segunda-feira, 6 de julho de 2020

Adênis Bergamaschi (Poemas Avulsos)


ASPIRAÇÃO

Quero sorver a doçura do teu beijo
no cálice da minha angústia.
Quero beijar teu fugidio olhar
com os lábios sedentos de minha alma,
uma só vez,
de tal modo
que eu fique satisfeito para sempre.
Quero tragar tua alegria e tua tristeza,
no mesmo instante,
com o mesmo prazer
e com o mesmo dissabor.
Quero abraçar-te com os braços gigantescos
do meu amor imenso
e permanecer unido a ti
no deserto da vida
e na solidão da morte.
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O RELÓGIO

Soa a meia-hora.
Perdido no tempo,
quero certificar-me da hora exata.
Mas, quando ouço outras pancadas,
não consigo contá-las.
Apenas distingo a meia-hora.
Meu cérebro está confuso...
Quero apenas saber que existo,
independente do tempo.
O relógio bate desordenadamente.
Sei que o tempo não parou.
Basta-me distinguir a meia-hora,
o momento marcado
para a realização do meu sonho.
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PRIMEIRA NAMORADA

Após tantos anos,
vejo-te surgir no horizonte
da minha adolescência distante.
Vejo-te qual estrela perdida
na noite comprida
da minha lembrança.

Vejo-te bela, sorrindo,
singela, pedindo
o meu coração.
Imagem querida,
por que me persegues?

É de todo impossível
ver-te a meu lado
e reviver, satisfeito,
as horas saudosas
de um sonho desfeito..,
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ROSA ABERTA

A rosa abriu-se
para saudar tua passagem,
Teu pensamento perdido na distância
não percebeu a imensidão do gesto da rosa.
Mas a rosa aberta ficou,
e suas pétalas sorridentes
aclamaram tua passagem.
Seguias por um caminho imaginário,
num momento de luz,
sorrindo às estrelas
no azul do sonho.
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SAUDAÇÃO A PROFESSORA PRIMÁRIA

Salve, Mestra primária, doce amiga
do nosso filho, da gentil criança,
primavera de sonhos, esperança
que todo lar alegremente abriga.

Salve, missão que a tanto amor obriga,
traduzindo em renúncia e confiança
o que será talvez vaga lembrança,
quando não fores mais que a Mestra antiga.

Salve, Mestra — caminho do porvir!
Aclamada serás aonde fores,
porque o bem tu sabes transmitir.

E, percorrendo os ásperos caminhos,
levas nas mãos o bálsamo das flores,
com que aplacas a ira dos espinhos.
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SONETO DE ESPERANÇA

(À memória de minha querida sogra D. Maria Starling do Pinho)

Trilhando a longa senda da Esperança,
vergada à cruz pela existência afora,
com fé e tão sublime confiança,
buscaste sempre a nova e eterna aurora.

Teu doce e puro riso de criança,
iluminando o teu viver, agora
unido à Luz da bem-aventurança,
resplandece na eterna e doce aurora.

Morreste para a vida transitória,
porém na eternidade ressurgiste,
participando da suprema Glória.

E descansas na Paz do amor divino,
onde a ventura verdadeira existe,
rendendo graças num eterno hino.
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TROVA

Ao lado da namorada,
pescava com alegria,
embora sem pegar nada,
que peixão ele trazia!
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Adênis Bergamaschi nasceu em Ribeirão de Cima/ES, em 17 de janeiro de 1935. Filho de Emilio Bergamaschi e de D. Idália Gasir Bergamaschi, falecidos. Casado com Léa Angelo Bergamaschi, bacharel e Licenciado em Letras Neolatinas pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Lecionou em alguns colégios de Belo Horizonte, sendo professor de redação comercial no Centro de Teleducação do SENAC e professor de Língua Portuguesa e de Literatura Brasileira no Colégio Técnico do Sindicato dos Hidrelétricos de Belo Horizonte.

Ex-colaborador de A Gazeta de Vitória/ES. Co-autor do livro "Filigranas" (trovas), publicado pela União Brasileira de Trovadores, seção de Belo Horizonte, à qual pertence. Autor do livro "Janela Vazia" (poemas), publicado em 1974, em Belo Horizonte. Participou do livro "Poetas do Brasil", com o conjunto de poemas intitulado "Silêncio das Horas", publicado sob a direção de Aparício Fernandes, em 1975.


Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Sílvio Romero (A Fonte das Três Comadres)

(Folclore do Sergipe)

Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado todos os recursos da medicina, deixou de usar de remédios, e já estava desenganado de que nunca mais chegaria a recobrar a vista. Mas uma vez foi uma velhinha ao palácio pedir uma esmola, e, sabendo que o rei estava cego, pediu para falar com ele para lhe ensinar um remédio. O rei mandou-a entrar, e então ela disse: "Saberá vossa real majestade, que só existe uma coisa no mundo que lhe possa fazer voltar a vista, e vem a ser: banhar os olhos com água tirada da fonte das três comadres. Mas é muito difícil ir-se a essa fonte, que fica no reino mais longe que há daqui. Quem for buscar a água, deve-se entender com uma velha que existe perto da fonte, e ela é quem deve indicar se o dragão está acordado ou dormindo. O dragão é um monstro que guarda a fonte, que fica atrás de umas montanhas". O rei deu uma quantia à velha e a despediu.

Mandou preparar uma esquadra pronta de tudo e enviou o seu filho mais velho para ir buscar a água, dando-lhe um ano para estar de volta, não devendo ele saltar em parte alguma para não se distrair.

O moço partiu. Depois de andar muito, foi aportar em um reino muito rico, saltou para terra e namorou-se lá das festas e das moças. Despendeu tudo quanto levava, contraiu dívidas, e, passado o ano, não voltou para a casa de seu pai.

O rei ficou muito maçado (nota do blog: aborrecido) e mandou preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio para buscar a água da fonte das três comadres. O moço partiu, e, depois de muito andar, foi ter justamente ao reino em que estava já arrasado seu irmão mais velho. Meteu-se lá também no pagode e nas festas, pôs fora tudo que levava, e, no fim de um ano, também não voltou.

O rei ficou muito desgostoso. Então seu filho mais moço, que ainda era menino, se lhe apresentou e disse:

"Agora quero eu ir, meu pai, e lhe garanto que hei de trazer a água!"

O rei mangou com ele dizendo:

"Se teus irmãos, que eram homens, nada conseguiram, o que farás tu?"
Mas o principezinho insistiu, e a rainha aconselhou ao rei para mandá-lo dizendo:

"Muitas vezes donde não se espera, daí é que vem".

O rei anuiu, e mandou preparar uma esquadra e enviou o príncipe pequeno. Depois de muito navegar, o mocinho foi dar à terra onde estavam presos por dívidas os seus irmãos; pagou as dívidas deles, que foram soltos.

Quiseram dissuadi-lo de continuar a viagem e o convidaram para ali ficar com eles; mas o menino não quis e continuou a sua missão.

Depois de ainda muito navegar, o príncipe chegou ao lugar indicado pela velha. Desembarcou sozinho, levando uma garrafa, e foi ter à casa da velha, vizinha da fonte, a qual, quando o viu, ficou muito admirada, dizendo:

"Ó meu netinho, o que veio cá fazer?! Isto é um perigo; você talvez não escape. O monstro que guarda a fonte, que fica ali entre aquelas montanhas, é uma princesa encantada que tudo devora. Procure uma ocasião em que ela esteja dormindo para poder chegar, e repare bem que quando a fera está com os olhos abertos é que está dormindo, e quando está com eles fechados é que está acordada".

O príncipe tomou as sua precauções e partiu. Chegando lá na fonte avistou a fera com os olhos abertos. Estava dormindo. O mocinho se aproximou e começou a encher sua garrafa. Quando já se ia retirando, a fera acordou e lançou-se sobre ele.

"Quem te mandou vir a meus reinos, mortal atrevido?" dizia o monstro; e o moço ia-se defendendo com sua espada até que feriu a fera, e com o sangue ela se desencantou; e então disse:

"Eu devo me casar com aquele que me desencantou. Dou-te um ano para vires me buscar para casa, senão eu te irei ver."

A fera era uma princesa, a coisa mais linda que havia. Em sinal para ser o príncipe conhecido quando viesse, a princesa lhe deu uma de suas camisas.

O príncipe partiu de volta para terra de seus pais. Quando chegou ao reino onde estavam seus irmãos, os levou para bordo para voltarem para seu país. Os outros príncipes seguiram com ele. O menino tinha guardado a sua garrafa no seu baú, e os irmãos queriam roubá-la para lhe fazer mal e se apresentarem ao pai como tendo sido eles que tinham alcançado a água da fonte das três comadres.

Para isto propuseram ao pequeno dar-se um banquete a bordo da esquadra a toda a oficialidade, em comemoração a ter ele conseguido arranjar o remédio para o rei. O pequeno consentiu, e no banquete os seus irmãos, de propósito, propuseram muitas saúdes, com o fim de o embriagarem e poderem roubar-lhe a garrafa do baú. O pequeno de fato bebeu demais e ficou ébrio, os manos então tiraram-lhe a chave do baú, que ele trazia consigo, abriram-no e tiraram a garrafa d’água, e botaram outra no lugar, cheia de água do mar.

Quando a esquadra se apresentou na terra do rei, todos ficaram muito satisfeitos, sendo o príncipe menino recebido com muitas festas. Mas quando foi botar a água nos olhos do rei, este desesperou com o ardor, e então os seus dois outros filhos, dizendo que o pequeno era um impostor, e que eles é que tinham trazido a verdadeira água, deitaram dela nos olhos do pai, o qual sentiu logo o mundo se clarear e ficou vendo, como dantes.

Houve grandes festas no palácio e o príncipe mais moço foi condenado à morte. Mas os matadores tiveram pena de o matar e deixaram-no numas brenhas, cortando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei.

O menino foi dar à casa de um roceiro, que o tomou como seu escravo, e muito o maltratava. Passado um ano, chegou o tempo em que ele tinha de voltar para se ir casar, segundo tinha prometido à princesa da fonte das três comadres, e, não aparecendo ela mandou aparelhar uma esquadra muito forte, e partiu para o reino do moço príncipe, que há um ano tinha ido a seus reinos buscar um remédio, e que lhe tinha prometido casamento, isto sob pena de mandar fogo sobre a cidade.

O rei ficou muito agoniado, e o mais velho de seus filhos se apresentou a bordo, dizendo que era ele. Chegando a bordo a princesa lhe disse: "Homem atrevido, que é do sinal de nosso reconhecimento?" ele, que nada tinha, nada respondeu e voltou para terra muito chateado.

Nova intimação para terra, e então foi o segundo filho do rei, mas o mesmo lhe aconteceu. A princesa mandou acender os morrões, e mandou nova intimação à terra. O rei ficou aflitíssimo, supondo que tudo se ia acabar, porque seu último filho tinha sido morto por sua ordem.

Aí os dois encarregados de o matar declararam que o tinha deixado com vida, cortando-lhe apenas um dedo. Então, mais que depressa, se mandaram comissários por toda a parte procurando o príncipe, dando os sinais dele, e prometendo um prêmio a quem o trouxesse. O roceiro, que o tinha em casa, ficou mais morto do que vivo, quando soube que ele era filho do rei. Botou-o logo nas costas e o levou ao palácio chorando.

O príncipe foi logo lavado e preparado com sua roupa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava um pouco apertada e curta. O prazo que a princesa tinha concedido já estava a expirar, e já se iam acendendo os morrões para bombardear a cidade, quando o príncipe fez sinal de que já ia.

Chegando à esquadra, foi logo reconhecido pela princesa, que lhe exigiu o sinal do reconhecimento e ele lhe apresentou. Então seguiu com ela, com quem se casou e foi governar um dos mais ricos reinos do mundo.

Descoberta assim a tramoia dos dois filhos mais velhos do rei, foram eles amarrados às caudas de cavalos bravos, e morreram despedaçados.

Fonte:
Sílvio Romero, Folclore brasileiro; cantos e contos populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

domingo, 5 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 312


Rachel de Queiroz (Pici)



Foi em 1927. Eu estava naquela faixa de entreaberto botão entrefechada rosa, louca por desabrochar e ver o mundo. No sertão o vento nordeste já soprava violento, a folha do marmeleiro enrolava e caía, e o mormaço do verão, entre as duas e as três da tarde, era de crestar a pele do rosto e as flores no meu pequeno jardim.

E então nós iniciamos a campanha pelo sítio de veraneio; e meu pai acabou comprando o sonhado sitio: por nome Pici, com açude, pomar, baixio de cana, num vale fresco e ventilado para os lados da lagoa da Parangaba. Só que nesse tempo se dizia Porangaba.

E começou nessa época um período muito feliz. Nós éramos seis filhos — dois rapazes, dois meninos e a caçula que começava a engatinhar. O transporte era o trem suburbano que parava defronte ao Asilo e nos levava para a cidade. Meu pai começou logo a plantar o baixio, a fazer planos para o engenho. Trouxe da fazenda as melhores vacas para a vacaria. Eu me iniciava timidamente, frequentando a roda dos literatos na cidade, roda liderada pelo nosso amado guru, Antônio Sales. Júlio Ibiapina me deixava escrever as primeiras croniquinhas no jornal O Ceará. Foi quando conheci Demócrito Rocha, que me dava muita confiança literária; Djacir Meneses, amigo fraterno até hoje. Jáder de Carvalho, meu primo, já amizade velha. O ruidoso e fulgurante Antônio Furtado. Ah, tantos que ainda hoje são amigos, essa graça Deus me deu de conservar os amigos, só a Inominável os carrega.

Mas isso não são recordações literárias, quero falar no sítio Pici.

O casarão era talvez mais do que centenário, feio e mal-amanhado, o chão interno em diversos planos, cheio de camarinhas e cafuas. Assim mesmo ainda hoje me dá remorso quando recordo que promovi os planos para o reformar — e no que se iam derrubando paredes, abrindo portas, a velha estrutura ia desmoronando toda, e por fim o jeito era arrasar tudo e fazer casa nova. Mereço desculpa, tinha só dezesseis anos, não dava valor a essas obras antigas. Meu pai, sei que lhe doeu a demolição; mas afinal a casa desabou mesmo e não tinha sido erguida nem morada por gente dele, argumento forte. Pertencera à família do Padre Rodolfo Ferreira da Cunha e fora vendida depois a um industrial, José Guedes, de quem a compramos.

A casa nova fizemos imensa, um vaticano, salas largas, rodeada de alpendres como nós gostávamos. Ali escrevi meus primeiros livros; O Quinze, muito perseguida, minha mãe me obrigava a dormir cedo — essa menina acaba tísica! — e assim, quando todos se recolhiam, eu me deitava de bruços no soalho da sala, junto ao farol de querosene que dormia aceso (ainda não chegara a eletricidade lá) e em cadernos de colegial. a lápis, escrevi o livrinho todo. Nas grandes mangueiras do pomar eu armava a minha rede e passava as tardes lendo. De noite, nós formávamos uma pequena orquestra com nosso professor de violão, Litrê, puxando no banjo; e a filha dele, Altair, muito bonitinha e afinada, e tinha um menino, Perose. Nas noites de lua vinham uns moços de Porangaba e nos faziam serenata, cantando Mi noche triste. Porque nesse tempo o chique era tango.

Mas depois fomos dispersando. Os rapazes se formavam, morreu um aos dezoito anos, e desceu uma sombra escura sobre o Pici. Veio a guerra, já então eu andava por longe, os americanos estabeleceram uma base lá perto e os blimps, os pequenos dirigíveis prateados, pousavam quase acima da nossa casa. Enquanto isso a cidade crescia, ia cercando o sítio com seus exércitos de casinholas populares. Dava ladrão na fruta, na cana, até nas galinhas e patos. Meu pai morreu. Morreu o outro rapaz. Minha mãe ainda tentou valentemente ficar — mas o cerco urbano se apertava. Vendeu-se o sítio.

Hoje, me contam que por lá mal há vestígios do que foi; aterraram o açude, onde era o engenho é agora uma igreja, abriram ruas no pomar derrubando as grandes mangueiras. Leio nos jornais a respeito do campus universitário do Pici — será na base dos americanos? Diz que o casarão é hoje uma velha casa de quintal pequeno, habitada por sucessivas famílias de estranhos.

Nunca mais fui lá. Dói demais, vai doer demais, imagino. Eu ainda escuto no coração as passadas de meu pai no ladrilho do alpendre, o sorriso de minha mãe abrindo a janela do meu quarto, manhã cedo: “Acorda, literata! Olha que sol lindo!” E as mangas, bola de ouro, que eram os cuidados dela — terão derrubado a mangueira bola de ouro?

Não, nunca mais quero ir lá. Ninguém desenterra um defunto amado para ver como é que estão os ossos.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Caldeirão Poético XXXIV


ANTÔNIO ROBERTO FERNANDES
São Fidélis/RJ, 1945 – 2008

Emoção


Quando não há mais nada a ser falado,
quando os olhares não se cruzam mais,
é hora de se ver que há algo errado
nos relacionamentos conjugais.

Já não importa aí quem é culpado,
nada resolvem cenas passionais
nem simpatias contra o mau-olhado
ou conselheiros matrimoniais.

É o fim. Pronto. Acabou. Não tem mais jeito.
Se, de emoção, um dia ardeu o peito
que dela reste uma lembrança boa.

Não se deve é fechar-se numa esfera,
sem ver que pode estar à nossa espera
outra emoção no olhar de outra pessoa.
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CORNÉLIO PIRES
Tietê/SP, 1884 – 1958, São Paulo/SP

A Origem do homem


– O senhor por acaso não descende
dos bugres que moravam por aqui?
– Hom’eu num sei dizê, vance comprende
que essa gente inté hoje nunca vi.

Mais porém o Bernado diz-que intende
que os moradô antigo do Brasi
gerava de macaco!… Inté me ofende
vê um véio cumo ele, ansim, minti.

D’otra feita um cabocro, – aí um caiçara, -
diz-que nascium de dois e inté de trêis
quando estralava um gomo de taquara!

Nóis num temo parente portuguêis,
nem mico, nem cuati, nem capivara…
Semo fio de Deus como vancêis!
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EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR, 1816– 1918

A chegada


Noite de chuva tétrica e pressaga*.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimária* o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios* caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
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Nota:
* Pressaga = que pressagia, prevê ou pressente
* Alimária = animal de carga
* Ínvios = Em que não se pode passar, transitar (diz-se de caminho, estrada etc.).

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FILEMON F. MARTINS
Itanhaém/SP

Capricho


Quis o destino, caprichoso, um dia,
que eu soubesse, na terra, grande dor.
Conspiração dos astros da poesia
que me fizeram crer no teu amor.

Ingênuo, acreditei na fantasia
que me ofertou teu lábio sedutor,
e vi morrendo, aos poucos, a alegria
quando partias como o beija-flor.

Eras a estrela vésper do meu sonho
povoavas meu céu sempre risonho
em noites de fulgor e de luar…

Mas me deixaste assim, cama vazia,
sem ter ninguém na madrugada fria,
um condenado à morte por amar.
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GAITANO LAERTES P. ANTONACCIO
Manaus/AM

Amor sem emoção


O amor de agora é uma troca virtual,
tão diferente, tão estranho ao coração,
que mais parece uma relação pactual,
entre seres humanos, sem emoção!…

O amor que se contempla nos amantes,
perdeu hoje, a essência da sinceridade.
É falso, não se manifesta como antes,
porque despreza a ética e a moralidade.

O amor agora, vem se transformando
a cada dia, todo minuto, todo instante
deixando a paixão, muito mais distante,

enquanto a falsidade vai se avolumando.
O amor, hoje, não cede nenhum espaço,
não cabe num beijo, não vale um abraço!…
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JOSÉ RIOMAR DE MELO FREITAS
Caucaia/CE

Janelas da alma


Entre as coisas mais certas que já fiz,
Apesar de bem poucas, reconheço,
É convicto afirmar que já conheço,
Sem a chance de erro em seu matiz;

Ao olhar para fotos nos perfís,
Esse dom me foi dado, pois mereço,
Do caráter do tal seu endereço
O seu rosto, o retrato já me diz!

Minha chance de errar é muito pouca,
Nos detalhes sutis de sua boca,
Posso bem deduzir com muita calma...

Se é do bem, se do mal,já fiz estudo,
Agora os olhos complementam tudo,
Pois eles são as janelas da alma...
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MARIA EUGÊNIA CELSO
(Maria Eugênia Celso Carneiro de Mendonça)
São João del Rey/MG, 1890 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

Mudança


Li no jornal teu casamento… Um instante
Sinceramente a humana espécie odiei,
Do mundo o horror se me tornou flagrante
E do planeta desertar sonhei.

Veio depois a reflexão calmante…
Do esquecimento obedecendo à lei
– De ti se fez me coração distante,
Com a vida e os homens me reconciliei.

Passou-se um mês… Hoje encontrei-te… O espanto
Fez-me um segundo emudecer, no entanto
Minh’alma logo te reconheceu.

Eras tu mesmo… mas diminuído,
Diverso, feio, gordo, envelhecido.
Mudaste acaso ou mudaria eu?
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RACHEL RABELO
Petrolina/PE

Ser tão sertão


No trajeto vislumbro tais belezas
das paisagens de luz deste sertão,
que são típicas desta região
completando meu ser de sutilezas.

O teu povo traduz as realezas
conquistadas nas artes da paixão,
na poesia que vem do coração
retratando histórias e certezas.

Lá teu sol nasce já metrificado
vem na chuva um canto ritmado
entoando os ensaios da natura;

tua noite tem brilho diferente
que envolve num manto transparente
as sementes da arte e da cultura!

Contos e Lendas do Mundo (Nação Sioux: O Racum e a Colmeia)

O Racum* dormira o dia inteiro num confortável buraco de árvore. O crepúsculo chegava quando ele acordou, espreguiçou-se uma ou duas vezes e, saltando do topo do tronco onde fizera o seu lar, olhou ao redor para cuidar do seu jantar.

No meio da floresta havia um lago, e ao longo da costa soaram gritos do povo aquático alardeando que o Racum se aproximava cada vez mais. Primeiramente, foi o Cisne quem deu um grito de advertência. O Grou repetiu o brado e, desde o centro do lago, a Gavia*, nadando lentamente, fez o mesmo e seu grito ecoou sobre as águas silenciosas.

O Racum apressou-se, mas não encontrou nenhum pássaro descuidado que ele pudesse agarrar, por isso ele bicou umas poucas conchas de mexilhão e, com habilidade, quebrou-as para alimentar-se da guloseima.

Ao longo do caminho, como ele saltava para lá e para cá, a uma certa distância, enroscou-se; no capim e caiu com as quatro patas sobre uma família de Skunks*, pai, mãe e doze filhotes, que estavam aconchegados em profundo sono numa macia cama de capim seco.

"Ei!", exclamou papai Skunk, "o que você pretende com isso, hein?!"

E ficou olhando desafiante para ele.

"Oh, desculpe-me, desculpe-me", implorou Racum, "eu sinto muito. Eu não tive intenção! Eu estava correndo e não os vi ".

"Da próxima vez, é bom ter cuidado de ver onde pisa!", grunhiu o Skunk, e Racum mais que depressa deu no pé.

Correndo para o alto de uma árvore, ele deu de cara com dois esquilos vermelhos num ninho, mas antes que pudesse enfiar-lhes as patas, do alto do galho eles o repreenderam com raiva.

"Desçam daí, amigos!", pediu Racum., "o que estão fazendo aí em cima? Eu não quero lhes fazer nenhum mal!"

"Você não nos engana, Racum!", tagarelaram os esquilos, e Racum foi embora.

Embrenhando-se pela floresta, ele finalmente achou o oco de uma grande árvore que o atraiu, pois exalava um odor doce e peculiar. Cheirou e cheirou, deu algumas voltas e viu algo escorrendo de uma pequena brecha. Ele experimentou. Era deliciosamente doce.

Subiu e desceu da árvore, até que por fim achou uma abertura por onde podia introduzir a pata. Quando ele a puxou estava coberta de mel!

Agora Racum estava feliz. Ele comeu e cavou, e cavou e comeu o dourado e mágico mel com ambas as patas até que sua bonita e pontuda cara ficou toda lambuzada.

Subitamente, colocou a pata na orelha. Alguma coisa o tinha ferido terrivelmente ali e, em seguida, o seu nariz sensível foi terrivelmente ferroado. Ele esfregou a cara com ambas as patas. Os afiados ferrões se fizeram mais agudos, ele golpeou o ar. Por fim, esqueceu-se de segurar-se em um dos galhos e, assim, num grito, ele despencou direto para o solo,

Ele rolou e rolou por sobre as folhas secas, de modo que ficou coberto dos pés a cabeça, como se fosse um casaco de pele. Os olhos e a cara ficaram cobertos de folhas. Furioso, com medo e com dor, ele arremeteu pela floresta chamando por alguém de sua espécie para que viesse em seu auxílio.

A lua brilhava na floresta e muitos dos seus habitantes estavam fora de suas casas. Um outro Racum ouviu o chamado e veio ao seu encontro. Mas quando viu aquela coisa medonha e lambuzada de folhas secas vindo desvairadamente na sua direção, deu meia volta e correu para salvar sua vida, pois não sabia o que aquela coisa podia ser.

O Racum que havia roubado o mel correu atrás dele tão rápido quanto pôde na esperança de alcançá-lo e implorar que o outro o ajudasse a livrar-se daquelas folhas.

Então, ambos correram até que saíram dos limites da floresta e chegarem à branca e radiosa praia ao redor do lago. Ali, uma raposa os encontrou, mas após uma olhadela na coisa esquisita que perseguia o já aterrorizado Racum, ela deu meia volta e disparou, correndo o mais rápido que podia.

Naquele momento, um jovem urso que trotava para fora da floresta sentou-se de cócoras para observá-los. Quando olhou bem e viu o Racum lambuzado de folhas, tratou de subir numa árvore e sair do caminho.

Já o pobre Racum estava tão fora de si que mal sabia o que estava fazendo. Correu para a árvore no encalço do Urso e o segurou pelo rabo.

"Oh, oh!", rosnou o Urso e Racum o deixou ir embora. 

Sentia-se cansado e terrivelmente envergonhado. Foi quando descobriu o que devia ter feito desde o início - pulou para dentro do lago e livrou-se da maior parte das folhas. Depois voltou para o seu buraco de árvore, enrodilhou-se e lambeu a própria pelagem até que ficasse totalmente limpa. Então, adormeceu.
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Notas:
* Racum – Muito comum no Canadá, animal peludo que tem uma cauda tufosa e anelada e uma faixa de pelos pretos ao redor dos olhos. Esses pelos pretos parecem uma máscara. O racum pertence à família do quati, jupará e panda. É do mesmo gênero do guaxinim.
* Gavia – ave que possui 90 cm de comprimento e pode mergulhar até 81 m de profundidade nas águas de lagos e rios. Com as suas patas implantadas bem atrás no corpo, abre caminho quando mergulha, mas é-lhe difícil andar em terra seca. Por vezes, emite um som, um chamamento ruidoso e lamentoso ou geme e ri loucamente, estranhos ruídos esses que com frequência se ouvem de noite.
* Skunk – Pequeno animal mamífero norte-americano, da família das doninhas, tem pelo preto com uma listra branca e a forma de V no dorso. Expele um odor fétido quando alarmado ou atacado.

Fonte:
Elaine Goodale Eastman e Charles A. Eastman (tradução: Antonio Dorival). O talismã da boa sorte e outras lendas dos índios Sioux. SP: Landy, 2003.

Dia do Trovador Virtual (18 de Julho)



Em 18 de julho (terceiro sábado do mês) às 16 horas, comemoramos o DIA DO TROVADOR! Nessa data realizaremos um grande Sarau Virtual, no qual esperamos grande adesão por parte dos trovadores e amigos simpatizantes da trova. Durante o mesmo divulgaremos o resultado do II Concurso de Trovas Cidade de Curitiba, faremos o lançamento virtual do livreto do Concurso e muitas revoadas de trovas e de poemas de outros gêneros.

Para participar da reunião basta acessar o 

link: https://bityli.com/jrZC2 - 

ID: 996 188 6580/ 

Senha: 5phXuY

Fonte:
UBT-Curitiba. Os Trovadores. n. 103. julho de 2020.

sábado, 4 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 311


Arthur de Azevedo (Puelina)


Por causa do Sr. Artur Leivas, desmanchou-se anteontem um casamento!

O caso, conto como o caso foi:

Na Rua de Santo Amaro (o número da casa não importa) mora a família Castanheira, composta de pai, Sr. João Castanheira, empregado público; da mãe, D. Fulgência Castanheira; e da filha, senhorita Paulina Castanheira, moça de dezoito anos, inteligente, bonita e prendada.

O Pacheco, o Pachequinho da Alfândega, durante um ano inteiro namorou Paulina, ele da rua, ela da sacada, mas ultimamente achou meios e modos de penetrar na praça, e poucos dias depois pedia solenemente a mão da moça, que lhe foi concedida.

Ficou assentado que o casamento se realizaria em março próximo, e até lá o Pachequinho visitaria a noiva todas as quintas-feiras e domingos, à noite.

Anteontem era quinta-feira. O noivo lá foi, e, ao entrar na sala, dirigiu-se à noiva e cumprimentou-a pela seguinte forma:

- Boa noite, Puelina Paulina!

- Como? perguntou a moça.

- Puelina Paulina, repetiu ele.

- Puelina! exclamou o pai Castanheira. Que diabo vem a ser isso?

- Puelina, explicou, sorrindo, o Pachequinho, é o tratamento que Artur Leivas propõe, na Notícia de hoje, para substituir senhorita.

- Pois sim, mas eu não quero que minha filha seja puelina, disse, do seu canto, D. Fulgência.

- Nem eu! acudiu a moça. Puelina! Credo! Não sei o que me parece! Faça o favor de me chamar senhorita, como sempre me chamou!

- Sim, senhorita é preferível, opinou o velho.

- Puelina é delicioso, contrariou o Pachequinho. A palavra parece esquisita porque é nova, mas quando tiver algum uso, verão! Olhe o que escreve Artur Leivas! Ele sabe latim como gente! Parece até Castro Lopes!.

E dirigindo-se à noiva:

- De hoje em diante, quer queira, quer não queira, há de ser tratada por puelina!

- Já lhe disse que não aceito esse tratamento!

- Perdão; quero, exijo que o aceite! Tenho a minha autoridade de noivo! Se não a fizer respeitar, serei um marido sem autoridade!

- Quer saber de uma coisa, Sr. Pacheco? disse o velho Castanheira. Não seja tolo! Se é para fazer imposições dessa ordem que o senhor vai usar da sua autoridade, boa noite!

- O senhor chamou-me tolo!

- Chamei, sim senhor!.

- Pois tolo será ele!.

- O senhor insulta meu pai!

- O senhor insulta meu marido!

- Não insulto: retalio!

- Pois vá retaliar para o diabo que o carregue! Rua.

- Perdão, mas a puelina Paulina ainda não se pronunciou...

- Mas me pronuncio: está desmanchado o casamento!

- Hem?

- Desmanchado, ouviu? gritou o pai. Rua, já disse!.

O Pachequinho pegou no chapéu e saiu.

Um moleque da casa, que tinha ouvido tudo no corredor, chegou à porta e gritou:

- Puelino! Fiáu!.
* * *

E ora aqui está como, por causa do Sr. Artur Leivas, ontem se desmanchou um casamento!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IX


A dor não se perpetue
no rosto do sofredor,
mas a graça sempre atue
na vida do vencedor.
- - - - - -

A vida não nos dá tudo,
razão de ser estudante.
Quem quiser ter o "canudo"
terá que estudar bastante.
- - - - - –

Chegando ao fim da corrida
o homem será convidado,
a prestar contas da vida
colhendo o que foi plantado.
- - - - - –

Com o nosso ecossistema
todos têm envolvimento,
ninguém agrave o problema
do superaquecimento.
- - - - - –

Da videira dos anseios,
cachos de felicidade,
colheremos em passeios
na vindima da saudade.
- - - - - –

Desperta a linda manhã,
o sol desponta no cume,
qual gigante talismã
trazendo vida e perfume,
- - - - - –

Doces frutos de harmonia,
vão pro celeiro do amor
e os amargos, sem valia,
ao fogo eterno da dor.
- - - - - –

Eu não sei se sei quem sou,
ou se quem já foi, sou eu,
só sei que se não fui, vou
ver quem sou, no lar que é meu.
- - - - - –

Frondosa planta, o saber,
bons frutos ela nos dá,
na sombra do entardecer
sempre ao nosso lado está.
- - - - - –

Indesejáveis visitas
muitos dispensam de ter,
consideram "parasitas"
que fingem amigos ser.
- - - - - –

Lenta e calma se mantenha
a caminhada da vida,
se possível nunca venha
ser no seu final perdida.
- - - - - –

Luta acirrada e ferrenha
a das nossas sociedades,
talvez o que falte, tenha,
demais em necessidades.
- - - - - –

Não só São Francisco tem
o poder que a vida traz,
eu posso e devo também
ser instrumento de paz.
- - - - - –

No alvo dos nossos projetos
a vida esteja presente
e os que não forem adjetos
possam ser futuramente.
- - - - - –

No Brasil, o Corcovado,
nosso Cristo Redentor,
Pão de Açúcar elevado,
maravilhas do Senhor.
- - - - - –

No semblante fica escrito
o que está dentro do peito,
tem um pouco do infinito
e muito do nosso jeito.
- - - - - –

Num solo rico e fecundo
ontem, só mata existia,
hoje, produz para o mundo,
vinhos, uva e simpatia.
- - - - - –

O alimento que ingerimos,
nos renove as energias
e tudo o que digerimos
seja fonte de alegrias.
- - - - - -

O brilho da madrugada
vai cedendo o seu lugar,
na manhã toda enfeitada
que também sonha brilhar.
- - - - - -

O fulgor da madrugada
tendo a lua à noite inteira,
transforma-a em meio a noitada
numa dama seresteira.
- - - - - –

Ontem, à luz da fogueira,
brilhava a festa junina,
por não termos mais madeira
hoje, resta a lamparina...
- - - - - –

O passarinho cantando
nova jornada anuncia
e o galo também vai dando
no cantar o seu bom-dia!
- - - - - –

Paris é a cidade-luz
pelo Sena contemplada,
Eiffel, marco que a traduz,
numa vista iluminada.
- - - - - –

Percalços, pedras roliças,
que atravancam os caminhos,
deturpam muitas premissas
e machucam como espinhos.
- - - - - –

Pra se ter democracia
liberdade deve haver,
gerir com diplomacia
na alternância do poder.
- - - - - –

Quando andares pela estrada
controla a velocidade,
porque a próxima parada
pode ser à eternidade.
- - - - - –

Que a vida se torne emblema
e não cruzes nas estradas,
o amanhã chega e condena
quaisquer decisões erradas.
- - - - - –

Quem não temer o perigo
nele pode perecer,
se tiver a mão do amigo
bem melhor será vencer.
- - - - - –

Roma que é cidade-eterna
orgulha cada romano,
guarda sob a luz materna
as bênçãos do Vaticano.
- - - - - –

Se os ramos forem rompidos
por qualquer banalidade,
sobrarão frutos caídos
sem nenhuma utilidade.
- - - - - –

Tantos momentos cruciais
que atormentam nossos dias,
ferem porque são demais
assassinos de alegrias.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) NP e A Tribuna de Maringá


Minha atividade principal em Maringá, até o final dos anos 1955, era uma lojinha de autopeças, porém nas horas vagas fui me envolvendo cada vez mais na imprensa local, publicando crônicas na “A Hora”, do Chico de Souza, e no “O Jornal de Maringá”, do Ivens Lagoano Pacheco. Mas peguei mesmo, para valer, quando Manuel Tavares lançou “A Tribuna de Maringá”. Nas primeiras edições o redator principal era o Ary de Lima, que, entretanto, muito ocupado com os seus compromissos de professor, não pôde continuar. Por insistência do bravo Tavares, aceitei a chefia de redação e iniciamos um trabalho jornalístico que marcou época. Ali se revelaram alguns dos mais brilhantes jornalistas maringaenses da época, entre os quais Ademar Schiavone, Luís Carlos Borba, Ademaro Barreiros, Pedro Granado Martainez, Divanir Braz Palma, João Amaro Faria.

Ao mesmo tempo em que atuava na “A Tribuna”, assumi com Aristeu Brandespim o desafio de produzir a primeira revista da cidade, “Maringá Ilustrada”, cuja edição inaugural chegou às bancas em agosto de 1957. Hoje, quem tem um exemplar dessa edição sabe que tem um tesouro.

A publicação trazia a lista dos primeiros pioneiros; uma reportagem sobre a festa dos 10 anos de Maringá, inclusive mostrando o acidente em que dois aviões da Esquadrilha da Fumaça caíram em cima da caixa d’água da antiga estação ferroviária; textos sobre os primeiros políticos locais, fotos de homens e mulheres de destaque na sociedade, e uma preciosidade: a cobertura da chegada do primeiro bispo da diocese, Dom Jaime Luiz Coelho.

Na primeira edição os redatores éramos Ary de Lima e eu. A partir da segunda, que trouxe na capa a maquete da nova Catedral em desenho de Edgar Osterroht, fiquei como redator-chefe. Mas Brandespim era um homem arrojado e achou que o nome “Maringá Ilustrada” restringia o âmbito da publicação. Mudou então para “NP” – “Norte do Paraná em Revista”, e no ano seguinte outra vez mudou, passando ao nome definitivo: “NP” – “Novo Paraná”.

Aos poucos fomos formando uma pujante equipe de colaboradores. Cito alguns, incluindo jornalistas de Maringá, Londrina e Curitiba: Ademar Schiavone, Frank Silva, Ademaro Barreiros, Túlio Vargas, Luís Carlos Borba, Clóvis de Freitas, Correia Júnior (Zitão), Emílio Germani, Altino Borba, Wilson Silva, Ênnio Monção Pires, Milton Cavalcanti, Samuel Guimarães da Costa, Luiz Geraldo Mazza, Bacila Neto, Pedro Dória, Helê Velozo Fernandes, Alceu Chichorro. Os principais fotógrafos eram Edgar Taboranski e Jasson Figueiredo.

“A Tribuna de Maringá” e a revista “NP” circularam enquanto vivos foram seus valorosos diretores (Manuel Tavares e Aristeu Brandespim). Os pesquisadores encontram raríssimos exemplares no museu da UEM, no Patrimônio Histórico do Município e no Museu Esportivo do jornalista Antonio Roberto de Paula.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-3-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 310


Monteiro Lobato (Cavalinhos)


Elsa entrou da rua repuxando com o dedo a gola da blusa de seda carmesim, para refrescar com abanos frenéticos de leque o pescoço afogueado. Falou da procissão, que estivera linda — povaréu, muitas palmas. Disse que nunca vira tanta gente na igreja; que nem se podia respirar, que estava assim! (e apinhava os dedos). Que a filha de nhá Vica fizera um berreiro dos demônios; que não sabe por que levam crianças à igreja. Depois interpelou o primo:

— Por que não foi, Lauro?

— Eu... — ganiu o rapaz derreado na cadeira de balanço.

Não terminou. Entrava dos fundos dona Didi. Elsa, sua filha casada, beijou-lhe a mão, abraçou-a.

— Por que não foi, mamãe, aos cavalinhos, ontem? Esperei-a lá. Não imagina o que perdeu! A companhia é ótima.

— Não pude, passei mal o dia — dor de cabeça, visitas...

— Pois perdeu. Há lá um menino que é um prodígio — pouco maior que o Juquinha, completamente desengonçado. Faz trabalhos pasmosos, que contados ninguém acredita. Pega nas duas perninhas, cruza-as na cabeça, aqui na nuca, e com as mãos pula como um sapo. Depois desengonça a cabeça e gira com ela como se a tivesse presa por um barbante. Uma coisa extraordinária! O sujeito do trapézio não trabalha mal. Achei muita graça no Juquinha — era a primeira vez que ele ia ao circo:

“De que é que você gostou mais, meu filho?”—, perguntei.

“Gostei mais do homem que se balança na rede e cai na peneira.”

A rede é o trapézio e a peneira é a rede de malhas...

Todos riram; a vovó, com delícias; Lauro, complacente — e Juquinha, que estava à janela cuspilhando nos transeuntes, recebeu olhares cheios de amorosa admiração.

Elsa parolou ainda um bocado. Depois, voltando-se para o primo:

— Que horas são, Lauro?

— Sete e meia — expectorou o moço, com um pigarro que foi cuspir à janela.

— Quase horas!... Começa às oito. Não vai, mamãe? Vá, a senhora precisa de distrações. É por causa desse aferrolhamento em casa que anda assim magra e amarela. Saia, espaneje-se!

Nisto espocaram foguetes. Elsa contou-os, de dedo para o ar.

— Três! É o sinal. E você, Lauro, vai ou...

— Pode ser que sim, pode ser que não — gemeu o filósofo.

— Diabo de rapaz este! “Pode ser!...” Ó velho de cem anos! Ó caramujo! Desate isso, vá!

— Fazer? Ver trapézios? Meninos desossados? Palhaços?... Iria, se não houvesse lá nenhuma dessas coisas, nem a moça que corre no cavalo, nem o homem do arame, nem...

— Mas que é então que havia de haver?

— Nada. Gente nas prateleiras, cochilando, e no picadeiro um gato morto... a cheirar.

— Só? Ai, que já é mania de originalidade! Pois vou eu. Não tanto pelos trabalhos como pela troça, o farrancho. Bole-se com um, atira-se uma casca de pinhão noutro, e assim corre a noite alegremente. E quem não fizer isto neste cinismo de terra morre encarangado, cria orelha-de-pau.

Ajeitou sobre o penteado o fichu de sedinha vermelha, deu diante do espelho uns retoques à cara e, com um “Até logo, corujas!”, saiu com o Juquinha pela mão.

Dona Didi recolheu.

Lauro ficou outra vez só na saleta, uma perna sobre o braço da cadeira, fumando pensativamente. Zoava-lhe ao ouvido a parolice trêfega da prima. Consultou o relógio: quase oito! Ergueu-se, tomou do chapéu e saiu.

Noite linda. No alto, a lua cheia apascentando um rebanho de nuvenzinhas acarneiradas.

Lauro deambulou a esmo, de mãos cruzadas às costas, batendo o calcanhar com o ponteiro da bengala. Famílias deslizavam pelas ruas, de rumo ao circo; deslizavam como sombras, à luz baça dos lampiões de querosene. Magotes de pretas passavam, taralhando, num rufo de saias engomadas. Iam com pressa, numa açodada ânsia pelas molecagens do palhaço.

E Lauro rememorou os tempos em que também ele se tomava daquela sofreguidão, nos dias magníficos em que o pai anunciava ao jantar: “Aprontem-se que hoje vamos aos cavalinhos”. Com longa antecedência já ele e os irmãos vestiam a roupa nova, punham o gorro de marinheiro e de bengalinha de junco na mão sentavam-se à porta da rua à espera do anoitecer.

Lauro reviu nitidamente o Laurinho de outrora, trotando para o circo à frente do farrancho, e depois sentado na terceira fila das arquibancadas, com olhadelas gulosas para a última, rente ao pano, onde se repimpavam os moleques. Lá é que era a pândega!

Soava a sineta. O povo pedia o “paiaço”. Vinha um “casaca de ferro” espevitar os lampiões. Grosso berreiro: “Arara! Arara! Ó caradura!”.

Impassível, o homem graduava a luz dos belgas, um por um, sem pressa; depois pegava da corda e içava aquela coroa de lampiões acesos, aos goles, até meio mastro.

Rompia a música. Bem maçante a música. Dava sono...

Afinal, começava a função e o palhaço entrava como um bólide, rolando às cambalhotas. Tão engraçado!... O relógio dos fundilhos do calção marcava meio-dia. Na cabeça, inclinado para a orelha, o chapelinho de funil, microscópico. Bastava ver o palhaço e Lauro desandava a espremer risos sem fim. A cara caiada, as enormes sobrancelhas de zarcão, os modos, a roupa, tinha tudo tanta graça...

Mas o melhor eram as micagens e as histórias. “Vem cá, seu cara de burro: quem de vinte tira dois quanto fica?” O “casaca de ferro” respondia: “Dezoito, naturalmente”. “Ó asno! Fica zero!” O povo estourava de riso — e Lauro com ele...

Vinham depois os trabalhos. Não gostava. O arame, que caceteação! O trapézio, maçante... Mas gostava dos cavalos porque com eles reaparecia o palhaço e mais o Tony. Oh, como era bom quando havia Tony! A gente estava distraída e de repente plaf! Que foi? Foi o Tony que caiu! E cada tombo...

No melhor da festa aparecia um idiota com uma tabuleta: INTERVALO. Era um desmancha-prazeres e por isso objeto de ódio. Todos saíam. Ficava só a mulherada. Lauro cochilava então e às vezes dormia recostado na tábua dura. Ao termo dum quarto de hora voltavam todos, e o papai trazia embrulhos de doces, empadas, pastéis.

A pantomima! Era o melhor. Os salteadores da Calábria, A estátua de carne...

E a Maria borralheira? Vira-a duas vezes, e nunca havia de esquecer aquele desfile de figurões históricos — Garibaldi de muletas, o general Deodoro, Napoleão...

Suas recordações estavam em Napoleão, quando Lauro chegou à praça onde zumbia o circo. Reviu a clássica barraca iluminada por dentro, deixando ver, desenhada no pano, a silhueta dos espectadores repimpados nos bancos de cima. Em redor, tabuleiros com lanternas dúbias a alumiarem as cocadinhas queimadas, os pés de moleque, os bons-bocados; e mulatas gordas ao pé, vendendo; e baús com pastéis, cestas de amendoim torrado, balaios de pinhão cozido. E, grulhantes em torno, os pés-rapados de bolso vazio, que namoram as cocadas, engolindo em seco, e admiram com respeito os “peitudos” que chegam à bilheteria e malham na tábua um punhado de níqueis, pedindo com entono:

— Uma geral!

O encanto de tudo aquilo, porém, estava morto, tanto é certo que a beleza das coisas não reside nelas senão na gente.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 4


parar de escrever
bilhetes de felicitações
como se eu fosse camões
e as ilíadas dos meus dias
fossem lusíadas,
rosas, vieiras, sermões
****************************************

o soneto a crônica o acróstico
o medo do esquecimento
o vício de achar tudo ótimo
e esses dias
longos dias feito anos
sim pratico todos
os gêneros provincianos
****************************************

Minha cabeça cortada
Joguei na tua janela
Noite de lua
Janela aberta

Bate na parede
Perdendo dentes
Cai na cama
Pesada de pensamentos

Talvez te assustes
Talvez a contemples
Contra a lua
Buscando a cor de meus olhos

Talvez a uses
Como despertador
Sobre o criado-mudo

Não quero assustar-te
Peço apenas um tratamento condigno
Para essa cabeça súbita
De minha parte
****************************************

nada que o sol
não explique

tudo que a lua
mais chique

não tem chuva
que desbote essa flor
****************************************

a perda do olfato
eu não lamento
afinal o olfato
só serve pra cheirar
os quatro elementos
vamos ao fato

o paladar eu perdi
mas não porque o perdesse
tirei da cabeça
o gosto do abacaxi

do ouvido não olvido
pois tendo desenvolvido
a guerra dos sentidos
me voltei pro silêncio
o som não faz sentido

uma consequência
toma conta de mim
como se fosse um barato
****************************************

objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja
****************************************

não creio
que fosse maior
a dor de dante
que a dor
que este dente
de agora em diante
sente

não creio
que joyce
visse mais numa palavra
mais do que fosse
que nesta pasárgada
ora foi-se

tampouco creio
que mallarmé
visse mais
que esse olho
nesse espelho
agora
nunca
me vê

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1987.

Machado de Assis (Um Capitão de Voluntários)


Indo a embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da República, Simão de Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou a um amigo para imprimi-la quando ele estivesse barra fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma coisa que podia ser penosa, e assim lhe disse em carta. Simão respondeu que estava por tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o manuscrito ao prelo.

Éramos dois, elas duas. Os dois íamos ali por visita, costume, desfastio, e finalmente por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, ele meu amigo. Às tardes, sobre o jantar, — jantava-se cedo em 1866, — ia ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via um morro com casas em cima. A janela oposta dava para o mar. Não digo a rua nem o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do meu amigo; ponhamos uma letra X... Ela, uma delas, chamava-se Maria.

Quando eu entrava, já ele estava na cadeira de balanço. Os móveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mão larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janela, olho na sala, olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Éramos nada um para o outro; ligava-nos unicamente a afeição de X... Conversávamos; eu saía para casa ou ia passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogávamos cartas, às noites, e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas.

Tudo em X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu franzino; a minha graça feminina, débil, desaparecia ao pé do garbo varonil dele, dos seus ombros largos, cadeiras largas, jarrete forte e o pé sólido que, andando, batia rijo no chão. Dai-me um bigode escasso e fino; vede nele as suíças longas, espessas e encaracoladas, e um dos seus gestos habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por elas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a idade; X... era homem de quarenta anos, eu não passava dos vinte e quatro. Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde saíra a encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu não vivera nada nem com pessoa alguma. Enfim, — e este rasgo é capital, — havia nele uma fibra castelhana, uma gota do sangue que circula nas páginas de Calderón, uma atitude moral que posso comparar, sem depressão nem riso, à do herói de Cervantes.

Como se tinham amado? Datava de longe. Maria contava já vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi que o primeiro encontro fora em um baile de máscaras, no antigo Teatro Provisório. Ela trajava uma saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha os pés admiráveis, e foram eles ou o seu destino a causa do amor de X... Nunca lhe perguntei a origem da aliança; sei só que ela tinha uma filha, que estava no colégio e não vinha à casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente as nossas relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a situação sem a examinar.

Quando comecei a ir ali, não tinha ainda o emprego no banco. Só dois ou três meses depois é que entrei para este, e não interrompi as relações. Maria tocava piano; às vezes, ela e a amiga Raimunda conseguiam arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomávamos chá em sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabávamos a noite indo de carro a Botafogo.

A estas festas não ia Barreto, que só mais tarde começou a frequentar a casa. Entretanto, era bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como saíssemos de lá, encaminhou a conversa para as duas mulheres, e convidou-me a namorá-las.

— Tu escolhes uma, Simão, eu outra.

Estremeci e parei.

— Ou antes, eu já escolhi, continuou ele; escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda. Tu, escolhe a outra.

— A Maria?

— Pois que outra há de ser?

O alvoroço que me deu este tentador foi tal que não achei palavra de recusa, nem palavra nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessário. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu três anos, mas tinha a idade conveniente para ensinar-me a amar. Está dito, Maria. Deitamo-nos às duas conquistas com ardor e tenacidade. Barreto não tinha que vencer muito; a eleita dele não trazia amores, mas até pouco antes padecera de uns que rompera contra a vontade, indo o amante casar com uma moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a almoçar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-me.

— Estão entendidos?

— Estamos. E vocês?

— Eu não.

— Então quando?

— Deixa ver; eu te digo.

Naquele dia fiquei meio vexado. Com efeito, apesar da melhor vontade deste mundo, não me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. Não suponhas que era nenhuma paixão. Não tinha paixão, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda calor e vida, sentia-me tomado de uma força nova e misteriosa; mas, por um lado, não amara nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo isto, não para explicar escrúpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu acanhamento. Viviam juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha confiança em mim, confiança absoluta, comunicava-me os seus negócios, contava-me coisas da vida passada. Apesar da desproporção da idade, éramos como estudantes do mesmo ano.

Como entrasse a pensar mais constantemente em Maria, é provável que por algum gesto lhe houvesse descoberto o meu recente estado; certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos dela se demoravam mais entre os meus. Dois dias depois, indo ao correio, encontrei-a selando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era baiana? Era baiana. Ela é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À porta ia a dizer alguma coisa, quando vi ante nós, parada, a figura de X...

— Vim trazer a carta para mamãe, apressou-se ela em dizer.

Despediu-se de nós e foi para casa; ele e eu tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasião para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minúcias acerca da origem das relações, assegurou-me que fora uma grande paixão igual em ambos, e concluiu que tinha a vida feita.

— Já agora não me caso; vivo maritalmente com ela, morrerei com ela. Tenho uma só pena; é ser obrigado a viver separado de minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele parando. E continuou andando: sabe, e até já me fez uma alusão muito vaga e remota, mas que eu percebi. Consta-me que não desaprova; sabe que Maria é séria e boa, e uma vez que eu seja feliz, não exige mais nada. O casamento não me daria mais que isto...

Disse muitas outras coisas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me rijo, e as pernas andavam frouxas. Não atinava com resposta idônea; alguma palavra que soltava, saía-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu estado e interpretou-o erradamente; supôs que as suas confidências me aborreciam, e disse-me rindo. Contestei sério:

— Ao contrário, ouço com interesse, e trata-se de pessoas de toda a consideração e respeito.

Penso agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hipocrisia. A idade das paixões é confusa, e naquela situação não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não é fora de propósito que buscasse dissipar no ânimo de X... qualquer possível desconfiança. A verdade é que ele me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos, apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!”

Não me separei dele aterrado, nem ferido de remorsos prévios. A primeira impressão da confidência esvaiu-se, ficou só a confidência, e senti crescer-me o alvoroço da curiosidade. X... falara-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma alusão às suas prendas físicas, mas a minha idade dispensava qualquer referência direta. Agora, na rua, via de cor a figura da moça, os seus gestos igualmente lânguidos e robustos, e cada vez me sentia mais fora de mim. Em casa escrevi-lhe uma carta longa e difusa, que rasguei meia hora depois, e fui jantar. Sobre o jantar fui à casa de X...

Eram ave-marias. Ele estava na cadeira de balanço, eu sentei-me no lugar do costume, olho na sala, olho no morro. Maria apareceu tarde, depois das horas, e tão anojada que não tomou parte na conversação. Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala.

— Maria acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. Já lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que... Você sabe... A posição dela... Felizmente, a ideia há de passar; tem dessas fantasias...

— E por que não?

— Ora, porque não! E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.

— Eu não. Prefiro os argentinos.

— Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o López.

— Não; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria.

— Eu, nem que me fizessem coronel, não me alistava.

Ele disse não sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, à escuta dos pés de Maria, não respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e sempre à escuta. Mas o diabo da moça não vinha; imaginei que estariam arrufados. Enfim, propus cartas, podíamos jogar uma partida de voltarete.

— Podemos, disse ele.

Passamos ao gabinete. X... pôs as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas frases sussurradas, mas só esta me chegaram claras:

— Vem! é só meia hora.

— Que maçada! Estou doente.

Maria apareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doía-lhe a cabeça e contava deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começamos a partida. Eu arrependia-me de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu estado, com o calor necessário a persuadi-la. Se a tenho conservado, entregava-lhe agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedir-se de mim e fechar a cancela. Nessa ocasião podia dar-lhe; era uma solução da minha crise.

Ao cabo de alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a secretária. Maria fez então um gesto que não sei como diga nem pinte. Ergueu as cartas à altura dos olhos para os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava à esquerda, e arregalou-os tanto e com tal fogo e atração, que não sei como não entrei por eles. Tudo foi rápido. Quando ele voltou fazendo um cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as como se calculasse. Eu devia estar trêmulo; não obstante, calculava também, com a diferença de não poder falar. Ela disse então com placidez uma das palavras do jogo, passo ou licença.

Jogamos cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o próprio X... que lhe disse que era melhor ir descansar. Despedi-me e passei ao corredor, onde tinha o chapéu e a bengala. Maria, à porta da sala, esperava que eu saísse e acompanhou-me até à cancela, para fechá-la. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço, chegou-me a si, colou-me os lábios nos lábios, onde eles me depositaram um beijo grande, rápido e surdo. Na mão senti alguma coisa.

— Boa noite, disse Maria fechando a cancela.

Não sei como não caí. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos dela, e a mão apertando instintivamente um objeto. Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua, corri a um lampião, para ver o que trazia. Era um cartão de loja de fazendas, um anúncio, com isto escrito nas costas, a lápis: “Espere-me amanhã, na ponte das barcas de Niterói, a uma hora da tarde”.

O meu alvoroço foi tamanho que durante os primeiros minutos não soube absolutamente o que fiz. Em verdade, as emoções eram demasiado grandes e numerosas, e tão de perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei até ao Largo de S. Francisco de Paula. Tornei a ler o cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e uma patrulha que estava perto talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a respeito da comoção, tinha fome e fui cear no Hotel dos Príncipes. Não dormi antes da madrugada; às seis horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos antes de uma hora cheguei à ponte; já lá achei Maria, envolvida numa capa, e com um véu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela.

O mar acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas, de aves, e o céu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que dissemos foi tão de atropelo e confusão que não me ficou mais de meia dúzia de palavras, e delas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referência a ele. Sentíamos ambos que traíamos, eu o meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o não sentíssemos, não é provável que falássemos dele, tão pouco era o tempo para o nosso infinito. Maria apareceu-me então como nunca a vi nem suspeitara falando de mim e de si, com a ternura possível naquele lugar público, mas toda a possível, não menos. As nossas mãos colavam-se, os nossos olhos comiam-se, e os corações batiam provavelmente ao mesmo compasso rápido e rápido. Pelo menos foi a sensação com que me separei dela, após a viagem redonda a Niterói e S. Domingos. Convidei-a desembarcar em ambos os pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos metêssemos numa caleça fechada: “Que ideia faria de mim?” perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou. E despedimo-nos com prazo dado, jurando-lhe que eu não deixaria de ir vê-los, à noite, como de costume.

Como eu não tomei da pena para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e esperanças, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Tais aventuras são como os almanaques, que, com todas as suas mudanças, hão de trazer os mesmos dias e meses, com os seus eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento. Era baiana, como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro encontro com X... no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro, disse-me que era verdade, fora ali vestida à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma coisa, menos a máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo:

— Você poderia ficar doido.

— Mas X... não ficou doido.

— Ainda hoje não está no seu juízo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só...

E em pé, num maneio rápido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue.

O trimestre acabou depressa, como os trimestres daquela casta. Maria faltou um dia à entrevista. Era tão pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez, quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, à espreita e à escuta, até que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a notícia do meu desespero, o tempo que rolei no chão, falando, gritando ou chorando. Quando cansei, escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse também, explicando a falta. Não mandei a carta, e à noite fui à casa deles. Maria pôde explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por alguém que a perseguia desde algum tempo. Com efeito, haviam-me já falado em não sei que vizinho que a cortejava com instância; uma vez disse-me que ele a seguira até à porta da minha casa. Acreditei na razão, e propus-lhe outro lugar de encontro, mas não lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas entrevistas, até fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não compreendi então que a principal verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era outra, principalmente outra. E não podes imaginar o que vinha a ser essa bela criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que ninguém.

Quando me entrou a convicção de que tudo estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias passados, fazia-me crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; não podia viver sem ela.

X... recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mão forte e sincera; perguntou a razão da minha ausência. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o enfadamento que eu não podia vencer, disse que ainda me doía a cabeça. Maria compreendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, à minha saída, não foi até ao corredor, como de costume. Tudo isto dobrou a minha angústia. A ideia de morrer entrou a passar-me pela  cabeça; e, por uma simetria romântica, pensei em meter-me na barca de Niterói, que primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baía, atirar-me ao mar. Não iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto, não vacilei em lhe dizer tudo; precisava de alguém para falar comigo mesmo. No fim pedi-lhe segredo; devia pedir-lhe especialmente que não contasse nada a Raimunda. Nessa mesma noite ela soube tudo. Raimunda era um espírito aventureiro, amigo de entrepresas e novidades. Não se lhe dava, talvez, de mim nem da outra, mas viu naquilo um lance, uma ocupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá lugar a este papel.

Falou-lhe uma e mais vezes. Maria quis negar a princípio, acabou confessando tudo, dizendo-se arrependida da cabeçada que dera. Usaria provavelmente de circunlóquios e sinônimos, frases vagas e truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto que aí fica é o da própria Raimunda, que me mandou chamar à casa dela e me referiu todos os seus esforços, contente de si mesma.

— Mas não perca as esperanças, concluiu; eu disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se.

— E sou.

— Pois não se mate por ora; espere.

No dia seguinte vi nos jornais uma lista de cidadãos que, na véspera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como voluntários da pátria, e nela o nome de X..., com o posto de capitão. Não acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia referências à família de X..., ao pai, que fora oficial de marinha, e à figura esbelta e varonil do novo capitão; era ele mesmo.

A minha primeira impressão foi de prazer; íamos ficar sós. Ela não iria de vivandeira para o Sul. Depois, lembrou-me o que ele me disse acerca da guerra, e achei estranho o seu alistamento de voluntário, ainda que o amor dos atos generosos e a nota cavalheiresca do espírito de X... pudessem explicá-lo. Nem de coronel iria, disse-me, e agora aceitava o posto de capitão. Enfim, Maria; como é que ele, que tanto lhe queria, ia separar-se dela repentinamente, sem paixão forte que o levasse à guerra?

Havia três semanas que eu não ia à casa deles. A notícia do alistamento justificava a minha visita imediata e dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compus um rosto ajustado à situação e entrei. X... veio à sala, depois de alguns minutos de espera. A cara desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquela era fechada e torva, além de pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:

— Então, vem ver o capitão de voluntários?

— Venho ouvir o desmentido.

— Que desmentido? É pura verdade. Não sei como isto foi, creio que as últimas notícias... Você por que não vem comigo?

— Mas então é verdade?

— É.

Após alguns instantes de silêncio, meio sincero, por não saber realmente que dissesse, meio calculado, para persuadi-lo da minha consternação, murmurei que era melhor não ir, e falei-lhe na mãe. X... respondeu-me que a mãe aprovava; era viúva de militar. Fazia esforços para sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os olhos buscavam desviar-se, e geralmente não fitavam bem nem longo. Não conversamos muito; ele ergueu-se, alegando que ia liquidar um negócio, e pediu-me que voltasse a vê-lo. À porta, disse-me com algum esforço:

— Venha jantar um dia destes, antes da minha partida.

— Sim.

— Olhe, venha jantar amanhã.

— Amanhã?

— Ou hoje, se quiser.

— Amanhã.

Quis deixar lembranças a Maria; era natural e necessário, mas faltou-me o ânimo. Embaixo arrependi-me de o não ter feito. Recapitulei a conversação, achei-me atado e incerto; ele pareceu-me, além de frio, sobranceiro.

Vagamente, senti alguma coisa mais. O seu aperto de mão tanto à entrada, como à saída, não me dera a sensação do costume.

Na noite desse dia, Barreto veio ter comigo, atordoado com a notícia da manhã, e perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe a minha visita da manhã, a nossa conversação, sem as minhas suspeitas.

— Pode ser engano, disse ele, depois de um instante.

— Engano?

— Raimunda contou-me hoje que falara a Maria, que esta negara tudo a princípio, depois confessara, e recusara reatar as relações com você.

— Já sei.

— Sim, mas parece que da terceira vez foram pressentidas e ouvidas por ele, que estava na saleta ao pé. Maria correu a contar a Raimunda que ele mudara inteiramente; esta dispôs-se a sondá-lo, eu opus-me, até que li a notícia nos jornais. Vi-o na rua, andando: não tinha aquele gesto sereno de costume, mas o passo era forte.

Fiquei aturdido com a notícia, que confirmava a minha impressão. Nem por isso deixei de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto quis ir também; percebi que era com o fim único de estar comigo, e recusei.

X... não dissera nada a Maria; achei-os na sala, e não me lembro de outra situação na vida em que me sentisse mais estranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ela. Creio que ela também desviou os olhos. Ele é que, com certeza, não nos observou; riscava um fósforo e acendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que pôde, ainda que frio. O rosto exprimia maior esforço que na véspera. Para explicar a possível alteração, disse-me que embarcaria no fim da semana, e que, à proporção que a hora ia chegando, sentia dificuldade em sair.

— Mas é só até fora da barra; lá fora torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que devo ser.

Usava dessas palavras rígidas, alguma vez enfáticas. Notei que Maria trazia os olhos pisados; soube depois que chorara muito e tivera grande luta com ele, na véspera, para que não embarcasse. Só conhecera a resolução pelos jornais, prova de alguma coisa mais particular que o patriotismo. Não falou à mesa, e a dor podia explicar o silêncio, sem nenhuma outra causa de constrangimento pessoal. Ao contrário, X... procurava falar muito, contava os batalhões, os oficiais novos, as probabilidades de vitória, e referia anedotas e boatos, sem curar de ligação. Às vezes, queria rir; para o fim, disse que naturalmente voltaria general, mas ficou tão carrancudo depois deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumamos, ele ainda quis falar da guerra, mas o assunto estava exausto. Antes de sair, convidei-o a ir jantar comigo.

— Não posso; todos os meus dias estão tomados.

— Venha almoçar.

— Também não posso. Faço uma coisa; na volta do Paraguai, o terceiro dia é seu.

Creio ainda hoje que o fim desta última frase era indicar que os dois primeiros dias seriam da mãe e de Maria; assim, qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos secretos da resolução, devia dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse uma prenda em lembrança, um livro, por exemplo. Preferi o seu último retrato, fotografado a pedido da mãe, com a farda de capitão de voluntários. Por dissimulação, quis que assinasse; ele prontamente escreveu:

“Ao seu leal amigo Simão de Castro oferece o capitão de voluntários da pátria X...” O mármore do rosto era mais duro, o olhar mais torvo; passou os dedos pelo bigode, com um gesto convulso, e despedimo-nos.

No sábado embarcou. Deixou a Maria os recursos necessários para viver aqui, na Bahia, ou no Rio Grande do Sul; ela preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, três semanas depois, a esperar que ele voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechara-me a porta, como já me havia fechado o rosto e o coração.

Antes de um ano, soube-se que ele morrera em combate, no qual se houve com mais denodo que perícia. Ouvi contar que primeiro perdera um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez atirar-se contra as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão podia ser exata, porque ele tinha desvanecimentos das belas formas; mas a causa foi complexa.

Também me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em Curitiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéu. A filha não passou dos quinze anos. Eu cá fiquei entre os meus remorsos e saudades; depois, só remorsos; agora admiração apenas, uma admiração particular, que não é grande senão por me fazer sentir pequeno. Sim, eu não era capaz de praticar o que ele praticou. Nem efetivamente conheci ninguém que se parecesse com X... E por que teimar nesta letra? Chamemos-o pelo nome que lhe deram na pia, Emílio, o meigo, o forte, o simples Emílio.

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias da Casa Velha. Publicado originalmente pela Editora Garnier (RJ) em 1906.

A Literatura Portuguesa (Cronicões e Hagiografias; Humanismo)

CRONICÕES E LIVROS DE LINHAGEM

Além da poesia e das novelas de cavalaria no trovadorismo, ainda foram cultivados outras manifestações literárias: os cronicões, as hagiografias e os nobiliários ou livros de linhagem.

Os cronicões, de pouco valor literário, deram origem à historiografia portuguesa e serviram de material de suporte para Herculano compor sua Portugaliae Monumenta Historica. Crônicas Breves do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, Crónica Geral de Espanha (1344), provavelmente elaborada por D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis.

As hagiografias (= vidas de santos), escritas em Latim, possuem ainda menos significado literário.

Os livros de linhagens eram relações de nomes especialmente de nobres, com o objetivo de estabelecer graus de parentesco que serviam para dirimir dúvidas em caso de herança, filiação ou de casamento em pecado (= casamento entre parentes até o sétimo).

Ao lado de informações tipicamente genealógicas revelam veleidades literárias: nas referências às ligações genealógicas se intercalam, com realismo colorido e naturalidade, narrativas breves, mas de especial interesse, como a da Batalha do Salado.

HUMANISMO (1418-1527)

Em Portugal, o Humanismo inicia-se quando Fernão Lopes, guarda-mor da torre do Tombo desde 1418, é encarregado por D. Duarte (filho de D. João I) de “por em crônica as histórias de seus antepassados. e ou da sua promoção a Cronista-Mor do Reino, em 1434, e encerra-se em 1527, quando Sá de Miranda regressa da Itália trazendo a medida nova (ou o decassílabo).

Pela primeira vez, é demonstrada uma preocupação com a História documentada, envolvendo a descrição dos fatos sociais fora dos parâmetros da Corte.

OS CRONISTAS:

FERNÃO LOPES

Autodidata, de origem humilde, foi um dos legítimos representantes do saber popular, embora já no seu tempo um novo tipo de saber começava a surgir: de cunho erudito-acadêmico e humanista.

Das várias crônicas que teria escrito sobre os reis portugueses da primeira dinastia (Dinastia de Avis) e do começo da segunda, várias se perderam, só restando três de autoria indiscutível: Crônica d'El Rei D. Pedro, Crônica d'El-Rei D. Fernando e Crônica d'El-Rei D. João I. Outras, ainda lhe são atribuídas, como a Crônica do Condestável (publicada em 1526).

Decididamente vocacionado para a historiografia, Fernão Lopes tem sido considerado o "pai da História" em Portugal. Sua visão abrangente e lúcida de Fernão Lopes torna possível o “nascimento” da História documentada de Portugal compilando fatos como a Dinastia de Avis, a expansão marítima portuguesa.

Seu valor como historiador reside acima de tudo no fato de procurar ser "moderno", desprezando o relato oral em favor dos acontecimentos documentados.

Do ponto de vista da forma, o seu estilo representa uma literatura de expressão oral e de raiz popular. Ele próprio diz que nas suas páginas não se encontra a formosura das palavras, mas a nudez da verdade. “(...) nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra mistura, deixando nos bons aquecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao povo, quaisquer contrárias coisas, da guisa que avieram."

Fernão Lopes enquadra-se nitidamente nas estruturas culturais da Idade Média. Todavia, alguns pormenores fazem dele um homem avançado para o seu tempo. Dotado dum estilo maleável, coloquial, primitivo, saborosamente palpitante e vivo, não escondia o seu gosto acentuado pelo arcaísmo, talvez em decorrência de sua origem plebeia e seu amor ao povo, à "arraia-miúda".

Fernão Lopes possui incomum sentido plástico da realidade, procurando oferecer ao leitor um instantâneo "vivo", "atual", dos acontecimentos. Incorporou em sua obra alguns recursos da novela, como por exemplo, nos retratos psicológicos das personagens, a cerrada cronologia, o emprego dos diálogos, constituem soluções estruturais que trouxe da novela e construiu com seu próprio pendor literário.

Sua carreira como historiador é provavelmente a mais longa, sendo sucedido por Gomes Eanes de Zurara após a aposentadoria.

continua…

Fontes: 
Textos obtidos em
Célio Antonio Sardagna. Literatura Portuguesa. UNIASSELVI, 2010.
Massaud Moisés. A LITERATURA PORTUGUESA. São Paulo: Cultrix, 2008.
Teófilo Braga. História da literatura portuguesa – Renascença. Lisboa: INCM, 2005. v. 2.