terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Estante de Livros (A Falecida, de Nelson Rodrigues)


análise pela Profa. Sônia Targa.


A Falecida, 1ª tragédia carioca, foi considerada um marco na obra de Nelson Rodrigues. Pela primeira vez o autor aproveitou sua experiência na coluna de contos A vida como ela é… para retratar o típico subúrbio carioca, com suas gírias e discussões existenciais. Os cenários passaram do “qualquer lugar, qualquer tempo” das peças míticas, para a Zona Norte carioca dos anos 50. Os personagens não representam mais arquétipos nem revelam alguma parte escusa da alma dos brasileiros. O que Nelson Rodrigues mostra agora é o cotidiano vulgar dos brasileiros. A falta de dinheiro, as doenças, o dedo no nariz das crianças, as pernas cabeludas de uma mulher, as cartomantes picaretas e o lado mais grosseiro da vida serão presenças constantes em suas peças daqui para frente.

A linguagem coloquial e repleta de gírias assustou a plateia do Teatro Municipal, afinal ninguém imaginaria colocar longos vestidos de veludo para assistir a uma peça onde o protagonista fala sobre futebol. Passado o estranhamento inicial da plateia com o “carioca way of life”, Nelson Rodrigues faz as pazes com o seu sucesso comercial. Talvez porque suas tragédias, quando viradas do avesso, comportem-se como comédias, preferência brasileira nos anos dourados.

Escrita em 26 dias, A Falecida foi encenada pela Companhia Dramática Nacional e recebeu direção do quase estreante José Maria Monteiro. Nos bastidores, Nelson Rodrigues apaixonou-se perdidamente por Sônia Oiticica, intérprete da protagonista feminina Zulmira. Apesar de se sentir lisonjeada com os galanteios do famoso dramaturgo, Sônia não lhe deu bola e, educadamente, deu a entender que era muito bem casada. A delicadeza, entretanto, não conseguiu evitar que o coração do dramaturgo se partisse pela primeira vez depois do fim do casamento com Elsa.

A Falecida conta a história de uma mulher frustrada do subúrbio carioca, a tuberculosa Zulmira, que não vê mais expectativas na vida. Pobre e doente, sua única ambição é um enterro luxuoso. Quer se vingar da sociedade abastada e, principalmente de Glorinha, sua prima e vizinha que não lhe cumprimenta mais. Zulmira tem uma relação de competição com a prima, chegando até mesmo a ficar feliz quando sabe que a seriedade da prima provém de um seio arrancado pelo câncer.

O marido, Tuninho, está desempregado e gasta as sobras da indenização jogando sinuca e discutindo futebol. Um pouco antes da hemoptise fatal, Zulmira manda Tuninho procurar o milionário Pimentel para que pague o enterro de 35 mil contos (o sepultamente normal, na época, não chegava a um conto!). Zulmira não dá maiores explicações nem diz como conhece o empresário milionário. Pede apenas para que o marido se apresente como seu primo.

Tuninho vai até a mansão de Pimentel e acaba descobrindo que ele e Zulmira foram amantes. Toma-lhe o dinheiro e, depois de ameaçar contar tudo a um jornal inimigo de Pimentel, consegue lhe arrancar mais ainda, supostamente para a missa de sétimo dia. Tuninho dá um enterro “de cachorro” à Zulmira e aposta o dinheiro todo num jogo do Vasco no Maracanã.

Como definir A Falecida? Tragédia, drama, farsa, comédia? Valeria a pena criar o gênero arbitrário de ‘tragédia carioca’? É, convenhamos, uma peça que se individualiza, acima de tudo, pela tristeza irredutível. Pode até fazer rir. Mas se transmite uma mensagem triste, que ninguém pode ignorar. Os personagens, os incidentes, a história, tudo parece exprimir um pessimismo surdo e vital. Dir-se-ia que o autor faz questão de uma tristeza intransigente, como se a alegria fosse uma leviandade atroz”.

A Falecida revolucionou o teatro brasileiro da época ao abordar uma temática extremamente carioca. Foi a primeira de muitas peças onde Nelson Rodrigues colocou suburbanos frustrados e fracassados como protagonistas. Suas tragédias cariocas são mais simples que suas peças míticas, não há tantos símbolos e poesia. Em contrapartida, foi graças a elas que o brasileiro pôde se reconhecer no palco. O sucesso comercial foi muito grande e essas foram as peças mais assistidas de Nelson Rodrigues.

Para retratar fielmente o suburbano e sofrido carioca, Nelson Rodrigues trocou a poesia e as metáforas pela linguagem coloquial. As personagens conversam sobre temas triviais, comentam assuntos populares e usam muitas gírias. O autor foi muito feliz na escolha delas, já que a grande maioria transfere o leitor contemporâneo diretamente para a década de 50. Com faro para descartar modismos, Nelson Rodrigues usou em A Falecida expressões como “a polícia não é sopa”, “pintar o sete”, “pernas de pau”, “cabeça inchada”, “é batata!”, etc. Tem espaço até mesmo para as abreviações da linguagem falada, como “té logo!”, e estrangeirismos, como “all right” e “bye, bye”.

A ironia e o deboche são as características mais marcantes em A Falecida. A visão do autor é extremamente pessimista, como se no final tudo sempre estivesse predestinado a dar errado. A cartomante consultada por Zulmira numa das primeiras cenas perde o sotaque afrancesado assim que recebe o dinheiro. O filho da cartomante passa toda a consulta com o dedo no nariz, plantado ao lado da mãe. O médico, cujo nome é Borborema, diz que Zulmira não tem tuberculose, é apenas uma gripe.

Aliás, nenhum médico consultado pela protagonista lhe deu o diagnóstico certo. Determinada hora, Tuninho é mandado embora do jogo de sinuca por uma dor de barriga violenta. Assim que chega em casa, corre para o banheiro, mas está ocupado por Zulmira. Uma cena antológica acontece quando Tuninho consegue sentar no vaso e, com a mão no queixo, simula a atitude de O Pensador, escultura de Rodin.

Para conseguir mostrar com mais profundidade a realidade dura do subúrbio, Nelson Rodrigues apela para o vulgar e o grotesco.

Belos cavalos de enterros chiques são odiados porque soltam fezes pelo caminho. A mãe de Zulmira fica sabendo da morte da filha enquanto “coça as pernas cabeludas”. A prima da protagonista, Glorinha, é loira, mas oxigenada. Foge da praia não por timidez do maiô, como acreditava Zulmira, mas sim porque o câncer lhe extirpou um dos seios. Zulmira, por sua vez, tinha um cheirinho de suor que agradava o amante. O ódio que Zulmira sente do marido vem desde a lua de mel, quando ele lavou as mãos depois do ato sexual.

A falta de ilusão e o pessimismo feroz do autor mostram à plateia uma Zulmira enganada até mesmo na hora da morte, quando ela é enterrada no caixão mais barato da funerária – contrariando a regra da cultura ocidental de que o último pedido de um moribundo é lei. As personagens são mostradas em situação nada glamourosas, como espremendo cravos nas costas, fazendo necessidades no banheiro, etc.

Às avessas, A falecida é uma comédia das mais rasgadas. O dramático aparece em muitas cenas como digno de risadas. Determinada momento do 2° ato, o autor coloca na rubrica da cena em que Tuninho está viajando de táxi: “Luz sobre o táxi, em que viaja Tuninho. Táxi, evidentemente, imaginário. O único dado real do automóvel é uma buzina, gênero ‘fon-fon’, que o chofer usa, de vez em quanto. A ideia física do táxi está sugerida da seguinte forma: uma cadeira, atrás da outra. Na cadeira da frente vai o chofer, atrás, Tuninho. O chofer simula dirigir, fazendo curvas espetaculares”. Em outro momento, discute-se as razões que levaram Zulmira a se recusar a beijar o marido na boca:

“Tuninho – Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que faz minha mulher? Fecha a boca!

Cunhado – Muito curioso!

Tuninho – Mas como? – perguntei eu à minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!’

Sogra – Ora veja!

Cunhado (de óculos e livro debaixo do braço) – Caso de psicanálise!

Outro – De quê?

Cunhado – Psicanálise.

Outro (feroz e polêmico) – Freud era um vigarista!”


Esta cena serve também para ilustrar o cuidado de Nelson Rodrigues com a caracterização das personagens de A Falecida. A personalidade tanto dos protagonistas quanto das personagens secundárias é revelada, muitas vezes, em apenas uma única frase. Às vezes, como no caso retratado acima, basta uma aparição no palco para a plateia se dar conta do tipo de pessoa. Primeira heroína frustrada de Nelson Rodrigues, Zulmira trai porque não vê muita motivação no seu mundinho.

Não tem dinheiro, não tem divertimento e não tem mais esperança de que sua vida possa mudar. Por isso concentra-se na sua morte, ou seja, em planejar nos mínimos detalhes o seu enterro de luxo. Seu marido Tuninho também é frustrado e infeliz. Não se acha capaz de conseguir um novo emprego e, por isso, resolve passar o tempo com os amigos, na praia, jogando sinuca ou falando sobre futebol. Todos têm em comum o fato de não terem o destino da vida nas mãos.

A grande inovação estrutural de Nelson Rodrigues em A Falecida está na troca de protagonistas que acontece no 3° ato. Zulmira tem a ação nas mãos nos dois primeiros atos, quando pesquisa preços para o seu enterro e visita médicos para se certificar de que está mesmo com tuberculose.

No final do 2° ato, a suburbana morre e passará o comando da peça para o marido, Tuninho. A partir daí, ele vai atrás de Pimentel para conseguir o dinheiro do enterro e descobre a traição de sua mulher. O foco narrativo muda, portanto, no meio da peça.

Mas Zulmira também tem aparições esporádicas no 3° ato, principalmente para elucidar aspectos ainda nebulosos de sua personalidade. Na cena em que Pimentel está revelando a infidelidade de Zulmira, Tuninho arrasta a sua cadeira e se coloca diante do quadro, na mesma posição de um observador da plateia. Aparece então Zulmira, que reproduz com Pimentel o contexto da traição.

O corte do flashback acontece com um grito de Tuninho, histérico com a “coragem” da mulher em traí-lo no banheiro de uma lanchonete enquanto ele esperava na mesa. Voltar no tempo para contar a traição de Zulmira foi uma solução bastante eficiente encontrada por Nelson Rodrigues. Se a história fosse apenas contada por Pimentel a Tuninho, a cena ficaria monótona e perderia parte de seu conteúdo dramático.

Outra novidade presente em A Falecida é a multiplicidade de cenários. Zulmira vai à cartomante, ao banheiro, ao quarto, à Igreja, à casa dos pais, à funerária e ao consultório, até morrer de hemoptise. Tuninho aparece num táxi, numa sinuca, na mansão do empresário Pimentel e até mesmo no Maracanã. Para poder abarcar tantas mudanças, o espaço é vazio e o único objeto fixo são as cortinas. Ao contrário do que possa parecer, a peça não ficou fragmentada e o resultado saiu original.

Frases

“A solução do Brasil é o jogo do bicho! E, minha palavra de honra, eu, se fosse presidente da República, punha o Anacleto (bicheiro) como ministro da Fazenda”.
Timbira, funcionário da funerária

Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco X Fluminense… O enterro é amanhã… Quer dizer que ele não vai poder assistir ao jogo… Isso é o que eu chamo de peso tenebroso!…”.
Oromar

Mas como? – perguntei eu a minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!'”.
Tuninho

A mulher de maiô está nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!”.
Zulmira

Fonte:
Jayro Luna.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 17 –

 


Gregório Duvivier (Abraço Caudaloso)


Amizade entre cronistas é um perigo: todo papo esbarra em crônica, já que toda crônica é uma espécie de papo. Foi numa conversa com o Antonio Prata, meu ex-amigo-platônico
“ex” não por não ser mais amigo mas por não ser mais platônico – que a bola começou a quicar. “Isso dá uma crônica”, ele disse. Mas nenhum dos dois escreveu, por escrúpulos de estar roubando a ideia do outro. Eu, que tenho menos escrúpulos e menos ideias, resolvi escrever.

Palavras, percebemos, são pessoas. Algumas são sozinhas: Abracadabra. Eureca. Bingo. Outras são promíscuas (embora prefiram a palavra “gregária”): estão sempre cercadas de muitas outras: Que. De. Por.

Algumas palavras são casadas. A palavra caudaloso, por exemplo, tem união estável com a palavra rio – você dificilmente verá caudaloso andando por aí acompanhada de outra pessoa. O mesmo vale para frondosa, que está sempre com a árvore. Perdidamente, coitado, é um advérbio que só adverbia o adjetivo apaixonado. Nada é ledo a não ser o engano, assim como nada é crasso a não ser o erro. Ensejo é uma palavra que só serve para ser aproveitada. Algumas palavras estão numa situação pior, como calculista, que vive em constante ménage, sempre acompanhada de assassino, frio e e.

Algumas palavras dependem de outras, embora não sejam grudadas por um hífen – quando têm hífen elas não são casadas, são siamesas. Casamento acontece quando se está junto por algum mistério. Alguns dirão que é amor, outros dirão que é afinidade, carência, preguiça e outros sentimentos menos nobres (a palavra engano, por exemplo, só está com ledo por pena – sabe que ledo, essa palavra moribunda, não iria encontrar mais nada a essa altura do campeonato).

Esse é o problema do casamento entre as palavras, que por acaso é o mesmo do casamento entre pessoas. Tem sempre uma palavra que ama mais. A palavra árvore anda com várias palavras além de frondosa. O casamento é aberto, mas para um lado só. A palavra rio sai com várias outras palavras na calada da noite: grande, comprido, branco, vermelho – e caudaloso fica lá, sozinho, em casa, esperando o rio chegar, a comida esfriando no prato.

Um dia, caudaloso cansou de ser maltratado e resolveu sair com outras palavras. Esbarrou com o abraço que, por sua vez, estava farto de sair com grande, essa palavra tão gasta. O abraço caudaloso deu tão certo que ficaram perdidamente inseparáveis. Foi em Manoel de Barros. Talvez pra isso sirva a poesia, pra desfazer ledos enganos em prol de encontros mais frondosos.

Fonte:
Blog da Língua Portuguesa

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas)


Abraça-me com ternura,
dá-me um pouquinho de amor,
afasta minha amargura
e apazigua a minha dor.
- - - - - -
Acorda, amor! Veja o sol,
à porta, chamando a gente,
para ver seu arrebol
na casa do sol nascente.
- - - - - -
Acredito ser verdade,
este amor que por mim sente.
Mas vivamos da saudade
do que foi o amor da gente.
- - - - - -
Agora você me diz:
“Por favor, não se acostume...
Não lhe quero, nunca quis;
eu só quis fazer ciúme...”
- - - - - -
Amanhã pode ser tarde,
pra entregar seu coração,
a este alguém que hoje arde,
chora e sofre de paixão.
- - - - - -
As flores do meu jardim
morreram todas depois
que você fugiu de mim,
levando junto nós dois!
- - - - - -
Banhado por seu olhar,
ao som do seu violão,
eu me ponho a passear
nos jardins do coração.
- - - - - -
Chego a perder o sentido
quando me encontro em seus braços,
e fico muito esquecido
no calor dos seus abraços.
- - - - - -
Cheguei ao fundo do poço,
quando você me deixou,
e ao voltar, ainda moço,
a esqueci, você passou!
- - - - - -
Com esta caneta escrevo
esta trova de saudade
para você... mas eu devo
alertar que é de amizade.
- - - - - -
Cuidaste tão bem de mim,
que eu hoje me sinto mal,
por ter te falado assim:
“Acabou, ponto final!”.
- - - - - -
De modo muito singelo
nosso amor galgou vitória...
É grande o nosso castelo,
mas sobressai nossa história!
- - - - - -
Deus lhe pôs no meu caminho,
pra não me ver sofrer mais.
Você, Rosa sem espinho,
calou todos os meus ais.
- - - - - -
Eu chego a perder o sono,
pensando em ti, minha flor.
Não quero ser o seu dono,
e sim o seu beija-flor.
- - - - - -
Fazendo os dias amenos,
acalmo minha agonia,
de quando, dos sonhos plenos,
acordo – a cama vazia!
- - - - - -
Foi o tempo, um adversário,
em meu cenário de amor,
truculento, sanguinário;
mas eu saí vencedor.
- - - - - -
Fui em sua vida um nada,
e nada serei... Assim,
ao me encontrar pela estrada,
vê se não olha pra mim.
- - - - - -
Não sai de minha memória
a nossa história de amor;
você, sua trajetória,
seu desejo abrasador...
- - - - - -
Na tela do meu cinema
você foi e ainda é,
o filme do meu dilema:
amor, angústias e fé!
- - - - - -
Neste poema humilde e breve,
eu choro a perda de alguém,
que esta boca não se atreve
falar seu nome a ninguém.
- - - - - -
Nos palcos de minha vida,
você foi minha Iracema;
a poesia transmitida
na tela do meu cinema!
- - - - - -
Nosso amor é muito lindo
e gostoso de se ver,
que nem mesmo, Amor, fingindo,
conseguirei esquecer.
- - - - - -
Nunca chega o amanhecer,
quando o coração padece
de tanto amor, de querer
alguém que não nos merece!
- - - - - -
Olhe bem para o jardim,
veja como está feliz.
Eu só quero ser assim,
com você, ó flor-de-lis!   
- - - - - –
O nosso amor não é lenda
e nem um conto de fada.
Talvez eu lhe surpreenda:
ele é só amor e mais nada!
- - - - - -
Os sonhos que sonho são
delírios desta minh’alma
que, se entregando à paixão,
perdeu a razão e a calma.
- - - - - -
Percebo que lhe perdi,
mas não deixo de lhe amar.
Foi ótimo o que vivi
com você, meu Céu, meu Mar.
- - - - - -
Perdoe-me se fui covarde,
Não era a minha intenção
dizer a você bem tarde:
– Não me dê seu coração!
- - - - - -
Por causa do teu ciúme
me afastei, fiquei distante;
porém isso não resume
quanto me foste importante.
- - - - - -
Quando você põe em mim
seus lindos olhos azuis,
minha tristeza tem fim
e os meus enche-se de luz.
- - - - - -
Queria ser uma abelha,
pra pousar nessa boquinha
aveludada e vermelha,
que parece uma florzinha.
- - - - - -
Seus olhos são diamantes,
valiosos, minha querida.
São raros, são fascinantes,
por eles dou minha vida.
- - - - - -
Seus olhos têm um feitiço
que me prende e me domina;
eles me fazem submisso
a você, mulher menina.
- - - - - -
Sim, todas estas poesias
e as lágrimas que derramo,
lembram-me todos os dias,
que é você que ainda eu amo.
- - - - - –
Sinto faltar um pedaço
de tudo que existe em mim.
Sou planeta sem espaço
sem você, meu Querubim.
- - - - - -
Sofreu sem fazer alarde,
a dor dum amor desfeito.
Hoje sei bem o quanto arde,
pois sofro do mesmo jeito.
- - - - - -
Sofro de amor, de paixão,
nessa minha vida inglória.
Por não ter mais ilusão,
ponho um ponto nessa história!
- - - - - -
"Trilha amarga. Que desgosto"
sentir o gosto da dor,
e ver em todo meu rosto
as marcas do dissabor! .
- - - - - -
Vá-se embora! Tem razão...
Mas, por favor, não se queixe
se na maré de... ilusão
nunca mais encontrar peixe.
- - - - - -
Vê se acorda, coração,
vive sonhando profundo...
Saiba que o amor é ilusão:
a pior de todo o mundo.

Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Nilto Maciel (O Veneno da Cobra)


A morte do sábio Salomão. Ou João Paulo, Juan Pablo, Jean-Paul. Charles, Karl ou Carlos Magno. Joseph ou José de Anchieta. Alejandro, Alexandre, Alexander. Ignora-se seu nome verdadeiro, sua nacionalidade. Pode ter nascido russo, Alexey Maykov, Konstantin Ostrovsky, Fiodor Saltikov. Francês, inglês, chinês, brasileiro. Ninguém faz caso disso. Vale contar sua morte. Há algum tempo, porém, não se conta a morte de heróis, mitos, eminências. Quando muito, se a noticia. Virou moda esse medo da morte. Não do fato, mas da sua metafísica.

No entanto, Salomão (?) não é um homem da moda. É raro. Antigo como os deuses e novo como os astronautas, sem nunca ter sido de ontem e sem ser de hoje. Se é do futuro, ninguém sabe.

Não importa, ele é morto.

Segundo os cronistas mais famosos, tão imprevisível era que, se tivesse escrito versos, seria o maior de todos os poetas; se tivesse se dedicado à conquista amorosa, não se falaria mais em donjuanismo; se houvesse tomado a dianteira de algum partido ou grupo, agora o poder brilharia em suas mãos. Nada disso fez, porém. Jamais se interessou por poesia, sexo e política. Nem sequer escreveu versos de amor aos 15 anos. Não se casou, não teve amantes, nunca frequentou o infindável abismo do prazer. Um dia leu Marx e toda a nata de pensadores burgueses. Apenas. Não levantou uma palha pelos operários, nem tirou o chapéu para os banqueiros. Manteve-se sempre longe de tudo. Ou perto, à sua maneira.

Ninguém o chamou de menino prodígio, a não ser alguns biógrafos de meia tigela.

Às vésperas de morrer, revelou sua grande descoberta: as fórmulas da vida e da morte, os componentes de seus vírus.

Nas universidades, academias, parlamentos expôs suas conclusões. Chamaram-no de feiticeiro, embusteiro, louco. As igrejas o condenaram. Certa imprensa o promoveu a semideus. Pagavam-lhe a fábula do ouro por um programa dominical. Grupos extremistas sequestraram-no e exigiram, como resgate, milhões de dólares. Ninguém deu ouvidos a nada. Se o matassem, seriam perdoados por todos os seus atos pretéritos e futuros. As editoras propuseram-lhe contratos escandalosos pela publicação de sua obra. Mil impostores escreveram porcarias em seu nome.

Esteve fugido pelos quatro cantos do mundo, até morrer quase anonimamente. Ao lado do cadáver encontraram seu único escrito:

O vírus da morte é o antídoto do vírus da vida. Os dois existem na natureza infinitamente. Em constante luta. Em condições normais, o vírus da vida vence seu inimigo durante determinado tempo. Aos poucos, porém, um e outro ocupam o mesmo “espaço” e finalmente o da morte sai vencedor.

Um animal qualquer é picado por cobra venenosa. Como explicar isso? É simples: o vírus da morte contido no animal conduziu-o à serpente. Num átimo de segundo esse vírus se desenvolveu de forma progressiva no interior do corpo da vítima. Poderia ter ocorrido uma reviravolta, uma brusca reação do vírus da vida e o animal passar a um centímetro da cobra sem ser picado. Ou dar meia volta e regressar. Ou conseguir matar a serpente.

Se conseguirmos produzir o vírus da vida e injetá-lo nos seres vivos, chegaremos a retardar a morte e até a eliminá-la. E não seria um trabalho eterno, porque, à medida que as pessoas e os animais se enriquecessem de vírus de vida, conseguiriam transmiti-lo a seus contemporâneos e descendentes. Algumas gerações depois teríamos reduzido a zero o vírus letal da face da terra.

Porém, cometi um erro fatal. Não, cometer não é o verbo exato. Talvez fosse melhor dizer que não me afastei da tentação de desconfiar de minha própria descoberta. Se tivesse me injetado uma poção que fosse do vírus da vida, agora não estaria diante da morte. Mas nem sequer o produzi, dedicado que permaneci a divulgar minhas teorias. Ao chamado instinto de conservação sobrepunha-se em mim o vedetismo. A morte vencia a vida.

A partir daí, o vírus letal se apoderou do meu ser: frequentei universidades, academias, parlamentos; me apavorei diante da morte; fugi dos homens. Até que – cheio de dúvidas – me fiz solitário e pus-me a imaginar o meu fim. E eu me indagava: se tudo fosse diferente, se eu não estivesse aqui, se eu não fosse esse homem desprotegido...

Quando decidi deixar uma palavra escrita aos homens, esse anúncio de morte, já não havia como retroceder e o abismo se cavava diante de mim, inevitável.

Vou morrer.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 6, final –


SEXTO EPISÓDIO: A PEDRA

Esta narrativa faz referência ao período da peste bubônica na Bahia. Nesse período era proibido terreno baldio. As casas e os sobradinhos foram se erguendo ao redor da igreja, tão antiga. “O sino da igreja, aqui na Palma, anuncia finados dia e noite. Maior que a peste, de verdade, só o medo”.

Se o terreno estava barato, a construção era cara porque naqueles dias o rei acabou com a escravidão.

Um negociante português construiu uma casa no terreno baldio próximo à igreja: uma casa comum, pequena, baixa. Quem a comprou foi Cícero Amaro, um garimpeiro de Jacobina. A narrativa descreve o temperamento folgado de Cícero, a vida dura de sua mulher Zefa, até o dia em que ele achou um brilhante do tamanho do caroço de uma azeitona. Vendeu e veio com a Zefa para a capital. Aqui comprou a casa do português, comprou uma quitanda para a Zefa e foi para a ladeira de Montanha, todo caprichado em busca de uma aventura. Lá encontra Flor que tira dele tudo que pode e lhe dá o fora. Quando está empobrecido, volta para Zefa que não o quer mais. Acha que é uma grande ingratidão, mas pensa em arrumar algum dinheiro para voltar a Jacobina e retornar à sua vida de garimpeiro.

COMENTÁRIO

Esta narrativa traz um período triste para a história da Bahia, quando a peste bubônica toma o espaço, dizima a população. Ao lado da peste está um belíssimo brilhante. O Largo da Palma, a velha igreja participam do sofrimento. O sino que toca dolorosamente anunciando as mortes, as perdas, o medo.

Depois de passada a peste é que Cícero Amaro chega à cidade. Para poder habitar o Largo da Palma, ele precisou encontrar um brilhante. Essa pedra traz uma simbologia especial: o brilhante precisa passar por uma transmutação, precisa ser lapidado, trabalhado. Em relação ao homem, a pedra simboliza a aprendizagem. Foi isso que Cícero veio aprender: como a vida oferece benefícios, mas exige que se mudem comportamentos.

Ao voltar ao ponto de partida, a lição que sobra para a personagem é recomeçar, mais velho, mais experiente, esperando ter a sorte lhe sorrindo novamente.

Lista de personagens

Cícero Amaro: garimpeiro de Jacobina, é preguiçoso e gosta de frequentar bordéis e beber pinga às vezes.

Zefa: negra esposa de Cícero, é muito trabalhadora e sonha em montar uma quitanda.

Flor: prostituta muito bela que tem um caso amoroso baseado em interesses com Cícero.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 459

 


Lima Barreto (Providências Policiais)


À vista do doloroso acontecimento da Avenida em que foi vítima uma excelente senhora da melhor sociedade, a nossa polícia resolveu tomar medidas extremas contra os viciosos que abusam de narcóticos de várias espécies.

Não sabemos de todos os nomes das pessoas que vão ser vítimas da ação energética do enérgico Nascimento e Silva, mas temos notícias de alguns.

A primeira pessoa que vai ser procurada pela ativa autoridade é um tal Rabelais, que nasceu em França, em Chinon, e escreveu o Gargântua e Pantagruel.

Não nos consta que ele tivesse cometido nenhum assassinato, mas escreveu esse livro que todo mundo lê e só os policiais não leem. Não direi que isso seja uma honra para os bacharéis delegados ou uma desonra para eles.

Um outro que está na lista é um Edgard Poe, que publicou umas originais Histórias extraordinárias, que Nascimento, Chagas e outros delegados, inclusive o Geminiano, chefe deles, só conhecem de nome.

Este bebia mais do que aquele, e bebidas fortes. Sei bem que ele não matou; foi morto.

A prisão mais difícil é a de Lord Byron, grande da Inglaterra e poeta dos maiores.

O embaixador inglês já está de alcateia, para enviar uma nota contra qualquer violência contra a pessoa do autor do Childe Harold.

Parece que aí vai parar a ação repressora da polícia carioca contra o alcoolismo, porquanto a Inglaterra dispõe de uma grande esquadra e, desde a questão Christie, nós sabemos o que ela vale.

Coleridge também está ameaçado; mas também é inglês...

Mário Coelho é brasileiro e bebia, por isso quem vai pagar o seu estúpido crime devido à embriaguez são os brasileiros.

Sendo assim, vão ser processados o romancista Bernardo Guimarães e o poeta Fagundes Varela.

Embora tenham deixado obras imperecíveis, é preciso que assim se faça, para mostrar a força moralizadora da polícia.

Nunca assassinaram ninguém; mas escreveram muito. Eis aí o seu crime.

Fonte:
Lima Barreto. Marginália: artigos e crônicas. SP: Brasiliense, 1956.

Hildemar Cardoso Moreira (Poemas Avulsos) – 2 –


A LINDA ROSA

À sempre amiga Marlene

 Como que tendo algo de celeste
O botão de rosa que a sorrir me deste
Demonstra algo no rosado ninho,
Abrindo as pétalas como que sorrindo
Estão por certo assim me transmitindo
Algo sublime: Um fraternal carinho.

 Muito obrigado então, minha querida!
Felizes são os seres que na vida,
Na vida em que não existe arremate
Ter sempre enfeitando seus caminhos
Semeando flores, retirando espinhos:
Amigos que contenham seu quilate.
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A MORTE DA ÁRVORE

 Era lindo de manhã
Nos galhos do cuvatã
Ver os pássaros pulando,
Tinha ninhos de pardal
E descuidado um casal
De pombinhos namorando.

 E essa árvore frondosa
Dava-nos sombra gostosa
Nas tardes ensolaradas.
Na prancha que sustentava
A criançada brincava
Dando muitas gargalhadas.

E nós sorriamos também
Porque é feliz só quem tem
Um motivo pra sorrir.
E aquela árvore antiga
Era por isso uma amiga
Enquanto pode existir.

Mas um dia de manhã
Vi a bondosa cuvatã
No gramado estendida,
E a prancha que sustentava
Em que as crianças brincavam
Ali ao seu lado caída.

Mas eram duas irmãs
As frondosas cuvatãs,
Uma foi outra ficou
A que foi deixou filhinhas
Pois brotaram as mudinhas
Nas raízes que deixou
A criançada brincava
Dando muitas gargalhadas.

E nós sorríamos também
Porque é feliz só quem tem
Um motivo pra sorrir.
E aquela arvore antiga
Era por isso uma amiga
Enquanto pode existir.
Em que as crianças brincavam
Ali ao seu lado caída.
****************************************

CHASQUE À UM GAUDÉRIO

Caro neto Rafael
O meu chasque é um aranzel
De verso chucro e matreiro
Brotado na inspiração
Que eu faço de coração
A um valente cavaleiro.

Já onze anos de lida
Pelas coxilhas da vida
Vens hoje de completar.
Hoje estudas no colégio
E isso já é um privilégio
Que deves aproveitar.

Tu hoje pensas faceiro
Em se tornar fazendeiro
Ou ser dono de uma estância,
Mas para isso, gaudério
Carece trabalho sério
Muita luta e muita ânsia.

Nunca fazer escarcéu
Pra que o patrão lá do céu
Veja que és índio educado
Que és amado na querência
E também na adjacência
És por todos estimado.

Valor de um homem se mede
Pelo jeito que procede
Com todos ao seu redor
Por isso meu caro neto
Trate a todos com afeto
E amor que é o bem maior.

 Que a estância ou a fazenda
E mais uma linda prenda
Te sejam dadas por Deus.
Que os anjos, meigos obreiros
Sejam sempre companheiros
Em todos os passos teus.

 Como uma armada de laço
Aqui fica um grande abraço
De todos nós neste dia
Que Deus do céu te proteja
E que a vida te seja
Cheia de amor e alegria.
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ENAMORADOS

Você chegou de mansinho
Num suave sopro de Deus,
Foi chegando e foi entrando
Por dentro dos olhos meus,
Como quem nada queria
Foi fazendo sua morada
Dentro do meu coração.

Nossas mãos se afagaram,
Nossos lábios se encontraram
E ao calor de nossos beijos
Um turbilhão de desejos
Veio selar nosso amor.
É esse amor que proclamo
Quando entre beijos te digo:
Te amo… te amo… te amo!
****************************************

LAPA

Linda cidade campista
És modelo para o artista,
Para o poeta – inspiração.
És dos pequenos  – o teto,
És dos grandes  – o afeto,
Do turista  – a adoração.
 
Tuas pedreiras em montes
Onde nascem ricas fontes
Santificadas por João.
Perfeição da natureza,
Estatuário de beleza,
Que eu amo com devoção.

Teu campo de flor coberto
E a mata verde, por certo
Faz pensar que és um sonho.
Teu passado é glorioso,
Teu presente é venturoso,
Teu porvir será risonho.

Se a República nascente
Pediu teu sangue valente
Para se fortificar.
Lá no campo de batalha,
Ao sibilar da metralha,
Teu povo heroico foi dar.

Mas Lapa, eu busco memórias
Para cantar tuas glórias
Porém me falta expressão,
Mas nos versos que te faço
Eu te concedo um pedaço
Do meu próprio coração.
            Lapa – 1951

Fonte:
Cascata de Poesias (https://hildemar.wordpress.com)

Ivan Lessa (Os Presentes)


Claro, os homens fazem os presentes vendidos nas lojas. Claro, as árvores não têm nada a ver com plantar e crescer. Claro, o papel de seda é bonito, o laço vermelho bem dado. Claro, tem dedicatória e cartão de boas festas.

Os presentes estão todos debaixo da árvore ou em cima da cama. Daqui a pouco vai ser papel por toda a casa, mulheres enrolando os barbantes dourados (“amanhã a gente pode precisar...”). Uma daquelas bolas vai se espatifar no chão, cacos brilhantes e desse tamanhinho em torno da árvore.

A camisa um pouco apertada, a gravata agressiva, cuidadosamente dobradas, tudo pra dentro da caixa de novo. As caixas, vazias, ficam pela sala quase que por dois dias. Os barbantes numa gaveta, dentro de outra caixa.

Bola é difícil de embrulhar e o menino a reconhece imediatamente. Claro, sem surpresa. Claro, não deixa de ser agradável. Bola não se desembrulha: tem-se de se rasgar o papel todo e sair chutando-a imediatamente pela casa. De preferência, logo de cara quebrar uma coisa com ela, ou então, com um bom chute de peito de pé derrubar a árvore. Se a árvore tiver lâmpadas elétricas, corre-se o perigo de curto-circuito. Mas é de dia ainda e o menino que vá brincar com sua bola na rua.

Como é que se dá um cachorro de presente de Natal? Claro, tem de ser pequeno e embrulhável. O papel deve ser azul e plastificado, e envolver o cachorro até o pescoço, ficando apenas a cabeça de fora.O embrulho tem de ser feito pouco antes do presente ser ofertado. Não se deve pendurar o cachorro na árvore: cai árvore e cai cachorro.

Soldadinho de chumbo não existe mais. De plástico tem. Não é a mesma coisa, claro. Mas, em todo caso, esses dão para se pendurar na árvore. Um por um ficava engraçado, se você tem senso de humor, pendure-os em lugar das lâmpadas. Não dão curto-circuito, nem ficam só com a cabeça de fora, nem podem ser chutados. Quer dizer, poder pode, mas não se deve.

Cuidado com o arco e flecha, o garoto, se não acertar no cachorro ou em você, vai direto para a parede recém pintada ‒ ali perto daquela reprodução da Ceia do Senhor. O menino vai arrancar a flecha e, então já sabe, vem um pedaço de reboco desse tamanho junto.

Brinquedo desses de corda criam caso se o pai não tomar o cuidado de não dar corda de jeito nenhum. Geralmente o pai, com um ar de perito, dá corda demais e quebra o carrinho, o tanque, ou seja lá o que for. As crianças abrem uma boca desse tamanho: “Quebrou meu brinquedo! Quebrou meu brinquedo!”.

 Claro, Papai Noel existe, sim senhor. Veja só no espelho: o rosto vermelho (tomou ponche demais), os cabelos brancos, a longa barba (pegaram sua lâmina para abrir presentes), o roupão vermelho (presente de sua mulher), o ar bonachão (de quem vai sair de casa).

O trenó e as renas ficam para o ano que vem.

Fonte:
Diário Carioca. RJ: 25 dezembro 1965.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 5 –

QUINTO EPISÓDIO: OS ENFORCADOS


Esta narrativa está localizada temporalmente. Através de um cego, a história da revolução dos alfaiates é contada numa perspectiva de pessoas que assistiram ao enforcamento dos revolucionários acusados.

O ceguinho do Largo da Palma, como era chamado, sentiu que o largo estava vazio, que a igreja tinha poucos fiéis e todos saíram apressados. Ficou sabendo que era o dia dos enforcados.

Como não recebe nenhuma esmola, vai para a Piedade, mas antes para na birosca do Valentim. É o Valentim que vai narrar o enforcamento para o ceguinho, ele que tinha uma voz de sermão, hoje fala baixo, tem medo fruto das prisões e das torturas. A cidade traz a marca da tragédia:

— A cidade parece triste.

— A Bahia nunca foi alegre — Valentim, abaixando a voz disse por sua vez. — Uma cidade com escravos é sempre triste. É muito triste mesmo.

Quando os quatro condenados estão chegando, a multidão se agita. O cego tudo tomava conhecimento pela voz de Valentim, voz emocionada, afinal era ele quem via. Quando a morte do último condenado aconteceu
Valentim sumiu, deixando o ceguinho só, tão só, apenas com o porrete na mão. Andou até reconhecer o Largo da Palma. Tudo o que queria era seu canto do pátio da igreja.

E ao aproximar-se, ao sentir o cheiro de incenso, pensou que naquele momento já cortavam as cabeças e as mãos dos enforcados. Colocadas em exposição, no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio, até que ficassem os ossos. O Largo da Palma, porque sem povo e movimento, seria poupado. Ajoelhou-se, então, pondo as mãos na porta da Igreja.

E, única vez em toda a vida, agradeceu à Santa Palma ter ficado cego.

COMENTÁRIO

O cego da narrativa pode ser a representação do poeta itinerante, uma visão de renúncia às coisas externas fugidias. Para explicar o que o cego não vê é preciso falar: a narrativa se faz necessária. É a justificativa para uma história ser contada, no caso,“costurando a revolução”, tecendo os fatos.

O cego sem poder ver os fatos exteriores, tem a capacidade de ver a verdade interior.

A Revolta dos Alfaiates ou Inconfidência baiana ocorreu em 1798, cujos participantes pertenciam às camadas pobres. Dois soldados; Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens; dois alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos, que tinha dezoito anos lutavam pela República. Eram todos mulatos. Os intelectuais e os ricos da Loja Maçônica Cavaleiros da Luz foram perdoados. O castigo aos pobres deveu-se ao medo de que houvesse uma rebelião dos negros como havia acontecido nas Antilhas.

O dia dos enforcados, na Piedade, 08/11/1799.

Na narrativa, o nome do governador D. Fernando José de Portugal e Castro, os atos que praticava para impor respeito: a chibata, os grilhões, a forca o esquartejamento, fazem parte do mundo de violência que não deve ser visto. Por isso o cego agradece à Santa.

Como dois dos revolucionários eram alfaiates, mulatos, vítimas de discriminação, pode-se relacionar este episódio com o filme Concorrência Desleal de Scola, quando há uma lição de solidariedade entre um alfaiate e seu concorrente, quando sofre a discriminação por ser judeu.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.

sábado, 2 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 16 –

 


Olivaldo Júnior (Crônica de um Ano Realmente Novo)


Não, não sei como é que foi que tudo isso começou. Só sei que, mesmo que não pareça, ainda estamos em plena pandemia, e a alegria tem sido conquistada a cada dia, a cada hora, a cada instante, como se Monalisa de um simples sorriso sem graça tivesse que sorrir e até rir do que é trágico. Mágico, talvez fosse assim que quiséssemos que um ano realmente novo começasse. Um ano em que fôssemos realmente mais irmãos e tivéssemos aprendido “algo”.

Muito tem-se falado em esperança e em folhas, flores e frutos novos no jardim. Há de se acreditar nisso, há de se acreditar que, sim, valeu a pena ter passado por tudo que temos passado e, ainda assim, tocar em frente pois muitos já não podem mais fazer o mesmo. De novo, já nos basta o vírus, dirão alguns. E, talvez, estejam mesmo certos. Talvez fosse melhor cantar aquela música de outro jeito: “Adeus, Ano Novo / Feliz, Ano Velho!”, se nos fosse adiantar.

A vida, em verdade, parece feita de dificuldades. Atravessá-las parece ser a sina do ser humano. Humanos, damo-nos virtualmente as mãos, ora contentes, ora nem tanto. E, mesmo sabendo do perigo, enchemos os barzinhos, ficamos em casa, isolamo-nos, festejamos, numa dupla realidade que se instalou desde que vimos tudo virar de cabeça para baixo e voltar, num giro de 360 graus, sem direito à escolha. Estamos na dança, brinquemos de roda e... de viver.

Tudo promete mudar. E a esperança é mesmo a última que morre. “Alegria era o que faltava em mim”, diz um samba antigo e muito lindo. Lindo. Belo. Incrível. Talvez seja isso o que buscamos todos. A beleza em nós, a beleza em outros, a beleza em todos, quando ainda há tanto de feio e de triste no mundo. “Mas vamos fechar os olhos / E pensar numa noutra coisa”, diria Quintana, do Céu dos Poetas, caso pudesse. Só se pedisse a um passarinho para cantar.

O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.”, diria Drummond. Não, não abandono Drummond. Não, não sou Drummond, nem queria ser ele. Queria ser eu. Ah, se eu fosse eu!... Se eu fosse eu, talvez fosse um filho melhor para meus pais, e um irmão melhor para meu irmão, e um amigo melhor para meus amigos, para quem realmente gostasse de mim, no ano novo.

Mogi Guaçu, São Paulo, 31 de dezembro de 2020.

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas XXIV


Tua promessa fingida
foi razão do meu sofrer.
— Esperei toda uma vida
para poder te esquecer!
ANTENOR JOSÉ DIAS
- - - - - -
A poesia sempre alcança
o seu maior esplendor
no riso de uma criança,
nos olhos do meu amor!
ANTÔNIO MAIA
- - - - - -
Se no amor foste iludida,
não deves guardar rancor.
— Mais triste é passar a vida
sem ter um beijo de amor!...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Não se deve amar ninguém
só para o tempo passar.
— Passa o tempo e nós também,
mas o amor pode ficar...
ELZIO COELHO
- - - - - -
Pode crer, Maria Rosa,
hoje em dia ninguém vê
mulher sincera e bondosa,
bonita como você.
FRANCISCO DE MATOS
- - - - - -
Solitário ele vagueia,
entre as dunas, a sonhar...
E a praia é o convés de areia
do velho Lobo-do-Mar.
FRANCISCO MADUREIRA
- - - - - –
Teu amor só me deu mágoa...
Mas eu sou grato à maior:
foi com os olhos rasos d'água
que te pude ver melhor...
GENTIL FERNANDO DE CASTRO
- - - - - -
A todos repito e ensino
a minha definição:
o beijo é o til pequenino
da palavra coração.
GODOFREDO MENDES VIANA
- - - - - -
Como tudo é passageiro,
como tudo é enganador...
Quem dera que fosse eterna
toda promessa de amor!
GUILHERMINA DE FIGUEIREDO
- - - - - -
Debalde as mulheres tentam
saber, ansiosas, aflitas,
como é que os poetas inventam
tantas mentiras bonitas!
GUIOMAR MACHADO
- - - - - -
Depois que te amo, há quem jura
que perdi todo o meu siso.
Se isso que sinto é loucura,
lamento quem tem juízo...
HEITOR BELTRÃO
- - - - - -
Amor é simples afeto,
mas de poder tão profundo,
que torna as almas unidas
nos desertos deste mundo.
HÉLIO GARCIA DE MATTOS
- - - - - -
Uma rosa — sua face.
Um sonho — seu caminhar.
Se isso tudo não bastasse,
tem o céu dentro do olhar!
JANDIRA GRILLO
- - - - - -
Às vezes sofro contigo,
mas deixo bem claro aqui:
se a teu lado vivo mal,
pior seria sem ti!
J. CASSIMIRO DE OLIVEIRA
- - - - - -
Por tua boca adorada,
por teu olhar feiticeiro,
minha alma vive ajoelhada
num eterno cativeiro!
JOSÉ FERREIRA BAPTISTA
- - - - - -
Não faço fé nas Marias,
descreio delas até:
a que destruiu meus dias
era Maria da Fé!
JOSÉ MARQUES
- - - - - -
Olhos verdes peregrinos,
olhos de estranha emoção!
São dois punhais pequeninos
que ferem meu coração.
JULY JÁCOME DE MELO
- - - - - -
Olhos profundos, estranhos,
sempre em cismares imersos,
esses teus olhos castanhos
já não são olhos... são versos!
LAURA MARGARIDA DE QUEIRÓS
- - - - - -
Ave noturna, agoureira,
não me apavora o teu canto.
— Mais desastres não receia
quem de amor desfaz-se em pranto.
LOURIVAL AÇUCENA
- - - - - -
Recebi tua cartinha,
mas, confesso, não gostei,
pois nela de volta vinha
o beijo que te mandei...
MARIO CEZAR DUARTE
- - - - - -
Desde que te conheci,
apenas isto é que sei:
fiquei perdido por ti
e nunca mais me encontrei.
MÁRIO GRAÇA
- - - - - -
Posso estar muito zangado,
mas, vendo o sorriso teu,
fico todo enamorado...
e penso que o mundo é meu!
PEDRO BRAILE
- - - - - –
Quando passas, criatura,
altiva, faceira e bela,
se é dia, o sol mais fulgura;
se é noite, o céu se constela!
RAIMUNDO ARAÚJO
- - - - - -
Esta verdade me ocorre
pelos amores que eu tive:
quanto mais de amor se morre,
tanto mais de amor se vive.
TEIXEIRA LEITE
- - - - - -
De tudo que iá sofri,
sofro mais o dissabor
de um grande amor que perdi,
por culpa de um falso amor.
TONINHO BITTENCOURT

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

A. A. de Assis (Maluf, o Pioneirão)


No princípio era assim: na colina o Maringá Velho, na planície o Maringá Novo. No meio havia um bom pedaço da floresta original, por onde passava uma trilha que ligava os dois povoados. Deu-se, porém, que um dia um funcionário do Maluf se perdeu na travessia e precisou-se de um dia inteiro de busca para reachar o moço.

Foi nessa ocasião que o megapioneiro Maluf entrou nervoso no escritório da Companhia Melhoramentos, dirigiu-se ao Dr. Hermann Morais de Barros e desabafou: “Não vim aqui pra morar no mato”. Imediatamente o Dr. Hermann deu ordem para que se transformasse a trilha numa avenidona, unindo finalmente os dois Maringás. Na época ainda não tínhamos prefeito.

Alfredo Moysés Maluf nasceu em 1900, na Síria; veio para o Brasil com menos de um ano de idade e viveu suas primeiras décadas em Piracicaba. Entrou na história de Maringá no mesmo ano em que a cidade oficialmente entrou no mapa – 1947.

Aqui comprou um terreno bem na divisa entre o Maringá Velho e o Novo e ali montou o famoso Posto Santo Antônio, distribuidor da Esso. O posto passou logo a ser um ponto de referência. Onde fica isso ou aquilo? Respondiam: Fica perto do Maluf, pra cá do Maluf, em frente ao Maluf... A própria praça, de nome José Bonifácio, na boca do povo passou a ser conhecida como “Redondo do Maluf”. Um marco geográfico e um marco histórico.

A cidade toda era uma aventura naqueles primeiros anos. Motoristas vindos de todo o Brasil chegavam no Maluf e paravam. Em épocas de chuvas ninguém podia ir para a frente nem para trás. Por isso, ao lado do posto, além da oficina e da loja de peças, havia um restaurante e um dormitório. Para distrair os primeiros moradores da cidade e os caminhoneiros em trânsito, Maluf comprou um projetor e exibia filmes todas as noites. Sempre de graça, mas os espectadores precisavam trazer cadeiras de casa.

O Maringá Velho, habitado desde 1942, já era uma vila movimentada, centralizando o desbravamento da região vizinha. No Maringá Novo, apenas montes de tocos deixados pela derrubada, ensaios de ruas e avenidas e umas poucas casinhas de madeira. Maluf entre os dois Maringás participando intensamente de tudo o que acontecia na jovem comunidade. Enquanto isso a sua empresa continuava crescendo. Nos anos 1953 e 1954 ele se classificou em primeiro lugar na revenda de gasolina da Esso em todo o Brasil.

Trabalhando de dia e de noite para dar conta de tanto que fazer, assim mesmo ele achava tempo para ajudar a cidade, no que sempre contou com o firme apoio de uma das pessoas mais queridas que Maringá conheceu – sua simpaticíssima esposa Dona Tita.

Alfredo Moysés Maluf foi um dos que mais trabalharam para que Maringá se emancipasse de Mandaguari. Carregou muita madeira para a construção da primeira catedral. Foi um dos fundadores do Rotary Clube, da Associação Comercial e Industrial e do Lar dos Velhinhos. Um homem intimamente ligado às raízes de tudo o que aqui existe. Saudade enorme dele.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03 -12-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 4 –


QUARTO EPISÓDIO: UM CORPO SEM NOME


É o único episódio narrado na primeira pessoa. “A tarde se acaba, é verdade, mas a noite ainda não chegou. E por que me encontro aqui, quem sou, isto não importa. O que importa é que estou na esquina do Bângala, de pé e a fumar, buscando trazer a paz do largo para mim mesmo”.

O enredo é simples: o narrador vê uma mulher que chega cambaleando e morre nos degraus da escadaria da igreja no Largo da Palma. Como testemunha, tendo a mulher morrido em seus braços vai até à delegacia, curioso para saber de quem se trata. A morta tem o rosto magro, “as órbitas fundas, os cabelos grisalhos, a boca murcha com três cacos de dentes. Os braços tão secos quanto os seios e as pernas. O vestido imundo, frouxo na cintura e descosido nas mangas”, sintomas de fome e cansaço.

Essa imagem faz com que ele rememore um fato com uma mulher assim quando fez dezoito anos.

Nos pertences da mulher estão um pente, um lenço de linho. Um maço de cigarros e uma nota de dez cruzeiros, uma caixa de fósforo com um pó branco, que logo se verifica ser cocaína, uma saboneteira com mais de dez dentes da criatura humana.

O laudo médico é conclusivo; a morte foi por tóxico.

Dois meses depois, o narrador volta ao Largo da Palma. A visão humanizada do largo cuja memória não abarca todos os acontecimentos, talvez tenha esquecido a mulher sem nome.

O narrador se aproxima de “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”, o ar tem o perfume de trigo, misturado com o incenso que vem da igreja.

Ao falar com o inspetor fica sabendo que não identificaram a mulher, o corpo com tóxico em todos os poros, o mistério dos dentes guardados nunca foi desvendado, só há conhecimento de que eles pertenciam a ela mesma. Agora, à noite, o narrador vê os gatos, que na madrugada se tornam os donos do largo porque os homens e os pombos estão dormindo.

E sobre a mulher: “A morte não a matou, porque morreu fora do corpo. E, por isso, não morreu no Largo da Palma”.

COMENTÁRIO

Há um narrador que não se identifica, trata-se de um “eu” que se diz, se fala, fala dos fatos em torno da morte, mas não se nomeia. A rememoração que faz da época que tem dezoito anos, faz lembrar Marcel Proust em “La recherche du temps perdue” (A procura do tempo perdido), quando uma realidade do presente evoca uma imagem do passado, caracterizando o impressionismo tanto na linguagem quanto nos signos.

O Largo de Palma, que no episódio anterior, apesar da idade, antigo de muitos séculos, tem boa memória, nesta narrativa, velho como é, já a esqueceu porque não tem memória para todos os acontecimentos.

A presença dos gatos, simbolicamente, relacionado com o mistério da vida e da morte, segundo a tradição oriental, está encarregado de transportar as almas para o outro mundo.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 458

 


Contos e Lendas do Mundo (A Serpente e o Pavão)


Certo dia, um jovem chamado Adi, o calculista, porque estudara matemática, resolveu partir de Bokhara e ir em busca de um conhecimento mais rico. Seu mestre aconselhou-o a viajar para o sul, e lhe disse:

- Busque o significado do pavão e da serpente.

Tal conselho deu muito o que pensar ao jovem Adi. Viajou através de Khorasan e finalmente até o Iraque. Neste último, conseguiu realmente encontrar um lugar onde havia um pavão real e uma serpente. E Adi pôde falar com eles.

- Estamos justamente discutindo acerca de nossos respectivos méritos - disseram a Adi.

- Pois é precisamente isso que quero estudar, assim peço que continuem - observou o jovem.

- Sinto que sou o mais importante - disse o pavão - represento a grande aspiração, o voo para o paraíso, a beleza celestial, e daí o conhecimento das coisas mais elevadas. É próprio da minha missão recordar ao homem, por meio da alegoria, os aspectos de seu eu que se acham ocultos para ele.

- Por minha parte - disse a serpente, sibilando ligeiramente - eu simbolizo exatamente as mesmas coisas. Como o homem, estou preso à terra. Isto faz com que eu lhe relembre sua condição humana. Como ele, sou flexível, quando sigo serpenteando pelo solo. Por vezes ele se esquece disso, também. De acordo com a tradição, sou eu a guardiã dos tesouros ocultos sob a terra.

- Mas você é repugnante! - exclamou o pavão - é astuta, silenciosa, perigosa.

- Você enumera minhas características humanas - retrucou a serpente - enquanto eu prefiro sublinhar minhas outras funções, como acabo de fazer. Agora, olhe para você mesmo: é vaidoso, gordo demais e emite um grito áspero. Seus pés são demasiado grandes, suas plumas desenvolvidas em demasia.

A essa altura da discussão, Adi resolveu intervir, dizendo:

- O desacordo em que se encontram me levou a perceber que nenhum dos dois tem inteira razão. E no entanto, se pode ver claramente, se deixarmos de lado suas preocupações pessoais, que juntos compõem uma mensagem para a humanidade.

E Adi, enquanto os dois oponentes o escutavam com atenção, pôde explicar-lhes quais eram suas funções.

- O homem se arrasta pela terra como a serpente. Poderia alcançar as alturas como um pássaro, mas, assim como a serpente é cobiçosa, ele retém esse egoísmo ao tentar elevar-se, e se torna, como o pavão, demasiado orgulhoso. No pavão real podemos perceber as potencialidades do homem, ainda que não consumadas devidamente. Na lustrosa pele da serpente podemos vislumbrar a possibilidade da beleza. No pavão a vemos assumir um aspecto extravagante.

Foi aí que uma voz no íntimo de Adi lhe disse:

- Isso não é tudo. Estas duas criaturas estão dotadas de vida; eis seu fator determinante. Discutem porque cada uma se fixou na sua própria forma de vida, pensando ser a realização de um verdadeiro status. Uma, contudo, monta guarda a um tesouro e não pode usá-lo. A outra reflete a beleza, um legítimo tesouro, mas não pode transformar-se com ela. No entanto, apesar de não terem tirado proveito do que lhes foi destinado, o simbolizam, para os que podem ver e ouvir.

Fonte:
Histórias dos Dervixes. Jornal Magus. agosto de 2000.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 1 –


A floresta vai morrendo,
expondo seus braços nus...
E os ninhos em chama, ardendo,
sobre as cinzas dos bambus!
***
A fonte quase morrendo
nos braços da noite ingrata,
e, a lua cheia escrevendo
cordéis, em cordões de prata!
***
A velhinha, com mãos tontas,
curvada, terço na mão,
parece contar nas contas
as horas de solidão!
***
A verdade tem seus custos;
e, às vezes, é condenada,
pelas leis, que entre os injustos,
não têm certeza de nada!
***
Cada lágrima caída,
que, em silêncio tanto choras,
são reticências da vida
nas entrelinhas das horas!
***
Da infância, os sonhos mais belos,
eu guardo alguns, no meu peito:
O estalo dos teus chinelos,
ouço pai do mesmo jeito!
***
Enquanto a dor, passo a passo,
aperta o nó na garganta,
o poeta afrouxa o laço
e chora como quem canta!
***
Estuda amigo, que o estudo
evangeliza os teus lábios,
mostrando o segredo mudo
que há no silêncio dos sábios!
***
Graças a Deus, vê meu filho,
que em nosso rancho sem flor,
não temos nobreza e brilho,
mas sobra brilho no amor!
***
Meu canto, é jura secreta,
qual canto de rouxinol,
na voz de cada poeta
que canta à luz do arrebol!
***
Meus sonhos envelhecidos
nesses maltrapilhos traços,
são sinais dos tempos idos
camuflando os meus cansaços!
***
Mística Deusa romana,
foi Flora, na antiguidade,
para a própria raça humana,
sinal de fertilidade!
***
Na ausência do bem comum,
num mundo pobre de afeto,
rio, sem motivo algum,
ao ver sorrindo o meu neto!
***
Nas brumas de um mar revolto,
aos sopros dos vendavais...
Meu barco flutua solto
nas rotas da volta ao cais!
***
Numa atitude sem graça,
decido em minha euforia,
fingir que o tempo não passa
roubando a minha alegria!
***
O outono, sem dar sinais,
aos poucos, contando os passos...
Achando pouco os meus ais,
põe mais cravos nos meus braços!
***
Ouço ao longe, disfarçado,
pelos túneis da distância...
As vozes do meu passado
nos ecos de minha infância!
***
Peço-te coisas pequenas.
Vê que em meu verso indeciso,
peço uma gotinha, apenas,
da fonte do teu sorriso!
***
Pego o trinco, puxo e abro,
entro em meu quarto... E, sem medo,
só meu velho candelabro
descreve o nosso segredo!
***
Por meus pobres atos falhos,
dobrando os meus pesadelos...
O tempo em breves atalhos
pôs mais prata em meus cabelos!
***
Quando o amor se manifesta
e a luta não foi em vão,
o silêncio faz a festa
e escuta a voz da razão.
***
Quando o por do sol se espalha,
numa tarde calma e mansa,
depois que o sol se agasalha
acendo a luz da esperança!
***
São tantos nossos enredos,
que cada trama entre nós,
é porta-voz dos segredos
dos que vivem sempre a sós!
***
Se amor de mãe, não tem fim,
Deus deu-lhe esse dom fecundo!
Mãe, por amar tanto assim,
carrega as dores do mundo!
***
Sê fiel ao gesto pobre,
de quem mendiga o perdão;
perdão é o gesto mais nobre
de quem respeita outro irmão!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Paulo Mendes Campos (Réquiem para os Bares Mortos)


Me perdia muito pelas grutas sombrias dos bares. À noite, conchas iluminadas, a ressoar em profundezas submarinas. Hoje sou um homem derramado. Fugindo à tempestade, entrei uma vez no Nacional, e lá se erguia – portentosa figura – um velho, alto e cavo, a recitar os sonetos de Mallarmé. Foi uma visão dura, hermética, definitiva.

Antros de perdição – sim, é verdade – os bares são odiados por mães, esposas, filhos. A bebida é quase sempre ordinária; os moços que servem são falsos; os proprietários são ávidos. Rixas, despesas descabidas, saúde comprometida – os bares não prestam. Mas depois os bares morrem, e de seus túmulos surgem os espelhos, os mármores, os painéis históricos e a matéria plástica das agências bancárias. O tempo trança e destrança os velhos frequentadores, cúmplices de um espaço, de duas ou três anedotas, de uma canção dissipada em dias e semanas, cúmplices de uma certa mistura de luz e sombra. Então os velhos frequentadores são como peixes desentocados, e os bares antigos perdem suas arestas, suas escamas pontiagudas, seus vômitos repugnantes. Ali os amigos foram mais amigos, os inimigos, mais inimigos, as mulheres, mais compreensivas, e a vida tinha um programa.

Hoje sou um homem entornado. Mas no tempo do Alvear, por exemplo, alcei-me nas tristezas mais lindas de beira-mar. Ama-se o bar morto porque ele possui o dom – o dom é ilusão – de coagular o tempo. Habitamos essas gotas luminosas. Elas revolvem à nossa frente, várias, aparentemente opacas. Mas, se aproximamos a visão, esses cristais mágicos começam a funcionar como um palco, cheios de vida. Descortina-se em luz amarelada o bar do Hotel Central: há ostras em uma bandeja, fatias coradas de rosbife e uma garrafa de Old Parr. São três à mesa: um mau pintor, um mau milionário e um mau almirante. Apesar de simpáticos, nunca nos falamos. Mas hoje (quando é hoje?) eu os visito com frequência nesse coágulo de treva e refulgência, onde os três convivas se abrigaram da morte. À meia-noite, o milionário faz a barba com uma gilete nua, molhando o rosto em uísque.

O Vermelhinho, com um pouco de exagero, foi um entreposto de todas as motivações humanas. Poetas negros – reaparecidos pela primeira vez depois do Simbolismo – defendiam do naufrágio da raça, apertando-os contra o peito, originais que nunca seriam publicados. Foi uma época de facilitário poético, com um crédito de esperança a perder de vista. Não se fechava a porta da glória a ninguém. Todas as estradas do país se entrecruzavam no Vermelhinho, que ainda guardava embrulhos e recados. A geração tomava batida com fervor e a esquerda festiva punha seus primeiros ovos, discretamente, nas cadeiras de palhinha.

Acreditava-se em samba.

A vida tinha um caminho,
a vida tinha mais vinho
nos juncos do Vermelhinho

Em frente, no alto, entre vegetações grossas, ficava o bar da ABI. Tinha a princípio um certo rigor suíço, prematuramente desmoralizado. Alemães, árabes, italianos, nordestinos, gaúchos e mineiros, com esse cinismo que é a nossa força destrutiva abrasileiraram depressa o terraço. Mais de uma senhora tornou-se mãe de repente entre as grossas vegetações; e instituiu-se, por força, o espeto.

Hoje sou um homem esvaziado de seu conteúdo: vou alcançando a perfeição do vazio. Já estou seguindo com pouco receio por esses Tibetes sem princípio e sem fim. Mas cumpri as estações do caminho; paguei por tudo aquilo que aprendi.

Bar morto, bêbado morto, caminho morto. Há azulões no crepúsculo; ou uma saudade de azulões. É sempre safra de cajus quando me surge o Pardellas. Consumo de novo as tardes consumidas. Aí me sinto com o charuto de Eustáquio, os óculos de Santa, e um tomo das Origens da França contemporânea, conduzido por Zé Lins nas tardes da Cinelândia e do Castelo de antigamente. Ali a vida era canto e conto. Mas no velho Recreio as sombras se espessam, aglutinadas. Quem mastiga sem convicção peito de boi com molho de raiz forte?

Recreio velho, rogai por nós. Túnel da Lapa, Chave de Ouro, rogai por nós. Hoje sou um homem sem mais nada. Rogo por vós. Rogo por vós um céu, com o vosso firmamento, os vossos luzeiros, os vossos ornatos, os vossos homens imaginosos e as vossas freguesas perdidas. E assim me recolho do chão em que fui derramado e subo até vós.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Anjo Bêbado. Ed. Sabiá, 1969.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho) –3–


TERCEIRO EPISÓDIO: UM AVÔ MUITO VELHO


A narrativa inicia-se anunciando que algo aconteceu ao avô Loio, muito velho. Morava no Gravatá a poucos passos do Largo da Palma aonde chegava sem pressa, sentindo o cheiro do incenso que vinha da igreja se misturando com o aroma dos pãezinhos de queijo.

A neta Pintinha é a alegria do avô.

A pretinha viva e esperta, a mostrar os dentinhos no riso alegre, a falar pelos cotovelos na língua embrulhada, era a grande alegria do pai, Chico Timóteo, da mãe Maria Eponina, e dele próprio, o velho negro Loio.

Desde os primeiros passos ela anda com ele; ele a leva à escola, depois ela vai com as amigas e, finalmente, chega o dia em que Pintinha recebe o diploma de professora.

O velho Loio era tocador de sanfona. Num retrocesso temporal ficamos sabendo do passado do velho negro Loio. Seu pai era pescador, perdeu uma perna no mar, dizia que na guerra com os tubarões. Vendera o saveiro, e, comprando uma porta vende charutos, dá sorte e compra uma loja no Mercado Modelo. Loio apaixonou-se por Aparecida, aos dezoito anos, e aquela mulher era tudo para ele: mãe, amiga e amante, uma sanfoneira como ele.

Negra como ele, mais velha que ele doze anos, de tantas coisas entendia que a sabedoria em pessoa. Sanfoneira, jogadora de baralho e dados, cantora nas ruas do cais, prostituta aos sábados, cartomante e rezadeira, mulher sem pouso certo que apenas tinha de seu o maior coração da Bahia.

Numa ocasião, Aparecida põe as cartas e lhe diz que viu que há uma morte nas mãos dele. Um dia a polícia chegou e ele foi reconhecer Aparecida no chão, morta, numa poça do próprio sangue. A partir daí Loio vai trabalhar no mercado com o pai até o dia em que morreu com dores no peito, tendo deixado “como herança a birosca, um bocado de dinheiro e um terreno no Rio Vermelho”. Comprou outra porta no mercado e tornou-se comerciante remediado.

Continuou a tocar a sanfona, mas nunca aceitou convites para tocar nas festas. Só comparecia a circos e foi lá que conheceu Verinha. Vendeu o terreno, comprou uma casa no Gravatá, e dizia que o Largo da Palma era tanto de Verinha quanto da Santa.

Quando os negócios prosperaram precisou contratar um ajudante. Depois de duas tentativas Maria Ecléa, vendedora de rendas do Ceará ofereceu o filho, Chico Timóteo. A confiança cresce entre eles, quando a mãe de Chico falece, Loio o convida para almoçar na casa dele. Assim começa o namoro, vem o noivado e o casamento de Chico Timóteo com Maria Eponina. Loio oferece sua casa para o casal e vai morar nos quarto dos fundos.

Andando pelo Largo da Lapa, o velho negro Loio vai relembrando o passado.

Vem a recordação do dia em que Pintinha é professora nomeada, e vai ensinar na Amaralina. Encanta-se com a dedicação da neta com os alunos, filhos de pescadores.

Mas naquela noite, Pintinha não voltou das aulas. O desespero e a loucura tomam conta de Maria Eponina e de Chico Timóteo. A polícia veio dizer que Pintinha foi agredida, bateram, violentaram e atiraram nela e agora está entre a vida e a morte.

Três meses de dor, de sofrimento. Duas operações depois voltou para casa. Tão doente, com tantas dores, não reconhecia ninguém. O velho negro Loio buscava paz no Largo da Palma.

Um dia vai falar com o médico, Dr. Eulálio Sá, e soube que as operações só prolongaram um pouco a vida, mas que as dores seriam insuportáveis. Quando foi ver a neta, doeu muito seu coração de velho e saiu de cabeça baixa para o Largo da Palma.

Procurou o farmacêutico, pediu um veneno para matar um cachorro que estava velho e doente. Ao chegar em casa, dissolve o veneno na água e dá para Pintinha. Lavou o copo muito bem, depois e ficou na sala. Agora ele tem uma morte nas mãos.

A filha veio do quarto, “indiferente, sem lágrimas e quase sem voz: Traga uma vela, pai, Pintinha acaba de morrer.

COMENTÁRIO

Nesse episódio, a eutanásia é o tema em torno do qual se desenvolve a narrativa. Embora ela só apareça no final, durante todo o conto há signos de morte e de tragédia. A delicadeza com que o narrador descreve a forte ligação entre o avô e a neta, a dedicação extrema que há entre eles é tecida ao longo da narrativa.

Com uma síntese brilhante tomamos conhecimento da vida desse velho avô, que só procurou a paz, o amor e que por amor no fim da vida realiza o ato anunciado nas primeiras linhas “O velho, quando aquilo aconteceu, trancou-se em si mesmo”.

Apenas o Largo da Palma é capaz de trazer a paz, talvez que todos o esqueçam, mas “Todos sabem em Salvador da Bahia que, apesar da idade, antigo de muitos séculos, o Largo da Palma tem boa memória. Como esquecer o velho negro Loio, nas manhãs de sol ou de chuva, a levar a neta para as aulas?

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 457

 


Malba Tahan (O Domador de Elefantes)


Evita o iracundo; afasta-te do homem colérico.
Salomão, Provérbios, 22, 24.


Na décima quinta página do livro Yu-King poderás ler, ó Irmão dos árabes, a singular aventura ocorrida na Índia com um domador de elefantes.

Vamos traduzi-la com a maior fidelidade, seguindo, nas linhas e nas entrelinhas, o pensamento do velho sacerdote budista que a escreveu. No antigo paix (pequeno domínio) de Carvásti, para além do Ganges, o rá (rei, senhor) Lauit anunciou ao povo que precisava, com certa urgência, de um domador de elefantes.

Apresentou-se um homem chamado Sougraha, que se dizia perito nesse perigoso ofício.

— Conheço, ó rei — declarou Sougraha —, três maneiras seguras por meio das quais será fácil domesticar um elefante. A primeira é pelas argolas de prata…

— Está bem — acudiu secamente o monarca. — Aceito a tua oferta. Poderás amanhã, depois da prece, iniciar o teu trabalho. O elefante bravio, de minha predileção, será trazido para o pátio. Terás, no fim, uma boa recompensa.

Momentos depois, ao deixar o palácio, o vaidoso Sougraha passou ao lado de um grupo de servos e um destes proferiu um gracejo qualquer. Não se conteve o domador; avançou impetuoso, colérico, contra o jovem e feriu-o gravemente.

Preso pelos guardas, foi o agressor conduzido à presença do rei.

— Que foi isso, meu amigo? — interpelou, muito sério, o monarca. — Que se passou, afinal?

— Senhor — respondeu Sougraha, com tremores na voz. — Não poderei ocultar a verdade. Ao sair deste palácio, depois da audiência, cruzei, na escada, com um grupo de servos. Um destes dirigiu-me uma pilhéria. Não me contive. Avancei, de golpe, contra o gaiato e castiguei-o com extrema violência. Foi tudo, confesso, obra irrefletida do impulso de um momento.

Ponderou, então, o rei, serenamente, com intencional frieza:

— Como pretendes, ó Sougraha, domesticar um elefante bravio, se não és capaz de conter a fera odienta que vive dentro de ti? Aprende, primeiro, meu amigo, a dominar os teus impulsos, o teu gênio, a tua cólera.

E, numa decisão irrevogável, concluiu:

— Retira-te! Não mais me interessa a tua colaboração. Educa-te primeiro, para que possas, depois, educar.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 5 – Pigmalião


Considerado em sua era d’ouro,
grande escultor, artífice sem par.
Na sua faina tinha sempre os louros,
gênio da arte, talento a criar.

Mas às mulheres devotava, inteiro,
desprezo sempre, nelas só defeitos.
Por tal razão permaneceu solteiro,
dedicando-se à arte e seus preceitos.

Ousou criar uma estátua tão bela,
de uma mulher, rivalizando esta,
com as mais lindas e puras donzelas
de todo reino, de todas as festas.

Por tão perfeita obra se apaixona,
dá-lhe vestidos, brincos e colares.
De seu carinho será casta dona,
único tema de doces cantares.

Sente da pedra a frieza insana,
para beijar sem pejo os lábios duros.
Chora o desejo de torná-la humana,
para que goze dos amores puros.

Mas eis que em Chipre da deusa o festim,
Vênus, do amor, começa com seus cânticos.
No belo templo, no altar carmesim,
ele oferendas tece em ais românticos.

A Vênus pede que a estátua seja
de carne, sangue, de amor perfeito.
A deusa atende, ele o altar beija,
e nas mulheres não vê mais defeito.

A casa chega, corre pressuroso
para beijar a estátua estremecida.
Beija seus lábios de contorno airoso
e sente neles o calor da vida.

Abraça o corpo, que ao toque enternece.
Sente suas carnes quentes e sedosas.
Celebra Vênus, sua paixão parece
ser infinita, tudo, enfim, esquece.

Ele a recebe em cândido himeneu.
O amor vivido gera um filho amado,
que ao crescer um belo templo ergueu
à deusa Vênus, em solo sagrado.

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Monteiro Lobato (O Estigma)


FUI UM DIA A ITAOCA levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura.

— Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.

Assim fiz e lá cheguei sem novidade. No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado. Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan*, à espera dalgum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu viva alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do embaraçador. Caminhei cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a certeza do transvio.

Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o “ó de casa”. Abre-me um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.

— O patrãozinho é lá em cima, na casa grande.

Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.

Um grupo de crianças brincava por ali, em torno duma fogueirinha de cavacos fumarentos.

— Fumaça para lá, santinha para cá!

Ao avistarem-me calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.

— Papai está?

Estava e ia chamá-lo, respondeu, esgueirando-se pela casa adentro. As outras, com o dedinho na boca, vi-as a me espiarem da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre catorze e dezesseis anos, de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.

— Faça o favor de entrar! — disse-me com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam de alto a baixo, num relance. — Sente-se e espere um bocadinho.

— A menina é filha do...

— Não, senhor. Prima. Mas moro aqui desde que morreram meus pais.

— Tão nova e já órfã!...

— De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na febre amarela de
Campinas. O primo trouxe-me de lá e...

Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa.

Reconhecemo-nos incontinênti, com igual espanto.

— Bruno! — berrou ele. — Que milagre!

— E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!

Abraços, explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidência.

— Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo...

— Desde a opa da colação de grau. Como passa o tempo!... Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.

Durante estas expansões a menina do avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia regalava meus olhos na linda criatura que ela era. Fausto, percebendo-o, apresentou-me.

— Laurita, minha prima...

— Já nos conhecemos — disse eu.

— Donde? — exclamou Fausto surpreso.

— Daqui mesmo, de há cinco minutos.

— Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café para aqui.

A menina ao retirar-se pôs no andar esse requebro que o instinto aconselha às moças na presença de um homem casadouro.

— Galantinha, hein? — disse Fausto, mal se fechou a porta.

— Linda! — exclamei, carregando com fúria o i. — Que frescura! Que corado!

— O corado corre à conta do forno. Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses de roça com outros tantos de capital.

— Excelente vida! É o sonho de toda gente.

— Não me queixo, nem quero outra.

— Colheste, então, o pomo da felicidade?

Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.

— Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos! — galanteei, tomando um deles.

— Qual? — acudiu a menina. — Esse que tem marca de carretilha?

— Sim!

Ela desferiu a mais sonora das risadinhas.

— Justamente os que têm marca são de Lucrécia...

— Ora você — cascalhou Fausto —, a confundir as artes da prima com as da preta!

— Os meus são estes — disse Laura, apontando os não carretilhados.

Provei um, e:

— Realmente, a diferença é enorme.

Novo “pizzicato” da menina.

— Pois a massa é a mesma e tudo tempero de Lucrécia...

Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.

— Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação, que é o melhor.

Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.

Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava largo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.

Ao jantar apresentou-me sua mulher.

Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar de ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente má.

Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio da esposa.

Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas.

Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e mau de senhora absoluta.

Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras partimos. Sem demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.

— Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?

— E estamos a pagar a língua. É sempre assim na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo. O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que não há casamento — há casamentos. Cada caso é um caso especial.

— Tendo aliás de comum — disse eu — um mesmo traço: restrição da personalidade.

— Sim. É mister que o homem ceda cinquenta por cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos  felicidade conjugal.

— “Felicidade conjugal”, dizes bem, restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.

A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o “prazer paulista” de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.

— No teu caso — perguntei —, foste feliz?

Fausto retardou a resposta, mastigando-a.

— Não sei. Cedi os cinquenta, e espero que minha mulher imite a minha abnegação. Ela, porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto: procuramos o equilíbrio ainda...

— E Laura? — perguntei estouvadamente...

Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com barrancos acima, avencas viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse, apontando para aquilo:

— Sabes o que é uma face noruega? Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... é como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida...

Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.

Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três impressões na alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado — complexa, sutil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos — o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto — vagamente perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas. Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer das três personagens.

Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro quando alguém me cutucou as costelas.

— Tu, Fausto!

— Eu, sim, Bruno!

Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.

— Morta! — foi a resposta seca e torva.

Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando a súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombra, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.

— E tua mulher? Os filhos?

— Também morta, a mulher. Os filhos, por aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida, e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história — e gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o Paraíso...

Eis o que ouvi:

— Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a a morar conosco. Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina que seria.

“Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher — não o suspeitaste naquele jantar? — era uma criatura visceralmente má.

“O ‘má’ na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que lá pôs Dante, e em lugar meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...

“Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde me levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei. Com a experiência de hoje agarrava a mais reles das promotorias. O viver que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.”

— A face noruega!...

— Era exata a comparação, gélida como nos corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.

“Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus, permanente — e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o perigosíssimo amor dos trinta anos.

“O vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das reixas (ira, ódio) encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me a pior casta de amor — o amor secreto...

“Correram meses.

“Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou minha mulher contra os ‘amásios’!

“A caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo, recalcado no fundo do meu ser.

“Intimou-me a expulsá-la incontinênti. Resisti.

“Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair perante ela e todo mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro a ‘senhora’. Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho na alma as cicatrizes das áscuas (brasas acesas) que espirraram aqueles olhos.

“Apanhei a luva.

“Estas guerras conjugais portas adentro!... Não há aí luta civil que se lhes compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição. A sós comigo, porém, que inferno!

“Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura, quando...

“Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao
pomar?”

— O pinhal d’Azambuja!

— Foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio favorito de Laura. Emboscava-se nele com um livro, ou com a costura, e dessa arte sossegava um momento da inferneira doméstica.

“Um dia em que saí à caça, menos pela caçada do que para retemperarme da guerra caseira na paz das matas, ao montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.

“Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronde de enorme guabirobeira.

“Ao pisar no terreiro vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.

“— Papai, não viu Laura?

“— Laura?...

“Estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:

“— Não vá ter acontecido alguma para nhá Laurita, patrão! Saiu cedo,
antes do café, já é quase noite e nada de voltar.

“— A senhora... — comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.

“— Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece que comeu cobra...

“O coração palpitou-me violento e saí em procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante.

“Nada!

“Eu desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado à frente, gritou:

“— Está aqui um cestinho!

“Corremos todos. Estava lá o cestinho de costura e, mais adiante... o corpo frio da menina.

“Morta, a bala!

“A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida: um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina estria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.

“Suicidara-se...

“Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.

“Trouxeram-na a braços. Em casa minha mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você isto: minha mulher não viu o cadáver da menina.

“Dias depois humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por diante.

“A mim o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.

“Não compreendia aquilo.

“Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido?

“Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito indicioso.

“Mistério!

“Mas correram os meses e um belo dia minha mulher deu à luz um menino.

“Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.

“A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala com a notícia do bom sucesso.

“— Desta vez foi um meninão! — disse ela. — Mas nasceu marcado...

“— Marcado?

“— Tem uma marca no peito, uma cobrinha-coral de cabeça preta.

“Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi... vi um estigma que reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro, e a ‘cobrinha’, uma estria abaixo.

“Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.

“— Ela já viu isto? — perguntei à parteira.

“— Não! Nem é bom que veja antes de sarada.

“Não me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos da mãe, dizendo com frieza de juiz:

“— Olha, mulher, quem te denuncia!

“A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhou-os como louca, à medida que lhe alcançava a significação. Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus. Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.

“Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de delírio...”

Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.

— Meu filho — disse ele. — Mostra a Bruno a tua cobrinha.

O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então ver o estigma. Era perfeita a ilusão: lá estava a imagem do orifício aberto pelo projétil e do fio de sangue escorrido.

— Veja você — concluiu o meu triste amigo — os caprichos da natureza...

— Caprichos de Nêmesis... — ia eu dizendo, mas o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele próprio o eloquente delator.
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Nota:
O asno de Buridan é uma imagem muito comum no estudo da filosofia, para expressar um paradoxo do livre-arbítrio. Criada por Jean Buridan (1300-1358), refere-se a uma situação hipotética em que um asno é amarrado a uma mesma distância de um fardo de feno e uma tina d’água. Incapaz de tomar uma decisão racional, o asno morre de fome e sede.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1915.