riso franco, sem o costumeiro Ho... ho... ho!

Mas... de repente, aquelas bochechas coradas empalideceram! Ficaram mais brancas que as brancas barbas que as circundavam! O riso patético foi engolido - Os olhos tristes do Papai Noel baixaram, confusos, assumindo o peso daquela imensa culpa, acumulada em toda sua longa jornada! É que uma Senhora, muito linda, vinha em sua direção, caminhando sobre as nuvens, trazendo pela mão um Menino também de beleza inconfundível!

O velhinho dobrou os joelhos ante os dois seres que se aproximavam e, sem procurar esconder o constrangimento, murmurou em voz quase inaudível:

— Perdão, Jesus... perdão! Juro que eu não queria roubar nada... nada mesmo! Mas… mesmo sem querer… parece que acabei roubando!

No entanto, para sua surpresa, o Menino de olhos ternos, parecia não ouvir o que aquele homem lhe dizia. Estendia-lhe a mão para que se erguesse e, com voz doce, quase implorava:

— Papai Noel por favor, me conta uma história... conta?

Ao colo de Sua Santa Mãe, o Menino deleitou-se, encantado como qualquer criança de sua idade, a ouvir, atento, a voz, trêmula e cheia de emoção, que começava a contar:

— Era uma vez... um velhinho, muito velhinho mesmo... que, a cada fim de ano, queria ajudar para que todas as criancinhas fossem felizes, pelo menos por uma só noite! E, para realizar o seu sonho, o bom velhinho escolheu a mais bela de todas as noites, a Noite de Natal! Ou seja, aquela noite maravilhosa, em que, há muito tempo, nascera um Menino muito especial. Aquele Menino chamava-se Jesus e trazia consigo uma grande missão, que era dar Sua vida, pela salvação da humanidade!

Maria, coração angustiado por terríveis lembranças, acariciava de leve a cabecinha do Filho - temerosa de que tudo pudesse acontecer outra vez!

Finda a história, o Menino adormecera… guardava ainda nos lábios o esboço de um sorriso feliz!

Papai Noel engoliu um soluço de emoção, sentia-se perdoado!... Mergulhou o corpo cansado no fofo colchão de nuvens... e adormeceu, feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 9 - Terceira Idade


Os velhos morrem porque já não são amados 
(Montherlant - Paris/França, 1896 - 1972)

Uma das formas de se apreender se um povo exercita de fato a cidadania, é verificando como este povo trata o velho, que se convencionou chamar de terceira idade. Pensamos que este tema ainda é tratado com ambiguidade. Por um lado, há os que não têm o menor respeito pelo idoso, por outro, há os que exageram, tratando os velhos de uma maneira piegas.

Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam... Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade (Paulo Mendes Campos).


Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a SI mesmo governar!
A. A. de Assis - PR

Para o trovador, a velhice é constantemente associada à saudade:

Sempre que a praça atravesso
curvada ao peso da idade,
por onde passo eu tropeço
num canteiro de saudade…
Ercy Maria Marques - SP

Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela.
A. A. de Assis - PR

Os anos trazem cansaços,
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice até o fim.
José Lucas de Barros - RN

Outras vezes, a velhice é também associada à tristeza e morte dos sonhos:

Vai findando a mocidade
e, nos meus dias tristonhos,
em surdina, uma saudade
chora a morte dos meus sonhos...
Izo Goldman - SP

Depois de muitas andanças,
cansado de tanta lida,
hoje vivo de lembranças,
juntando os cacos da vida...
Raimundo Andrade de Paiva - CE

Mas os sonhos não envelhecem, ou não deveriam envelhecer. Por mais que se tornem difíceis de serem realizados, não devemos abandoná-los.

Um sonho de juventude
não morre nunca, eu suspeito,
pois me assusta a inquietude
que ainda carrego ao peito.
Gonzaga da Silva - RN

Beirando a terceira idade
me aproximando do fim…
Vejo em grande atividade
a criança que há em mim.
Francisco Macedo - RN

Não importa a face externa
do corpo que envelheceu:
juventude é sempre eterna
no sonho que não morreu.
Antônio Bispo dos Santos - RJ

Se a mocidade se afasta,
não julgue a vida tristonha.
- A ação do tempo não gasta
o coração de quem ama!
Aparício Fernandes - RJ

Em outros momentos, a velhice é vista com mais naturalidade e até com certo entusiasmo:

Minhas netas, sempre rindo,
são meu alegre evangelho:
- musgo verde revestindo,
de esperança, um muro velho!
Lilinha Fernandes - RJ

Mas sociedades em que a preocupação com a produção de bens materiais não é um fim em si mesmo, o velho é visto como um ser que acumulou experiência e sabedoria e, portanto, tratado com mais respeito e dignidade. É o que está expresso nestas sábias travas:

Quanto mais a idade aumentou
e a ilusão se distancia,
a gente mais se alimenta
do pão da sabedoria.
Ercy Maria Marques - SP

O tempo tira a beleza,
rouba da gente a vaidade,
o tempo dá-nos firmeza,
sabedoria e bondade.
Nair Starling - MG

Velhice não é demência
nem é vã filosofia;
é fonte de experiência
que nos traz sabedoria.
Hélio Pedro Souza - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.