terça-feira, 14 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 239


Ruth Guimarães (A mulher que queria ser imortal)


Em certa cidade havia, há muitos e muitos anos, uma velha e rica senhora que, atacada de estranha loucura, queria se tornar imortal. Quanto mais envelhecia, mais se apossava dela o medo da morte. Rezava todos os dias e todas as noites, pacientemente, e tanto pediu a Deus que lhe concedesse a graça de não morrer que acabou conseguindo mais ou menos o que queria.

Conseguiu-o para seu mal, como se viu mais tarde.

O caso foi que um dia sonhou que um anjo de asas cintilantes descia do céu. Ela se encolheu assustada, e, ao mesmo tempo, esperançosa. Seu quarto havia se enchido de uma radiante claridade, como se de repente se tivesse transformado numa opala gigantesca brilhando ao sol. E quando o anjo falou, todas as coisas que faziam algum rumor, dentro da noite, os grilos, as aves noturnas, os carros, as pessoas que passavam falando alto ou assobiando, tudo se calou, tomado de espanto, tudo ficou escutando a mensagem do céu.

E o anjo falou:

- O senhor Deus ouviu teus rogos. Ele manda te dizer que faças construir uma igreja. Durarás tanto quanto durar essa igreja.

Disse e desapareceu.

A velha senhora acordou sobressaltada, e nem pôde mais dormir o resto da noite, de tanta impaciência. Mal o sol espiou o quarto, pelas frestas da janela, a velha se levantou e saiu. Todos a viram muito ativa o dia todo, dando ordens, arranjando empregados, indo daqui para ali, à procura de arquitetos. À tarde, soube-se que ela havia mandado construir uma igreja de pedra.

– Para que uma igreja de pedra? – perguntavam, estranhando, pois as igrejas da cidade eram de tijolo e cal, e duravam bastante, apesar disso.

E ninguém sabia dar resposta.

O espanto da gente que habitava a cidade cresceu, quando se soube que aquela velhota maluca, em vez de ficar em casa, calmamente, recostada em gostosa cadeira de balanço, contando histórias ao netinhos, ia todos os dias fiscalizar a construção da igreja, incitando os pedreiros, aos gritos:

- Andem depressa com isso. Quero ver a igreja pronta, senão morro.

Os pedreiros abriam a boca, pasmados, sem entender patavina daquele mistério.

No dia em que a igreja ficou terminada, a velha senhora deu uma festa e viram-na brincar e rir, como se fosse uma menina. E desde então ela ria muito, seguidamente, e passava com um orgulhoso ar de posse, diante da igreja de pedra, magnífica e quase eterna: a sua vida de pedra.

Os anos foram se passando, morreram todos os velhos do lugar, e só ela permanecia firme. Quando lhe vinham contar a morte de alguém, ela casquinava um risinho assim: "Oh! Oh! Eh! Eh! Eh!", como se dissesse para si mesma: "Comigo isso não acontecerá".

Com o tempo, sua família foi se extinguindo. Morreram-lhe os filhos, os netos, os bisnetos e os netos de seus bisnetos. Ela foi ficando sozinha no enorme palácio vazio, velha, velha, enrugada, estranha, irreconhecível. Não tinha mais com quem falar, pois morreram todos os seus conhecidos. E os moços, cujo espanto não tinha limites diante daquela velhinha infinita, não queriam saber de prosa com ela e tinham até medo de vê-la. A mulher já não contava os anos um por um. Contava por séculos. Fez trezentos, quatrocentos anos e depois passou a ter cinco, seis, sete séculos. Então começou a desejar e a pedir a morte, espantada com sua medonha solidão.

Porém a sentença de Deus estava dada: "Duraria quanto durasse a igreja de pedra".

Logo se espalhou pela cidade que a velha senhora tinha arranjado outra mania. Sentava-se à porta do seu belo palácio, e perguntava aos que passavam:

- A igreja de pedra caiu?

- Não, minha senhora – respondiam eles, admirados. – Não cairá tão cedo.

E ela suspirava:

- Ah! Meu Deus!

Passavam-se os anos, e ela perguntava cada vez mais ansiosa:

- Quando cairá a igreja de pedra?

- Oh, minha senhora, quem pode saber quanto tempo durarão as pedras uma sobre as outras?

E todos tinham muita raiva e muito medo dela, pois fazia tais perguntas, além de cometer o desaforo de não morrer.

A velha senhora foi, por fim, à casa do padre, contou-lhe tudo e pediu que a deixasse ficar num caixão, dentro da igreja, esperando a morte.

Dizem que está ali até agora, e reza sem parar, todos os minutos de todos os dias, pedindo a Deus que a igreja caia.

Fonte:
Ruth Guimarães (org.). Lendas e fábulas do Brasil. 1964.

Luiz Damo (Trovas do Sul) VII


A carta torna presente
na forma de comentário,
algo do seu remetente
nas mãos do destinatário.
- - - - - –

A educação nunca morre,
tal uma flor no jardim,
o seu perfume decorre
de permanecer assim.
- - - - - –

Águas turvas vão correndo
no riacho agonizante,
lentamente estão morrendo
sem chegar ao mar distante.
- - - - - –

A noite nos presenteia
com o brilho do luar,
do céu toda a luz semeia
para a terra iluminar.
- - - - - –

A terra clama indulgente
sob grande devastação
e exige controle urgente
pra evitar a perdição.
- - - - - –

Cada dia que amanhece
surge um elo na corrente,
com trabalho tudo cresce
nada acaba inconsequente.
- - - - - –

Do alto do tenro raminho
descuidado veio ao chão,
chorou por cair do ninho
o passarinho fujão.
- - - - - –

Há quem pare no caminho
à espera de uma carona,
tal a ave fora do ninho
ambiciosa e "folgadona".
- - - - - –

Já não vemos tantas matas
nem nelas águas serenas,
se ontem haviam cascatas,
hoje, lembranças apenas.
- - - - - –

Liderar com dinamismo
mesmo na pluralidade,
exige muito otimismo
e profunda austeridade.
- - - - - –

Não deixe morrer o sonho,
mas faça-o sempre florir,
seu porvir será risonho
quanto mais puder sorrir.
- - - - - –

Não mates tua saúde;
sendo à vida o dom maior,
sem drogas e em plenitude,
teu viver será melhor.
- - - - - –

Não se assuste com o avanço
que a doença tem causado,
se a morte for um descanso,
seu sonho é viver cansado.
- - - - - –

Nesta terra tem videiras,
que produzem um bom vinho,
vinho farto das torneiras
para as taças com carinho.
- - - - - –

Nos caminhos da existência
transpomos altas montanhas,
para buscar sua essência
escondida nas entranhas.
- - - - - –

O afoito passa, e sedento,
não deixa vestígio algum,
raramente fica atento
pois, vai pra lugar nenhum.
- - - - - –

O ciclo da vida ocorre
independente de cor,
tudo nasce, cresce e morre,
como o faz a meiga flor.
- - - - - –

O escritor semeia em linhas,
nas letras traça a cultura,
das palavras, sementinhas
e da escrita a semeadura.
- - - - - –

O medo se mostra estranho,
ao ser somente ansiedade.
Nenhum medo tem tamanho,
muito menos quantidade.
- - - - - –

Ontem, nas matas estavam,
mil canários e outros mais,
hoje, apenas uns restaram
registrados nos anais.
- - - - - –

O que todo o ser procura,
é mais vida, sem chorar
e o que o remédio não cura
a fé poderá curar.
- - - - - –

Passe o pai para seu filho
um manancial de valores,
as cores tenham mais brilho
e o brilho tenha mais cores.
- - - - - –

Quando lenta a dor avança
progressiva em torno à vida,
ninguém sufoque a esperança
de encontrar a paz perdida.
- - - - - –

Quem só fala mal de alguém
não merece aplauso algum,
gesto que nunca faz bem,
conduz pra lugar nenhum.
- - - - - –

Toda estrada não florida
é penosa sem as cores,
por vezes tem pouca vida
noutras lhe faltam as flores.
- - - - - –

Todo esforço em luz resulta
quando bem iluminado,
se a sombra da noite o oculta
frente o sol é revelado.
- - - - - –

Um comportamento rude
das intrigas causa aumento,
corrompe a nobre virtude
que protege o casamento.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 238


Arthur de Azevedo (O Retrato)


O meu querido amigo Emílio Rouède, que há dias faleceu, foi um homem espirituoso, que forneceria matéria para muitos contos ligeiros.

Em vez de inventar uma anedota, vou contar-vos uma historieta em que ele figurou, e que tem, por conseguinte, o mérito de ser autêntica.

A coisa passou-se há um quarto de século pouco mais ou menos. Emílio Rouède tinha se casado havia poucos meses, e estava estabelecido com fotografia na Rua dos Ourives, numa casa que foi demolida quando se tratou de construir a Avenida Central.

Um dia Mme. Rouède, que era uma linda senhora, saiu sozinha à rua, e foi acompanhada por um impertinente que, vendo-a sorrir, supôs que ela sorrisse não dele mas para ele.

Ela entendeu que o mais prudente era voltar para casa, e assim fez; o conquistador, porém, continuou a segui-la imperturbavelmente.

Chegando à porta da casa, a moça olhou para trás, a fim de verificar se continuava a perseguição, e esse movimento animou o homenzinho, ao que parece: quando ela entrou, ele entrou também; ela subiu a escada, ele também subiu.

Emilio Rouède estava no atelier, de blusa, a trabalhar, e, ouvindo os passos de sua esposa, foi esperá-la no topo da escada.

O sujeito, quando reparou que havia ali um homem, não teve mais tempo de fugir. Mme. Rouède apresentou-o ao marido:

- Aqui tens este senhor que me tem acompanhado por toda parte, e entrou comigo. Não sei o que pretende.

- Sei eu, acudiu prontamente o fotógrafo. - Pretende tirar o retrato; não pode ser outra coisa.

E voltando-se para o desconhecido, perguntou-lhe olhando por cima dos óculos, segundo o seu costume.

- Busto ou corpo inteiro?

O pobre diabo, que não sabia mais de que freguesia era, gaguejou:

- Busto... busto...

- Faça favor.

E levou uma hora a tirar-lhe o retrato que foi pago, ficando o retratado de ir buscá-lo daí a três ou quatro dias. Este queria apenas meia dúzia, mas Emílio Rouêde convenceu-o de que devia encomendar duas dúzias e meia.

Quando o freguês saiu, Emílio Rouède disse à esposa, que ria a bandeiras despregadas:

- Tenho pena de não ser dentista, em vez de fotógrafo!

Escusado é dizer que os retratos ficaram na fotografia.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Isabel Furini (Poemetos) 1


FIM DE TARDE
Insignificante a vida humana...
sentimo-nos tão importantes
e somos gotas de água
(delirantes)
no imenso mar da eternidade.
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OS ABISMOS DA CANETA

enquanto o poeta pensa na  dualidade filosófica
finito-infinito
a caneta invade oceanos de palavras
mergulha em poços de conceitos
avança sobre abismos de metáforas

 a caneta confessa:
“onde eu habito os opostos estão unidos
todos os poemas
de algum modo são sagrados
e são impulsionados pelo alento do infinito”.
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POEMA & DUALIDADE

o poema é dualidade
faz renascer as palavras
cria distâncias e silêncios

entre silêncios e versos
respira a eternidade.
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POESIA É...

ter estrelas nos olhos
e sonhos nas mãos
quebrar as algemas do medo
superar dilemas
e sobre linha do horizonte
escrever novos poemas.
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REDES SOCIAIS

tempo duplo:
terríveis monções afetam a alma
mas nas redes sociais
as fotos cheias de sorrisos
dissimulam o estado emocional
pois o mundo é um cristal opaco
refletindo um perpétuo Carnaval.
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Fonte:
Poemetos enviados pela poetisa.
https://www.facebook.com/isabel.furini

Oswaldo Elias Xidieh (O Alfaiate Malandro)


No tempo em que Jesus andava pelo mundo com o apóstolo Pedro, disseram que ele ia passar por uma vila onde morava uma viúva muito piedosa e sem malícia. Ela morava numa casa de parede e meia com um alfaiate danado de sem vergonha e que queria pegar a viúva. Nunca dava certo dele pegar a viúva. Então, ele fez um buraco na parede para poder ver o que ela fazia, e vivia espiando. Um dia, ele viu a viúva rezando na sala e pedindo que Jesus chegasse logo, que era o maior consolo da vida dela. Então, o alfaiate, pelo buraco da parede, disse:

- Minha querida irmã, eu já escutei o seu rogo, por isso apronte a janta e a cama que eu vou chegar antes da madrugada. Põe um pouco de vinho e de paçoca de carne na mesa.

A viúva caiu de joelhos e disse:

- Mas será que o bom Jesus vem sozinho? Disseram que São Pedro vinha também e eu não tenho cama para ele.

- Não se avexe, minha boa irmã, que eu já arrumei pouso pra Pedro, eu vou aí sozinho. Mas não esqueça do vinho que lhe pedi.

A viúva, mais que depressa, foi aprontar a comida, pensando: "Hoje o Senhor Bom Jesus vem na casa!" Dali a pouco bateram três pancadas na porta da viúva e ela disse:

- Ai, meu Deus, o Senhor Jesus já chegou? - Foi correndo e pergunto: - Quem é que está batendo na porta?

- Jesus, minha boa filha! - Ela abriu e o Jesus de impostura entrou já querendo abraçar a viúva. A viúva escapou dizendo:

- Ai, meu bom Jesus, ainda nem acabei de fazer a janta! - e fugiu pra cozinha, pensando se Jesus abraça os outros. No fim, ela pensou que ele devia mesmo abraçar os outros sem ruindade. Voltou pra sala e o Jesus de impostura olhou pra ela com dois olhos que nem de gato. Ela fugiu pra cozinha, dizendo que tinha esquecido de trazer paçoca. Veio de novo e viu o Jesus de impostura tirando a roupa e dizendo:

- Vamos deitar um pouco pra descansar, minha filha, que depois nós vamos comer paçoca e beber o vinho.

Então ela viu que aquilo não era Jesus coisa alguma e correu pra cozinha, dizendo que já voltava com o vinho. Lá na cozinha ela se ajoelhou e rogou que Jesus de verdade aparecesse e desse um jeito naquela impostura sem medida. O homem lá de dentro deu um berro:

- Venha logo, querida filha, que já vai amanhecendo e eu preciso ir antes do galo cantar!

A viúva se entanguiu (enregelou) de medo e pensou: "Quem foge antes do galo cantar é cuisarruim. Ai, que esse homem é de mal querer. Me acuda, senhor Jesus!"

Na mesma hora, bateram na porta e ela foi ver e perguntou quem era. Responderam que era Jesus e o apóstolo São Pedro, pedindo pouso e comida. Mais do que depressa ela abriu a porta e mandou entrar. Jesus disse:

- Quem é aquele rabudo que está debaixo da cama?

Na mesma hora o alfaiate virou cuisarruim e saiu uivando pro terreiro e sumiu que até hoje ninguém sabe por onde anda.

Fonte:
Oswaldo Elias Xidieh. Narrativas populares; estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e mais São Pedro andando pelo mundo. SP: EDUSP, 1993.

domingo, 12 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 237


Carlos Drummond de Andrade (Aconteceu Alguma Coisa)


Dois guardas à porta, barrando a passagem. O bolo de gente na calçada, espichando pescoço para assuntar.

— Vai ver que mataram alguém no edifício.

— Com certeza assaltaram o banco, e…

— Que banco? Não está vendo que não tem banco nenhum aí?

— Já sei. Pegaram lá em cima um grupo de subversivos, e eles estão encurralados, não querem se render. Não saio daqui enquanto os caras não aparecerem.

Cresce a confusão. Tão rápido, que até parece organizada. Todo mundo colabora para que seja total. E fala, fala.

— Olha aquela velha desmaiando!

— Velha coisa nenhuma, é uma lourinha muito da bacana. E não está desmaiando, está é brigando de unha e dente, alguém apalpou ela ou afanou a bolsa.

— Te garanto que houve morte. Um padre abriu caminho e entrou lá dentro, apesar dos guardas. Padre mesmo, desses de batina, sacumé?

— Se o cara já morreu, não adianta ele entrar, ora essa. Salvo se ainda está agonizando. E quem garante a você que por estar de batina esse que entrou lá não é padre de araque? Tem muita falsificação pelaí.

— Não estou vendo fumaça. Incêndio não é.

— Pode ser nos fundos. Espera até a fumaça aparecer. O último incêndio que eu assisti, na Tijuca, levou horas pra convencer.

— Quem sabe foi uma manicure que se atirou no pátio? Já vi um caso assim.

— Por essas e outras é que só moro em casa, e casa térrea, sem escada, pra não dar grilo. Eu, hem?

— É, mas tem muito inconveniente. Nas casas baixas a poluição é servida a domicílio.

— Repara aqueles dois entrando na raça.

— E na raça foram rechaçados, tá vendo?

— Pronto, interditaram o edifício.

— Pior. Estão esvaziando o edifício.

— Corta essa. Todo mundo tem direito de entrar e direito de sair. E os que trabalham lá em cima, por que irão deixar de trabalhar? Os que precisam subir para ir ao dentista, ao médico, sei lá, com que direito são impedidos? Tá errado. Qual, isso é um país sem…

— Calma, Secundino. Acho bom você moderar suas expansões.

— É, mas o senador Farah Diba entrou com passe livre, espia só.

— Não tem senador com esse nome, siô.

— Tem um parecido, mas é deputado.

— Deputado ou não, com esse ou com outro nome, mas entrou. Eu vi.

— Então não há tragédia, ele não é de ir aonde pega fogo.

— Cerraram as portas de aço!

— Isso tá me cheirando a elevador despencado. Não tem dia que não caia um em Copacabana. E essa ambulância que não vem? Devia ter sempre uma ambulância de plantão na porta de cada edifício.

— O diabo são os palestinos. Imagina se o carteiro deixou na portaria uma daquelas cartas com bomba…

— Já não se tem onde morar sossegado. Até entrar pelo cano é perigoso. Lá dentro tem assaltante à espera.

— E na rua, então? Que é que nós estamos fazendo aqui, ameaçados de todos os lados, prestando atenção num negócio que não é da nossa conta, me diga o senhor?

— Sei lá. Mas agora está saindo um caixotão, não atino o que seja. Quem sabe se não é um novo crime da mala!

— Nem me fale nisso. Só de pensar, fico toda arrepiada; passe a mão no meu braço, veja como estou. Cortar um pobre de Cristo em fatias, feito mortadela, depositar na mala e despachar de avião!

— Era de trem que as malas com cadáveres se despachavam, sua ignorante.

— Isso foi no seu tempo, vovozinho. Hoje, quem é que passa pra trás o avião pra dar preferência a trem de ferro?

— Pois então vamos chegar perto e espiar o caixão do defunto.

— Não é caixão, gente, é geladeira!

— O quê? O defunto estava dentro da geladeira?!

— Ah, meu chapa, tu não morou que isso é uma liquidação de eletrodomésticos?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 13 - Justiça e Injustiça


Justiça, em sentido amplo, é o princípio ou atitude que consiste no respeito aos direitos de cada um e na atribuição daquilo que é devido a cada pessoa [DicionárioHouaiss]. Injustiça, portanto, é não agir segundo este princípio.

No mundo de tanto mal,
em que a moral é postiça,
falta o sangue arterial
dos princípios da justiça!
José Valdez de Castro Moura - SP
 
Injustiça, meu irmão,
sinto quando vejo em prantos
para uns negarem um pão
e para outros darem tantos.
Rodrigues Neto - RN

Como é triste o desencanto
daquele que a duro custo
desabafa e diz em pranto:
- eu me cansei de ser justo!
A. A. de Assis - PR

Quando a injustiça se expande
e usurpa do povo o ganho,
país nenhum se faz grande,
não importa o seu tamanho!...
Edmar Japiassú Maia - RJ

Cortem os pés da cobiça;
eis a atitude primaz,
para que as mãos da justiça
façam resgate da paz!
Regina Célia Andrade - RJ

No banquete da injustiça,
o rico, manjares come,
enquanto exangue, e enfermiça,
morre a pobreza, de fome...
Pedro Grilo - RN

Aturdido e impotente,
o mundo a voz desperdiça...
sem notar que, inutilmente,
vive a clamar por justiça...
Pedro Grilo - RN

Até nas faces molhadas
da chuva, a injustiça trama:
do rico lava as calçadas,
ao pobre dá frio e lama...
Vera Vargas - PR

A Justiça, enquanto instituição jurídica, compreende os diferentes órgãos encarregados de dizer o direito, aos quais os cidadãos buscam com a finalidade de equilibrar as relações sociais que lhe causaram prejuízo. Em suma, cabem a esses órgãos interpretar as leis, em geral sem a preocupação com a justiça em sentido amplo. Como não podem julgar além das leis formais, não se prestam a corrigir as injustiças sociais.

Por outro lado, não esqueçamos que as leis são feitas pela elite dominante e, portanto, historicamente são instrumentos para garantia do poder e não para distribuir justiça. Além disso, como toda instituição, a Justiça é formada por seres humanos, sujeitos a toda a sorte de erros e fraquezas.

Nos tribunais de justiça
por vezes a fala mansa
deixa a nódoa da cobiça
sentenciar a esperança.
Nilton Manoel de Andrade Teixeira - SP
 
A justiça, rica em falhas,
corrompida por esquemas,
enche de glória e medalhas
mãos que merecem algemas.
Gerson César Souza - PR

Eu vi um pai sendo preso
por furtar um simples pão,
é mais um pobre indefeso
no caos da corrupção.
Gonzaga da Silva - RN

A justiça humana é falha!
E reconheço isto a custo...
Se é rico, livra o canalha!
Se é pobre, condena o justo...
Aparício Fernandes – RJ

Metaforicamente, os trovadores fazem referência ao símbolo da Justiça, a estátua de olhos vendados.

Disse alguém que a justiça
é cega, não creio não!
Que a questão que o rico atiça
o pobre não tem razão.
Francisco Amorim - RN

Dizem: - A justiça é cega.
Será cega de nascença?
Tem cada coisa que nega
que às vezes chego à descrença...
Severino Campelo - RN

Para não se ver omissa,
com tantos injustiçados
é que a estátua da justiça
tem os seus olhos vendados.
Argemira Fernandes Marcondes - SP

Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria a Justiça
manter seus olhos vendados!
Lucília Trindade Decarli - PR

Mas, afinal, devemos considerar que a Justiça, enquanto instituição, na grande maioria das vezes, cumpre o seu papel, podemos até dizer transcendental.

A justiça imaculada,
tendo no céu as raízes,
não pode ser acusada
dos erros dos maus juízes.
João Rangel Coelho - RJ


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Irmãos Grimm (O Cão e o Pardal)


Houve, uma vez, um cão de pastor que tinha um dono muito mau, que não lhe dava comida suficiente e o obrigava a passar fome. Certo dia, não podendo mais suportar esse tratamento, o cão resolveu ir embora, apesar de sentir muita tristeza. Pelo caminho, encontrou um pardal, que lhe disse:

- Por quê estás assim tão triste, meu irmão?

- Estou com fome e não tenho o que comer. - respondeu o cão.

- Se o mal é esse, vem comigo à cidade e eu te arranjarei o que comer. - disse o pardal.

E assim foram os dois juntos para a cidade. Quando chegaram diante de um açougue, o pardal disse:

- Espera aqui bem quietinho, enquanto vou bicar um pedaço de carne.

Voando para dentro do açougue, pousou sobre o balcão; depois de se certificar de que ninguém o estava observando, o pardal foi puxando com o bico um pedaço de carne para o beiral, até que caiu ao chão. O cão agarrou rapidamente e foi devorá-lo num canto.

- Agora vamos para outro açougue. - disse o pardal, vou tirar outro pedaço de carne para que fiques satisfeito.

Nesse açougue repetiu-se a mesma coisa e, quando o cão devorou também o segundo pedaço, o pardal lhe perguntou:

- Agora estás satisfeito, meu irmão?

- Sim, - respondeu o cão - de carne estou, mas ainda não provei pão.

Foram até uma padaria e o pardal arrastou com o bico dois pães; como o companheiro lhe pedisse mais, levou-o a outra padaria, onde lhe derrubou mais dois pães. Quando acabou de comer, o pardal lhe perguntou:

- Estás satisfeito, meu irmão?

- Sim, agora estou. - respondeu o cão. - Vamos dar um passeio fora da cidade.

E saíram os dois pela estrada a fora. Mas o calor era intenso, não tinham ainda ido muito longe quando, chegando a uma curva, o cão disse:

- Estou cansado e gostaria de dormir um pouco.

- Está bem, - disse o pardal - dorme à vontade; enquanto isso ficarei pousado naquele galho.

O cão deitou-se quase no meio da rua e forrou num sono profundo. Daí a pouco, chegava um carroceiro guiando uma carroça puxada por três cavalos A carroça ia carregada de barris do vinho. O pardal viu que o carroceiro não desviava do lugar onde estava o cão dormindo e ia passar-lhe por cima. Então gritou:

- Carroceiro, não faças isso, do contrário te reduzirei à miséria.

Mas o carroceiro resmungou consigo mesmo: "Ora, não serás tu que me levarás à miséria!" Estalou o chicote e dirigiu a carroça bem por cima do cão, matando-o. Então o pardal gritou:

- Mataste meu irmão! Isto vai te custar a carroça e os cavalos.

- Oh, sim! - disse o carroceiro - A carroça e os cavalos; que mal podes me fazer tu, pequeno tonto?

E continuou chicoteando os cavalos, sem se preocupar. O pardal então penetrou sob a lona que cobria a carroça e se pôs a bicar o batoque de um dos barris até que a rolha saltou fora e o vinho começou a escorrer sem que o carroceiro percebesse. Finalmente, olhando por acaso para trás, viu que a carroça estava pingando; desceu e foi examinar os barris, encontrando um deles já vazio.

- Ai de mim! - exclamou desolado, - agora sou um homem pobre.

- Sim mas não o suficiente, - respondeu o pardal; e voou para a cabeça de um cavalo e com algumas bicadas arrancou-lhe um olho.

Vendo aquilo, o carroceiro brandiu a foice e procurou matar o pardal, mas este voou em tempo e o golpe atingiu o cavalo que caiu morto, com a cabeça partida.

- Ai de mim! - exclamou o carroceiro, - agora sou um homem pobre.

- Sim, mas não o suficiente, - respondeu o pardal.

E, enquanto o carroceiro ia seguindo o caminho com os dois cavalos, voltou a introduzir-se debaixo da lona e, à força de bicadas, arrancou a rolha do outro barril. O vinho começou a escorrer pela estrada a fora. Quando o carroceiro percebeu, gritou de novo:

- Ai de mim! Sou um pobre homem arruinado!

- Sim, mas não o suficiente, - respondeu-lhe o pardal.

E saltou para a cabeça do segundo cavalo, vazando-lhe os olhos. Cego de furor, o carroceiro brandiu novamente a foice procurando atingir o pardal, mas o golpe atingiu o cavalo, que caiu prostrado sem vida.

- Ai de mim! - Como estou pobre! - gemia o carroceiro.

- Sim, mas não o suficiente, - respondeu o pardal.

Saltou para o terceiro cavalo e vazou-lhe os olhos. Tremendo de ódio, o carroceiro lançou a foice contra o pardal, mas também desta vez a foice acertou em cheio no cavalo, que teve a mesma sorte dos companheiros.

- Ai de mim! Como estou pobre! - gritou o carroceiro.

- Sim, mas não o suficiente, - disse o pássaro - agora eu te farei ficar ainda mais pobre em casa. - E saiu voando pelos ares.

O carroceiro foi obrigado a abandonar a carroça na estrada e voltar para casa a pé, tremendo de ódio.

- Que desgraça a minha! - disse à sua mulher. - O vinho foi todo derramado e os três cavalos estão mortos. Pobre de mim!

A mulher, também, se lastimou:

- Ah, homem, que pássaro malvado entrou aqui em casa! Trouxe consigo todos os passarinhos da redondeza e, como um dilúvio, caíram sobre o nosso trigal, destruindo todas as espigas.

O homem saiu para ver e deparou com milhares e milhares de pássaros devorando todo o trigo; no meio deles estava o terrível pardal. Então o carroceiro gritou:

- Ai de mim! Pobre, mais pobre que nunca!

- Sim, mas não o suficiente! - Carroceiro, pagarás também com a vida, - respondeu-lhe o pardal e saiu voando.

O carroceiro viu perdidos todos os seus bens. Foi para a cozinha, sentou-se atrás do fogão, resmungando e fervendo de ódio. Entretanto o pardal, pousando no peitoril da janela, do lado de fora, continuava dizendo:

- Carroceiro, vai custar-te a vida!

Exasperado, o carroceiro pegou a foice e lançou-a violentamente contra o pardal, mas acertou nos vidros, espatifando-os sem que o pardal sofresse o menor dano.

Saltitando todo brejeiro, o pardal entrou para dentro da sala e foi pousar em cima do fogão, dizendo:

- Carroceiro, vai custar-te a vida!

Cego de raiva e de ódio, o homem pegou de novo a foice e saiu em perseguição do pardal, que saltava de um lugar para outro, sempre desviando os golpes do carroceiro. Este ia quebrando tudo o que encontrava na frente: o fogão, os bancos, a mesa, o espelho, até a parede, mas não conseguia atingir o pássaro. Por fim, depois de tanto correr e pular, conseguiu agarrar com a mão o pardal. Então a mulher perguntou-lhe:

- Queres que o mate?

- Não, - disse o marido - isso seria pouco para ele! Quero que morra de morte atroz; vou comê-lo vivo.

Dizendo isso, abocanhou e engoliu o pardal inteiro. Porém o demoninho continuou esvoaçando dentro do estômago e, em dado momento, voltou até a boca para dizer:

- Carroceiro, vai custar-te a vida!

O carroceiro passou depressa a foice à sua mulher e ordenou:

- Mata-me esse pássaro mesmo dentro da boca.

A mulher agarrou a foice e deu um golge fortíssimo mas, errando o alvo, acertou em cheio na cabeça do marido prostrando-o sem vida.

O pardal, então, saiu voando e sumiu ao longe, nunca mais aparecendo por aquelas bandas.

Fonte:
Contos de Grimm.

sábado, 11 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 236


Versos em Tempos de Pandemia


Nemésio Prata

Estamos em pandemia.
Cuida-te, não sejas louco;
pois te aguarda a campa fria
se aos conselhos fores mouco!
- - - - - -

José Feldman
POEMA AOS NOSSOS BRAVOS E ANÔNIMOS SALVADORES


Hoje no mundo está um caos dominando,
terrível vírus a todos contaminar,
para o amanhã catástrofes prenunciando…
Que será que a vida tem a nos reservar?

Mas enfrentando esta ameaça desconhecida,
lutam anônimos, valorosos guerreiros
que enfrentam o perigo co’ a própria vida…
médicos, enfermeiras, e até os bombeiros.

Em seus espíritos há apenas um desejo
de toda e qualquer vida poderem salvar.
Seja pobre, seja rico… lançando um lampejo

de esperança na alma de quem está a definhar.
Deus abençoe estes guerreiros benfazejos
cujas nobres almas estão a nos salvar.
****************************************

Nilsa Alves de Melo
BOMBEIROS DO BRASIL
(Em tempos do Corona vírus)


Bravos homens, a coragem os anima,
levam junto a esperança, o salvamento,
da sua própria vida põe acima
a vida das pessoas em lamento.

Às vezes vai salvar e a morte encontra.
Dá pelo outro, a vida preciosa
E, como herói e santo, ele assim tomba
qual estrela cadente, luminosa.

Homens do ar, do fogo, mar e terra
é quem perigo e caos vêm chamar
pela bravura e controle emocional.

Na alma desses homens se encerra
a lealdade, o bem, o mais salvar.
- Bombeiros - um tesouro nacional.
****************************************

Jaime Vieira
CAOS NA TERRA


Estrelas indecisas
adornam o céu.
Luzes de neon oportunistas
já não seduzem a cidade.
Uma sinistra pandemia
assusta a humanidade
e silencia as ruas vazias
da minha cidade.

Em descaso não crio caso,
tenho medo de ter medo
e o caos rasteja aos poucos
e quase me invade.

Bebo a noite pela janela
afasto os escombros e fracassos
e em silêncio me desfaço
nos braços de um poema ácido
que agora sem nenhum abraço,
em linhas tortas, traço.
- - - - - –

Fontes:
Revista Carlos Zemek. 9 de abril de 2020 
Revista Carlos Zemek. 10 de abril de 2020
Trova enviada pelo autor.

Sílvio Romero (O Homem que quis laçar Deus)


Havia um homem que era muito pobre e com muita família. No lugar em que morava, havia uma estrada muito grande e se dizia que por ali passava Deus e o mundo. Ouvindo dizer isto o homem, e querendo saber a razão por que Deus o tinha feito tão pobre, armou um laço e assentou-se na estrada à espera de Deus.

Levou assim muito tempo, e todos que passavam perguntavam o que estava ali fazendo. Ele respondia que queria pegar Deus. Afinal, estando já desenganado de que nada fazia, já ia para casa, quando apareceu-lhe um velhinho e deu-lhe quatro vinténs, dizendo que só comprasse um objeto que custasse aqueles quatro vinténs. Nem mais barato, nem mais caro.

O homem foi para casa muito contente, imaginando no que havia de comprar com aquele dinheiro. Lembrou-se de um compadre negociante rico que tinha, o qual estava para fazer viagem a buscar sortimentos para sua loja. Dirigiu-se o compadre pobre para a casa do compadre rico e pediu-lhe que comprasse qualquer coisa que custasse aqueles quatro vinténs.

Fez o compadre a sua viagem e chegando na cidade não encontrou nada por aquele preço. Foi ao mercado e ainda nada. Só encontrava objetos por três vinténs, um tostão, meia pataca, dois mil réis, três, etc.

Ia já para casa, quando ouviu um menino mercar: "Quem quer comprar um gato? Custa quatro vinténs."

O homem ficou muito contente e comprou o gato. Era um animal raro naquele lugar. Chegando o negociante em casa do amigo onde estava hospedado, e que também era do comércio, este ficou desejoso de possuir aquele animal e pediu ao amigo para deixar o gato passar a noite na loja, onde havia muito rato, que lhe davam um grande prejuízo.

No outro dia quando abriram a casa, tinha uma quantidade tão grande de ratos mortos que causou admiração. Aí o negociante dono da casa ofereceu uma grande soma de dinheiro ao amigo pelo gato.

Este recusou, dizendo ser o gato de um seu compadre muito pobre, que o tinha encarregado de comprar um objeto qualquer com quatro vinténs. Instou muito o negociante e afinal ofereceu tanto dinheiro que o amigo não pôde recusar e vendeu o gato.

Voltou o compadre rico de sua viagem, mas chegando em casa teve tanta pena de dar o dinheiro ao compadre, que o enganou com uma peça de chita, muito ordinária, dizendo ter comprado aquilo com os quatro vinténs.

O compadre pobre ficou muito contente e, chegando em casa, a mulher desmanchou logo a fazenda em camisas para os filhos. Mas como Deus não quer nada mal feito, assim que o compadre saiu com a peça de chita, o rico caiu com uns ataques muito fortes e já para morrer.

A mulher o aconselhou a que se confessasse, que ele estava muito mal, e chegando o padre e sabendo do segredo, mandou-o restituir todo o dinheiro do compadre pobre. Este veio a chamado do rico, que logo melhorou, só com a presença dele.

Mas o ricaço, não tendo coragem de entregar o dinheiro, ainda enganou o outro com outra peça de fazenda ordinária.

O pobre não cabia de si de contente, e mal tinha saído, já o rico estava outra vez morre não morre. É chamado de novo a toda pressa o compadre pobre, sendo ainda uma vez enganado com outra peça de fazenda, mas desta vez o rico já estava quase expirando, e não teve outro remédio senão declarar ao companheiro que aquelas barricas que ali estavam eram dele com todo o dinheiro que continham.

Ouvindo isto, o pobre quase que não se segurava em pé, tal foi o choque que sentiu, e como louco correu a dar novas à família, que não sabia como explicar tamanha felicidade.

Houve oito dias de festas e o pobre ficou logo cercado de muitos amigos, entre eles o rico que ficou bom da moléstia esquisita, assim que entregou o dinheiro.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

Manuel Halpern (Um cê a mais)


Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c, na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz: sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hífenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de fato; para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família.

Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os es passaram a ser gêmeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios; janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

Fonte:
Montargil Ação Cultural. Boletim em linha. março 2020. n. 82.
Boletim enviado por Lino Mendes, de Montargil/Portugal.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 235


Célio Simões de Souza (O Presente que não Recebi)


Era início de novembro de 2017. Muita gente em Belém se preparava para viajar aproveitando o feriado de finados, que por recair numa quinta-feira, deixava “imprensada” a sexta, fazendo a delícia de quem demanda os balneários esticando até o domingo, quando todos voltam para novo período de espera, até outro favorecimento do calendário.

Dominando o desejo de curtir esses dias na ensolarada Salinas decidi ficar, pois tinha que resolver uma pendência sobre passagens aéreas em uma agência de viagem. E lá estava eu no dia 2 fazendo isso, quando o aparelho celular tocou.

Do outro lado era Ivaneide, a secretária de uma das associações profissionais que faço parte, dizendo que havia em sua sala um cidadão procurando por mim. Em princípio estranhei, pois as pessoas interessadas em meus serviços como advogado costumam ir ao escritório, depois de combinar dia e hora para serem atendidas.

Coisa incomum mesmo. Fui informado que o sujeito insistia em saber meu endereço residencial, afirmando que já estivera no meu local de trabalho e não havia me encontrado. Intrigado, pedi que ela passasse o telefone para ele. Eu queria averiguar de quem se tratava. Um tom de voz rouco e profundo, permeado de um resfolegar de alguém muito cansado, sem maiores rodeios me saudou:

– Como vai o senhor? Lembra de mim? É o seu amigo Joel!

- Perdoe, mas não me lembro...

- É que já faz muito tempo. Eu era o vigia da rua, quando o senhor morava no Jardim Independência, no bairro de Nazaré.

E a partir daí começou a descrever com detalhes, o número da minha antiga casa, a marca do meu carro, o nome dos meus vizinhos, o alagamento que houve por lá durante uma monumental chuva de inverno, dando-me a plena certeza que realmente tinha laborado por lá, tão minucioso era seu discurso sobre aquela época, afirmando que de mim recebera muita ajuda para suprir suas necessidades pessoais e familiares. Eu simplesmente nada recordava, nem de sua fisionomia, nem dos favores que supostamente lhe fiz.

Prosseguindo na conversa, disse que não mais residia em Belém e sim no interior do Estado, para onde se mudara definitivamente há dois anos. E que de lá me trouxera um presente, pois sabendo da minha predileção pelos peixes dos nossos rios amazônicos, estava de posse de uma caixa térmica (isopor) com pescado especialmente preparado para me entregar.

Quem me conhece mais de perto sabe da minha inclinação culinária por peixes. Meus olhos devem ter brilhado. Mesmo desconfiado, ditei-lhe ao telefone o meu atual endereço, que ele foi anotando com a ajuda da Ivaneide, pois sua baixa escolaridade não lhe permitia fazê-lo sozinho. Feito o registro, esclareceu:

- Voltei pra Belém para acompanhar minha filha que mora aqui. O senhor lembra da Ana Maria? Era aquela garotinha que ia lá no meu serviço levar o lanche, quando eu fazia as “viradas” de fim de semana. Agora é uma mulher feita, mas sofre de um grave problema de saúde. Ela vai fazer uma cirurgia muito difícil e está precisando de ajuda. O senhor poderia ajudá-la?

Achando a conversa ainda mais inusitada, registrei de memória o nome do hospital onde a moça estava internada e o número do apartamento, prontificando-me a visitá-la assim que eu pudesse. Antes de se despedir, disse-me com um ar de indisfarçado júbilo:

- O senhor não sabe, mas agora eu sou espírita!

- Pôxa, que bom! Foi o que eu achei de melhor para responder.

- E como espírita, vivo em contato com os seres de luz. Quero lhe dizer que o senhor está perto de receber uma graça muito especial!...

- Amigo, muito obrigado, respondi. Deus lhe pague e lhe proteja...

Depois desta última frase dita por mim, o telefone passou a emitir fortes estalidos até que foi desligado, não me possibilitando mais falar com ele ou com a Ivaneide. Instintivamente atribuí o fato ao péssimo serviço de telefonia fixa ou móvel que dispomos. Por excesso de cautela, liguei para a portaria do prédio onde moro e seu Mundoca, veterano porteiro, atendeu. Disse-lhe que um amigo ia entregar um isopor com peixe e por se tratar de perecível, que avisasse imediatamente nossa empregada, que se incumbiria de apanhá-lo. Recomendei porém, que não permitisse a subida de ninguém ao apartamento pelo motivo óbvio: Infelizmente Belém, antes tranquila, tornou-se uma cidade perigosa e violenta, exigindo todos os cuidados no quesito segurança.

Nesse dia regressei no fim da tarde e ao indagar na portaria, informaram-me que ninguém deixara ali nenhum isopor com peixe. No outro dia a mesma coisa. Quer ver que seu Joel esqueceu o assunto ou não encontrou meu local de moradia, pensei. Daí me veio à mente o compromisso que com ele assumi de fazer uma visita à filha doente, de quem eu esquecera depois de tantos anos. 

Moleque, ainda, ocupei a vaga deixada por um tio, que fixou residência no Rio de Janeiro, na Sociedade São Vicente de Paulo na minha cidade, dedicada a obras de caridade. Mais tarde, ginasiano, fiz parte da Sociedade Estudantil de Assistência Social (SEAS) que arrecadava donativos para famílias pobres; e até hoje eu e minha esposa, prestamos alguma ajuda aos carentes, na medida das nossas possibilidades. Assim, movido pelo dever de solidariedade, parti para o hospital.

Lá chegando, informei à recepcionista a finalidade da minha presença. Ela, após o protocolo de identificação, indicou-me o apartamento, que fui procurando com cuidado para não incomodar os pacientes, alguns deles atendidos nos próprios corredores. Ao postar-me em frente ao número que eu havia memorizado, bati levemente e uma voz frágil, como se estivesse a quilômetros, lá dos sumidouros do aposento ordenou:

- Pode entrar!

O que aconteceu lá dentro me deixaria perplexo! Soubesse disso eu nem teria entrado. Sou cético para certas situações, no entanto há coisas para as quais é difícil encontrar explicação. Empurrei devagar a porta, ao tempo em que um cheiro forte e adocicado de éter invadiu meus pulmões, quase me fazendo retroceder.

No cômodo, de dimensões reduzidas, não havia ninguém além dela: uma moça franzina, cabelos pretos em desalinho, sob um lençol que lhe chegava ao busto, tendo uma agulha de soro fisiológico espetada no braço esquerdo. Sua palidez intensa e o aspecto enfermiço eram reveladores de seu precário estado de saúde. Fiquei intrigado pois quem devia de estar ali, tomando conta da filha doente não estava, justamente o pai - seu Joel. Com muito tato, iniciei a conversa:

- ...Ana Maria?

- Sim? Quem é o senhor?

- Você era pequena e não se lembra de mim. Sou amigo do seu pai. Pelo telefone, ele me disse que você estava doente, informou o local de sua internação, a cirurgia que você vai fazer e da ajuda que está precisando. Pena que ainda não recebi o isopor com peixe que ele trouxe de presente pra mim...

- Isopor com peixe?

- Sim, ainda estou esperando. Ele sabe que eu gosto muito de peixe.

Notei que a lividez de sua pele se acentuou até transformar-se numa máscara mortuária esculpida em sua tez, porém achei que era da própria doença. Como ela quedou-se muda, voltei a falar tentando humanizar as reações da jovem:

- O que posso fazer por você? Como faço para ajudá-la?

- Eu não estou precisando de nada – respondeu com expressão fechada. 

- De nada? Mas foi seu pai que me pediu para vir aqui verificar o que você está necessitando, pois vocês se mudaram para o interior e...

- Quero lhe dizer que nós nunca nos mudamos para o interior - cortou ela interrompendo-me com certa aspereza. E mal disfarçando o incômodo causado pela minha presença, prosseguiu:

- Sempre vivemos em Belém, no bairro do Parque Verde. E quanto ao papai, acho impossível ele ter-lhe trazido qualquer presente.

- Mas foi o que ele me disse quando conversamos...

Desabando numa crise de pranto, com expressão de dor estampada no rosto lívido vincado pela unha do sofrimento, Ana Maria fitou-me com olhos girovagos balbuciando com dificuldade:

- Só pode ser engano. Papai morreu de infarto no Dia de Finados. Anteontem fez dois anos. Ele está enterrado aqui em Belém no Cemitério São Jorge. O senhor não pode ter conversado com ele...


Fonte:
Crônica enviada pelo autor, integrante do livro
Célio Simões de Souza. Recados da Memória. Editora Smith, 2017.

Célio Simões de Souza (1947)

Célio Simões de Souza nasceu em Óbidos/PA (berço de José Veríssimo e Inglêz de Souza, fundadores da Academia Brasileira de Letras), em 24.12.1947, único filho homem do fazendeiro, adjunto de promotor e fiscal da SEFA Sr. Francisco Lôbo de Souza e da professora Lady Simões de Souza.

Em sua cidade natal estudou no Grupo Escolar José Veríssimo e integrou a primeira turma do Ginásio São José. Em Belém (onde reside desde janeiro de 1966), foi aluno do “Paes de Carvalho” e da UFPa, onde graduou-se em Direito em Julho/1976.

Em Belém, constituiu família, casado com a Pedagoga Fátima Augusta Oliveira Simões, com quem tem três filhos: Célio Augusto, Francisco Cezar e Sérgio Guilherme, todos formados em Direito. Desenvolve as suas atividades profissionais e acadêmicas, sem prejuízo das viagens que faz anualmente para conhecer a cultura dos muitos países que já visitou.

Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (RJ) e em História Cultural, pela Universidade da Amazônia (UNAMA)

Foi professor-coordenador na primeira Diretoria da Escola Superior de Advocacia e professor-orientador na UNAMA.

Fundou a Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado do Pará, da qual foi vice-presidente, conselheiro e secretário.

Conselheiro da OAB/PA de 1983 a 1986. Ainda na OAB/PA, fundou e presidiu a Comissão de Prevenção ao Trabalho Escravo.

Fundador e conselheiro titular da União dos Juristas Católicos de Belém, tendo recebido do Papa João Paulo II especial benção apostólica pela sua atuação como advogado da população carente.

Fundou também o Centro de Estudos dos Advogados do Banco do Brasil do Pará e Amapá, do qual foi o primeiro Diretor Geral.

Foi nomeado em 12.12.90 para o cargo de Procurador-Chefe da Procuradoria Trabalhista da Secretaria Municipal de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de Belém. É membro vitalício fundador do Conselho de Mediação e Arbitragem do Estado do Pará. Integrou banca examinadora de concurso para Juiz Substituto da Justiça do Trabalho da 8.ª Região.

Juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Pará de 2005 a 2010.

Membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra da qual foi também Consultor Jurídico da Delegacia do Pará.

Participa atualmente como professor e advogado, de seminários, congressos, encontros, mesas redondas e simpósios de estudos de temas jurídicos, corporativos e sociais como palestrante, debatedor ou expositor, em eventos locais, nacionais e internacionais.

Ensaísta e poeta, tendo algumas de suas poesias musicadas pelo Des. Vicente Fonseca, seu parceiro musical.

Como cronista recebeu medalha de prata em São Paulo, em concurso de âmbito nacional.

Comendador da Ordem do Mérito Advocatício e membro titular das seguintes instituições culturais: Instituto dos Advogados do Pará; Academia Paraense de Jornalismo (Cadeira n.º 20); Academia Paraense de Letras Jurídicas (Cadeira n.º 08); Academia Artística e Literária de Óbidos (Cadeira n.º 01) que idealizou, fundou e preside; Academia Paraense de Letras (Cadeira n.º 26); Academia Paraense Literária Interiorana (Cadeira n.o 30); Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Possui mais de cem crônicas publicadas e é co-autor do livro “Um Abraço Apertado” editado em 2009. Inserem-se ainda em seu currículo suas atividades como juiz do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/PA, juiz arbitral do Conselho de Mediação e Arbitragem do Estado do Pará e juiz do próprio Tribunal Regional Eleitoral que pela segunda vez o condecorou.

Livros publicados:
“UM ABRAÇO APERTADO” (obra histórica coletiva), 1969; “UM POUCO DE MUITAS HISTÓRIAS” (crônicas/contos), 2016;  “RECADOS DA MEMÓRIA” (crônicas/contos), 2017; “ENCONTROVERSOS” (poesias), 2017;  “UM RIO DE HISTÓRIAS” (crônicas), 2017; “CONTAR PARA NÃO ESQUECER” (textos premiados), 2017; “ATEP – 40 ANOS – CASOS E MEMÓRIAS” (obra coletiva), 2019.

Algumas letras de músicas de sua autoria (em parceria com o músico e compositor Desembargador Vicente Malheiros da Fonseca):
Hanna (valsa); Elbinha (valsa) ; Izabelle (valsa) ; Santarém de Outrora (samba); Serra da Escama (marcha-rancho); Hino Oficial da Academia Artística e Literária de Óbidos (Aalo); Hino Oficial do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), entre outras

Obras Premiadas:
A PESCARIA (Crônica) = Medalha de prata da Revista Troféu, São Paulo, em Abril de 1976.
RETRATOS E FATOS DA LITERATURA OBIDENSE (esboço histórico literário) = Troféu Personalidade concedido pela Universidade Federal do Oeste do Pará/UFOPA/Santarém/PA, no IV Festival de Cultura, Identidade e Memória Amazônica de 24 a 25.07.2015.
TROFÉU INDIO PAUXI – Edição 2019 (Manaus/AM) em 27.09.2019, outorgado pela Associação dos Obidenses Residentes em Manaus (ADORM), pelo conjunto da obra como cronista e escritor.

Fonte:
O Impacto 
Dados enviados pelo autor

Monteiro Lobato (Cabelos Compridos)


— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores é isso, só isso — boazinha. Não possui outra qualidade. É feia, é desengraçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios, nem cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito; e é filha daquele Joaquim da Venda, ilhéu de burrice ebúrnea — isto é, dura como o marfim.

Moça que não tem por onde se lhe pegue fica sendo apenas isso — boazinha.

— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Só tem uma coisa a mais que as outras — cabelo. A fita da sua trança toca-lhe a barra da saia. Em compensação, suas ideias medem-se por frações de milímetro, tão curtinhas são. Cabelos compridos, ideias curtas — já o dizia Schopenhauer.

A natureza pôs-lhe na cabeça um tablóide homeopático de inteligência, um grânulo de memória, uma pitada de raciocínio — e plantou a cabeleira por cima.

Essa mesquinhez por dentro. Por fora ornou-lhe a asa do nariz com um grão de ervilha, que ela modestamente denomina verruga, arrebitou-lhe as ventas, rasgou-lhe a boca de dimensões comprometedoras e deu-lhe uns pés... Nossa Senhora, que pés! E tantas outras pirraças lhe fez que ao vê-la todos dizem comiserados:

— Coitada da Das Dores, tão boazinha...

Das Dores só faz o que as outras fazem e porque as outras o fazem. Vai à igreja aos domingos de livrinho na mão, ouve a missa, ouve a prédica, reza. Nunca falhou um dia. Se lhe perguntarem o porquê daqueles atos, responderá, muito admirada da pergunta:

— Mas se todas vão!

O grande argumento de Das Dores é esse: as outras. Ouve o sermão do padre e chora nos lances trágicos, não porque compreenda algo daquela retórica, nem porque sinta vontade de chorar — mas porque as outras choram.

Toma tudo quanto ouve ao pé da letra, incapaz que é de galgar do concreto ao abstrato. Se ouve falar em “fazer pé de alferes”, fica a pensar em pés e mãos de alferes e tenentes.

— Tão boazinha a Das Dores...

Uma vez foi à prédica de um padre em missão pela zona, orador famoso pelas muitas almas que desatolara do chafurdeiro de Satanás. Ouviu-lhe muita coisa que não entendeu, mas entendeu um pedacinho que terminava assim:

“Meditai, meus irmãos, refleti em cada uma das palavras das vossas orações cotidianas, pois do contrário não terão elas nenhum valor”.

Das Dores saiu da igreja impressionada com o estranho conselho e se foi de consulta à tia Vicência, velha sabidíssima em mezinhas e teologias.

— Tia Vicência viu o que o seu cônego disse? Pra gente pensar em cada palavra senão a reza não vale?...

A tia mastigou um “pois é” que dava toda a razão ao padre.

— Que coisa, não? — foi o comentário final de Das Dores, que continuava a achar esquisitíssima aquela ideia.

À noite era seu costume rezar umas tantas orações preventivas dos mil males possíveis no dia seguinte. Mas até ali as rezara qual um fonógrafo, psi, psi, psi, amém. Tinha agora que pensar nas palavras. Diabo! Havia de ficar engraçada a reza...

Caiu a noite.

Das Dores meteu-se na cama, cobriu a cabeça com o lençol e deu início à novidade. Abriu com o Padre-Nosso.

— Padre-Nosso que estais no céu; padre, padre; os padres, padre Pereira, padre vigário... Padre Luís... Coitado, já morreu e que morte feia — estuporado!... Padre... Que ideia do seu cônego mandar a gente pensar nas palavras! Nem se pode rezar direito...

“... nosso; nosso é o que é da gente; nossa casa; nossa vida; nosso pai... Pra quem seria que foi o Nosso-Pai ontem? Para a nhá Veva não é, que ela já melhorou. Seria para o major Lesbão? Coitado! Quem sabe se a estas horas já não está no outro mundo? Bom homem, aquele... Tão caridoso... Ó diabo! Estou me distraindo! ‘Nosso’, ‘nosso’... Em certas palavras não se tem jeito de pensar...

“... que estais no céu: estar no céu, que lindeza não será! Os anjos voando, as estrelinhas, Nossa Senhora tão bonita com o Menino no braço, os santos passeando de lá para cá... O céu; céu; céu da boca; céu azul. Por que será que se diz céu da boca?

“... santificado, san-ti-fi-ca-do; que é santo; dia santificado, dia santo... “... seja vosso nome; nome; nome bonito... Nome feio! Quantos tapas levei na boca por dizer nomes feios! Quem me ensinava era aquela bruxa da Cesária. Peste de negrinha! Onde andará ela? ‘Nome de gente’; ‘nome de cachorro’. Gustavo, bonito nome. Está ali um que se quisesse... Mas nem me enxerga, o mauzinho; é só a Loló praqui, a Loló prali, aquela caraça de broa... Gustavo é o nome de homem mais bonito para mim. De mulher é... Rosinha? Não. Merência? Não... ‘Home’, a falar verdade nenhum. Gustavo. Gustavinho... Ahn, que sono!

“O pão nosso; pão; pão... Por que será que quando a gente repete muitas vezes uma palavra ela perde o jeito e fica assim esquisita? Pão; pão; pã-o... Por falar em pão, como anda minguando o pão do Zé Padeiro! E que pão ruim! Azedo... Pão sovado; pão de cará; pão de Petrópolis...

“... de cada dia; dia; dia; marido da noite; dia de sol; dia de chuva; dia das almas; dia de anos; dia bonito... E que dia bonito fez ontem! Vão ver que domingo chove. É sempre assim. Havendo uma festinha, chove mesmo. Amanhã, se fizer bom dia, vou à casa da Iná. Coitada da Iná! Acontece cada coisa nesta vida...

“... dai-nos hoje; hoje, hoje... Que é que eu fiz hoje? Ahn! Que soneira!

“... e livrai-nos Senhor; senhor; ilustríssimo senhor Gustavo de Silva. Bonito nome! Senhor amado; Senhor morto; senhor; se-nhor, nhor, nhor-se...

“... de todo o mal; mal; mal... mal... al...”

Os olhos de Das Dores fecharam-se, o corpo moleou e seu sono foi um só até romper o dia. Ao despertar lembrou-se logo do caso da véspera. Sorriu. Achou que a ideia do cônego — um padre de tanta fama! — não passava de grossa asneira. E pela primeira vez na vida duvidou.

— Ora, titia — foi ela dizer à tia Vicência —, aquilo é asneira. Se a gente for pensar em cada palavra, não pode rezar direito. O cônego que me perdoe, mas ele disse uma grande bobagem...

Não se sabe se a tia lhe deu razão ou não; mas o fato é que Das Dores continuou a rezar pelo sistema antigo, mais rápido, mais correntio e com certeza mais agradável a Deus. Quem se saiu mal do incidente foi o pobre missionário.

Cada vez que se referiam a ele perto de Das Dores, ela floria a cara de uma risadinha irônica.

— Está aí um que pode estar dizendo as coisas que eu...

E concluía a frase com o mais convencido muxoxo de pouco-caso.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 234


Rachel de Queiroz (O Coração de Washkansky)

    

Parece que está mesmo morrendo o homem que, lá na África do Sul, recebeu o coração da moça, apesar da torcida apaixonada em que se empenha o mundo inteiro pela sua salvação. Se bons desejos dessem vida, Washkansky estaria salvo. Pois imagino que jamais tal massa de bons desejos acompanhou um doente — nenhum rei, nenhum herói, nenhum santo teria tido tantos milhões de pessoas a pedir pela sua vida, a acompanhar ansiosamente nos jornais os recuos e progressos dos implacáveis anticorpos.

A gente fica pensando: será que a natureza já previa a tentativa de transplantação de órgãos? Se não a previa, porque teria imposto ao organismo animal tantas e tão intolerantes defesas, essa xenofobia, essa cortina de anticorpos a fechar as fronteiras da carne, proibindo qualquer promiscuidade orgânica com outro indivíduo, seja embora o doador da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo tipo de sangue do receptor? Promiscuidades, diz a natureza, só mesmo para o fim de reprodução — e pelos canais competentes. Fora disso, nada.

O que é evidente é que Deus Nosso Senhor considera o reino animal a sua mais perfeita obra-prima, cada indivíduo, cada espécie, cada série, tudo ótimo e não susceptível de alteração. Chega-se mesmo a duvidar da teoria da evolução, na qual se acredita mais por uma questão de fé, pois ver de verdade nunca vimos, nunca fomos testemunhas de nenhum processo de evolução em marcha num organismo vivo. Tanto quanto me deixa saber a minha ignorância, tudo ainda São teorias, As alegadas provas se apresentariam em espécies extintas, em fósseis; mas depois do bicho morto e virado pedra, passados milhões de anos — trata-se pelo menos de um testemunho longínquo, não é?

No reino vegetal não há tanto rigor. Milhares de vegetais pegam de galho e recebem enxertos de variedades diferentes. A glória da jardinagem, da horticultura e da pomicultura está mesmo na criação desses híbridos por enxertia, Há organismos animais, como a ameba, que se dividem, e cada pedaço continua vivendo como indivíduo novo; e há lagartixas que conseguem fazer crescer outra vez a cauda decepada. Mas encostar a parte seccionada de um ser na parte seccionada de outro ser, e aquilo pegar — parece que ainda está longe. Eles dizem que fazem cães com duas cabeças em laboratório, mas cadê esses cães? Podem viver uma vidinha artificial e rápida, mas lá mesmo se acaba. Não vinga.

É como eu dizia: Deus considera perfeitos os homens e os bichos tais como os criou e não admite alterações na sua morfologia. E até mesmo híbridos por cruzamento a natureza tolera mas não gosta, tanto que os faz estéreis.

Realmente, se pudesse interferir com a morfologia das espécies, mal se pode pensar a que fantasias loucas se entregaria a humanidade desvairada. Se a gente pegasse de enxerto como laranja-da-baía, numa hora de entusiasmo amoroso era capaz de fazer operação para ficar xifópago com o ser amado — mas, e depois que o amor passasse?

E os laboriosos que exigissem quatro mãos para trabalhar mais? E a milionária excêntrica que ambicionasse a garganta da Callas? E as linhas de contrabando organizadas para oferecer delicados pés de espanholas a americanas ricas de pé 42? E o ditador megalomaníaco que montasse fábricas de supersoldados para os seus exércitos — homens com couraça de jacaré, estômago jejuador de camelo, força de cavalo e miolos de burro para, apesar de tantos dons, obedecer ao seu senhor? E não se diga que o homem não faria isso, que ele tem amor ao seu corpo tal como é: — o homem não tem amor a nada, o homem é doido. Tanto quanto pode, ele já se desfigura com tatuagens, com brincos, batoques, cicatrizes, e operações plásticas de resultados duvidosos. E para ganhar dinheiro, então — até já estou vendo quadrilhas organizadas para raptar crianças de gênio e lhes vender o cérebro no câmbio-negro.

Assim mesmo, contra todas as leis naturais, queremos que Washkansky escape. Que a regra inflexível abra essa primeira exceção e o corpo enfermo do homem de meia-idade cobre vida nova com o coração da rapariga morta. E se a operação tivesse êxito e entrasse na rotina médica — oh, meu Deus, podia-se até criar o uso de dar o nosso coração a alguém; não poeticamente, cm devaneios de amor, mas mandar abrir de verdade a arca do peito e tirar de dentro o coração palpitando, e enviá-lo congelado em papel de alumínio, como comida americana, para o ingrato ou ingrata ficar usando, já que nasceu sem coração.

P.S. — Washkansky, o primeiro paciente a sofrer transplante cardíaco (operado pelo Dr. Christian Barnard no hospital de Groote Schuur, África do Sul), morreu após viver 18 dias com o coração da moça Denise.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

1º Jogos Florais do Equador (Resultado Final)


Tema: Desencanto

VETERANOS

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VENCEDORES
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1º Lugar:

A vida tem lá seus prantos,
seus tantos ais e seus uis...
Porém, mais que os desencantos,
contam os dias azuis.
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
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2º Lugar:

Coração, não sofras tanto
no teu bater clandestino...
Vê! Nem mesmo o desencanto
amordaça o meu destino.
MARIA DULCE DE LIMA PESSOA
Tabira/PE
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3º Lugar:

Num desencanto cruel
cujo olhar jamais anseia,
eu vejo um mundo infiel
promovendo a dor alheia.
MARIALICE ARAÚJO VELLOSO
São Gonçalo/RJ
- - - - - –

4º Lugar:

Mesmo que a velhice traga
desencanto e nostalgia,
nela sempre haverá vaga
para o amor de cada dia.
ANTÔNIO FRANCISCO PEREIRA
Belo Horizonte/MG
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5º Lugar:

Quem vive no desencanto,
não vê na vida a magia:
da aurora acordando o canto,
da passarada do dia!
EDITE ROCHA CAPELO
Santos/SP

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MENÇÃO HONROSA
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1º Lugar:

Não deixes que o desencanto
esmoreça a alma ferida.
Enxuga logo teu pranto,
mantém a fé, segue a vida!
LEONILDA YVONNETI SPINA
Londrina/PR
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2º Lugar:

Entre encanto e desencanto
meu coração se perdeu.
Boiou nas águas do pranto,
soçobrou longe do teu.
LÚCIA EDWIGES NARBOT ERMETICE
Campinas/SP
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3º Lugar:

Buscando o que me motive,
supero, com muito empenho,
as desilusões que tive
e os desencantos que tenho.
FRANCISCO GABRIEL RIBEIRO
Natal/RN
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4º Lugar:

Tanta fartura no mundo...
E o que mais dói num cristão
é o desencanto profundo
no olhar de quem pede um pão!
EDY SOARES
Vila Velha/ES
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5º Lugar:

Infeliz, meu coração,
de desencanto padece,
pois sempre dá o seu perdão,
a quem perdão não merece.
JOSÉ ALMIR LOURES
Astolfo Dutra/MG

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MENÇÃO ESPECIAL
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1º Lugar:

Ah! Que lembranças de nós...
tanto amor, cumplicidade
e agora que estamos sós,
desencanto nos invade
VÂNIA FIGUEIREDO
Campinas/SP
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2º Lugar:

De tudo o que a vida apronta,
e, no meu peito, ainda vive...
Eu só nunca fiz a conta
dos desencantos que tive!...
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN
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3º Lugar:

O desencanto maltrata,
faz um coração gemer:
é cruel, fere e não mata,
mas nos ensina a viver.
MARCIANO BATISTA DE MEDEIROS
Parnamirim/RN
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4º Lugar:

Os poemas que decanto
– pra que o peito descomprima –
encontro no “desencanto”
a minha matéria-prima.
GERALDO TROMBIN
Americana/SP
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5º Lugar:

Quando o sonho for frustrado,
um grande amor for perdido
e o desencanto impetrado,
vá... não te dês por vencido!
LUIZ VIEIRA
Irati/PR

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NOVOS TROVADORES
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1º Lugar:

Por ser frio, descontente,
ter gelado o coração,
há um desencanto presente
num homem sem devoção.
ANDRÉA LIMA DE PAULA
Juiz de Fora/MG
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2º Lugar:

Enxuguei, nem sei o quanto,
cada lágrima sentida,
em face do desencanto
nas ilusões desta vida.
ABELARDO NOGUEIRA
Araçoiaba/CE
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3º Lugar:

Nunca haverá desencanto
se temos a oferecer
nossos braços feito manto,
que à vida faz acolher...
MARA CAMARGO
São Paulo SP
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4º Lugar:

Com doçura, te amei tanto,
sem ao menos conhecer-te,
hoje amargo o desencanto,
sem conseguir esquecer-te.
SUELY RIBELLA
Santos/SP
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5º Lugar:

A vida nos leva encantos,
quando sabemos amar,
porém sempre há desencantos
que vêm nos acompanhar.
HENRIQUE LÜCK
Rio Branco/AC

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Brusque, 08 de abril de 2020.
Maria Luiza Walendowsky
Coordenadora

Sílvio Romero (O Careca)


Conto do Folclore Pernambucano

Uma vez havia um homem casado que tinha uma enorme quantidade de filhos e cada vez a mulher paria mais. O homem, para sustentar tão grande família, fez-se pescador.

Morava perto de um rio, pescava ali e ia sustentando a filharada. Uma vez, estando a mulher grávida e já no nono mês, o pescador foi ao rio pescar e meteu a tarrafa e nada. Meteu para outro lado, e nada, nem uma piabinha. O pescador já ia saindo muito triste quando ouviu uma voz, que dizia do fundo da água: "Se me deres o que de novo encontrares em casa, eu te darei muito peixe".

O homem pensou lá consigo — o que pode haver de novo é um cachorrinho, porque eu tenho em casa uma cadela para parir — e não se lembrou da mulher. Então o pescador disse que sim, que aceitava o negócio. "Pois então pesca pra ali". O pescador meteu a tarrafa e tirou peixe como diabo.

Chegando em casa, um filho foi-lhe logo dizendo: "Papai, minha mãe pariu". O homem entrou no quarto e viu seu filhinho. Era um menino. Disse à mulher que na beira do rio tinha uma cabocla que havia dado à luz e a criança tinha morrido, e que por isso ele levava aquele filho para a cabocla criar. A mulher custou a consentir, mas por fim cedeu. O pescador levou a criança e chegando ao rio atirou-a na água no lugar de onde tinha saído a voz. O menino lá no fundo d'água foi dar num palácio muito rico. Aí foi criado até rapazinho, mas nunca via ninguém.

Uma vez lhe apareceu um homem e disse-lhe: "Eu sou teu pai. Tenho de fazer uma viagem de quinze dias. Fica aqui com estas chaves (e deu-lhe um maço de chaves) mas não abras porta nenhuma, senão, quando eu voltar, morres".

O rapaz ficou e cumpriu fielmente a recomendação. No fim de quinze dias chegou o pai e lhe disse: "Então, está tudo direito?" O rapaz disse que sim. Passaram-se mais quinze dias; no fim deles o homem disse: "Vou fazer nova viagem de mais quinze dias, fica aí com as chaves e não me bulas em nada".

O rapaz ficou, mas desta vez não se pôde conter; havia três enormes caldeiras, uma fervendo ouro, outra fervendo prata e outra fervendo cobre. Ele meteu o dedo na de ouro e saiu com o dedo dourado. Limpava, limpava, e nada de sair o ouro.

Rasgou uma tirinha de pano e amarrou no dedo. Abriu outro quarto e viu três cavalos muito gordos, um preto, um branco e um castanho; os cavalos, em lugar de capim, tinham carne para comer. Abriu outro quarto e encontrou um leão muito grande e gordo, que em lugar de carne tinha capim para comer. Abriu outro quarto e viu uma mesa muito grande cheia de gavetas; numa tinha uma porção de papeizinhos brancos dobrados, noutra uma porção de papeizinhos azuis dobrados, noutra uma porção de armas: espingardas, espadas etc.

O rapaz não quis bulir em nada e tornou a fechar tudo. No fim de quinze dias chegou o pai: "Então, está tudo direitinho?" — Tudo, não buli em nada.

De tudo quanto o rapaz tinha visto, o que lhe dava mais com o pau na paciência, era a carne para os cavalos comerem e o capim para o leão. Ele fez o plano de trocar. No fim de quinze dias, o pai tornou a fazer viagem. O rapaz, logo que se viu sozinho, foi ao quarto dos cavalos e abriu, foi pegando na carne para tirar, e um cavalo disse: "Não faça isso, não bula em nada, senão morre, seu pai lhe mata. Agora, se quiser sair daqui, vá ao quarto onde tem a mesa, tire dois papéis, um azul e outro branco, tire boa roupa e se vista, tire boas armas e se arme, monte-se em um de nós, vá puxando outro, e quando seu pai chegar há de segui-lo; quando estiver pega não pega, largue um dos papéis; depois largue o outro e deixe o resto por minha conta".

O rapaz fez tudo tintim por tintim.

O cavalo lhe recomendou também que ele metesse a cabeça na caldeira de ouro e dourasse os cabelos. O rapaz dourou os cabelos, aprontou-se, armou-se, pegou dois papéis e meteu no bolso, montou no cavalo castanho e foi puxando o branco. Para mais incomodar o pai tirou o capim do leão e deu ao cavalo preto, que ficou, e pegou na carne e deu ao leão.

Seguiu viagem a toda a pressa. No fim de quinze dias, o homem chegando ao palácio e vendo tudo desarranjado ficou danado. Montou no cavalo preto e seguiu atrás do rapaz.

Depois de muito andar, avistou-o, aí o cavalo em que ia o moço lhe disse que largasse o papelzinho branco. O moço largou e gerou-se uma neblina tão espessa que não se via nada, mas o cavalo preto era muito bom e conseguiu romper a neblina depois de muito custo, mas já o rapaz ia longe.

Depois de muito andar, o pai já o ia avistando, quando ele soltou o outro papel e gerou-se um espinhal tão cerrado que ninguém podia atravessar. O homem disse ao cavalo preto: "Eu te desencanto, se me passares esta mata de espinhos".

O cavalo respondeu: "Tire-me os arreios e vá montado em osso, que eu passarei".

O homem tirou os arreios e montou em osso. Quando o cavalo se viu no meio do espinhal, atirou-o ao chão e lá deixou-o e seguiu para diante. O homem lá morreu e o cavalo encontrou-se com os outros e seguiram todos três. O rapaz já tinha cansado o cavalo castanho e montou no branco.

Foram seguindo. Depois de muito andar, chegaram perto de uma cidade, aí os cavalos disseram: "Agora nós ficamos aqui encantados nesta pedra e o senhor deixe também aqui suas armas e roupas, siga para a cidade. Ali adiante encontrará um boi morto, abra, tire a bexiga, sopre e bote na cabeça para esconder os cabelos dourados. Vá e siga a sua vida. Quando precisar de alguma coisa, venha aqui na pedra e nos peça".

O rapaz seguiu, encontrou o boi morto, abriu, tirou a bexiga, botou na cabeça e entrou na cidade.

Adiante encontrou um palácio, bateu na porta e apareceu-lhe o velho jardineiro e perguntou-lhe o que queria. O rapaz respondeu que queria um emprego para ganhar a sua vida. O jardineiro teve pena dele e o empregou como seu ajudante. Era isto na casa do rei.

O jardineiro perguntou ao rapaz por seu nome. Ele respondeu que não tinha nome. "Pois fica-se chamando-o Careca". Passaram-se muitos tempos e o Careca ia vivendo em paz.

Uma vez pôs-se debaixo de umas laranjeiras e tirou a bexiga da cabeça para ver os seus cabelos, e a filha mais moça do rei, que estava na janela, viu os cabelos dourados e ficou apaixonada pelo Careca. O jardineiro tinha o costume de levar todas as manhãs um ramalhete para cada uma das filhas do rei, que eram três. No dia seguinte, ele foi levar os ramalhetes e a princesa mais moça lhe disse: "De amanhã em diante quero que o Careca traga o meu ramalhete".

O rei e as irmãs da princesa caçoaram muito, mas a moça insistiu e o Careca todos os dias lhe ia levar o ramalhete. Passaram-se tempos e houve aí no reino umas grandes cavalhadas. O Careca, sabendo delas, e indo todos e ele não, disse ao jardineiro que queria ir à casa do ferreiro para mandar fazer uma faquinha.

O jardineiro consentiu. Depois que todos saíram, o Careca também saiu e foi ter à pedra e contou aos cavalos o que havia. Saiu o cavalo castanho todo arreado, o moço aprontou-se, tomou uma lança, soltou os cabelos e apresentou-se nas cavalhadas. Fez a corrida, tirou a argolinha e ofereceu à filha mais moça do rei. Ela lhe deu uma fita verde, que ele amarrou na lança. Todos ficaram admirados daquele lindíssimo moço, mas não sabiam quem era ele.

O rapaz saiu a toda a pressa e ninguém mais o viu. Quando o rei e as princesas chegaram em casa, já lá se achava o Careca na sua roupa de costume. O jardineiro contou-lhe então tudo, falou na boniteza das cavalhadas e no moço de cabelo dourado que tinha aparecido e que ninguém sabia quem era; mas que, se no dia seguinte ele voltasse, seria preso, porque o rei ia mandar colocar tropa para o prender, quando ele quisesse voltar e desaparecer.

No dia seguinte pela manhã foi o Careca levar suas flores à princesa caçula e ela estava doentia de paixão, tendo umas desconfianças que ele fosse o mesmo moço que apareceu nas cavalhadas. À tarde houve novas cavalhadas, e o Careca disse ao jardineiro que ia de novo ver a faquinha, porque o ferreiro não tinha ainda lhe dado, distraído com as festas. Largou-se para a pedra e fez aparecer o cavalo branco e arreios ainda mais ricos do que os primeiros; soltou a cabeleira, aprontou-se e partiu para as cavalhadas.

Havia mais povo ainda do que nas primeiras e lá estava a tropa para prendê-lo quando ele quisesse voltar. Ainda mais espantados ficaram do que na primeira vez. Quando deu-se o sinal para a corrida, o moço partiu, tirou a argolinha e deu à princesa mais moça. Ela lhe deu uma fita encarnada, que ele amarrou na lança e partiu a galope. A tropa cercou-o, mas ele saltou por cima e foi-se. Quando todos chegaram ao palácio, já o Careca lá estava na forma de costume.

A princesa mais moça começava a definhar. No dia seguinte tornou a pilhar o Careca debaixo de um caramanchão mirando os próprios cabelos, que eram dourados e compridos. Ficou a princesa mais alegre e teve certeza de que aquele era o mesmo moço das cavalhadas. Na tarde deste dia houve outra cavalhada, que era a terceira e última. Todos foram e o Careca tornou a sair, desculpando-se com a faquinha. Foi à pedra e fez aparecer o cavalo preto e arreios lindíssimos.

Partiu e, chegando ao ponto das cavalhadas, encontrou muito reforço de tropas para o prender. Não teve medo. Na hora da corrida avançou, tirou a argolinha e ofereceu à princesa da sua escolha e partiu a galope. Fecharam quadrado para o prender, mas o cavalo voou por cima e perdeu-se na corrida, que ninguém mais o viu. Quando o rei chegou ao palácio, já estava lá o Careca muito a seu gosto.

Nunca ninguém desconfiou que o Careca era o moço rico das corridas, senão a princesa mais moça.

Ora, aí nesse reino costumava de tempos a tempos aparecer uma fera que tudo devastava, comia muita gente e ninguém podia dar cabo dela. O rei tinha dito que quem matasse a fera havia de casar com a princesa mais velha. Ninguém se atrevia. O Careca, sabendo disso, foi ter à pedra e contou aos cavalos. Saiu o cavalo preto e disse-lhe que se montasse nele, amarrasse-lhe no peito um grande espelho e avançasse contra a fera, porque esta, vendo o seu retrato no espelho, havia de supor que era outra fera, ficaria atrapalhada e o moço a poderia então matar.

Assim fez o rapaz. Matou a fera, e cortou-lhe as sete pontas das sete línguas. Ninguém viu isto.

No dia seguinte apareceu a fera morta e botou-se editais para ver quem a tinha morto. Ninguém apareceu, então o rei julgou-se dispensado quanto à sua filha mais velha e decidiu-se a casar todas três quanto antes e no mesmo dia.

Mandou procurar príncipes, mas a caçula declarou que só se casaria com o Careca. O rei ficou muito desgostoso, mas não teve outro remédio. O rei ordenou que queria dar um banquete no dia do casamento, todo de pássaros caçados pelos futuros genros. Todos três saíram a caçar, cada um para seu lado. Nenhum matou nada a não ser o Careca, que foi ter à pedra e os cavalos lhe deram aves a valer.

Um dos noivos o encontrou, e sem o conhecer pediu que lhas vendesse. O Careca consentiu com a condição de lhe passar ele uma declaração em como lhes havia comprado. O príncipe aceitou e passou a declaração. O Careca guardou. Afinal chegou o dia do casamento. Todos se apresentaram muito bem prontos e o Careca humildemente vestido.

No jantar houve muita alegria, mas o Careca lá estava para um canto. No fim de tudo o rei disse que antes de todos se despedirem, queria que cada um dos genros contasse uma história.

O marido da princesa mais velha levantou-se e disse: "O que tenho a contar é que quem matou aquele bicho, que a todos fazia medo, fui eu, e não disse há mais tempo porque queria me casar com a princesa por escolha natural e não porque tivesse a promessa do casamento por matar a fera". E mostrou os cotocos das línguas. Levantou-se o marido da segunda princesa e disse: "Eu o que tenho a dizer é que quem caçou todos estes pássaros para esta festa fui eu."

Então levantou-se também o Careca e disse: "A minha história é que os dois genros do rei mentiram. Quem matou a fera fui eu, e aqui está a prova. Estas é que são as pontas das línguas e aqueles são os cotocos das línguas. Quem fez a caçada fui eu, e a prova é esta declaração que aqui tenho e que podem ler. Além disto, o moço que embasbacou a todos nas corridas fui eu, e a prova são as fitas que aqui tenho".

Aí ele tirou a bexiga da cabeça e todos o reconheceram. Ficaram os dois príncipes muito envergonhados, e a princesa mais moça quase doida de contentamento.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. RJ: José Olímpio, 1954,