segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Monteiro Lobato (O Estigma)


FUI UM DIA A ITAOCA levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a cavalgadura.

— Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.

Assim fiz e lá cheguei sem novidade. No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado. Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan*, à espera dalgum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu viva alma, e minha impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do embaraçador. Caminhei cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a certeza do transvio.

Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o “ó de casa”. Abre-me um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.

— O patrãozinho é lá em cima, na casa grande.

Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.

Um grupo de crianças brincava por ali, em torno duma fogueirinha de cavacos fumarentos.

— Fumaça para lá, santinha para cá!

Ao avistarem-me calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.

— Papai está?

Estava e ia chamá-lo, respondeu, esgueirando-se pela casa adentro. As outras, com o dedinho na boca, vi-as a me espiarem da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre catorze e dezesseis anos, de avental azul e corada como quem esteve a lidar em forno.

— Faça o favor de entrar! — disse-me com linda voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam de alto a baixo, num relance. — Sente-se e espere um bocadinho.

— A menina é filha do...

— Não, senhor. Prima. Mas moro aqui desde que morreram meus pais.

— Tão nova e já órfã!...

— De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na febre amarela de
Campinas. O primo trouxe-me de lá e...

Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa.

Reconhecemo-nos incontinênti, com igual espanto.

— Bruno! — berrou ele. — Que milagre!

— E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um matutão desconfiado!

Abraços, explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidência.

— Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo...

— Desde a opa da colação de grau. Como passa o tempo!... Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.

Durante estas expansões a menina do avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia regalava meus olhos na linda criatura que ela era. Fausto, percebendo-o, apresentou-me.

— Laurita, minha prima...

— Já nos conhecemos — disse eu.

— Donde? — exclamou Fausto surpreso.

— Daqui mesmo, de há cinco minutos.

— Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café para aqui.

A menina ao retirar-se pôs no andar esse requebro que o instinto aconselha às moças na presença de um homem casadouro.

— Galantinha, hein? — disse Fausto, mal se fechou a porta.

— Linda! — exclamei, carregando com fúria o i. — Que frescura! Que corado!

— O corado corre à conta do forno. Estão lá todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses de roça com outros tantos de capital.

— Excelente vida! É o sonho de toda gente.

— Não me queixo, nem quero outra.

— Colheste, então, o pomo da felicidade?

Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento a conversa mudou de rumo. Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.

— Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos! — galanteei, tomando um deles.

— Qual? — acudiu a menina. — Esse que tem marca de carretilha?

— Sim!

Ela desferiu a mais sonora das risadinhas.

— Justamente os que têm marca são de Lucrécia...

— Ora você — cascalhou Fausto —, a confundir as artes da prima com as da preta!

— Os meus são estes — disse Laura, apontando os não carretilhados.

Provei um, e:

— Realmente, a diferença é enorme.

Novo “pizzicato” da menina.

— Pois a massa é a mesma e tudo tempero de Lucrécia...

Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.

— Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação, que é o melhor.

Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que no entanto examinamos sempre com real prazer.

Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava largo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para viver.

Ao jantar apresentou-me sua mulher.

Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar de ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente má.

Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio da esposa.

Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram os bens, os corpos, mas não as almas.

Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e mau de senhora absoluta.

Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as cavalgaduras partimos. Sem demora voltou o meu amigo à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.

— Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?

— E estamos a pagar a língua. É sempre assim na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo. O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que não há casamento — há casamentos. Cada caso é um caso especial.

— Tendo aliás de comum — disse eu — um mesmo traço: restrição da personalidade.

— Sim. É mister que o homem ceda cinquenta por cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que chamamos  felicidade conjugal.

— “Felicidade conjugal”, dizes bem, restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.

A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo em parte, gozando o “prazer paulista” de ver ondular por espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.

— No teu caso — perguntei —, foste feliz?

Fausto retardou a resposta, mastigando-a.

— Não sei. Cedi os cinquenta, e espero que minha mulher imite a minha abnegação. Ela, porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto: procuramos o equilíbrio ainda...

— E Laura? — perguntei estouvadamente...

Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com barrancos acima, avencas viçosas, samambaias e begônias agrestes, disse, apontando para aquilo:

— Sabes o que é uma face noruega? Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... é como um raio de sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida...

Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.

Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três impressões na alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado — complexa, sutil em demasia para caber em moldes vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos — o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto — vagamente perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas. Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer das três personagens.

Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos estava eu parado diante duma vitrina no Rio de Janeiro quando alguém me cutucou as costelas.

— Tu, Fausto!

— Eu, sim, Bruno!

Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.

— Morta! — foi a resposta seca e torva.

Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando a súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de sombra, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria do encontro.

— E tua mulher? Os filhos?

— Também morta, a mulher. Os filhos, por aí, casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida, e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história — e gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o Paraíso...

Eis o que ouvi:

— Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a a morar conosco. Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina que seria.

“Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher — não o suspeitaste naquele jantar? — era uma criatura visceralmente má.

“O ‘má’ na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não peças mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que lá pôs Dante, e em lugar meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...

“Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar para onde me levaria a áurea vereda. O dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei. Com a experiência de hoje agarrava a mais reles das promotorias. O viver que levamos não o desejo como castigo ao pior celerado.”

— A face noruega!...

— Era exata a comparação, gélida como nos corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.

“Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e espírito um poeta concebe em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus, permanente — e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o perigosíssimo amor dos trinta anos.

“O vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era um cego a quem restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das reixas (ira, ódio) encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me a pior casta de amor — o amor secreto...

“Correram meses.

“Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à minha mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou minha mulher contra os ‘amásios’!

“A caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum sentimento puríssimo, recalcado no fundo do meu ser.

“Intimou-me a expulsá-la incontinênti. Resisti.

“Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair perante ela e todo mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu de assombro a ‘senhora’. Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho na alma as cicatrizes das áscuas (brasas acesas) que espirraram aqueles olhos.

“Apanhei a luva.

“Estas guerras conjugais portas adentro!... Não há aí luta civil que se lhes compare em crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição. A sós comigo, porém, que inferno!

“Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de Laura, quando...

“Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao
pomar?”

— O pinhal d’Azambuja!

— Foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio favorito de Laura. Emboscava-se nele com um livro, ou com a costura, e dessa arte sossegava um momento da inferneira doméstica.

“Um dia em que saí à caça, menos pela caçada do que para retemperarme da guerra caseira na paz das matas, ao montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de costura.

“Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronde de enorme guabirobeira.

“Ao pisar no terreiro vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.

“— Papai, não viu Laura?

“— Laura?...

“Estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:

“— Não vá ter acontecido alguma para nhá Laurita, patrão! Saiu cedo,
antes do café, já é quase noite e nada de voltar.

“— A senhora... — comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.

“— Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece que comeu cobra...

“O coração palpitou-me violento e saí em procura de Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do pinhal e organizei uma alvoroçada batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante.

“Nada!

“Eu desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado à frente, gritou:

“— Está aqui um cestinho!

“Corremos todos. Estava lá o cestinho de costura e, mais adiante... o corpo frio da menina.

“Morta, a bala!

“A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida: um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina estria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.

“Suicidara-se...

“Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e beijei-a longamente entre arquejos e sacões de angústia.

“Trouxeram-na a braços. Em casa minha mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado, e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento deixasse a clausura. Note você isto: minha mulher não viu o cadáver da menina.

“Dias depois humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por diante.

“A mim o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.

“Não compreendia aquilo.

“Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido?

“Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito indicioso.

“Mistério!

“Mas correram os meses e um belo dia minha mulher deu à luz um menino.

“Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.

“A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala com a notícia do bom sucesso.

“— Desta vez foi um meninão! — disse ela. — Mas nasceu marcado...

“— Marcado?

“— Tem uma marca no peito, uma cobrinha-coral de cabeça preta.

“Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi... vi um estigma que reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro, e a ‘cobrinha’, uma estria abaixo.

“Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora evidência.

“— Ela já viu isto? — perguntei à parteira.

“— Não! Nem é bom que veja antes de sarada.

“Não me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos da mãe, dizendo com frieza de juiz:

“— Olha, mulher, quem te denuncia!

“A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhou-os como louca, à medida que lhe alcançava a significação. Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus. Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.

“Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de delírio...”

Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.

— Meu filho — disse ele. — Mostra a Bruno a tua cobrinha.

O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então ver o estigma. Era perfeita a ilusão: lá estava a imagem do orifício aberto pelo projétil e do fio de sangue escorrido.

— Veja você — concluiu o meu triste amigo — os caprichos da natureza...

— Caprichos de Nêmesis... — ia eu dizendo, mas o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele próprio o eloquente delator.
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Nota:
O asno de Buridan é uma imagem muito comum no estudo da filosofia, para expressar um paradoxo do livre-arbítrio. Criada por Jean Buridan (1300-1358), refere-se a uma situação hipotética em que um asno é amarrado a uma mesma distância de um fardo de feno e uma tina d’água. Incapaz de tomar uma decisão racional, o asno morre de fome e sede.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1915.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho)–2–


SEGUNDO EPISÓDIO: O LARGO DE BRANCO

Eliane, “cabelos brancos”, sozinha, morando num quarto muito pobre e pequeno na rua Bângala, vai a um encontro. Ela foi abandonada por seu companheiro, Geraldo, depois de 30 anos, ficando sem recursos. Na verdade “ele jogara o dinheiro na cama e, como se estivesse a pagar a vida quase inteira em comum, saíra a bater a porta com estupidez”.

Ela vai encontrar-se com Odilon, seu primeiro marido de quem ela tinha se separado há trinta anos. Ele estava voltando a Salvador e queria um encontro, “naquele dia mesmo, ao meio dia, no Largo da Palma. Em frente, bem em frente da igreja”.

Na carta ele lhe dizia que soubera de sua situação e queria vê-la. Quando chega “o Largo da Palma, em junho, sempre espera o sol para vencer o frio que sobre da noite”. Ela chegou cedo. As pedras, no chão, deviam ter séculos.

O narrador faz uma volta ao passado de Eliane para narrar a infância dela, o nascimento da irmãzinha, Joanita, a alegria da mãe, sempre a sorrir, o pai calado, cada vez mais calado. Depois, o tempo em que o pai chega bêbado, até o dia em que cai, deitado de bruços, como um morto.

A ambulância chega, vem o médico e um estudante, que Eliane ouve o médico chamar de Odilon. O pai é levado, e Odilon vai todo dia dar notícias, até o dia em que o pai volta, doente para casa, sem poder mais trabalhar. Em três meses Odilon será médico, e tudo nele respira bondade, calma e boa vontade. Ela conclui que Odilon não é um homem comum. A casa fica triste, a mãe perde o riso, a família está na miséria. A morte do pai foi um alívio. Todos viam que Odilon estava apaixonado por Eliane.

Eles ficam noivos, casam. Ela entende, então que o marido era “um homem inteiramente desligado do mundo” Só o que interessava a ele eram os doentes, o hospital, o ambulatório, chegando ao ponto de comprar remédios para os doentes, mesmo sabendo que a mãe e a irmã precisavam muito de dinheiro.

Ele era feio, desajeitado e desligado do mundo, mas a tratava com o maior carinho. A dor maior aconteceu quando ela ficou sabendo que não poderia ter filhos. O choque que sofreu foi tão grande que Odilon se afastou do hospital por três dias. Mas mesmo todo o amor que o marido dedicava não era suficiente, pois ela se sentia cada vez mais separada dele.

Algumas vezes, irritada, zangada, dirigia-se a ele ofendendo-o, dizendo palavrões.

Ele era incapaz de zangar-se. No último dia o agrediu aos gritos, saiu batendo a porta. Foi para um hotelzinho, à beira da praia, e foi lá que viu Geraldo, o homem mais bonito que tinha conhecido. Quando ele se aproximou, olhou-a, não teve coragem de se afastar.

Agora, depois de trinta anos, Odilon voltava, sabendo do abandono, queria vê-la. Ela sentiu fome e lembrou que, talvez “A Casa dos Pãezinhos de Queijo” estivesse aberta.

Mas ela se aproxima da igreja, e vê Odilon.

Está de pé, o paletó chegando aos joelhos, a calça frouxa sobre as pernas, o laço da gravata quase no peito, velho e sujo o chapéu de feltro. E, talvez, por causa do buquê de rosas vermelhas que tem na mão, parece um palhaço de circo. É ele, Odilon, não há dúvida. Os cabelos grisalhos, bastante envelhecido, mas o mesmo homem de sempre. (…) E como se nada houvesse acontecido naqueles trinta anos, desde que se separaram, ele apenas diz: – Vamos, Eliane, vamos para casa.(…) E Eliane, não tem dúvida de que o seu velho largo, como num dia de festa está vestido de branco. (p.47)

COMENTÁRIO

Novamente o espaço do Largo da Palma é testemunha de uma história humana. O largo fica de branco, festivo para dar alegria e alívio a uma velha mulher desiludida e triste. Uma história de amor transparece nas entrelinhas, feita de fidelidade, persistência, resistindo ao tempo e ao abandono.

O “branco” é uma cor simbólica, representando uma mudança de condição. Recebe todas as cores, por isso tem um valor limite de cor de passagem, da qual se esperam mutações do ser. É a cor da revelação e da graça; desperta o entendimento, a consciência desabrochada.

O texto é construído lentamente, despertando o interesse em relação ao desfecho, e lá está o Largo da Palma, antigo, firme, fiel a seu destino, iluminado pelo sol, com o céu muito azul, veste-se de branco, trazendo para Eliane a certeza de que haverá uma transformação em sua vida, sua consciência desperta para valores que, quando jovem, não soube avaliar devidamente.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (A História do Amor)


Contam que, uma vez, se reuniram os sentimentos e qualidades dos homens em um lugar da Terra. O Aborrecimento havia reclamado pela terceira vez que não suportava mais ficar à toa e a Loucura, como sempre louca, propôs-lhe:

- Vamos brincar de esconde-esconde?

A Intriga levantou a sobrancelha intrigada e a Curiosidade, sem poder conter-se, perguntou-lhe:

- Esconde-esconde? Como é isso?

É um jogo, explicou a Loucura, em que eu fecho os olhos e começo a contar de um a um milhão enquanto vocês se escondem, e quando eu tiver terminado de contar, o primeiro de vocês que eu encontrar ocupará meu lugar para continuar o jogo.

O Entusiasmo dançou seguido pela Euforia. A Alegria deu tantos saltos que acabou convencendo a Dúvida e até mesmo a Apatia, que nunca se interessava por nada.

Mas nem todos quiseram participar. A Verdade preferiu não esconder-se. Para quê, se no final todos a encontravam?

A Soberba opinou que era um jogo muito tonto (no fundo o que a incomodava era que a ideia não tivesse sido dela) e a Covardia preferiu não arriscar-se.

- Um, dois, três, quatro... - começou a contar a Loucura. A primeira a esconder-se foi a Pressa, que como sempre caiu tropeçando na primeira pedra do caminho. A Fé subiu ao céu e a Inveja se escondeu atrás da sombra do Triunfo, que com seu próprio esforço, tinha conseguido subir na copa da árvore mais alta.

A Generosidade quase não consegue esconder-se, pois cada local que encontrava lhe parecia maravilhoso para algum de seus amigos - se era um lago cristalino, ideal para a Beleza; se era a copa de uma árvore, perfeito para a Timidez; se era o voo de uma borboleta, o melhor para a Volúpia; se era uma rajada de vento, magnífico para a Liberdade, e assim, acabou escondendo-se em um raio de Sol.

O Egoísmo, ao contrário, encontrou um local muito bom desde o início, ventilado, cômodo, mas apenas para ele.

A Mentira escondeu-se no fundo do oceano (mentira, na realidade, escondeu-se atrás do arco-íris), e o Desejo, no centro dos vulcões. O Esquecimento, não me recordo onde se escondeu, mas isso não é importante. Quando a Loucura estava lá pelo 999.999, o Amor havia encontrado um local para esconder-se, pois todos já estavam ocupados, até que encontrou um roseiral e, carinhosamente, decidiu esconder-se entre as suas flores.

- Um milhão, contou a Loucura, e começou a busca. A primeira a aparecer foi a Pressa, apenas a três passos de uma pedra.

Depois, escutou-se a Fé discutindo com Deus no céu sobre zoologia.

Sentiu-se vibrar o Desejo nos vulcões. Em um descuido encontrou a Inveja, e claro, pôde deduzir onde estava o Triunfo.

Egoísmo, não teve nem que procurá-lo. Ele sozinho saiu disparado de seu esconderijo, que na verdade era um ninho de vespas. De tanto caminhar, a Loucura sentiu sede e, ao aproximar-se de um lago, descobriu a Beleza.

A Dúvida foi mais fácil ainda, pois a encontrou sentada sobre uma cerca sem se decidir de que lado esconder-se. E assim foi encontrando todos. O Talento, entre a erva fresca; a Angústia, em uma cova escura.

A Mentira, atrás do arco-íris (não, mentira, ela estava no fundo do oceano); e até o Esquecimento, para quem já havia esquecido que estava brincando de esconde-esconde.

Apenas o Amor não aparecia em nenhum local. A Loucura procurou atrás de cada árvore, embaixo de cada rocha do planeta, e em cima das montanhas. Quando estava a ponto de dar-se por vencida, encontrou um roseiral. Pegou uma forquilha e começou a mover os ramos, quando, no mesmo instante, escutou-se um doloroso grito. Os espinhos tinham ferido o Amor nos olhos.

A Loucura não sabia o que fazer para desculpar-se. Chorou, rezou, implorou, pediu perdão e até prometeu ser seu guia. Desde então, desde que pela primeira vez se brincou de esconde-esconde na Terra, o Amor é cego e a Loucura sempre o acompanha.

Fonte:
Universo das Fábulas

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 4 – Píramo e Tisbe


Na antiga terra feita de magia,
um guapo jovem uma donzela amou.
Por este amor ela se consumia,
Tragédia ingrata que o tempo olvidou.

Píramo quer para si a bela amada
e Tisbe o moço quer como marido;
mas os pais não permitem a caminhada
de amor eterno do par desvalido.

Furtivos seus encontros, sempre à noite,
quando resolvem, então, os dois fugir.
A sorte ingrata fere como açoite,
leva os amantes a se decidir.

Combinam encontro, não têm outra escolha,
junto a um túmulo, da amoreira ao lado.
Árvore forte, copa em brancas folhas,
que frutos cede ao viajor cansado.

O sol se foi, clareia um pouco a lua.
Já se faz tarde e Tisbe segue ansiosa.
Quer ver o amante e afinal ser sua,
o véu esconde a feição formosa.

No branco tronco ela senta, porém,
e o doce amado espera, por que tarda?
Eis que um leão por entre as sebes vem.
Tisbe se esconde no breu da ramada.

O véu lhe cai, mas dele não dá falta,
E o leão raivoso o despedaça,
na boca o sangue de uma presa incauta.
A fera some e o tempo se passa.

A moça espera que o monstro se vá.
Segura está no escuro do relvado.
Eis que o rapaz, enfim, chega ao lugar,
e toma o casto véu despedaçado.

O véu banhado em sangue, ingrata sorte
o faz julgar que uma faminta fera
a amada encontrou e lhe deu morte.
O desespero atroz sua vista cega.

─ Oh, deuses, fostes sórdidos comigo
e meu amor em vão já terminou.
A minha infinda dor não tem abrigo
e toda uma esperança se findou.

E cai o jovem em pranto convulsivo
a chorar a desgraça acontecida.
─ Se a morte te encontrou, irei contigo,
Casta noiva infeliz, minha querida.

No peito enterra a espada com firmeza,
caindo agonizante no relvado.
O sangue jorra e tinge a amoreira,
que as raízes sorvem, derramado.

A jovem Tisbe sai do esconderijo
à procura do amado, inconformada.
Logo o encontra, assim desfalecido.
Um grito invade a noite, enluarada.

O amado corpo abraça já possessa.
Ele ainda abre os olhos e lhe sorri.
Logo a seguir se volta e a vida cessa.
No reino de Plutão vai residir.

─ Que sorte horrível a minha, quero a morte,
ela diz a chorar, mas decidida.
─ Se te foste, terei a mesma sorte.
E a mesma espada atroz lhe tira a vida.

Na manhã d’outro dia o povo acorre,
encontrando abraçados os namorados.
O rubro da amoreira se confunde
com o sangue derramado no relvado.

Sepultados os dois numa só campa,
pra sempre juntos, pois tanto se amaram.
E a amoreira branca o sangue encampa.
Seus frutos doces rubros se tornaram.

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Machado de Assis (Eterno!)


— Não me expliques nada, disse eu entrando no quarto; é o negócio da baronesa.

Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso:

— Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridícula e humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridícula, porque ela não faz caso de ti; e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe arrastas a asa à mulher. Olha que ele tem cara de maus bofes.

Norberto meteu as unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse confortá-lo e dar-lhe algum conselho; esperara-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que não dormira, que recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu, apesar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade, estudávamos medicina, com a diferença que eu repetia o terceiro ano, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não me cabendo igual fortuna, por havê-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia e das dívidas que o bom velho pagava semestralmente.

Pagava-as, e escrevia-me logo uma porção de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando até ser doutor. Doutor, para quê? dizia comigo.

Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moças, nem os bons charutos Vilegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E tocava a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores.

Falei de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manhã. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo. Já me não tuteava. Dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeão Antônio de Barros, estou farto de gastar à toa o meu dinheiro com o senhor. Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar comigo. Se não, procure por si mesmo recursos; não lhe dou mais nada."

Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito ruim do Visconde de Sepetiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte anos, — o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras convenções sociais.

A imaginação, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento, mas passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais árdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos, mas eu estava tão afeito a ir à Rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastá-la em dobro, que mal podia adotar outro sistema.

Foi neste ponto que abri a carta do amigo Norberto e corri à casa dele. Já sabem o que lhe disse. Viram que ele meteu as unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos.

— Quais?

Não me respondeu.

— Que compres uma pistola ou uma gazua? Algum narcótico?

— Para que estás caçoando comigo?

— Para fazer-te homem.

Norberto deu de ombros, com um laivozinho de escárnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem senão amar a mais divina criatura do mundo e morrer por ela? A Baronesa de Magalhães, causa daquela demência, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José Soares de Magalhães. Vinham casados de fresco. A baronesa tinha menos trinta anos que o barão, ia em vinte e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em família, Iaiá Lindinha. Como o barão era velho amigo do pai de Norberto, as duas famílias uniram-se desde logo.

— Morrer por ela? disse eu.

Jurou-me que sim. Era capaz de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entravalhe pelos ossos... E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabeça, mordia os travesseiros. Às vezes, parava, arquejando, logo depois tornava às mesmas convulsões, abafando os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar.

Já acostumado às lágrimas do meu amigo, desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma criança, e despedi-me. Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal.

— É verdade. Que é?

— Vão-se embora. Estivemos lá ontem, e ouvi que embarcam sábado.

— Para a Bahia?

— Sim.

— Então, vão comigo.

Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé dele. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos. Éramos íntimos, os pais não recusariam este favor à nossa jovem amizade.

Confesso que o plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A mãe, apesar de muita lágrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais prontamente do que supunhamos. O pai é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos. O próprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por ele. O pai foi inflexível. Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a família, até onze horas, mas com o pretexto de passar comigo a última noite da minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lágrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolá-la, era a primeira. Até então, ambos nós só conhecíamos os trocos miúdos do amor e, por desgraça dele a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo amargo vinagre.

Não dormimos. Norberto chorava, arrepelava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou terríveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse. Era pior, era como se falasse de dança a uma perna dolorida.

Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os às dúzias, sem acabar nenhum. Às três horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, — não logo, mas daí a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa ideia da cabeça unicamente no interesse dele próprio.

— Ainda se fosse útil, vá, disse-lhe eu, mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e não te recebe.

— Que sabes tu?

— Pode receber-te, mas não há certeza, acho eu. Crês que ela goste de ti?

— Não digo que sim, nem que não.

Contou-me episódios, gestos, ditos, coisas ambíguas ou insignificantes. Depois vinha uma reticência de lágrimas, murros no peito, clamor de angústia, a dor fazia-me comunicando, padecia com ele, a razão cedia à compaixão, as nossas naturezas fundiam-se em uma só lástima. Daí esta promessa que lhe fiz.

— Tenho uma ideia. Vou com eles, já nos conhecemos, é provável que frequente a casa. E eu então farei uma coisa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em outra coisa, mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca.

Norberto aceitou alvoroçado a proposta. Era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um instante. E teimava comigo que não perdesse nada, que, às vezes, um indício pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro, que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano matá-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar boas notícias. Naquela ocasião, apenas sabia chorar com ele.

A aurora registrou o nosso pacto imoral. Não consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos da viagem... Ó mares de Homero, flagelados por Euros, Bóreas e o violento Zéfiro, mares épicos, podeis sacudir Ulisses, mas não lhe dais as aflições do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para aqueles que me levaram daqui à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei aparecer à nossa dona magnífica, tão senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo.

— Não tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intróito.

— Certamente.

O barão veio indicar-me os lugares que a gente via do paquete, — ou a direção de outros. Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se tétrico, senti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada, — e via-me obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas.

Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade, mas não tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a atenção para ele. Fui ao Bonfim. A baronesa — ou Iaiá Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente — recebeu-me com tanta graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de consolá-lo ou desenganá-lo era superior a qualquer outra consideração. Confesso até uma singularidade, agora que estavam separados entrou-me na alma a esperança de que ela não desgostasse dele — justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz, podia ser uma instigação da vaidade que me acenasse com a vitória em favor do desgraçado.

Naturalmente, conversamos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das casas, das afeições... Oh! as afeições eram os laços mais apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto...

— Dois santos, interrompeu a moça. Meu marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortíssima?

— Adivinha-se. O filho é o fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto?

— Conheci. Ia lá à casa muitas vezes.

— Não conheceu.

Iaiá Lindinha franziu levemente a testa.

— Perdoe-me se a desminto, continuei com vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não imagina que homem talhado para dois ofícios ao mesmo tempo, arcanjo e herói, — para dizer à terra as delícias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir lá levar as lamentações humanas...

Só no fim desta fala compreendi que era ridícula. Iaiá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião. Disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises melancólicas. Disseram-lhe que ele estudava muito...

— Muito.

Não insisti para não atropelar os acontecimentos... Que o leitor me não condene sem remissão nem agravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito, mas já lá vão vinte e sete anos. Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes, quando menos, em cascalho.

Assim é que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem escrúpulo, que lhes não falte nada, nem confidências pessoais, nem segredos do governo, nem até amores, amores particularíssimos e inconfessáveis, verá que escândalo levanta o livro. Dirão, e dirão bem, que o autor é um cínico, indigno dos homens que confiaram nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legítimo, porque o caráter público impõe muitos resguardos; os bons costumes e o próprio respeito às mulheres amadas constrangem ao silêncio...

... Mas deixai pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio, estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança que me fica, de não ser condenado absolutamente pela consciência dos que me leem. Já lá vão vinte e sete anos!

Gastei mais de meio em bater à porta daquele coração, a ver se lá achava o Norberto, mas ninguém me respondia de dentro, nem o próprio marido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também não levavam desenganos. Houve-as até mais esperançosas que desenganadas. A afeição que lhe tinha e o meu amor-próprio conjugavam as forças todas para despertar nela a curiosidade e a sedução de um mistério remoto e possível.

Já então as nossas relações eram familiares. Visitava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites seguidas, vivia aflito e inquieto, corria a vê-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao portão da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar ali à espera, com a mão prestes a apertar a minha, — às vezes, trêmula —
ou seria a minha que tremia, não sei.

— Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas noites, à despedida, baixo, no vão de uma janela.

— Por quê?

Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iaiá Lindinha, como quem não ia à casa dela. Tinha fórmulas diferentes: "Ontem encontrei o barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher está boa". Ou então: "Sabes quem vi há três dias no teatro? A baronesa". Não relia as cartas, para não encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte, também ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não aparecia mais o nome de Norberto. Convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas mortuárias.

Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste — incongruência para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e três de março de 1861, às seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viúva pagou em preces o que lhe não dera em amor.

Quando eu lhe pedi, três meses depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iaiá Lindinha não estranhou nem me despediu. Ao contrário, respondeu que sim, mas não tão cedo. Punha uma condição: que concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Apelei dela para ela, escutou-me inflexível. A razão que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez casado, interromperia a carreira.

— E com razão, concluiu. Ouça-me: só me caso com um doutor.

Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta, e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente, desapeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capelo na véspera da bênção matrimonial, e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadêmico.

Semanas depois, pediu-me Iaiá Lindinha que viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que ele ainda residia aqui. Ia em mais de três anos que nos não escrevíamos. Já antes disso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos. Não contei nada a minha mulher. Para quê? Era dar-lhe notícia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta questão a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria visitá-lo antes. Escolhi o segundo alvitre, para avisá-lo das coisas. Engenhei umas circunstâncias especiais, curiosas, acarretadas pela Providência, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginação compunha tudo isso com seriedade.

No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido, estava casado. Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma criança, outra criança de ano e meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acocorada.

— Nhô Bertinho, vai dizer a mamãe que está aqui um moço procurando papai.

O menino obedeceu, mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes suíças que usava. Lançamo-nos nos braços um do outro.

— Tu aqui? Quando chegaste?

— Ontem.

— Estás mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que é? continuou ele inclinando-se para Nhô Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas.

Pegou dele, alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos, depois, tendo-o num braço, apontou para mim.

— Conheces este moço?

Nhô Bertinho olhava espantado, com o dedo na boca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos...

— Teus pais morreram?

Norberto fez-me sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mãozinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi à criança que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para vê-la. Era uma menina. Revia-se nela, encantado. Tinha cinco meses por ora, mas se eu voltasse ali quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a.

— Entra, anda ver minha mulher. Jantas conosco.

— Não posso.

— Mamãe, está espiando, disse Nhô Bertinho.

Olhei, vi uma moça à porta da sala, que dava para o jardim. A porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco degraus, entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhes dois beijos. A moça quis recuar, não pôde, ficou muito corada.

— Não te vexes, Carmela, disse ele. Sabes quem é este sujeito? É aquele Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina... A propósito, por que é que não me respondeste à participação do casamento?

— Não recebi nada, respondi.

— Pois afirmo que foi pelo correio.

Carmela ouvia o marido com admiração. Ele tanto fez, que foi sentar-se ao pé dela, para lhe reter a mão, às escondidas. Eu fingia não ver nada, falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da política, da guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou não casado. Já me arrependia de ter ido ali, que lhe diria, se ele tocasse ao ponto e indagasse da pessoa? Não me falou em nada, talvez soubesse tudo.

A conversação prolongou-se, mas eu teimei em sair, e levantei-me. Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era bela, os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o marido tinha-lhe adoração.

— Viste-a bem? perguntou-me ele à porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor.

Entrei no tílburi, prometendo ir lá jantar um daqueles dias.

— Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher.

E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe:

— O que é eterno?

— Com perdão de V.S.ª, acudiu ele, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se não lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no lugar, tem aí não sei que compadres... Outros dizem que... Não me meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara...

Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O demônio continuava a falar. Paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam.

Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe:

— O que é eterno, Iaiá Lindinha?

Ela, suspirando:

— Ingrato! É o amor que te tenho.

Jantei sem remorsos, ao contrário, tranquilo e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes...

Fonte:
Machado de Assis. Páginas Recolhidas. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho) – 1 –


1 O ESPAÇO

O Largo da Palma aparece numa atmosfera de poesia e quase magia que se derrama sobre as personagens, e as impressões envolvem o leitor. Não se trata de um espaço indiferente aos homens, é lugar sofrido ou de encantamentos, tem uma força estranha que assiste à aurora dos gestos e das transformações na vida dos personagens.

A velha igreja “humilde e enrugadinha, com três séculos de idade” e o convento são testemunhas dos acontecimentos. A referência que faz à “velha igreja” e ao convento dá uma ideia temporal, uma vez que as referências temporais são predominantemente históricas. A Igreja e o convento foram construídos sobre o “Monte das Palmas”, uma das primeiras áreas de expansão da cidade, devendo-se a sua edificação, em 1630, a ex-voto feito por Bernardino da Cruz Arraes, que estivera enfermo.

O convento, desenvolvido em torno de um pátio retangular, ladeado pela igreja, é iniciado em 1670, posterior à igreja que, nesta época, é ampliada. Pertence à Ordem dos Agostinhos Descalços, é transferida à Irmandade do Senhor da Cruz, em 1822, com o retorno daqueles a Portugal. Acredita-se que a igreja atual, da 2ª metade do século XVIII, obedece basicamente o partido primitivo, com algumas alterações.

O aroma dos pãezinhos de queijo que perfumam o largo em quatro dos seis contos. Os pãezinhos de queijo também dão unidade temporal, sabendo-se que, as narrativas em que são referidos, acontecem num mesmo período.

O mundo se move a partir do Largo da Palma, com seus casarões, suas ruas, pois os espaços públicos mais que os particulares marcam os eventos que compõem esta novela. Do largo se vai à Barroquinha, ao Jardim de Nazaré, que no primeiro episódio é espaço de amor e magia, Jardim do Éden no qual o amor opera uma transformação idílica,. Do largo se vai também à Praça da Piedade, na quinta narrativa é o espaço do trágico, da morte injusta e dolorosa, daqueles que lutaram pelos ideais da liberdade, da revolta que nasce do movimento popular e que dramaticamente Adonias Filho nos conta.

É um espaço humanizado, capaz de pacificar corações e almas, capaz de ser o lugar em que se refazem bodas, em que se busca reminiscências do passado.

O Largo da Palma, a noite morna, o velho negro Loio andava passo a passo. (…) O próprio Largo da Palma, e assim ele se lembrava da mulher, parecia comover-se. Dúvida jamais tivera de que, se a tranquilidade o envolvia, era porque Verinha nele habitava. Ela quem respirava na brisa tão leve e não seria impossível que –morta há tantos anos – tudo acalmasse para que as árvores e os pombos dormissem em paz.” (p.61)

“O Largo da Palma, para o cego, sempre sofrera e amara. Conhecia-o palmo a palmo, árvore a árvore, casa a casa. Identificava pelas vozes todos os seus moradores.” (p.89)

2. A LINGUAGEM

A linguagem em que está construído o texto revela um escritor em consonância com seu tempo: presença das correntes simbolistas, impressionistas, expressionistas e surrealistas e também influência do cinema. Uma linguagem cinematográfica que retrata com adequação o espaço e as personagens permitindo ao leitor criar as imagens mentais, tornando-se, este leitor, também, um criador no momento em que se torna autor de sua leitura.

A linguagem oferece sugestão de imagens, em vez de um retrato exato, especialmente na caracterização das personagens. Graças ao uso de imagens e metáforas constrói um mundo simbólico e mítico. Assim é o Largo da Palma, lugar mítico, metafórico da construção narrativa. A inspiração regional, a paisagem de Salvador, serve de fonte inspiradora da criação das personagens e da trama, mostrando muito mais o “por dentro” que o exterior das personagens na sua relação com o espaço.

O estilo de Adonias Filho mostra o predomínio da musicalidade e através da sinestesia traz densidade, tratamento sintético, marcado por um sopro de poesia. Ainda, quando o escritor une as tradições populares às judaico-cristãs, percebe-se que seu texto aprende a tecer o contato “vivo e carnal” recortado de nosso complexo cultural popular. O que poderia ser captado como um rebaixamento retórico na perspectiva canônica da história literária tradicional, resulta como uma ampliação, ainda que tardia, de referências que amadurecerão sua obra no sentido de uma representação calcada em uma perspectiva de totalidade.

Quando Adonias Filho traz seus seres ficcionais do passado para o presente urbano, evidencia-se um elemento da cultura popular brasileira: os elementos da cultura popular são permeáveis ao contexto sócio-cultural, não se imobilizando no passado de sua gênese.”
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PRIMEIRO EPISÓDIO: A MOÇA DOS PÃEZINHOS DE QUEIJO

O narrador descreve o Largo da Palma, a igreja, os antigos casarões para localizar, na esquina, onde a ladeira começa a “casa dos pãezinhos de queijo”. A casa fica num alto sobrado, em que moram muitas famílias, por isso cobertas estão nas janelas, a gritaria dos rádios se une ao pregão dos vendedores de frutas.

Quem faz o pão é Joana, viúva, e quem os vende é sua filha Célia. A descrição marcante da moça é o riso alegre e a voz “tão macia quanto os pãezinhos de queijo”. “Doce e macia, ao lado do riso alegre, a voz da moça é música melhor de ouvir-se, nas manhãs de domingo que o próprio órgão da igreja”

Gustavo escuta essa voz pela primeira vez, quando a pedido da avó vai comprar os “famosos” pãezinhos do Largo da Palma. E essa voz vai ficar em sua mente durante todo o resto do dia e da noite. Não lembra direito o rosto da moça, mas a voz, essa ecoa em seus pensamentos. No dia seguinte vai comprar pãezinhos, por conta própria. Fica no fim da fila olhando para a moça, ouve uma cliente chamá-la de Célia. Quando chega sua vez, ela lhe pergunta, quantos pães? O rosto de Gustavo fica congestionado, e ela, com sua sensibilidade, conclui que ele é mudo.

Gustavo tira um bloco e um lápis do bolso e escreve “Quero meia dúzia da pãezinhos de queijo”. Célia fica em dúvida, será ele surdo também? Então fala baixinho, e a voz dela, assim de perto é mesmo bela. Gustavo esclarece: “Não sou surdo e, porque, ouvi, sei que se chama Célia”.

Gustavo tem uma coleção de caixas de música, presente da mãe, que um dia foi para o hospital “doente da cabeça”, desaparecendo no quinto aniversário do menino. A música o acalma.

Ele tão bonito, ela “fascinada pelo rapaz que não fala e que de rosto faz lembrar um dos anjos da igreja”. Célia, com a voz tão doce, macia, embeleza a casa de pãezinhos. Marcam um encontro na frente da igreja. Ambos se sentem felizes, com olhos brilhantes.

O rapaz, em lugar de voltar logo para casa, vai passear no Jardim de Nazaré. Quando chega, mais tarde do que costuma, a irmã, que estuda engenharia na faculdade, fica apreensiva, e ele escreve, no bloco que tem uma namorada.

Gustavo era mudo, mas a família tinha esgotado todas as possibilidades de tratamento: nada era poupado para tratar o rapaz. O pai, dono de uma fábrica de pregos, tem receios quanto ao futuro do filho.

Mas nada impede que Célia e Gustavo se encontrem. Ele lhe pede para irem ao Jardim de Nazaré, e por uma semana sentam no mesmo banco, sentindo que mais se gostam. Um dia ela lhe pede que não escreva mais. Ela lhe diz “Quero que você fale”. As lágrimas escorrem do rosto dele e ela, amorosamente, as enxuga. Daquele momento em diante, ele não escreve mais, dizia por sinais, o que desejava.

Naquele dia, ele está ofegante, e quer lhe pedir algo. Ela entende que ele lhe pede que, no dia seguinte, lhe traga pãezinhos de queijo.

“Trarei, amanhã, os seus pãezinhos – ela diz – Eu mesma os farei com o melhor queijo da Bahia”.

Cedinho, ela acende o fogo e começa o trabalho:

A massa, o queijo, o sal, o fogo. E veio fazendo os pãezinhos de queijo, um a um, tendo-os nas mãos como se fosse comê-los. Doce o cheiro no ar, mistura de trigo e açúcar, muito doce mesmo. Sentiu o coração alegre enquanto durou o trabalho e foi essa alegria do coração que a fez inventar uma canção que cantou, baixinho, para si mesma. “É preciso querer e querer muito para alcançar”. Repetiu muitas vezes a pensar em Gustavo que, de tão bom, também merecia ter alegria no coração. (p.25)

De noite, os namorados se encontram. Sentam-se no banco de sempre. Ela lhe dá um pãozinho e diz: – “Quando o fiz, Gustavo, pensei colocar nele o meu próprio sangue” Ele come lentamente, saboreando, e Célia sussurra: “Agora você pode falar”. Um beijo, Gustavo ouve e sente que o amor e o beijo de Célia podem fazer um milagre. “Tudo nele é angústia e dor, os lábios tremem, suor no rosto, vontade de gritar”. E como mum parto, a voz está nascendo.

E ele, a rir e a chorar ao mesmo tempo, exclama em tom ainda fraco, mas exclama: – Amor!

COMENTÁRIO

O pão traz a ideia do divino, do maravilhoso. O milagre do pão, a multiplicação, o fazer o pão tem o efeito de sentido de recuperar, de salvação. O fermento simbolicamente representa transformação, com a noção de pureza e de sacrifício.

O menino que ficou mudo pela perda da mãe, embora rico, acarinhado pela família, recupera a voz através do amor, isto é evidente pela primeira palavra que consegue pronunciar.

A moça através de seu amor, de seu trabalho, devolve a fala do namorado, traz o mistério que os sentimentos podem operar.

O Jardim de Nazaré embora seja um espaço físico, nesse episódio, ganha a conotação de Jardim do Éden, o lugar do milagre, a voz que nasce, pode ser relacionada com o Menino que nasceu em Belém, mas que viveu humildemente em Nazaré.

Lista de personagens

Joana: viúva que herdou a casa dos pãezinhos de queijo do marido.

Roberto Militão: marido de Joana e pai de Célia.

Célia: moça de 18 anos, muito alegre e bela. Vende os pãezinhos de queijo que a mãe faz.

Gustavo: jovem mudo, mas de audição boa. Gosta de ouvir o mar, os ventos e o canto dos pássaros.

Márcia: irmã mais velha de Gustavo, estudante de engenharia. Nunca perdeu a fé de que seu irmão um dia recuperaria a voz.
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continua: Segundo Episódio

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 ADONIAS FILHO

Adonias Aguiar Filho nasceu em Itajuípe, Bahia, em 27 de novembro de 1915. Após concluir seus estudos secundários em Salvador, mudou-se em 1936 para o Rio de Janeiro, ainda capital do Brasil na época. Lá retomou suma carreira jornalística iniciada em Salvador, colaborando para jornais tais como o Correio da Manhã. Alcançando grande notoriedade como jornalista, ocupou o cargo de vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (1966) e de presidente da mesma associação em 1972. Além disso, foi presidente do Conselho Nacional de Cultura de 1977 a 1990.

Iniciou sua carreira literária em 1946 com a publicação de “Os servos da morte”. Tendo nascido na zona do cacau no sul da Bahia, Adonias Filho, assim como Jorge de Amado, tirou desse ambiente o material para sua obra. Pertencendo ao grupo de escritores da terceira fase do Modernismo, voltou-se para a literatura regionalista de forma a ampliar seu sentido para o universal. Foi eleito em 14 de janeiro de 1965 para a Cadeira n. 21 da Academia Brasileira de Letras.

Adonias Filho faleceu em sua fazenda no distrito de Inema, em Ilhéus, em 2 de agosto de 1990.

Suas principais obras são: “Servos da morte” (1946), “Memórias de Lázaro” (1952), “Corpo vivo” (1962), “O forte” (1965), “A nação grapiúna” (1965), “Léguas da promissão” (1968), “Luanda Beira Bahia” (1971), “Sul da Bahia chão de cacau” (1976), “Largo da Palma” (1981) e “A noite sem madrugada” (1983).

Fontes:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.
Guia do Estudante

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Varal de Trovas 456

 


A. A. de Assis (Seu Manoel Poeta)


Era como a ele se referiam alguns dos seus conviventes na fazenda do Mato Grosso do Sul, onde foi morante quase que pela vida toda, até quando se despediu em 2014 para ir brincar de anjo lá no em cima do azul.

Manoel de Barros, um senhor poeta. Seu Manoel Poeta. Ele e Quintana, para o meu gosto, os dois máximos do Brasil. Que pena terem tido de ir embora. Gente assim não deveria ir nunca. Faz falta aqui. Falta demais.

Peço licença hoje para sentir saudade de Seu Manoel. Não vou falar da biografia dele; disso já muito se falou. Vou recurtir a poesia dele. E se você tiver aí um tempinho, venha junto. Aqui na minha frente tenho um dos seus livros – “Meu quintal é maior do que o mundo”. O livro todo é uma festa de amor à natureza, à simplicidade, à alegria da vida. Vou recortar e enfileirar abaixo uns pedacinhos das coisas gostosas que ele escreveu.

“No começo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas. O homem tinha mais o que não fazer”.

“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado, como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia. Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia”.

“Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”. “Ao poeta faz bem desexplicar – tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”. “Passei anos procurando por lugares nenhuns. Até que não me achei – e fui salvo”.

“São Francisco monumentou as aves. Vieira, os peixes. Shakespeare, o amor. Charles Chaplin monumentou os vagabundos”.

”As palavras eram livres de gramáticas, por forma que o menino podia inaugurar. Podia dar às pedras costumes de flor”. ”Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando”.

“Pertenço de andar atoamente Fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo”.

“A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. Com o tempo o menino descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira”.

“Se eu quisesse caber em uma abelha, era só abrir a palavra abelha e entrar dentro dela, como se fosse a infância da língua”. “Quando eu crescer eu vou ficar criança”.

“Tentei descobrir alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir. A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei”.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 26 -11-2020)

Fonte:
texto enviado pelo autor.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 3 – Dédalo e Ícaro


Para Minos, monarca de Creta,
grande Dédalo inventos criou.
Mas um dia o rei o rejeita
e sua vida um tormento tornou.

Com o filho, um rapaz jovem e belo,
é levado a uma ilha deserta.
Confinado no alto da torre,
tem a vida inconstante e incerta.

Vigiado, ele rápido pensa,
em fugir pelas rotas do ar,
pois na torre os verdugos se aliam
bem cuidando da terra e do mar.

Pede a Ícaro, o filho, que apanhe
toda pluma que venha do ar.
Tece fios, usa cera e constrói
quatro asas, pra longe voar.

E assim eles fogem da ilha
a zombar, ante a guarda impotente
O garoto se inflama e prossegue
para o alto, pois medo não sente.

Mas do sol o incauto está perto
e derretem as asas de cera.
Cai do alto e o mar o recebe
frio túmulo, o pai desespera.

Jaz o jovem sem vida e Dédalo
corpo exangue ao deus oferece.
Ergue um templo a Apolo e as asas
nos altares de pedra ele tece.

Este jovem insensato morreu.
Do perigo zombou sem razão.
O cuidado é virtude exigida
para ter vida longa e perdão.

Fonte:
Fénix (Carmo Vasconcelos)

Miguel Torga (Mago)


nota: as palavras com asteriscos estão no vocabulário ao final do texto.

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Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de ouro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...

— Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

— Essa agora! É todos os dias...

— E que nunca mais caçaste?

— Ainda esta manhã...

Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que desfilava por desfastio na primavera. Que demônio!

— Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias...

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe uma migalha de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

— Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço* da dona...

— E que deixaste a Faísca!...

— Eu?

— Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...

— Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato* na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era, era um parrana*, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.

— Ouve lá: disseram-se que me andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

— Bem haja eu!

— Bem hajas tu?!

— Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!

— Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...

— Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevino* da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordidelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.

Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

— Ora viva!

— Miiau...

— Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

— Miiau...

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um couro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

— Cala-te lá com isso, mulher!

Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

— Matas-te, filho, arruinas-te...

Palavras sensatas da mãe.

— Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

— O bichinho está doente. Se calhar é fome...

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço*. A parva* da santanaria cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

— Olha o Mago!... Olha o milionário!...

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

— Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.

— O cavalheiro seja mais delicado...

— Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!

— Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

— Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas* do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, embaixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agourento.

Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas* no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão* da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca*! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!

A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.
________________________
Vocabulário:
Cachaço – pescoço.
Cantarinhas – bolhas de água.
Chanato – sapato velho.
Chavelhudo – chifrudo, corno.
Coirão – bucho.
Ensanchas – oportunidades, desejos.
Paleio – zombaria.
Parrana – bronco, tolo.
Parva – pequena soma.
Ripanço – sofá.
Senhoreca – depreciativo: senhora sem importância.
Valdevino – joão-ninguém, doidivanas.


Fonte:
Miguel Torga. Bichos. Publicado em 1940.

Estante de Livros (Bichos, de Miguel Torga)


Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa. O grande escritor português – também poeta, teatrólogo, contista e memorialista Miguel Torga, inventa um mundo de bichos humanizados.

São catorze contos, onde o mistério da vida nos aparece no seu esplendor, perfilando bicho, homem e natureza numa comunhão fraternal, em que todas as peças são necessárias ao quebra-cabeça da vida.

Bichos é, também, o retrato fiel do viver trasmontano; uma vida de suor e lágrimas, por entre escolhos e lobos, mas sempre repleta daquela alegria que só o sofrimento pode justificar: a alegria de ser, de viver em comunhão total coma natureza, em fusão permanente com os elementos.

Miguel Torga fez desta obra um testemunho ímpar da união natural entre os Homens e os Bichos, a simbiose da vida. No meio dos dois, a terra, o traço que lhes dá vida. No trabalho, nas paixões e nas dores, os bichos compartilham com os homens as esperanças e as desgraças.

Curiosa a palavra: “bichos” e não “animais”. Bichos são, talvez, os animais humanizados, irmanados com o homem na mesma luta; na vida.

A rudeza das torgas, a aspereza das montanhas, a magreza das terras e a solidão do tempo, misturam-se num universo, cantado em poesia por um mestre que foi apenas um homem. Um homem que viveu e lutou contra um mundo ainda mais agreste, ainda mais hostil: o mundo da ditadura.

São Bichos animais e Bichos homens que se entrelaçam nas páginas deste livro de contos. Bichos personagens, mas sentindo e agindo como se de humanos se tratassem, tornando o leitor seu cúmplice.

Amizade, traição, amor, ódio e ambição desfilam pelo livro, sendo tratados como uma lição essencial de vida.

LINGUAGEM

A linguagem, simples mas cuidada é uma das mais belas expressões da cultura popular: um vocabulário fidelíssimo à realidade trasmontana. Quem conhece aquelas terras, reconhece-se em Torga. Mas a poesia latente por detrás destas estórias não é de Torga. É da terra. Por isso, este livro não é só uma criação do seu autor; é muito mais do que isso: é uma emanação da terra. E neste conceito de “terra” podemos englobar os homens e os seus irmãos “bichos”, os três elementos constituem um todo, um cosmos único onde Torga participa como mensageiro, personagem e intérprete.

Livro simples, transparente, honesto e sentido. Um grito amargo e profundo da terra que encerra os homens. Uma fusão total entre a terra e o ser humano, como se tudo emergisse de uma amálgama onde terra, bichos e homem fossem a pasta de onde nasceu a ordenação universal das coisas e dos seres.

ENREDO

É através dessa pequena arca de Noé, feita de bichos e gente, que Torga aponta as injustiças do dia-a-dia, trazendo novos modos de olhar. Esta coletânea constitui um marco do conto em Portugal. Encontramos na obra, um Miguel Torga paradoxal, contraditório, inexplicável, que mistura o sagrado e o profano, que é simultaneamente  fruto e espelho das fragas maternas.

Animais com sentir humano ou seres humanos vestidos de animais. Ou uma irmandade de animais e homens. Tudo numa argamassa de vida. O cão Nero, o galo Tenório, o jerico Morgado, o Ladino, o Ramiro. E a Madalena, caminhando na contra mão da contradição entre cultura e vida. A salvação do Homem e da Humanidade reside, para Miguel Torga, num regresso às origens e ao seio da Natureza-Mãe, “dama de grande senhoria” que dignifica tudo o que vive na sua intimidade, para que ela devolva ao Homem a naturalidade, a grandeza, a verticalidade e a natureza instintiva que caracterizam os animais íntegros e monolíticos que povoam a coletânea Bichos. É também impossível não observar o papel da natureza e do espaço amplo do campo na vida dos personagens.

Fonte:
https://www.passeiweb.com/estudos/livros/bichos/

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 14 –

 Reenviando a trova corrigida deste versejando, postado ontem com "pé quebrado" no quarto verso.



Carolina Ramos (Pai Noel Americano)


A partir de 1975, aquele Papai Noel nascido nos States e embarcado como clandestino na bagagem turística, passara a fazer parte da família. Era um apertão na barriga rotunda e o seu Ho... ho... ho! aconchegante trazia o Espírito do Natal para mais perto, ao som do tradicional Jingle Bell, repicado a sinos.

Papai Noel não envelhece, mas, aquele envelheceu. É o que podia ser constatado, a cada ano, mal iniciados os preparativos da decoração natalina. De tanto apertão no umbigo, o casaco de lã vermelha já não fechava mais. A barriga era a mesma, porém, as pressões repetidas a cada dezembro, acabaram por favorecer a ruptura do casaco vermelho deixando a descoberto as entranhas de palha do Bom Velhinho, mesmo antes que as pilhas gastas inviabilizassem o festivo Ho... ho... ho!. .

Barba encardida, mudo, rasgado, aquele Bom Velhinho não era mais figura atrativa, apesar da tradição que carregava nos ombros. Naquele ano, a pá de cal: luva perdida e braço de arame ultrapassando a manga, o velho Pai Noel, que agora se assemelhava ao malvado Capitão Gancho das histórias de Peter Pan, selavam, em definitivo, o seu destino — a lata do lixo! Final triste e inglório, para quem proporcionara tantas alegrias!

Por sua vez, um menino (sem sapatos, sem lareiras, janelas, ou fogão, porque nem casa tinha) remexia os latões, à cata de papelão e de plásticos, ainda com restos capazes de lhe proporcionar o arremedo de refeição, que o estômago reclamava.

Nas latas de lixo remexidas, e, por sinal, bastante enriquecidas pelos restos das ceias das famílias algo abastadas daquele bairro, era possível encontrar tudo o que possível imaginar! E foi lá que o guri, de cara suja e pernas finas, achou o Papai Noel preterido. O vermelho das vestes, chamativo, atraiu o garoto que o salvou dos detritos, lambuzado e malcheiroso.

Amor à primeira vista! Para quem não acredita que isto possa acontecer, a prova ali estava. O garoto esqueceu a cata aos papelões e plásticos. Espremeu o boneco natalino contra o peito, esquecido até dos reclamos do estômago vazio.

E, ainda agarrado ao velho Noel, estremeceu, quando despertado pelo agente social que recolhia crianças, cujo lar era a rua e o teto, as estrelas.

Não resistiu! Em troca da submissão, ofereciam-lhe banho, comida e uma cama — o que ele mais queria! Esqueceu o saco da coleta. Esqueceu tudo... menos o Pai Noel, estreitado nos braços, com ternura até então desconhecida.

Ao entrar no carro que o aguardava, o menino apertou com mais força o boneco de barbas brancas. Foi então que, sem explicações, como que desperto de um longo e silencioso sono, o Bom Velhinho riu gostosamente Ho!... Ho!... Ho!... e os sininhos do Natal, calados, há tanto tempo, despertaram, também, modulando, com a mais sonora alegria: — Jingle Bell... Jingle Bell!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Roberto Rodrigues de Menezes (Mitologia em Poema) 2 – Apolo e Dafne


Pelos campos a ninfa passeia,
doce Dafne, a filha do rio.
Todo o homem que a vê incendeia.
Do Parnaso a mais bela e gentil.

Logo ali belo Apolo e Cupido
os seus dons de magia comentam
O deus sol, com seu ar atrevido,
pouco faz das setinhas que adentram

nos gentis corações das pessoas
e as fazem ter ódio ou amar.
Deixam até de ser más, ficam boas,
seus desejos querendo saciar.

Diz Apolo, o deus sol, com presteza:
─ Minhas setas são fortes, flamantes.
Vem, aprende a flechar com destreza
e serás mais arqueiro que dantes.

─ Tuas setas são bem pequeninas!
Anjo deus não responde nem fere.
Não quer dar a resposta ferina.
Mira Apolo e a setinha desfere.

Dafne passa e outra flecha sente,
mas de cobre, que faz desprezar.
pois a seta dourada somente
tem poder de o amor ensejar.

Vê Apolo a ninfa que segue
tão gentil na floresta a vagar.
E ferido de amor, a persegue,
quer fazê-la de amor se prostrar.

Mas a Dafne bela o despreza.
A correr, vai pedir ao deus rio,
que afaste o intruso, se peja,
pra que dela se afaste o deus vil.

O deus rio, vendo seu desespero,
ela foi por Apolo alcançada,
a transforma num verde loureiro,
para sempre será intocada.

Suas folhas são louros dourados,
que somente aos que vencem se dá.
Chora Apolo o desprezo tão ousado.
Sua amada ela nunca será.

Esta lenda de dor e pesares
nos remete a um só pensamento:
a vanglória e o orgulho são males,
a evitar, pois só trazem tormento.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 13


Neste mundo velho sem porteira - como diz um amigo - são constantes os reclamos de que já não é mais como foi "antigamente " - tanta bandalheira, preconceito, desfaçatez, desrespeito, vida à deriva. Parece verdade que isto é coisa dos nossos dias.

Nas pesquisas para os anais da Academia Caçadorense de Letras sobre "Fatos Históricos de Caçador", achamos um "achado", pequeno livro publicado por autor caçadorense, cujo título é NOSSO MUNDO TÁ VIRADO (Edição do Autor, 1946). E o mensageiro escreve com verve e linguagem totalmente sáfara, inculta, popular.

Domínio de proseador: " Nosso mundo tá virado / anda de pata pro á, / assim há muito tempo / eu vejo o povo falá. / Já preguntei pra muitos, / ninguém sabe me contá / proquê que o mundo / anda de pata pro á ".

Leio, releio, me enleio, permeio ideias e reflito: nosso mundo natural é sempre o mesmo, com suas mutações cíclicas. O que muda com constância é a cabeça do habitante comumente devastador - o bicho-homem.

Por que será que as coisas boas não perduram ?
Por que o avanço traz retrocessos ?
Estou mal das ideias, algum abscesso ?
Mundo mau, quero recesso!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Estante de Livros (O Bobo, de Alexandre Herculano)


É um romance histórico de Alexandre Herculano, publicado inicialmente em “Panorama” em 1843 e editado postumamente em volume, apenas em 1878.

A história toda se passa no castelo de Guimarães ou nos seus arredores. O período é o da independência de Portugal e gira em torno dos antecedentes e dos acontecimentos da batalha de Aljubarrota (1136).

O autor situa a narração no ano de 1128, dias antes da batalha de S. Mamede que opôs o exército de D. Afonso Henriques ao da sua mãe D. Teresa.

A trama se sustenta sobre personagens históricos: D. Tareja está recebendo em seu castelo a Fernando Peres, conde de Trava, com quem deve contrair matrimônio, porém, o filho, D. Afonso Henriques é contra a presença de Fernando Peres por considerá-lo um usurpador e um tirano.

Dom Bibas é um bobo da corte que vive no castelo de Guimarães. Dulce, uma das sobrinhas de D. Tareja tem uma paixão secreta por Egas Moniz, cavaleiro pobre que luta ao lado de Afonso Henriques.

No castelo existe um temor de que se desenrole uma batalha envolvendo o conde de Trava, que tem a seu dispor maiores e melhores tropas e Afonso Henriques, que tem o apoio de uns poucos nobres portugueses.

O Conde de Trava incentiva um jovem cavaleiro, Garcia Bermudez, a tentar desposar Dulce. Conta-se no castelo que a paixão do jovem cavaleiro pela moça é notória, porém, a moça não dá esperanças aos apelos do cavaleiro.

Dom Bibas é repreendido por ouvir conversas entre o Conde de Trava e o cavaleiro Garcia Bermudez, Dom Bibas, inclusive, caçoa com seus versos o nobre. O bobo é mandado ser açoitado e jura vingança. Após esse fato, ficamos sabendo que D. Bibas conhece uma passagem secreta que dá para fora do castelo de Guimarães, por meio dela, manda avisar a Afonso Henriques do que se desenrola no castelo.

O Lidador, Gonçalo Mendes de Maia, está do lado de Afonso Henriques e planeja uma forma de ajudar o desafiante ao poder do Conde de Trava Egaz Moniz, que estava com a tropa de Afonso Henriques vindo em direção do castelo de Guimarães trazendo uma mensagem de paz. Porém, o Conde de Trava ignora o pedido de paz e prende o emissário. Dulce ao saber da prisão do amado, consegue falar-lhe, porém, conta que para que o cavaleiro amado ficasse vivo fora obrigada a se casar com Garcia Bermudez. Egas Moniz não aceita a explicação e se considera traído no amor. Dom Bibas faz ver a Egaz Moniz - este desejoso de vingança - que seria melhor fugir pela passagem secreta e depois da batalha poderia vingar-se de Garcia Bermudez.

Não existe propriamente a narração da batalha no romance. A narrativa retoma já depois de ocorrida a batalha entre Afonso Henriques e Fernando Peres. Explica-nos o narrador que a vitória fora de Afonso Henriques e que nessa batalha Egaz Moniz matara Garcia Bermudez. Dulce, porém, não aprova a violência daquela morte, por entender que Egaz Moniz se tornara um homem violento e desejoso de vingança e então a jovem se mata. Egaz Moniz, depois, retira-se levando vestindo-se com as roupas de um frade. Dias depois, Egas Moniz aparece morto, vestido de frade sobre o túmulo de Dulce.

Dom Bibas viverá no castelo de Guimarães na corte de Afonso Henriques dias de tranquilidade, uma vez que um dos grandes trunfos na batalha, fora a entrada secreta pela qual vários soldados de Afonso Henriques puderam passar.

Segundo Herculano, “Dom Bibas não era bobo; era o diabo”

Mas no meio do silencio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer a subir a íngreme e longa escada do privilegio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga, e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era o truão. O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média. Hoje a sua significação social é desprezivel e impalpável; mas então era um espelho que refletia, cruelmente sincero, as feições hediondas de sociedade raquítica e incompleta. O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espirito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio.

O autor descreveu a importância que era dada ao cargo do truão, aumentando ainda mais o sentimento de inconformidade por ele ter recebido o castigo injusto devido a apenas realizar sua função, seu trabalho com um jogral. Ele era o único que caminhava na hierarquia estabelecida e podia julgar a todos sem consequências. No seu momento truanesco, o bobo ria de todos e até o rei era considerado como “seu servo”. Mas passadas as horas de festa e deleite, a vida do truão era miserável e, apesar de criticar a todos, D. Bibas é descrito como alguém que jamais desrespeitou quem não merecia, diferente do Conde da Trava. De certa forma, isto tenta justificar o fato de o bobo ter se vingado contra quem o maltratou, o desrespeitou e desrespeitou as tradições portuguesas.

As personagens do drama amoroso (Egas Moniz, Dulce e Garcia Bermudez) bem como o próprio Dom Bibas são personagens ficcionais. Um outro personagem que aparece na história é o jovem cavaleiro Tructesindo, que embora tenha um papel secundário, será relembrado por Eça de Queirós em A Ilustre Casa de Ramires. Outro personagem secundário é o Frei Hilarião, que morre de tanto comer.

Fontes:
Orfeu Spam
Passeiweb
– Larissa da Costa Oliveira, “O bobo" e a secularização das origens de Portugal em Alexandre Herculano  – XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis/SC, 2015. Disponível em pdf nos Anais do Simpósio.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Rachel de Queiroz (Joga, Cunhado!)


QUEM SOBE DE NAVIO o rio Amazonas, a umas seis horas de Belém, depara com uma das maravilhas daquela espantosa natureza, ao cruzar os chamados estreitos. No começo do seu delta, o rio-mar caprichosamente se deixa semear de ilhas, ramifica o seu caudal em infinitos braços, como para variar da imensidão vazia. Os dois principais estreitos, nesses capilares do gigante, são o de Breves e o do Boiaçu (Cobra Grande), e é pelo último que navega o nosso Ana Nery. O navio é grande, contudo chega a passar tão perto da margem que dá para se avistar o lá dentro das casas de jirau dos caboclos, na barranca. A marola que o vapor faz se encachoeira nas margens como querendo arrancar os paus de beira d'água. Há momentos em que até parece que o navio está vogando no meio da floresta — o que não deixa de ser verdade; quase que se estendendo a mão se tocaria na folhagem das árvores.

Apesar disso, a feição mais inesquecível dos estreitos é o seu elemento humano: os “cunhados”. À medida que o navio avança cauteloso pelas águas apertadas, vai lhe aparecendo ao redor um formigueiro de canoas — ou montarias, ou pirogas, ou aatás, não sei como as chame — parecem moscas em redor de um prato. Longas de dois a três metros, estreitas, são manobradas por uma só pessoa, raramente duas. E eu digo pessoa no sentido de que menino de quatro anos seja pessoa, e velho corcunda, e adolescentes de canela fina, e mulher barriguda, e mãe de dois ou três curumins pequeninos que lhe sentam entre as pernas, e moços fortes, moças de vestido vermelho, e velhinhas de cachimbo; todos manobram as canoas com espantosa destreza e segurança, cavalgando a onda larga que o navio levanta, cortando-a de lado, ao rápido movimento dos remos em formato de folha de aguapé, pintados de cor viva, E lá de baixo, erguendo os olhos para os cinco andares do navio, eles soltam um grito chorado que é quase um canto e lembra muito um aboio de vaqueiro:

— JOGA, CUNHADO! JOGA, CUNHADO!

(Isso de chamarem os passantes de cunhados, eles o herdaram dos índios, que chamam “cunhado” ao estrangeiro que querem honrar, adotando-o simbolicamente na família; “Entre, cunhado; coma, cunhado!”)

A bordo, a passagem pelos estreitos e a chegada dos “cunhados” é um dos itens do programa turístico; antecipadamente, passageiros e tripulantes preparam um monte de sacos de plástico contendo pão, biscoitos, cigarros, fósforos, agulhas, linha, roupas. Os pacotes são jogados n’água, boiam e, com incrível habilidade, contornando ou aproveitando a correnteza, os cunhados os apanham; menininhos incrivelmente pequenos colhem na água os embrulhos com uma elegância de toureiros e logo acenam para o navio, agradecendo. Os passageiros, lá do alto, se compadecem e choram: “Que pobreza! Que pobreza!’’ Sim, a pobreza ali é grande e os presentes do navio são duramente disputados. Mas há também, naquela pescaria dos cunhados, um elemento de jogo, uma competição de destreza, que deve representar parte importante na operação. Na vida deles, tão rude e paupérrima, os pacotes no rio devem exercer uma função dupla de utilidade e diversão; e calculo que, entre os cunhados, valha tanto o precioso conteúdo dos presentes, como o título esportivo de campeão apanhador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.