quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 12. Conto – Disse um Campônio à Sua Amada

Ambiente

Interior de um coração perdidamente apaixonado.

Foco Narrativo
Narrado em 1ª pessoa

Personagens

Narrador – vivencia uma paixão incontrolável... que o leva a ser capaz de verdadeiros desatinos... como ofertar o próprio coração... ele era uma pedra mas, perto dela, perde a força, a resistência.
Amada – não corresponde com a mesma intensidade – está longe dele.
Ana – uma intermediária entre os 2

O título do texto é o primeiro verso de uma canção antiga de Vicente Celestino (Coração Materno), que foi gravada mais recentemente por Caetano Veloso. Como na letra da canção, trata de um amor não correspondido, aqui expresso através de carta. Trata-se de uma paixão tão Intensa que ele não consegue dominar, foge-lhe do controle. Não diminui apesar da indiferença dela, que é como uma pedra, um rochedo difícil de ser escalado. Como na canção, ele é capaz de fazer o impossível para conquistar seu amor, como fazer-se pássaro, navegar, partir-se em pedaços.

Disse um Campônio à sua amada, é um conto que poderia ser definido como uma bela declaração de amor. Um homem do campo transmite a delicadeza dos seus sentimentos à mulher amada:  

Assim, eu faço discreto pedido, não me arraste contigo quando te  fores. Ou não me aceites, ainda que te peça para seguir o teu caminho. Não quero despojar-me de um coração que te ofereci com tanta opulência. (...) Do teu camponês que se despede sem saber que é para sempre.

Apesar da ausência de diálogos, a narrativa não é monótona pois cada personagem apresenta seus monólogos e o silêncio é preenchido pelas reflexões do próprio leitor.


Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 467

 


Leon Eliachar (Aulas práticas para alunos teóricos)


A humanidade divide o seu tempo em duas partes: guerra e paz. Durante a paz, vive discutindo a guerra e durante a guerra vive implorando a paz.

A  guerra foi inventada por um sujeito que morreu na guerra. A paz ainda não foi inventada.

Há vários tipos de guerra: a guerra fria, a guerra quente,  a guerra morna, a guerra requentada e a guerra propriamente dita: dessa  ninguém escapa, porque todo mundo é convocado antes mesmo de começar a guerra.

Antigamente, a guerra era feita a pé: quando os soldados chegavam no país inimigo a guerra já tinha acabado. Hoje, a guerra é mais ligeira: basta apertar um botão que ela começa e acaba ao mesmo tempo - e quando acaba não se encontra nem o botão.

Durante a paz, os homens se preparam para a guerra, construindo tanques, aviões, submarinos, foguetes, táxis e ônibus elétricos.

Quem foge da guerra se chama desertor, quem fica se chama herói. O desertor foge da guerra pra não morrer nas mãos do inimigo, mas acaba morrendo nas mãos do amigo: é fuzilado. O fuzilamento é um processo de matar o sujeito que escapa da guerra - ao invés de morrer distraído, morre prevenido.

Antes de ir pra guerra, os médicos submetem os soldados a um exame físico completo: quem tiver boa saúde, pode ir e morrer tranquilo. Quando o homem se matricula na guerra, recebe um uniforme: quando entra na guerra, pinta o uniforme todinho pra ninguém ver que ele está de uniforme.

Existem guerras famosas: a de 14, porque sobraram catorze; a dos Cem Anos, que quando acabou só tinha velhinho, e a de 39 - que todo mundo pensa que acabou.

Antigamente, se fazia a guerra com baioneta calada, mas isso foi no tempo do cinema mudo. Hoje, a baioneta não só fala mas também canta - como se pode ver nos musicais de Hollywood.

Muitos combatentes são considerados malucos porque voltam pra casa com psicose de guerra, mas os psiquiatras não se preocupam a mínima com a psicose de paz - que é muito pior. E por incrível que pareça, o soldado mais conhecido da guerra é o soldado desconhecido.

Fonte:
Leon Eliachar. O homem ao zero. Publicado em 1967.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 6 –


Antônio Sardinha
Monforte/Alentejo, 1888 – 1925, Elvas/Alentejo

VESPERAL

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina ingênua de Velásquez
a flutuar num mar de seda e renda.

Deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Fernando Pessoa
Lisboa, 1888 – 1935

QUANDO OLHO PARA MIM...


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Florbela Espanca
Vila Viçosa/Alentejo, 1894 –  1930, Matosinhos/Douro

AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente.

Há uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
que seja a minha noite uma alvorada,
que me saiba perder... pra me encontrar...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Marta de Mesquita da Câmara
Lisboa?, 1894 – ????

CONTRASENSO

Oh! meu amor, escuta, estou aqui.
Pois o teu coração bem me conhece:
eu sou aquela voz que, em tanta prece,
endoideceu, chorou, gemeu por ti!

Sou eu, sou eu que ainda não morri
– nem a morte me quer, ao que parece –
e vinha renovar, se inda pudesse,
as horas dolorosas que vivi.

Oh! que insensato e louco é quem se ilude!
Quis fugir, esquecer-te, mas não pude...
Vê lá do que os teus olhos são capazes!

Deitando a vista pelo mundo além,
desisto de encontrar na vida um bem
que valha todo o mal que tu me fazes!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Nunes Claro
Lisboa, 1878 – 1949

SONETO

Vieste tarde, meu amor. Começa
em mim caindo a neve devagar...
Morre o sol; o outono vem depressa,
e o inverno, finalmente, há de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco, há de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas
que rolam mudas sobre nossas vidas,

ouviremos, nas noites desoladas,
tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.

Fonte:
Sergio Faraco (org.) Livro dos sonetos: 1500-1900. Porto Alegre/RS: L&PM, 2016.

Dílson Catarino (Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados)


Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia a dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.

Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a resposta dada –ou a falta dela– e o quanto valia relativamente à nota escolar.

Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres crianças palmeirinhenses.

Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um belo rapaz, também professor de português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que nem gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que ele não era homem para uma mulher como Austezinha, como a chamavam carinhosamente.

O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O estopim para o término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no dia dos namorados em que escrevera “Para a minha namorada Austereza de Jesus”. Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo. Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma pequena carta, em que dizia:

Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de cometer ambos: você, professor de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos formados pela posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.

Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras? Não me importo tanto pelo erro de meu nome, mas importo-me –e muito– com o trocar letras. Poderia ter-me chamado de Austerise; não me atenazaria tanto, pois teria usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -ise se escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se escrevem com -ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente, Austeresa, adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou nobiliárquicos, como camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda princesa, a maneira como me tratava, é demais para mim.

Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia princeza? Não. É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como a descobri? Você mesmo se delatou: ‘…minha namorada Austereza’. Assim escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me mostrar que tem outra namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por subterfúgio, e eu entendi.

Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica, mostrou-me que não sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula. Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer uma situação por meios gramaticais: substantivo próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há mais de um: ‘Professora Austeresa’, sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas; mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica, ou seja, só há um: ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula; eu seria a única, mas não o sou; sei-o agora.

Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não quero mais tê-lo como namorado, pois dois erros de português em uma única frase cometidos por um ‘professor de português’ é demais para mim. Adeus.


Fonte:
Língua Portuguesa

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 11. Conto – A Sombra da Caça

A SOMBRA DA CAÇA


Ambiente:
Vida de uma mulher: suas atitudes e consequências delas.

Foco narrativo
Narrado em 1ª pessoa

Estrutura
Carta

Personagens:
Mulher: emissora da carta – dura, exigente, insensível, como se auto define no texto.
Marido: doce, terno, carinhoso, como o define a mulher.
Filho: receptor – mediador de notícias entre a mãe e o pai, recolher a confissão de ambos.

A narradora (mãe) escreve a seu filho uma carta. Ela fala da tumultuada relação que tivera com o marido e quanto lutou para livrar-se dele e do amor incondicional que ele lhe oferecia. Ao expulsá-lo de casa, ela perdeu a chance de ser feliz. Ele foi embora para nunca mais voltar. No fim do conto, o filho envia à mãe um bilhete dizendo-lhe que o pai nunca deixara de amá-la.

O relacionamento da mãe com o pai. Ela reconhece que era dura, insensível, exigente criticando, questionando o Marido (sonhador, doce, carinhoso). Ela confessa seus conflitos mais íntimos de relação com o marido... chega a envergonhar-se de sua confissões... mas reconhece que amava o marido.

O conto fala de uma mulher solitária que escreve uma carta para o filho, não tendo mais ninguém para desabafar suas mágoas e seu remorso. Sente falta e saudade atroz do marido, que ela mesma expulsara de casa. Agora, ao recordar suas atitudes amorosas, quer tê-lo de volta. Mas o tempo é outro. O filho responde-lhe num bilhete: o pai morreu, falando do seu amor por ela.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 24 –

 


Arthur de Azevedo (Uma Embaixada)


Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.

- Entra. Estava ansioso.

- Vim, mal recebi o teu bilhete. Que deseja de mim?

- Um grande serviço!

- Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?

- Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos.

Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opinião ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.

- Mandei-te chamar - continuou Minervino - porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seriamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há de ser hoje por força!

- Estou às tuas ordens.

– Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?

- Sim, lembro-me. Um namoro...

- Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!

- Quê! Tu estás apaixonado?!...

- Apaixonadíssimo... E é preciso acabar com isto!

- De que modo?

- Casando-me; és tu que hás de pedi-la!

- Eu?!...

- Sim, meu amigo. Bens sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entro ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Vá descansado, hei de fazer justiça - eu respondi-lhe: - Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que fará com as viúvas.

- Mas tu a conheces?

- Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do Senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido da minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.

- Mas que diabo! - observou Salema. - Isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!

- Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.

- Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?

- Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.

E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:

- Vai! Vai! Não te demores!

Salema, saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.

No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.

- Que diabo! - refletiu ele. - Não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que o Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.

Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com um certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de repes, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.

Salema esperou uns dez minutos.

Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se os movimentos, e não pôde reter uma exclamação de surpresa.

Era ela! Ela!... A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.

Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...

- Oh! - disse a viúva, estendendo-lhe a mão muito naturalmente, como se fizesse a um velho amigo. - Era o senhor?

- Conhece-me? - balbuciou Salema.

- Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro e, não sei por quê... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Porque nunca mais tornei a vê-lo?

Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se ainda mais tímido que Minervino - mas cobrou ânimo, e respondeu:

- Não foi porque não a procurasse por toda a parte...

- Não sabia onde eu morava?

- Não, supus que nas Laranjeiras. Vi-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.

- Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo da sua visita.

De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.

- O motivo de minha visita é muito delicado; eu...

- Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...

E apontou para o retrato.

- Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...

- Minha senhora, eu sou...

Ela interrompeu:

- É o Senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.

Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.

- É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações, e quase rica. Não tenho filho nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!

Salema quis dizer alguma coisa, ela não o deixou falar.

- Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.

Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.

- Mano, apresento-lhe o Senhor Nuno Salema, meu noivo.

O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:

- All rigth!...

Depois inclinou-se de novo e saiu da sala, sempre apressado.

- Mas, minha senhora - tartamudeou o noivo muito confundido - imagine que o meu colega Minervino, que mora ali defronte...

A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que a viu deu um pulo para trás e sumiu-se.

- Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...

- Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...

- Deveras?! - exclamou a viúva Perkins.

E ei-la acometida de um ataque de riso:

- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

E deixou-se cair no divã:

- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:

- Que hei de dizer ao meu amigo?

Ela ficou muito séria, e respondeu:

- Diga-lhe que quem tem boca não manda soprar.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Baú de Trovas XXVI


– Não chores porque estou triste
nem te perturbes, Maria.
Se não fosse essa tristeza,
que versos eu te faria?
APARÍCIO FERNANDES
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Você é mesmo um amor!
E compará-la, com quê?...
— Duvido que haja uma flor
mais linda do que você!
BARRETO COUTINHO
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Ninguém julgue tão vazia
a vida que vou levando,
pois, se lhe falta alegria,
a saudade está sobrando...
CONCITA CÂMARA
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Na copa dos arvoredos,
nas orvalhadas verduras,
há sonâmbulos segredos
e murmuradas ternuras.
CRUZ E SOUSA
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Quando o amor é verdadeiro,
cria profundas raízes.
Se, porém, for traiçoeiro.
deixa apenas cicatrizes...
INÁCIO DIAS DE MEDEIROS
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Se eu tivesse de morrer
nestes teus braços, querida,
eu o faria, sem ter
saudades de minha vida!
JOMAR RÊGO
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Os amores mais felizes
são os que não deixam mágoas,
que não criaram raízes,
como a planta à flor das águas.
JOÃO CELSO FILHO
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Se te visse adormecido,
eu me vingaria às cegas,
beijando muito, querido,
os lábios que tu me negas.
LÉA DE PAULA
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Do "Coração de Maria",
se falo é por devoção.
Que eu amei muitas Marias,
mas todas sem coração...
NILO APARECIDA PINTO
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Às vezes, tenho desejo,
de, vencendo a timidez,
extravasar no meu beijo
tudo o que sinto e não vês...
NYDIA lAGGI MARTINS
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Beija-flor, se tu provasses
os lábios do meu amor,
nunca mais, tenho certeza,
beijarias outra flor!
NIDOVAL REIS
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Ninguém há que não me aprove
esta façanha tão rara:
— um amor que não se move,
num coração que não para!
OCTÁVIO DE MEDEIROS
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"Lembra!" — diz o coração.
"Esquece!" — a razão me diz.
E essa eterna indecisão
é que me torna Infeliz.
OLEGÁRIO MARIANO
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Maria sem coração
encontra-se em demasia,
mas quase nunca se encontra
um coração sem Maria!
ONILDO DE CAMPOS
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Passou... Bonita, de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato,
para correr atrás dela...
ORLANDO BRITO
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Ensina o teu coração
a ter mais pena de mim.
O tempo que leva um "não"
é o mesmo que leva um "sim".
ORLANDO CAVALCANTI
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Sopra o vento, mansamente,
balançando a flor do ipê...
E esta brisa faz presente
a lembrança de você...
PADRE NEWTON PIMENTA
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Foste minha um só instante
e a razão hoje me diz
que esse tempo foi bastante
para um homem ser feliz.
PAULO FÉNDER
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Ai, amor, doce segredo
que não se vê, mas se sente...
razão de um eterno enredo
na vida de toda gente!
PEDRO MANHAES
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Em nosso quarto deserto,
fico horas pensando assim:
– Por que te sinto tão perto,
se estás tão longe de mim?
QUINTILIANO JARDIM
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Tudo tão fácil, tão justo,
tão perto o nosso desejo,
e, todavia, que custo
para a permuta de um beijo!
SERAFIM FRANÇA
= = = = = = = = = = =
Saudade! página lida
do livro dos dias meus,
guarda uma flor ressequida,
marcando a palavra adeus...
STELA WANDERLEY
= = = = = = = = = = =
O amor, disseste-me um dia,
maltrata, dói, faz sofrer,
sem saber — quanta ironia! —
que sofro por te querer...
VERA MARIA
= = = = = = = = = = =
Maria! Nome tão doce,
nome de santa... Parece
que o digo como se fosse
o resumo de uma prece.
VICENTE DE CARVALHO
= = = = = = = = = = =
Teus lábios, depondo beijos
na minha boca ansiosa,
lembram, no ardor dos desejos,
o entreabrir de uma rosa.
WALTER SIQUEIRA
= = = = = = = = = = =
Quis-te um dia... mas fugiste;
me quiseste... e o mesmo fiz.
Quando, enfim, nós nos quisemos,
foi a vida que não quis...
ZALKIND PIATIGORSKY

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 10. Conto – O Calor das Coisas

O CALOR DAS COISAS


Ambiente:
Vida de um homem obeso, sua alma, seus sentimentos.

Foco narrativo:
Terceira Pessoa.

Personagens:
= Oscar: Homem obeso sofre os padecimentos que lhe advém da obesidade: falta de compreensão da própria mãe, discriminação dos amigos.
= Mãe de Oscar
= Amigos de Oscar

Conta a história do Oscar, um homem obeso que ganhou o apelido de “pastel” na infância por causa da gordura. Era um comedor de pastéis compulsivo. Existe uma relação estranha entre ele, a mãe e a comida. A mãe fingia não ver a gordura do filho, a comida para ela era sinônimo de amor. Oscar comia para agradar a mãe. A comida é uma forma de sequestro e chantagem, enquanto ele comia e engordava e se desfigurava, a mãe o mantinha junto a si.

O texto fala da infelicidade de ser obeso. A mãe quer ser carinhosa, mas não percebe que fere profundamente o filho quando o chama de "pastel". Então o filho desenvolve uma revolta surda contra a mãe. Mas afinal, é incapaz de ser agressivo com ela.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

domingo, 17 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 466

 


Fabiane Braga Lima (Mãos que sangram)


No sobrado ao lado de minha casa, sempre escutava gritos, era um casal discutindo perto de seus filhos, a esposa estava numa cadeira de rodas, com as pernas amputadas, devido ao acidente de serviço.

Da janela de minha casa pude notar, assim que seu esposo saia puxava sua cadeira de rodas pela rua e entrava na casa de uma senhora.

E, as crianças ficavam sozinhas por um bom tempo, também não frequentavam escola, o pai não os deixavam estudar. Cheguei até ela, e perguntei: — Porque deixa seus filhos sozinhos em casa?

Assustada foi embora...

Certo dia, fiquei sabendo que aquela senhora, era uma professora aposentada, foi então, que descobri que estava estudando, e infelizmente as discussões com seu esposo não cessaram.

Era um homem rígido de pouco caráter! Podia ouvir seus gritos pelo quarteirão com sua esposa, que se encontrava numa cadeira de rodas, e não conseguia se defender. Descobri que ela estava tendo aulas com aquela senhora, na qual era uma professora, para que depois, pudesse ensinar seus filhos.

Suas mãos sangravam, pois, aquela cadeira de rodas era antiga! Havia tanto amor naquela mulher, seus filhos estavam alfabetizados e logo frequentariam a escola como toda criança.

E, ali estava uma guerreira, que nunca se deixou levar pela estupidez do esposo, com mãos ensanguentadas, mas com alma serena. Nada impediu aquela mãe de alfabetizar os filhos, nem mesmo suas pernas amputadas.

Um ano depois, fiquei sabendo que seus filhos, estavam estudando e vivendo como toda criança merece. Quanto ao homem, deixou a família, esposa em uma cadeira de rodas, debilitada, filhos ainda pequenos, pois nunca quis aceitar a verdade. Toda criança merece um estudo adequado!

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. Da Costa

João Batista Xavier Oliveira (Poemas Recolhidos) 2


O BEM MAIOR


Entre nós uma lança em duas pontas
voltadas bem direto a nosso peito,
porém compreensão com o respeito
são atributos de insondáveis montas.

Na conta permanente do direito
espaços dão às asas, sempre prontas,
os ares das visões do preconceito
e afastam as algemas tão medrontas.

É assim que um grande amor entre pessoas
atrai as vibrações das almas boas
com a esperança de um mundo melhor.

Respeito o teu espaço em todo meio
assim como respeitas meu passeio.
Nosso trabalho ao bem é bem maior!!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O PEDESTAL DO HORIZONTE

Quando me vejo aqui, no pedestal
onde a lida acalenta e se faz luz,
a vitória cintila no portal
e desintegra a treva que seduz.

Conseguir algo mais, travar o mal,
vislumbrar no crepúsculo, conduz
sentimento de força sem igual
na vereda luzida por Jesus.

Volver à luz que brilha no horizonte
mostrando o caminhar em forte ponte
é a mesma luz que brilha a todos nós...

bastando simplesmente a coerência
na busca da lavoura em consistência.
Seremos então livres, jamais sós!!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

S I L Ê N C I O

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

SINAIS INVERTIDOS

Olhando a terra acima dos sentidos
um ar tristonho abate-me na entranha:
sermões abaixo aos ares da montanha
e súplicas em motes de alaridos.

Como esperar que rogação tamanha
venha a elevar as almas dos “ungidos”
pelos sinais, nas mentes, invertidos,
se trechos do alfarrábio mal arranha?

Verter em lágrimas na espera, inerte,
(açoite de cilício não reverte)
na frialdade do silêncio atroz...

é malograr-se às vestes endeusadas;
é recorrer às luzes apagadas
se Deus reside aqui... dentro de nós!!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

SUTIL OLHAR

A nova era agora tão veloz
atinge os ares lassos de metais;
a quântica figura não é mais
o mito que atordoa a todos nós.

Os olhos deslumbrados por fanais
que buscam horizontes, antes sós,
percebem muito além de nossa voz
as vibrações sutis de mil sinais.

Desperta criatura limitada!
Aguça a tua aura dos sentidos;
o mundo ao teu redor é quase nada!

A nova era agora tem ouvidos;
o espírito retarda evolução
se olhar de uma segunda dimensão!!

* * * * * * * * * * * * * * * *  
T R O P E Ç O

Vejo-me agora no final da estrada
e as consequências de uma vida aflita
a procurar afoito a mais bonita
virtude altiva, joia lapidada.

As mãos vazias cheias de desdita
não afagaram outras sem ter nada.
E a consciência viva, tão pesada,
arrasta o fardo que a ambição incita.

Peço perdão para mim mesmo, eu sei
que para evoluir existe lei
da semeadura e sua consequência.

Queira ou não queira o fim faz o começo
para engendrar a escala sem tropeço;
ser mais humilde na nova existência!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

V E L E J A N D O

Varanda, vales, verdes, primavera;
o ar envolto em meigas cantilenas...
Imagens tão serenas que eu quisera
perenes, tácitas em mim apenas.

Sonhar é o som sagrado da quimera
num canto enquanto as dores são amenas.
Descanso à rede a lágrima sincera
que luz na luz dos olhos dos mecenas.

A bordo de uma rede a velejar
eu sorvo a paz que a brisa faz ao mar
no vento que acarinha as mãos poetas.

Bendigo a natureza onde os estetas
descrevem a meiguice de um tormento
na voz que se enternece à voz do vento!!

Fonte:
http://jobaxaol.blogspot.com/

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) As irmãs do Santa Cruz


Todos os nossos pioneiros são dignos de máximo respeito, além de credores de justa gratidão da parte de todos nós que deles herdamos esta encantadora cidade. Eram, em sua grande maioria, colonos ou pequenos proprietários em outras regiões do país, alguns em distantes rincões do mundo. Tiveram a coragem de trocar a tranquilidade do chão natal pela ousadia de abrir clareiras na mata para formar lavouras e plantar cidades. Movia-os, contudo, um motivo forte: a esperança de fazer aqui o pé-de-meia.

Dá então para entender o arrojo dos homens e mulheres que chegaram nas primeiras caravanas e em Maringá plantaram as primeiras sementes, ergueram os primeiros ranchos, instalaram as primeiras serrarias, montaram as primeiras vendinhas, as primeiras oficinas, as primeiras clínicas etc. etc.

Admiro demais o heroísmo dos nossos abridores de caminhos. Mas o que me fascina ainda mais nessa história de bravos é pensar no tipo de impulso que trouxe para cá os que vieram sem nenhum propósito em benefício próprio: os primeiros padres, irmãos, irmãs, pastores, pastoras, ou seja, os que vieram em missão de fé.

Relendo a obra-prima do padre Orivaldo Robles – “A igreja que brotou da mata”, vi lá uma foto da chegada das irmãs carmelitas (18.6.1952). Sete freirinhas espanholas, trazidas pelo então bispo de Jacarezinho, Dom Geraldo Sigaud, com a responsabilidade de instalar no Maringá Velho o Colégio Santa Cruz.

Lideradas pela Irmã Pilar, em pouco tempo mobilizaram as famílias pioneiras, construíram a capela e, logo após, as salinhas onde receberam as primeiras alunas.

Na cabeça delas jamais passara a mínima ideia de ganhar dinheiro ou angariar qualquer outro tipo de vantagem. Mas seu coração pipocava de alegria pela certeza de que estariam ajudando a semear cultura e espiritualidade num mundo novo.

Pensando nelas, penso também nos irmãos que vieram trabalhar na Santa Casa, no Colégio Marista, penso nas irmãs do Albergue, do Lar dos Velhinhos, do Lar Escola, dos Colégios Santo Inácio, São Francisco Xavier, Regina Mundi.

Só Deus sabe o que leva tantos moços e tantas moças, movidos pela misteriosa força de uma santa vocação, a deixarem família, pátria e qualquer projeto pessoal para servir de graça onde forem chamados.

Todos os pioneiros merecem, sim, máxima admiração. Porém ao lado deles, pelo muito que fizeram por todos nós, há de haver sempre um lugar mais do que especial para os pioneiros e pioneiras da fé. A bênção, Irmã Pilar.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 31-12-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 9. Conto – A Sereia Ulisses

A SEREIA ULISSES


Ambiente:
A história se passa entre Rio de Janeiro e a Europa, mas fala muito bem do ambiente interior da alma de PN.

Foco Narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
PN: Personagem principal que fala de sua vida.
Antônio: Amigo de PN.
Sílvia: Amiga de PN que se casa com Antônio.
1º Marido
2º Marido
3° Marido: Pedro de Alcântara Miggioro.
Amigas de PN

O texto conta a história de PN, narrada por ela mesma. Orgulhosa, ela não ouve opiniões de outros.

Prepotente, impõe suas próprias condições. PN se desfaz de pessoas com alpiste e migalhas de pão. Essa referência lembra a história de João e Maria que deixaram marcas para poder voltar. Mas as migalhas desapareceram e não puderam encontrar o caminho de volta. 0 fato de emocionar-se com as novelas de Janete Clair mostra que PN, no fundo, tem um coração sensível Suas atitudes são mecanismos de defesa. Ela mesma confessa que é “vulnerável cheia de labaredas". Quanto ao rapto, trata-se, sim, de mais uma de suas aventuras, um rapto consentido por ela, mas que não quer que dure muito. Por isso, determina quando devem resgatá-la.

Entre tantos Pedros de Alcântara, um tem sobrenome, isto é, distingue-se dos demais, chama a atenção dela. PN prossegue em sua "vida planejada até o dia em que as situações lhe fogem do controle e ela não mais consegue segurar junto de si, nem o homem que a amara, nem o que ela amou. Então vive de recordações.

Perde o ímpeto para a luta. Não consegue voltar atrás. Passou-se o tempo. Os passarinhos comeram o alpiste e as migalhas de pão. Não há como encontrar o caminho de volta. Enfim, ela percebe que sua voracidade não lhe rendera benefício algum. Não percebera quando o amor esteve com ela. 0 texto do bilhete demonstra o quanto ela se sentia segura de si mesma e dona de próprio-tempo, tanto que pode definir a data e hora para o resgate. As iniciais PN são as da autora em ordem invertida.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

sábado, 16 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 23 –

 


Olivaldo Júnior (Três microcontos sobre a amizade)

A MOÇA


Era uma moça como inúmeras outras, cheia de sonhos, desejos e esperança. Um dia, conheceu um moço, com igual capacidade de amar e de acreditar na vida e nos outros.

Assim, a moça e o moço se tornaram os melhores amigos de sempre. Faziam tudo juntos, desde compras no mercado a idas regulares ao cinema. Adoravam filmes de comédia.

Tão linda, a moça conheceu outro moço, que, interessado em sossego, quis se casar. Aflita, contou logo a boa nova a seu amigo, que a apoiou muito. Nunca mais se viram.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O SANTO

Havia se acostumado a ser santo aquela imagem no altar da igreja mais próxima. Não me lembro direito qual mesmo o santo que era, mas era um santo. Tinha os olhos nus.

Dia a dia, como se fosse um pastor, via as ovelhas, digo, os devotos, indo e voltando de lá, deixando aos pés dele uma carta, uma vela, ou um bocado do olhar que o encarava.

Amigo de todos, o santo no altar não podia muita coisa, senão escutar e fazer ele mesmo sua prece a Jesus, a Maria, a Deus Pai. Talvez aquela gente precisasse do santo só isso.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O HERÓI

Era um homem jovem e muito bonito. Pelo mesmo era isso o que lhe diziam. Tanto que, depois de um tempo, passou a acreditar que era uma espécie de herói, Eros, Hércules!

Malhava bastante e se sentia com muitos amigos, pois quase nunca estava sozinho. “A vida é tão boa! Sou tão amado!”, pensava, sem saber que amigos são joias muito raras.

Com a crise no País, sofreu um revés financeiro, perdeu o emprego, ficou sem dinheiro, nem para a academia. Aliás, para os velhos “amigos”, aquele herói virara um bandido.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) II


A MINHA RESOLUÇÃO


O que fazes, ó minh’alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno
As raízes esconder.

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um’alma fida*
Minha vida e meu amor.
* * * * * * * * * * * * * * * *
* Alma fida – alma fiel
* * * * * * * * * * * * * * * *    

A LINGUAGEM DOS TRISTES

Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;

Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;

Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;

Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça

Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.

E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.

Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.

E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloquente.

Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.

Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!

Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.

Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
Pra voos duplos colhe o pensamento:

Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’ideias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.

Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.

Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Ministério da Cultura.

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 13 e 14

NOVO DICIONÁRIO


Qual não foi o pasmo de Matias ao abrir em casa o dicionário de português que comprara para o filho colegial, e verificar que ele era todo feito de palavras cruzadas.

— O garoto não vai estudar palavras cruzadas, vai estudar português — explicou ao balconista da livraria, pedindo a troca do volume.

— O dicionário está certo — respondeu-lhe o rapaz.

— Como está certo, se não começa pela letra A e termina pela letra Z, a exemplo de todos os dicionários de português desde que a língua existe?

— Estou vendo que o senhor não acompanhou a evolução do português. Com as últimas aquisições da ciência linguística e as recentes pesquisas lexiológicas, e mais o uso literário da língua, o português é hoje considerado jogo de palavras cruzadas. Cruzadíssimas.

— Hem? Não estou entendendo.

— Não precisa entender, desde que o senhor tenha habilidade para decifrar palavras cruzadas. Mestres universitários da maior categoria assim resolveram, e os editores lançaram dicionários de acordo com os novos moldes. Procure ler os tratados e revistas de lexiologia, os estudos sobre linguagem, os ensaios de crítica literária, as dissertações universitárias. Tudo palavras cruzadas. Seu filho ainda não tem a nova gramática cruzacional? É indispensável. E muito cuidado no cruzamento das ruas. As placas também vão cruzar.
* * * * * * * * * * * * * * * *

O AMOR DAS FORMIGAS

— O amor das formigas, você já observou o amor das formigas? — perguntou Otávio a Isadora.

– Não, Isadora nunca observara o amor das formigas.

— Nem eu — confessou Otávio. — Aliás, nunca ninguém observou o amor das formigas — sentenciou.

— Mas os entomologistas… — ponderou Isadora.

— Os entomologistas pensam que observaram — retrucou Otávio —, mas as formigas são muito discretas. Não são como os homens e as mulheres, que amam em público.

A conversa continuava nessa trilha de formiga, em zigue-zague, quando a formiga apareceu na ponta da toalha de mesa e foi subindo.

Outra formiga veio em seguida. As duas caminharam às tontas, depois juntaram as cabecinhas num movimento elétrico, e se afastaram, cada uma para o seu lado.

— Você acha que elas se amaram? — perguntou Isadora. — De modo algum — respondeu Otávio. — Trocaram sinais de serviço, apenas. E daí, querida, ninguém ama com a cabeça, é exatamente o contrário: cabeça atrapalha.

— Pois eu acho o contrário do contrário — disse Isadora. — As formigas podem ser mais evoluídas do que nós, e amar acima do coração, de um modo perfeito.

Mas a conversa não conduziu a nada, e os dois tomaram chá.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 8. Conto – O Sorvete é um Palácio

O SORVETE É UM PALÁCIO


Ambiente:
Praia de Copacabana e apartamento, no Rio de Janeiro.

Foco narrativo:
Primeira pessoa.

Personagens:
Uma mulher: Solteira, solitária, de certa idade.
Sorveteiro: Dono de pequena fábrica de sorvetes que vende na Praia de Copacabana.

O texto fala de um encontro entre uma mulher de certa idade, solitária, solteira, com um sorveteiro. Ela quer encontrar alguém que a ame; ele quer encontrar um sócio para a sua fábrica de sorvetes. Apesar da idade, ela ainda se sente profundamente ligada ao pai de quem se recorda muitas vezes e de quem busca a aprovação para o que faz. Ela convida o sorveteiro para um lanche. Precisa de alguém para suprir-lhe as carências de companhia e de amor. Ele não se desliga da esposa e dos filhos. Ele vai embora. Ela vai continuar à espera.

O sorvete é um palácio, é escrito sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as vicissitudes em torno de um caso que mantém com um homem pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos. A mulher narradora também não é nova (“Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as mulheres de minha idade”.), e encontra o amor onde menos esperava, na figura de um homem simples, sem beleza física, casado e, além de tudo, pertencente a outra classe social. Por estranho que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve alegria, que contribui para a construção de si mesma, de sua identidade por inteiro.

"Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida fortaleceu-me desde que o vi pela primeira vez nesta manhã."

Começaram a conversar e ele lhe pediu para que fossem sócios em seu negócio de vender sorvetes na praia. O estranho do pedido é o que garante a percepção de um poderia completar o outro, de se formar um todo. A narradora revela não ter vida própria, assistia a novelas como meio de projetar na vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante de uma situação estranha, com um homem com vida alheia a sua, distante física, social e culturalmente, isso poderia completá-la, a despeito de ele ser casado. (“Viver será transferir para o outro o que é nosso por direito.”)

"Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um homem capaz de interpretar meus sentimentos, serei acaso a última flor do Lácio?"

A “última flor do Lácio” é uma referência a um poema de Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”, em que fala ser o português o último idioma surgido do latim, falado na região do Lácio, que deu origem ao Império Romano. Não parece haver uma relação imediata. A rigor, o que a narradora quis expressar é que ela poderia ser a última mulher a encontrar o homem perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito também que era seria “a última dos moicanos”, por alusão ao famoso romance de James Fenimore.

Um momento significativo é que ele vai até a casa dela e se senta na poltrona que pertencera ao pai e ela na poltrona em que ficava a mãe. Por analogia, é como se cada qual estivesse ocupando os papéis, sonhados, de marido e mulher.

A questão a que sempre retorna é o da identidade (“Serei eu mesma o tempo todo?”). Como construir algo para o qual é preciso primeiro destruir? Destruir a antiga identidade dele, seu casamento, abandonar sua vida no outro lado da cidade?

Essa ideia de construção/destruição está metaforizada no fato de o homem ser sorveteiro, de fabricar para vender um produto que se perdia com facilidade, que, diante do calor, desaparecia.

"Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um mundo frágil pela força da sua vontade. A lidar com formas que o calor desfazia."

Por este motivo, o sorveteiro tem sempre de retornar à sua casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e, com isto, o amor entre ele e a narradora não se totaliza nunca.

Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta a narrar sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos poucos, percebeu que Alice representava, mais do que amor, relacionamento de um casal, apenas a aventura, os passeios. Não se via completo efetivamente por ela. Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado.

"Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem amigos com quem dividi-la."

Esse conto lembra As cartas portuguesas, escritas por Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), de um convento localizado Beja, dirigidas a um oficial francês, chamado DeChamilly, que lhe prometera amor eterno e que a iria tirar do convento para se casarem. No entanto, a promessa não se cumpre.

Foram cinco curtas cartas de amor, em que se percebe um amor incondicional e exacerbado. O tom das cartas vai do sentimento de esperança à desilusão, por não receber notícias e correspondência equivalente.

Nélida Piñon é uma autora pós-moderna, no sentido de tematizar questões modernas, como o feminismo, o respeito às diferenças, a construção de nova identidades, a reconstrução de identidades perdidas.

Fontes:
– Celso Leopoldo Pagnan. Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2017/2018. Londrina: Maxi, 2016.
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 465

 


Júlia Lopes de Almeida (Ânsia Eterna)


A João Luso


- E o teu livro? quando aparece o teu livro? perguntou Rogério Dias ao amigo, refestelando-se numa almofada de marroquim do escritório.

– Parece-me que nunca...

– Por quê?!

– Por isto: o que eu quero não é escrever meramente; não penso em deliciar o leitor escorrendo-lhe na alma o mel do sentimento, nem em dar-lhe comoções de espanto e de imprevisto. Pouco me importo de florir a frase, fazê-la cantante ou rude, recortá-la a buril ou golpeá-la a machado; o que eu quero é achar um engaste novo onde encrave as minhas ideias, seguras e claras como diamantes; o que eu quero é criar todo o meu livro, pensamento e forma, fazê-lo fora desta arte de escrever já tão banalizada, onde me embaraço com a raiva de não saber fazer nada de melhor. Estamos sós; sabes que sou contigo absolutamente sincero; dir-te-ei tudo.

Quero escrever um livro novo, arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo, palpitante, com todos os retalhos de céu e de inferno que sinto dentro de mim; livro rebelde, sem adulações, digno de um homem. Se eu tivesse gênio, não me faltaria o resto, porque não escrevo por amor da turba ingrata, nem preciso da pena para ganhar a vida; sou rico e só escrevo por uma obsessão que me verga, tal como o furacão verga o caniço.

Não te rias; a ordem vem do incognoscível, não a discuto, aceito-a como uma lei de Deus. E não cuides que a aceitei sempre com resignação e sem relutância; tenho rasgado muitas páginas, incendiado muitas palavras, assoprado muita cinza aos quatro ventos!

Ao princípio, mal desfazia uma página achava-me a fazer outra. Este martírio ainda dura; todo o meu protesto de acabar fica onde começa o desejo de criar mais e melhor. Posto o ponto final em um livro, abre-se-me logo a vontade de escrever o primeiro período de outro livro. E é sempre assim; afinal, por que e para quê? Se os velhos como os novos trabalhos não me trazem à consciência nem glória nem tranquilidade? Para quê? não sei... Por quê? porque é preciso obedecer, porque a natureza me fez tal o caniço...

E a propósito dir-te-ei que a natureza foi cruel para mim, visto que o meu ser moral não se confunde com o meu ser intelectual. Não nasci para escritor, sou orgulhoso, a popularidade ofende-me; não sei que melindre é este, que antes cresce do que diminui com o correr do tempo, fazendo-me cada vez mais sensível e descontente de mim mesmo. De que vale tanto esforço?

És inteligente, vê se entendes isto: embora eu não me preocupe com o leitor, há sempre diante de mim, quando escrevo, um desconhecido, sombra no vácuo, indecisa, impalpável, mas que basta para enregelar-me os dedos quando a frase quer cair despida e franca na brancura do papel. Ah! o preconceito! o preconceito!

E é uma criatura atada a ele, e assim orgulhosa e tímida, que pensa em fazer um livro sadio, calmo, de regeneração e de esperança, como início de outra vida mais perfeita. Mas como hei de eu, dependente e fraco, fazer tal livro independente e forte? Eu, que pratico o mal, não posso sem ironia ensinar o bem. A minha boca, que mente, o meu pensamento, que atraiçoa, não são dignos de fazer uma apoteose à verdade absoluta, como a única fonte da felicidade humana.

O livro a que aludiste é o meu martírio: penso nele à proporção que vou fazendo os outros, e sinto-o sempre à mesma distância, inatingível e sereno. O meu livro! mas qual será o escritor que não pense no seu livro definitivo, único? Dize!

– Que hei de dizer? Que, talvez, mudando de hábitos alcançasses a tranquilidade necessária para um bom trabalho. Casa-te.

– Não. Eu traria para casa uma inimiga. Por mais doce e modesta que fosse, ela teria a pouco e pouco ciúmes disso tudo... As leituras são absorventes, e as mulheres não admitem preterições. Têm razão, talvez.

De mais a mais eu tenho medo das mulheres...Vou agora contar--te, com muita oportunidade, o meu último episódio amoroso, que bem pode servir de síntese a tudo que te disse.

– A respeito do livro?!

– Sim... podes pôr dentro desse sonho este outro sonho, certo de que a solução será a mesma. Deixa-me mandar vir café. Tu jantas hoje comigo.

– Sim, jantarei contigo.

– Minha mãe vai ficar contentíssima; não imaginas, está linda, com os cabelos brancos; alta, sempre muito direita... Chamo-lhe a minha torre da fé, iluminada! Escuta agora a tal história; é pequenina.
* *

Entrei um dia com um amigo no Passeio Público, com o pretexto de combinarmos a colaboração de um drama. Sentamo-nos num banco, na aleia esquerda, lembro-me bem; e enquanto eu fazia o meu cigarro, ele começou a expor o seu plano. A ideia era dele. Eu ao princípio ouvia-o com atenção, sem deixar por isso de olhar para duas crianças, vestidas à inglesa, que brincavam pela aleia ensombrada. Em frente a nós, num outro banco de pedra, duas moças conversavam baixinho.

É muito frequente em mim pensar paralelamente em dois fatos diferentes, até que um absorva o outro. Sem deixar de compreender o magnífico assunto do meu amigo... o Josino, conheces? Pois é esse; sem deixar de o ouvir, eu pensava na doçura que deveria haver em ser-se pai de umas crianças como aquelas que ali estavam, tão lindas e tão bem lavadas. Tal pensamento fez-me voltar os olhos para as duas moças. Uma, mais alta e mais nutrida, era evidentemente a mãe das crianças; tinha no colo os chapéus de palha à marinheira, e chamava de vez em quando os pequenos para arranjar-lhes o cabelo e compor-lhes a toilette*. A outra, mais franzina, era de uma beleza singular e comovente. Trazia um vestido de lã simples e um chapeuzinho de palha que mal lhe encobria a trança loira e grossa. Todos os seus traços eram regulares; mas, de tudo, o que mais me impressionou, viva e extraordinariamente, foram os seus olhos, de um azul escuro, triste, onde me pareceu sentir uma alma grande, séria, capaz de todas as lutas e de todos os sacrifícios. Nunca vi uns olhos assim. Num instante, desviando-se da companheira, eles voltaram-se para os meus... e não te posso explicar a sensação deliciosa que me agitou. Todas as minhas mágoas negras se purificaram àquela luz; assaltou-me logo uma ideia: eu podia ter um chalé, num canto de arrabalde, onde as rosas trepassem para o telhado e em que duas crianças saltassem no jardim, enquanto a mãe as vigiasse de um banco, como aquela que ali estava em frente. A minha vida não se consumiria na febre de um desejo vão; teria um lar feito por mim, risonho e confortável.

Os olhos azuis da moça diziam-me no seu brilho discreto e sagrado:

– Eu farei a tua felicidade. Sou educada, sou ativa, sou modesta; compreendo e amo as artes e tenho o coração aberto para as ternuras conjugais e maternas. Vê como sou simples.

Fixamo-nos longamente. Aqueles olhos não se desviaram dos meus com o pudor pretensioso das moças, nem tampouco tiveram arrogância ou malícia: continuaram serenos e claros, tristes sem afetação, com uma franqueza de alma limpa.

Junta a isto a beleza das últimas horas do sol e o perfume das dracenas em flor. Acredita que o perfume é o cúmplice de muitas paixões, muitas!

Quando saímos do Passeio ainda elas lá ficaram. Durante a noite pensei várias vezes naqueles olhos azuis. Nesse tempo minha mãe estava fora, tinha ido fazer a sua estação em Caldas, de modo que ao meu quarto faltava o apuro a que me acostumara. Pela primeira vez vi pó no espaldar da minha cama, e encontrei gelhas nos lençóis. No dia seguinte, a minha mesa de trabalho, com o tinteiro transbordante e o cálice de conhaque sujo, irritou-me; e ao almoço, mal servido, lamentei a falta de uma salinha de jantar, alegre, onde os olhos azuis da minha esposa tivessem observado e prevenido tudo...

Que influência profunda pode ter no destino, já determinado pela vontade de um homem, o simples relancear dos olhos de uma mulher! Por que voltava assim ao meu espírito aquele clarão azul?

Decididamente, eu encontrara a realização da minha ventura – o casamento. Arte? ora, adeus! fazer arte aqui, para que, para quem? Não valia a pena sacrificar o coração pela liberdade de artista e de boêmio.

Assim pensei, e fiz-me piegas como um namorado de quinze anos. Acreditarás que eu ia todos os dias ao Passeio Público? Percorria-o inutilmente: não a encontrava nunca; em todo caso não desistia, a esperança de ver os olhos azuis guiava-me através das ruas ensombradas.

Se as árvores falassem, que diriam de mim aquelas árvores! Que idílios, que lindos devaneios tive ali! eram verdadeiros sonhos de adolescente, perfumando a vida profanada do homem desiludido e amargo.

Ela já tinha para mim uma designação puríssima, era a minha noiva, e eu procurava-a, parecendo-me que só com o vê-la os meus dias se tornariam risonhos e plácidos. Vê-la não era tudo; eu queria ser visto, ser notado; queria falar-lhe, ouvir-lhe a voz, dizer-lhe que a amava! E tudo me parecia fácil, desde que a encontrasse!

Exatamente no dia em que entrei no Passeio mais desanimado, e certo da inutilidade da procura, foi que vi, no mesmo banco, a doce mamãe, com os chapéus dos filhos nos joelhos, e a seu lado a beatificada da minha alma. Nunca senti o coração bater-me com tanta força.

Ela voltara-se para mim, via-me ir chegando... Não te posso dar uma ideia da minha comoção; eu nem sabia onde pisava, quando um acaso me favoreceu: uma das crianças caiu a poucos passos de mim e abriu a boca num choro de assustar e pôr a nado os patos.

Tomei-a imediatamente nos braços e levei-a, depois de a acariciar, às duas moças.

A mãe ergueu-se, e veio apressadamente ao meu encontro, agradecendo muito; a outra ficou sentada. Cumprimentei-a timidamente; não me respondeu. Corei, interdito. A mamãe então murmurou com tristeza, indicando-a com um gesto, num tom de desculpa:

– É cega…
______________________
* Toilette – Palavra francesa que pode ser aqui traduzida como “visual”.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Mário Quintana em Prosa e Verso 12

 A RUA DOS CATAVENTOS


VII

Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
"Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..."
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um'outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

VIII
Para Dyonélio Machado

Recordo ainda... E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada fora após segui... Mas, ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino.., acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

IX
Para Emilio Kemp

A mesma ruazinha sossegada,
Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...
E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descora...

Sim, desses cartazes ante os quais
Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí afora
Que inda anunciam: - ALEGRIA - RISOS
Depois do circo já ter ido embora!...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

X

Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos...
Sentai, amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos...
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!

"Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!"
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
"Que tédio!" o coro dos Amigos clama.

"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?"
Digo... e retorço as pobres mãos cansadas:
"Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"
* * * * * * * * * * * * * * * *  

XI

Contigo fiz, ainda em menininho,
Todo o meu curso d'alma... E desde cedo
Aprendi a sofrer devagarinho,
A guardar meu amor como um segredo...

Nas minhas chagas vinhas por o dedo
E eu era o Triste, o Doído, o Pobrezinho!
Amava, à noite, as luas de bruxedo,
Chamava o por-do-sol de meu padrinho...

Anto querido, esse teu livro "Só"
Encheu de luar a minha infância triste.
E ninguém mais há de ficar tão só:

Sofreste a nossa dor, como Jesus...
E nesta Costa d'África surgiste
Para ajudar-nos a levar a Cruz!...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

XII

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...
Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E ao monótono embalo do acalanto
O choro pouco a pouco se extinguiu...

O menino dormira... Mas o canto
Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

E era a voz que eu ouvi em pequenino...
E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que, ao me ver neste abandono,
Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!…

Fonte:
Mário Quintana. A Rua dos Cataventos. Publicado em 1940.

Lima Barreto (Mais uma vez)


Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido.

Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo.

Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo.

Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no largo do Moura por aquela época.

Uma rapariga - nós sabíamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo maquereau* dela, numa casa da rua de Sant'Ana.

O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do beco da Música e da rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue 2, era a frequência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem vestida. Isto quanto às mulheres - bem entendido!

Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração.

Escrevi - cadáveres - pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer.

Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses* de todas as cores, sobre o fato.

Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias* terríveis, condenando-a, julgando o seu assassinato coisa bem feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta?

Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera.

Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil réis de renda anual como manda a lei sejam os juízes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses* do largo do Moura.

Mesmo eu - já contei isto alhures - servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida* e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era falhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta.

No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se bem como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado dever de matar a sua ex-cara-metade.

Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão* bárbara da nossa gente, vá lá; mas que o Senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece. O liberal, o socialista Evaristo, quase anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras* do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isso ou aquilo, nada dizem e ficam na moita.

A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto...

Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses lagos.

No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era.

O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se houvesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a coisa de modo talvez satisfatório.

Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - O protagonista do lamentável drama da rua da Lapa.

Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal.

Toda a campanha para mostrar a iniquidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o.

Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras.

Convém entretanto lembrar que, nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei.
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Vocabulário:
Maquereau = cafetão.
Pierreuses = prostitutas.
Objurgatórias = condenações.
Rôdeuses = vagabundas.
Uxoricida = assassino da própria esposa.
Abusão = crença, superstição.
Sinecuras =emprego ou cargo rendoso que exige pouco trabalho.


 Fonte:
Lima Barreto. Bagatelas. s.d.