quarta-feira, 21 de abril de 2021

Júlia Lopes de Almeida (O Dr. Bermudes)

A Raimundo Corrêa


Hão de crer? Encontrei esta manhã o Dr. Bermudes, aquele velho boêmio incorrigível, com o seu legendário casacão ruço, as botas cambadas, o colarinho sujo, e o seu ar de fome, olhando pasmado para uma vitrine de bonecos!

Quem não sabe da crônica do Dr. Bermudes? Conhece-a o Rio de Janeiro em peso, desde os lentes da academia, de quem ele fora condiscípulo, até aos caixeiros dos botequins que o levam para o relento das calçadas, a horas mortas da noite, quando as estrelas brilham no céu sobre os telhados mudos da casaria adormecida.

O Bermudes está velho, tem perto de cinquenta anos, e a ventania da desgraça pôs-lhe na pele tons de cobre sujo, e manchas de neve naquelas barbas, que mais parecem ervas hirsutas de uma brenha. Credo!

Quem dirá que aquilo já foi moço, galante, garboso, rico, correndo às aventuras arriscadas, sempre bem vestido e bem falante, enamorando as mulheres com a doçura dos seus olhos, e o espírito dos homens com a faísca das suas palavras ardentes e bombásticas?

A sua passagem deixou rastro na academia; citam-se ainda frases suas e feitos de arreganho em que entrou sempre uma alevantada ideia de justiça. Trazia capa e espada na alma, já que os tempos burgueses não lhas permitiam no corpo. O Bermudes era um D. Quixote, mas novo, bonito, com uma voz que arrastava a gente e cada gesto, cada ideia, de quem tudo domina e nada teme.

Eu conheci-o ainda nos bons tempos da D. Jacinta, a tia velha, que lhe dava dinheiro e o mantinha naquelas doidices da mocidade, com o brilho que a sua imaginação requeria.

E ele aproveitava. Só fumava do bom, comia como um príncipe, e das suas mãos finas as esmolas caíam, como chuvas de verão, no regaço dos pobres. Sujeita, como tudo, às leis da natureza, a D. Jacinta foi muito quietinha para o cemitério, numa formosa tarde de inverno, dessas de nuvens de ouro e de roseiras em flor.

Pela escadaria de pedra do jardim, quantas abas negras de sobrecasacas flutuaram, a caminho das reverências ao Dr. Bermudes, o belo Bermudes, único herdeiro daquela velha milionária? E ele lá estava, na capela ardente, pálido, com a face compungida e as lágrimas luzindo-lhe nas pupilas. Era só então: “Sr. Dr. Bermudes!” – “Sr. Dr. Bermudes!”

Muito respeito, muita piedade e grandes condolências... Lá de um cantinho, o tabelião Taveira, com a papada de porco untando de suor o colarinho e o peitilho da camisa, sorria por dentro, no mistério do seu ofício, daqueles dizeres de tantíssimas bocas. Ele lera ao Bermudes, horas antes, o testamento da tia. A idiota não deixara nem um vintém ao sobrinho; ia toda a fortuna para a sua irmandade de S. Francisco. E o Bermudes nem estremecera. Era como se fosse tudo muito natural. Acabada a leitura, ele ergueu-se e dirigiu-se para o catafalco. O tabelião e as testemunhas pularam, julgando que no rostinho mirrado do cadáver caísse vingativa e irrespeitosamente a mão do Bermudes. Não; ele fora sacudir as moscas, que faziam por entrar na boca de onde só orações tinham saído havia longos anos.

E ninguém mais falou em tal. A velha, que o acostumara aos regalos de uma vida de luxo e dissipação, deixou-o sozinho na miséria. E só o seu confessor sabia as razões disso...

Bermudes ficou sem ter onde dormir, nem onde comer, girando por essas ruas, alegre com uns, condoído de outros, sem rancores, aceitando o jantar do um amigo, o leito de outro, coisas de empréstimo, que foram rareando pouco a pouco, até que se acabaram de todo...

Ele deixou assim de ser o homem de sala para ser o tipo da rua. Afez-se às más companhias e ao mau vinho. E quando bebia sonhava que a tia Jacinta voltara da viagem e que tinha outra vez o seu grande leito de dossel com sanefas* de púrpura, e o seu chocolate quente com pão de ló, trazido pelo criado, o mulato Candinho, antes do banho, nas suas manhãs preguiçosas. Quando o Bermudes acordava da bebedeira, via que o colchão não era o seu antigo, de paina de seda, desfiada pelas crioulas da casa, mas sim o lajedo da rua imunda. A decepção abria-lhe vontade de beber outra vez, e ele bebia para sonhar com os regalos fornecidos pela defunta velhota.

Ainda há senhoras por aí que bem se lembram de ter valsado com ele, o que era um prazer delicado. De uma sei eu que, quando o vê, volta o rosto e sente estragado todo o prazer do seu passeio. Embora a filha lhe pergunte: – Mamãe, por que ficou triste? – Ela não lhe responde e vai andando... Vai andando com a ideia presa à lembrança de outros tempos, quando o Bermudes, moço, rico, estimado, ia vê-la todas as tardes, chamando-a – minha noiva, mesmo nas bochechas do papai e da mamãe... E daquela voz do Bermudes nunca ela se esquecera, nem depois, quando outro homem lhe deu o mesmo título, na mesma casa, ao lado das mesmas pessoas! Ela também já tem os cabelos brancos, mas, porque é rica, como cheiram bem os seus vestidos de seda e os seus manteletes à moda! O marido nunca lhe soube dizer que a amava, como o Bermudes, que lhe plantara na alma um canteirinho de flores odorantes; mas que luxo lhe dava, santo Deus!

O Bermudes é que a não conhece; esqueceu-a, perdoando-lhe assim generosamente... e por aí anda com o seu casacão roto, e os seus passos trôpegos, em que entra já o tremor do alcoolismo...

Um dos seus divertimentos, ora vejam! é ir postar-se em frente às vitrines de bonecos, com uma atenção que nada abala. Sorri para as pastorinhas de avental e chapéu de palha, para os clowns (palhaços), para os velhos do Natal, para os bebês das caixas armadas a rendas e cetins, para os velhos sapateiros batedores de sola e para as carrocinhas tiradas por um burrinho gordo.

A gente da loja já o quis enxotar, dizendo que ele afugentava a freguesia. Entretanto, Bermudes sorri com as crianças que passam, porque, como as crianças, ele sempre amou a ficção. E há de amá-la, até que um dia... Vão ver que a tarde em que o levarem para a sua última cama não há de ser tão bonita como aquela em que levaram a velha tia Jacinta!
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* Sanefas =Tira de tecido que se coloca na parte superior da cortina ou reposteiro, nas vergas das janelas etc.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 11

TANTOS ANOS DEPOIS...

Vinte e cinco anos de feliz união...

Naquele dia em que nos conhecemos,
teria sido bom... tão bom seria!,
se os ternos corações, que nós dois temos,
passassem a pulsar em sintonia!

Quantas dores de amor nós dois sofremos!
Quanta angústia nossa alma evitaria
se as mãos unidas, como agora temos,
ontem se unissem pela poesia.

Mas ninguém foge à sua própria sina!
O tempo que nos sobra, hoje, é só nosso...
e os segundos que voam, quem domina?!

Busquemos, juntos, a felicidade!
Se podes ser feliz e eu também posso,
que o amor nos una pela eternidade!
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RUSGA

Nada dói tanto quanto a despedida
a separar, de um golpe, almas que choram
ao sentir que no adeus se esvai a vida
e tudo o mais que em vida mais adoram!

Assino a carta... e, uma vez mais, relida,
as emoções nas lágrimas se escoram,
retardando a sentença não cumprida,
com temor de arriscar a paz que imploram.

Nosso acervo de amor tem grande saldo!
E esta rusga, tão frágil, se desmente,
ante a ternura que nos dá respaldo!

Se afogo o adeus, num pranto de revolta,
é que esse adeus, dorido e reticente,
nas entrelinhas... leva o apelo: – Volta!
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INTERLÚDIO

Quando a manhã se aloure e o sol amorne as folhas,
o orvalho guarde ainda o arco-íris e recolhas,
filtrada em ouro, a luz que a própria vista embaça,
talvez tudo se iguale em tons pasteis cambiantes,
talvez sejam iguais os pálidos instantes,
se a saudade te fere e a solidão te abraça!

Mas, se a vida desperta… e, na explosão das cores,
o sol acorda e esplende em múltiplos fulgores,
hás de fugir da inércia e do seu beijo frio,
se afastares de ti o abismo escuro e fundo
e se, vencendo a dor, num renascer fecundo,
teu coração se negue a continuar coração vazio!
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ARTE PLENA

Com músicas, versos, telas
e inspiração desmedida,
artistas fazem mais belas
as belas coisas da vida!


A olhar o mundo, com visão serena
de quem ama o que fez e, apaixonado,
reconhece a presença da arte plena
e do talento nunca superado,

notou, o Criador, o quão pequena
era a alma do ser recém criado!
E temeu-lhe o futuro que condena
um sonho ao nada, quando mal sonhado!

E, então, a luz brilhou na noite escura!
E reacendeu-se a flama das conquistas!
- Num mágico lampejo de ternura,

dando-lhes alma e coração de sobra,
Deus criou, tão sensíveis, os Artistas,
humanizando, assim, a própria Obra!
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NÃO CREIAS

Tem cautela... não creias na Poesia!
Poeta sonha… às vezes se arrebata,
burla a si mesmo, abraça a fantasia
e, da palavra, esquece a força exata!...

Volúvel, num constante devaneio,
o Poeta é incapaz de amar alguém!
E, se ama esquece, no incontido anseio
de amar Vida, seu supremo bem!

Sua Poesia, de ilusões repleta,
ilude quando ri, ou quando chora!
Não creias na Poesia… no Poeta...
E, muito menos, no que eu disse agora!

Se fora como eu disse, menos dura
seria a vida de um Poeta! Vida
sem resquícios de mágoa ou de amargura,
e a saudade, até doce... não dorida!

Pode o Poeta rir... mesmo chorando!
E enganar... ao compor falsa alegria,
mas, nunca esconde o amor! E, menos, quando
o entrega inteiro aos braços da Poesia!

O Poeta, quando ama de verdade,
tem seu Amor tal força impressentida,
que assume dimensão de Eternidade
indo além... muito além da própria Vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Luís da Câmara Cascudo (Romãozinho)


Folclore do Centro-Oeste

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Filho de negro trabalhador, Romãozinho nasceu vadio e malcriado. Tinha todos os dentes, fisionomia fechada, hábitos errantes, nenhuma bondade no coração. Divertimento era maltratar animais e destruir plantas.

Menino absolutamente perverso.

Um meio-dia, a mãe mandou-o levar o almoço ao pai, que trabalhava num roçado, distante de casa.

Romãozinho foi, de má vontade.

No caminho, parou, abriu a cesta, comeu a galinha inteira, juntou os ossos, recolocou-os na toalhinha, e foi entregar ao pai.

Quando o velho deparou com ossos em vez de comida, perguntou que brincadeira sem graça era aquela.

Romãozinho pretendeu vingar-se da mãe, que ficara fiando algodão no alpendre da casinha:

- É o que me deram... Minha mãe comeu a galinha com um homem que aparece lá em casa quando o senhor não está por perto. Pegaram os ossos e disseram que trouxesse. Eu trouxe. É isso aí...

O negro meteu a enxada na terra, largou o serviço e veio correndo. Encontrou a mulher fiando, curvada, absorvida na tarefa. Dando crédito ao que lhe dissera o filho, puxou a faca e matou-a.

Morrendo, a velha amaldiçoou o filho, que estava rindo:

- Não morrerás nunca. Não conhecerás o céu, nem o inferno, nem o descanso enquanto o mundo for mundo...

Faz muito tempo que este caso sucedeu em Goiás.

O moleque ainda está vivo e do mesmo tamanho; anda por todas as estradas, fazendo o que não presta; quebra telhas a pedradas, espalha animais, assombra gente, tira galinha do choco, desnorteia quem viaja, espalhando um medo sem forma e sem nome; é pequeno, preto, risão, sem ter fé nem juízo.

Homens sérios têm visto Romãozinho.

Furtou uma moça na chapada de Veadeiros; conversou com o coletor de Cavalcanti; virou fogo azul, indo-e-vindo na estrada, perto de Porto
Nacional.

Não morrerá nunca enquanto uma pessoa humana existir no mundo. E, como levantou falso testemunho contra sua própria mãe, nem mesmo no inferno haverá lugar para ele.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. 
Projeto Livro para Todos.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Adega de Versos 14: Nonato Costa

 


Stanislaw Ponte Preta (Zezinho e o Coronel)

O Coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha. Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo.

Ah! rapaziada... foi fogo. O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão.

Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando e pimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele.

Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista.

Sem paqueração não há repressão. O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que — chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite — a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão.

Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava-se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Parecia um búfalo no inverno.

Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

- Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se.

Virou-se para o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?

(Zezinho estava)

— Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?

(Zezinho estava)

— E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?

(Zezinho estava)

— Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter.

O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando: — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô). Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 7 –


À espreita de um novo encanto,
o orvalho que a noite chora...
É lágrima de acalanto
que beija a face da aurora!
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A humanidade se empenha,
e num esforço profundo...
Eis que a rota panamenha,
encurta as rotas do mundo!
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A poesia se engalana,
mas só se torna completa,
quando se faz soberana
na voz do próprio poeta!
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A travessia mais rude
que entre nós dois, eu desfiz...
Foi não ter tido a virtude
de fazê-la e ser feliz!
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Cadeira velha, esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
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Canta poeta passarinho,
não somos tão desiguais!...
Eu também canto sozinho
preso aos grilhões dos meus ais!
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Cascata, teu pranto triste,
parece que não tem fim!...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
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Corrupção — é o lado injusto
da mente perversa, insana,
que esquece o preço do custo
do resto da raça humana!
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É mais feliz, afinal,
aquele, que ao ver a luz...
Vê que a estrela do Natal
brilha nos braços da cruz!
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Há uma voz triste e sonora,
nela, suspiros, lamentos!...
É a cachoeira que chora
seu pranto na voz dos ventos!
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Mãe que tem fé, não se esquece,
de orar pelos filhos seus!...
Pois, no silêncio da prece,
toda mãe fala com Deus!
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Mamãe!.. Essa dor não finda,
nem cura o silêncio mudo,
de um filho, que guarda, ainda,
tua ausência em quase tudo!
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Manassés, teu canto encerra
todo o bem que te conduz,
enchendo de amor a terra
e Maranguape de luz!
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Nas asas de um vento brando,
na espuma branca do mar...
As ondas chegam cantando,
trazendo o sal potiguar!
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Natal! Que o planger do sino,
não seja de pranto e dor,
mas seja o toque divino
da voz da "Estrela" do amor!
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No teu adeus, quase mudo,
na resposta tão calada...
imaginei quase tudo,
sem ter certeza de nada!
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O outono da vida ingrata,
chega fazendo atropelos:
Joga tinta cor de prata,
na tinta dos meus cabelos!
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Os Magos, seguindo a trilha,
de uma estrelinha do além...
Acham a luz que mais brilha
noutra "Estrela" de Belém!
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O velho nauta, em seus passos,
olha o céu, põe-se a vogar...
Como se a força dos braços
fosse a das ondas do mar!
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Por mais que a mágoa te doa,
perdoa a quem mal te faz!...
Que a humanidade abençoa
teu gesto de amor e paz!
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Quando a aurora adormecida,
rasga o ventre da alvorada...
Ouve-se o choro da vida
nos braços da madrugada!
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Quando enfim, tu te ajoelhas,
e o teu perdão te refaz...
Serás luz entre as centelhas
do fogo aceso da paz!
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Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor...
Pois, a cortina, mais nobre,
não cobre um riso de amor!
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São tantas as consequências
ante o amor que se desfaz...
Que há medos temendo ausências
e há gritos pedindo paz!
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Se a poesia te renova,
e a violência não te apraz...
Sê mensageiro da trova,
pombo-correio da paz!
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Segui teus passos, no entanto,
foi ferindo os pés na estrada
que vi, no teu rastro, o quanto,
sofreste na caminhada!
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Tenho um jardim diferente...
E entre nós, há uma aliança;
Por mais que eu mude a semente,
só nasce a flor da esperança!
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Tua tristeza parece,
ó, velho mar, dos meus ais,
o choro triste da prece
das mães rezando no cais!
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Venci marés violentas,
ondas e mares sem fim...
Só não venci as tormentas
que existem dentro de mim!
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Viver por viver somente,
faz teu mundo tão perjuro,
que este teu falso presente,
é o presente do futuro!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Eduardo Affonso (Teimosia)

Ali pelos 15, 16 anos, era mais difícil disfarçar a timidez e/ou a falta de traquejo no convívio social. As cantadas, então, estavam totalmente fora de cogitação. O jeito era deixar que outros dissessem por mim – e nisso a música romântica era imbatível.

Havia bailes; dançava-se de rosto colado; a respiração junto à orelha, a mão dedilhando a alça do sutiã ou descendo pelos quadris, a coxa roçando a coxa – tudo isso ajudava a verbalizar o que a voz não ousava.

E, se houvesse que haver uma voz, que fosse a do Paul McCartney dizendo “uô uô uô uô uô uô uô uô, my love does it good”, a do Elton John pedindo “fly away, skyline pigeon, fly” (eu jurava que era Skylab pigeon, mas isso é assunto para outro texto), ou Junior confessando que ”when you’re near, reality loses its hold and loneliness’ tears wet my soul”. Mas, tirando o uô uô uô uô uô uô uô do Paul, eu não entendia patavina.  O que ajudava bastante.

O problema era quando as letras eram em português.

Em princípio, isso era um facilitador. Bastava cantar junto (ou fingir que cantava, tipo segunda voz de dupla sertaneja) e o recado estava dado. Se colasse, colou. Se não colasse, eu estaria só cantando a música, sem quaisquer décimas oitavas intenções.

Uma das minhas favoritas – para o bem e para o mal – era “Minha teimosia, uma arma pra te conquistar”, do Jorge Ben (ainda não era Benjor).

Era uma cantada perfeita. Direta. Para dançar com direito a olhares de promessa e um arremedo de gingado que podia ajudar na conquista pelo caminho da comiseração – mas, naquela idade, quem liga?

O problema era o meu apego à gramática. Eu tentava cantar corrigindo a letra, o que me tirava totalmente o foco. E, claro, ferrava com a métrica.

“A minha teimosia é uma arma
pra te (2º do singular) conquistar.
Eu vou vencer pelo cansaço
Até você (3º do singular)
gostar de mim, mulher, mulher.
Mulher graciosa, alcança a honra.
Você (3º do singular) alcançou, mulher.
Minha amada, minha querida, minha formosa
Vem (2º do singular) e me fala (2º do singular)
que eu sou o seu (3º do singular) lírio
e você (3º do singular) é minha rosa.
Mostra-me (2º do singular) teu (2º do singular) rosto
Fazei-me (2º do plural!!) ouvir a tua (2º do singular) voz
Põe (2º do singular) estrelas em meus olhos
Músicas em meus ouvidos
Põe (2º do singular) alegria em meu corpo
Junto com amor de você (3º do singular)
Mulher, mulher
Lá, lá, lá, lá
Mulher, mulher.”

Eu tentava pôr tudo na segunda pessoa do singular – e não funcionava. Tudo na terceira pessoa do singular – e não dava certo. E (vejam o nível de desespero) até mesmo tudo na segunda do plural. Em vão. A minha teimosia com as pessoas gramaticais acabou se tornando uma arma para não conquistar ninguém. O jeito era vencer pelo cansaço – e ir de com força no lá lá lá lá do final para tentar apagar a má impressão do gingado.

Estante de Livros (“O Coração Roubado e outras Crônicas”, de Marcos Rey)

Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925‐ 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição. A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários.

Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945.


SOBRE A OBRA

Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis (1839 ‐1908), Cecília Meireles (1901‐1964), Rubem Braga (1913 ‐1990), Fernando Sabino (1923 ‐2004), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937) e tantos outros...

Vamos ler um trechinho do prefácio.

O que é mesmo uma crônica? Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conferir finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número para entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Um quase ‐ literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo.

Escritas de maneira inteligente e instigante, as 26 crônicas de Marcos Rey apresentam uma série de tipos inesquecíveis, vivendo situações as mais diversas. Nas páginas de Coração roubado, você encontrará cenas hilariantes, absurdas, constrangedoras, delicadas... presentes no dia‐a‐dia de qualquer pessoa, em qualquer lugar.

Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos:

1 - SITUAÇÕES EMBARAÇOSAS

O CORAÇÃO ROUBADO

Narrada em primeira pessoa, esta crônica relembra o tempo da infância do autor: o momento da conclusão do antigo curso primário. O autor ganhara um livro do pai (O coração, do escritor italiano Edmondo de Amicis), um best‐seller infanto‐juvenil. Na festa de formatura o seu livro desapareceu e ele sofreu uma grande decepção. Encontrou‐o sob a pasta escolar de Plínio, o aluno mais comportado da escola. Com vergonha de denunciá‐lo, pegou o livro de volta sem dizer nada ao ladrão. Mas, a partir daquele dia, perdeu a fé nos seres humanos e passou a vida toda dando o exemplo de Plínio para demonstrar a corrupção humana. Um dia, caíram alguns livros de sua estante, entre eles, o famoso O coração, de Amicis... Procurou a dedicatória de seu saudoso pai e... surpresa! Encontrou a dedicatória do pai de Plínio.

GNOMOS NA GAVETA

Misturando ficção e realidade o narrador nos conta que atravessava um período de dificuldades financeiras quando a mulher lhe deu a ideia de escrever sobre coisas esotéricas. Afirmava ela, que o povo estava cansado da dura realidade da vida e que escrever sobre gnomos poderia lhes dar um bom dinheiro. Ele afirmou que era materialista e que tudo isso era besteira, ilusão, piração. Então, a mulher insistiu: escreva contra os duendes. Nosso problema é financeiro, não importa se o livro é contra ou a favor.

Ele aceitou a sugestão da esposa e ligou para o editor, este lhe deu sinal verde... pode escrever. O título saiu fácil: NÃO ACREDITO EM GNOMOS. E DAÍ? Até adiantamento em cheque ele recebeu. Quando começou a escrever, não saía nada além do título... e o pior, um homenzinho de cinco centímetros não para de dar voltas de bicicleta ao redor de sua máquina de escrever: “...Olha para mim gozador e, com a mão direita, faz gestos obscenos... Quer me enlouquecer. Uso o aspirador.

A ÚLTIMA ENTREVISTA

Um homem sonha em ser um grande repórter, daqueles que fazem entrevistas extraordinárias e perigosas. Imagina entrevistas com marcianos, Santos Dumont, Van Gogh... Acaba entrevistando um perigoso fugitivo de penitenciária que se distrai e é preso pela polícia. Um dia, vai entrevistar um maluco que vai voar num avião até a gasolina acabar. Em terra ele pergunta: O que sente um aviador que sabe que vai morrer quando acabar a gasolina? Depois, entra no avião e decola com o suicida.

Ganhou o primeiro prêmio de reportagem do ano. Seu pai recebeu o troféu por ele. Beleza. Todo banhado a ouro.”

AH! AH! AH!

Esta crônica tece reflexões sobre o RISO. Desde o mais simples até a risada mais intensa. “O humor machadiano, por exemplo, é tão imaterial como o perfume. Exige refinamento do leitor.. Há, na outra ponta, o riso manual, obtido com os dedos através de cócegas. Com habilidade se faz até o conde Drácula dar risada. O riso pode também ser forçado artificialmente por processo mecânico, como se fazia nos circos e parques de diversão, com o antiquíssimo Disco das Gargalhadas. Criava‐se um clima postiço de alegria, com efeito mágico sobre os idiotas”. (p. 32)

Depois, o narrador passa a discorrer sobre o riso embaraçoso, aquele que não deveria ocorrer. O riso durante um velório, durante o casamento, dentro de um elevador... Por fim, a sua própria experiência: fora dar uma palestra sobre Contos. A noite chuvosa, pouca gente escutando... começou a rir da situação e de si mesmo... a plateia foi contagiada, todos começam a rir. Ao final, o prefeito lhe parabeniza:

“Volte sempre. Confesso não ter entendido muita coisa, mas nunca se riu tanto por aqui. O senhor é um show!” (p. 33)

A MISSIVISTA SUICIDA


O assunto é o ofício de cronista. O autor relembra um tempo em que produziu crônicas “melosas” para um programa de rádio, nada especial, tanto é que rasgava todas ao final do programa.

De repente, começou a receber cartas esquisitas: “Diga para o Luís voltar já para casa senão tomo veneno. Ele ouve o programa. Assinado: Julinha da Bela Vista. Letra tremida, papel umedecido de lágrimas.” (p. 39)

Emocionado, o cronista decidiu escrever uma crônica para o Luís. Liga um Luís: “... tudo bem, estou voltando pra casa”. Alívio do cronista. Liga outro Luís: “... já estou chamando um táxi para voltar aos braços da Julinha.” O cronista sente uma sensação de dever cumprido. Liga mais um Luís: “... não adianta ficar escrevendo besteiras, por mim ela pode tomar um tonel de veneno... Não estou nem aí.” O cronista fica perplexo: e agora, qual é o Luís da Julinha?

Outro momento hilário: Alguém escreveu uma carta dizendo chamar‐se Leão, que era o ser mais solitário do mundo, que ligassem pra ele. Comovido, o cronista fez o que não era normal no programa. Deu o telefone do tal Leão. Resultado, o pessoal do zoológico ligou revoltado com tantos telefonemas para falar com o leão.

2 - FLASHES DA VIDA MODERNA

ELE COMPROU TUDO QUE VAN GOGH PINTOU


Crônica divertida lembra o filme Efeito Borboleta, pois trata da volta no tempo.

Um cientista inventara uma máquina para voltar no tempo, mas não divulgara nada. Tinha uma ideia: voltar no tempo e comprar todos os quadros de Van Gogh. Depois voltaria e venderia todos ficando milionário. Começou a fazer testes. Botou uma garrafa de vinho na máquina e atrasou o relógio em um ano. Resultado: voltou um cacho de uvas; experiência 2: colocou uma galinha na máquina... quando a máquina voltou, lá estava um ovo. Pensou em se a máquina funcionava com seres humanos. Convenceu um bêbado (Gera) a entrar na geringonça e atrasou o relógio 50 anos... Gera voltou cantando marchinhas de 50 anos atrás. Deu tudo certo.

Comprou francos velhos (moeda do tempo de Van Gogh) e embarcou na máquina. Encontrou Van Gogh, pobre, desiludido, sem conseguir vender nenhum dos seus quadros. Comprou todos e ainda deu conselhos ao pintor: “Desista de pintar, moço, não nasceu para isso, em seu lugar compraria ações do novo invento, o telefone. Vai ser o maior estouro.” (p. 48)

Ao regressar ao seu tempo, o cientista colocou os quadros à venda... SURPRESA! Ninguém queria os quadros, ninguém conhecia Van Gogh... ao mexer no passado, ele apagara o famoso pintor da história. O que restara era um tal de Van Gogh que ficara rico como acionista da Companhia telefônica.

ESSA MOCIDADE DE HOJE

Reflexão irônica sobre a preocupação dos pais de antigamente e a dos pais de hoje. A crônica é datada como se fosse de 1893, o que é, evidentemente, uma estratégia do cronista para nos surpreender.

Em uma família, os pais estão preocupados. O filho está viciado em cheirar... Quando pensamos em nossos dias, vem à tona: COCAÍNA! Naquela época, o perigo era cheirar rapé, e a consequência era meramente social, já que os viciados em rapé espirravam muito. Por causa disso, o jovem perdia empregos e casamento.

O segundo filho saia no meio da madrugada e os pais, preocupados investigam. O jovem fazia serenatas para as namoradas. O terceiro viciou‐se numa tal de lanterna mágica, os pais ficam alucinados. Era apenas um brinquedo que tentava imitar a magia do cinema e que fez muito sucesso entre as crianças do final do século XIX.

E os pais preocupados dizem: “Este fim de século ameaça destruir nossos jovens.” (p. 53)

MARKETING OPORTUNISTA

Crônica que nos chama a atenção para o oportunismo de algumas pessoas. A história acontece na década de 90, tempo em que os dinossauros e os duendes estão na moda. A Xuxa até chegou a ver alguns, lembra?

O narrador se espanta pela facilidade com que o homem daquele tempo caminha pelos extremos. OU é o duende (minúsculo) ou o dinossauro (gigantesco). Um amigo pergunta se ele está escrevendo alguma coisa e ele diz que está escrevendo uma história que envolve um triângulo amoroso, o amigo não gosta:

− A ideia é velha. Meta um dinossauro carnívoro, feroz, perseguindo esses três tarados.
− Como posso fazer isso? O romance se passa nos tempos de hoje, entendeu?
− Não faz mal, ponha o dinossauro assim mesmo.

− Ora, é uma história urbana, não acontece em nenhuma floresta desconhecida.
− Melhor ainda! Já imaginou o tal dinossauro no viaduto do chá, na hora do rush, pisando nos carros, derrubando postes, engolindo marreteiros?
” (p. 57‐58)

O cronista vai para casa impressionado com o mau gosto. Comenta com a mulher esperando uma risada. Ela diz: dá dinheiro...

De noite, o cronista sonha com dinossauros. Um senador que fez propaganda no pescoço de um dinossauro, Iguanodontes andando na rua e sendo alugados... e algumas pessoas defendendo os dinossauros, preocupados com a sua extinção. De repente ele vê um enorme Tiranossauro Rex amarrado e pergunta por que o imobilizaram daquela maneira. Resposta dos defensores de dinossauros: foi imobilizado assim como marketing sensacionalista de um romance que tratava de um triângulo amoroso. Pergunta se a história fez sucesso. E a resposta é: fez, o inescrupuloso escritor ganhou milhões.

Nesse momento o escritor acorda, vai à cozinha e encontra a mulher somando as contas a pagar e diz:

− Sabe de uma coisa querida? Aquela ideia do dinossauro no viaduto é coisa de louco, sim, mas quem não é hoje em dia?” (p. 60)

3 - FIGURINHAS CARIMBADAS

A primeira figurinha carimbada é o próprio autor. Nasceu pobre, mas seu pai disse que nascera na cidade deserta (São Paulo). Devido ao seu anonimato, brinca com o recenseador, pedindo que ele apareça mais vezes. O homem do censo faz a gente lembrar quem é.

Nas primeiras décadas da vida, não fez nada e aí, por falta de tempo e cansado do esforço de não fazer nada, começou a escrever. Escreveu um romance imenso, chamado Ulisses, mas descobriu que havia um com o mesmo nome e com a mesma história. Atribui isso às coincidências. Começou a escrever sobre Paris, mas lhe deram uma ideia: fale sobre São Paulo, é mais perto e, quando chove, é só ficar olhando da janela.

Fez um filme sem sucesso nenhum, e brinca: “Se tivéssemos vendido saídas, no lugar de entradas, teria ficado rico.” (p. 78)

Fala que fez anúncios e brinca com a história de Van Gogh (pintor que cortou a orelha); O anúncio era de cola tudo, portanto fez a orelha de Van Gogh sendo colada ao contrário com os dizeres: “Agora não tem mais jeito, ruivo!”.

Na televisão também não deu certo. O primeiro livro foi um fracasso, só não desistiu por insistência da mãe. Ao acabar de escrever o vigésimo, tinha chegado ao completo anonimato.

Afirma que, atualmente, está escrevendo um livro de memórias e aconselha a que ninguém perca. Começa assim: “No mês em que nasci São Paulo estava coberta de neve.” E para que ninguém duvide, não coloquei o ano.

ADÃO FLORES, O DETETIVE

Adão é um detetive diferente. Misto de empresário de cantores e mulheres para casas noturnas e detetive, Adão tem seu escritório no próprio carro (um Corcel 69) que fica estacionado em frente a boate. Sua secretária (Maralice) trabalha no banco traseiro, com uma máquina de escrever sobre as pernas.

Resolvera ser detetive quando um pai aflito lhe pedira que localizasse suas duas filhas gêmeas, loiríssimas, que sonhavam em cantar em dupla. Ele as havia contratado, pintava elas com a cor negra e as apresentava como “as irmãs fulô”. Quando a plateia cansava, retornava‐lhes a cor original e elas cantavam como uma dupla de loiras. Também tivera um caso com uma delas antes de se pintarem e com a outra depois de pintada. Os pais choram com a apresentação das filhas.

Adão Flores era gordo (120 quilos, a maior parte na barriga) e Maralice, sua secretária, magra (45 quilos). Um dia um homem lhe procurou para encontrar um cantor que lhe dera um cano. Adão conhecia todos. Era um tal de Ramon Diaz.. Adão o prendeu, mas antes lhe pediu que cantasse o famoso bolero Sabra Dios.

GENTE QUE VAI À FEIRA


O autor começa narrando a mistura de personagens que frequentam às feiras populares. O rico, o pobre, e, às vezes, até mesmo gente famosa. Ele não gosta de feira, lembra do tempo de criança, quando era obrigado a carregar as compras. Sua esposa adora. Um dia uma menina gorducha lhe pediu um autógrafo. Ficou todo feliz, havia acabado de publicar um livro e era bom ser reconhecido. Juntou gente, e ele cada vez mais feliz... até que uma senhora da fila perguntou: quem é? E a outra informou:

“− Não conhece? É o doutor Lilico da novela das 7, o pai da moça... Vai deixar que eles se casem no final? Conte pra gente, conte.” (p. 91)

PROCURANDO TELMA TERNURA

Um jovem repórter está procurando um assunto que emocione os leitores. Lá está, nos arquivos: Telma ternura, a ex‐rainha do sexo em São Paulo, a mãe do espetáculo pornô, sumira. Ninguém sabia do seu paradeiro. Ninguém sabia nem do seu verdadeiro nome. Procurou em todos os lugares e... NADA. Um dia ligaram para a redação e deram o endereço.

Encontrou uma velhinha magra (40 quilos), ela não dava entrevistas sem receber um bom dinheiro. Desesperado para não perder o furo de reportagem, ele vendeu a eletrola, o casaco, obras de Eça de Queirós.. até um papagaio. Pagou e a velhinha começou a entrevista. Não tinha nenhuma vergonha, contava tudo, figurões e famosos com quem tivera casos... tudo. O repórter pediu uma foto e ela provocou: com roupa ou sem roupa?

Terminada a entrevista, o repórter corre para o jornal, está bem feliz e ansioso. Quando mostra o trabalho ao editor, este começa a rir e informa: Telma morreu há 20 anos. Alguém te enganou. Ele corre atrás da velhinha que o enganara, mas, chegando lá, não encontra ninguém, ela já se mudara. Informam que a velha era uma grande inventora de histórias e que gostava de se passar por uma ex‐atriz: Greta Garbo.

Envergonhado, ele sabe que todos ali já sabem que caíra nas mentiras da velhinha.

OS FURTOS DO FURTADO

Furtado era um home sério, respeitado, sempre bem vestido. Todos o achavam careta. Mas o cronista o conhecia desde a infância. Um fino ladrão era isso que o Furtado era.

Estava sempre de olho nos pertences alheios. Jogava o boné e, junto já vinha o compasso. O cronista avisava: Furtado, devolva, eu vi você roubar. E ele corrigia: Roubo é quando se usa violência. Eu apenas furto.

Quando o autor ameaçava denunciar à professora ele dizia: Não faça isso que eu devolvo. Mas não era o compasso que queria devolver, já era a caixa de lápis de cor do denunciante que ele roubara e que devolveria em troca de seu silêncio.

Cresceu dessa maneira, sempre com modos finos e sempre roubando. Já adulto, não resistia ao desejo de contar ao amigo de infância seus furtos. Na feira, no supermercado, nas livrarias... e ainda pedia: Cuidado! Não vá um dia falar de mim em sua crônica.

Fonte:
Algo Sobre

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sammis Reachers (o Incrível Hulk)


O motorista era um colosso de massa, e seu apelido fazia jus à sua musculatura: Hulk. A empresa, a Mauá.

Vamos conhecer um episódio ocorrido com nosso descontrolado companheiro Hulk.

Certo dia, no meio dos trabalhos, circulando pelo trânsito apertado e estressante de São Gonçalo, Hulk percebeu que a temperatura do motor estava muito elevada. Temendo “belgar o carro” (sujeitar o veículo à quebra), nosso amigo resolve levar a viatura para a garagem. Lá chegando, e depois de estacionar o veículo no pátio, depara-se com nada mais nada menos que o dono da empresa, o Sr. Domênico, que por sinal não estava num bom dia. Mas, até aí tudo bem. O velho que cuidasse dos próprios problemas; Hulk já tinha os seus.

Ao ver o motorista descer do veículo e se dirigir tranquilamente para a área de repouso e espera dos motoristas, Domênico o interpelou:

- Mas que houve aí, rapaz?

Hulk respondeu:

- A temperatura está alta, o radiador periga de ferver. Trouxe o carro pra oficina.

O velho, estressado, diz:

- Mas ora! Este carro é novo! Está bom! Como você diz que está a ferver? Sabe quanto custa um carro desses? Você não quer é trabalhar...

O nosso amigo Hulk, já estressado do dia, acabou de explodir com essa. Apanhou o velho pelo braço, arrastou-o pelo pátio e, levantando-o quase como a uma criança, simplesmente jogou o velho escada acima, praticamente empurrando-o por sobre o capô, e apontando, com seu braço imenso;

- Pois olhe ali, senhor! 170 graus de temperatura! Acha que estou aqui de brincadeira?!!!!

Domênico, que já estava branco de susto e com o bracinho ainda sendo esmagado pela forte manopla de Hulk, só conseguiu gaguejar, bem baixinho:

- Vo-vo-você está ce-certo, meu filho. Fe-fez muito, mu-muito bem em trazer o carro...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) V

AMANHÃ


O amanhã que nos parece distante
poderá não ser o quanto parece,
palco onde o sonho fulge exuberante
e à luz do agora a saudade floresce.

De raro esplendor, sereno e brilhante,
farto celeiro, o passado enaltece,
pingos de orvalho em noite fulgurante
sombra vibrante, o luar incandesce.

Ancoradouro, de paz transbordante,
onde a jornada jamais recrudesce
eterna prece mesmo itinerante.

Ninguém aos brados em dor esmorece
olhar ereto pro céu palpitante,
num gesto de fé um ser agradece.
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EU TE QUERO I

Eu te quero meu Brasil na humildade
de um filho que procura te seguir,
deixando sulcos de brasilidade
que à posteridade hão de convergir.

Eu te quero meu Brasil, na verdade,
longe da guerra que faz destruir,
onde todos vivam a liberdade
sem maldade que leve a regredir.

Porém, não basta somente querer,
ver tudo mudado no meu redor,
se não começar com o meu viver.

Algo de bom poderei produzir
para tornar este Brasil melhor
e então dos outros também exigir.
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EU TE QUERO II

Eu te quero meu Brasil rico e forte,
sem fronteiras pra tua produção,
invencível desde o sul até o norte
longe da morte, fruto da omissão.

Eu te quero meu Brasil soberano
sendo altivo na determinação,
e a cada gesto ímprobo, rude, insano,
responda com briosa educação.

Nem sempre aquilo que me satisfaz
tem a marca ou selo de qualidade
à mostra no frasco chamado paz.

Plantando no presente sem vaidade
sigo em frente sem olhar para trás,
pois quem busca refaz a sociedade.
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EU TE QUERO III

Eu te quero meu Brasil atuante
e distante da dor quero te ver,
o teu verde amarelo cintilante,
seja preponderante em cada ser.

Eu te quero meu Brasil transbordante
dessa força que a todos contagia,
e o branco anil deste céu tão brilhante
seja constante de noite e de dia.

Tudo quanto posso desenvolver
cabe a mim com prudência discernir
e assim teu nome sempre promover.

Passos largos e um caminho a seguir,
das tempestades nunca me esconder
para então juntos poder prosseguir.
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HERÓIS DO PASSADO

São relevantes os dons revelados
por requintadas personalidades,
doces frutos com ternura velados
no celeiro das perenes vontades.

Grandes talentos serão recordados
à sombra de atrozes adversidades,
vendo seus filhos heróis coroados
orgulho de muitas comunidades.

Com passos firmes e consolidados
foram audazes nas contrariedades
buscando a força nos seus aliados.

Enfrentando as vulnerabilidades,
testemunharam avanços galgados
nos palcos da vida, eternas verdades.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Humberto de Campos (A Cornucópia)

O Gabrielzinho havia regressado da rua intrigadíssimo com aquela novidade. Por que motivo, realmente, a prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um chifre repleto de moedas, que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos lábios? Que significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via a Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça irrequieta dos homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado, ao chegar em casa, foi perguntar ao velho Gabriel:

- Papai, por que é que a Fortuna é representada, sempre, com um chifre na mão?

O honrado comerciante coçou a calva, atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da dificuldade, insistindo:

- Responde, Gabriel! Você não tem lá dentro um livrinho que trata dessas coisas? Essa figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida, veja o livro.

- É verdade! - exclamou o velho. - Aquele livro deve dar.

E, indo buscar um volume, pequeno, miúdo, edição popular, do "Dicionário da Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu, alto, à pag. 165:

- "FORTUNA -, deusa que preside ao bem e ao mal."

- Não é aqui. - acrescentou.

Folheou para trás, e tornou a ler, à pag. 4:

- "ABUNDÂNCIA - divindade alegórica que se representa na figura de uma donzela no meio de todo o gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e tendo na mão um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da cabra Amaltéa."

Folheou para a frente, e continuou, à pagina 31:

- "AMALTÉA - É o nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em reconhecimento deste bom serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no céu, e deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua infância, com a virtude de produzir quanto elas apetecessem. Chamava-se-lhe o "Corno da Abundância".

Terminada a leitura, D. Lavínia observou, teimosa:

- Então, é ou não é?

- O que? - indagaram, ao mesmo tempo, o pai e o filho.

- O chifre, nas mãos de uma mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?

Os dois calaram-se, e D. Lavínia continuou, ingênua, na sua honestidade:

- Eu, que digo, é porque sei.

E, simples, boa, cândida na sua virtude, recomeçando o seu "crochet":

- Eu estou cansada de dizer a teu pai...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

domingo, 18 de abril de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 39) Fogo pelos cotovelos

O DOUTOR AUGUSTO MATRACA, renomado professor e advogado criminalista foi convidado pelo reitor de uma importante faculdade do interior de São Paulo, ou mais precisamente da Faculdade de Direito de Itu, para dar uma aula show sobre direito penal e falar de seus esboços para serem inseridos na reformulação do Novo Código Penal, caso fosse chamado, para fazer parte de uma comissão que futuramente viesse cuidar da reforma geral que permitisse, sobretudo, uma nova sistematização mais séria e objetiva no texto atualmente em vigor.

O brilhante causídico foi. Deu uma aula espetacular, que encantou a todos os que se formariam no final do ano. Para fechar seu discurso com chave de ouro, resolveu definir o direito penal com um de seus brilhantes pensamentos, aliás, um que estava no introito de seu livro mais recente:

— O Direito Penal, meus caros e futuros doutores, é um mundo imenso de relações sociais que se interligam harmoniosamente e, dentro do qual, o homem de bem vive a sua vida inteira, sem transgredir as sanções de qualquer um de seus artigos ali existentes.

Em seguida, pediu a um aluno que se especializara na área criminal que subisse ao palco e transmitisse também a sua abalização do que, para ele, seria o direito penal como um todo. O aluno em questão, não tendo tempo de pensar em alguma coisa concreta para falar aos seus colegas e, claro, o mais importante, para não fazer feio e dar mancada diante do catedrático da matéria na qual ele se especializara, mandou a primeira ideia que lhe veio à cabeça:

— O Direito Penal... — Começou ele — O Direito Penal nada mais é que um quadrado hermeticamente fechado, tipo um circulo redondamente triangular, com um amontoado de normas insculpidas. Entretanto, estas normas são completamente desconhecidas para o cidadão comum (não para nós, que daqui para frente lidaremos cotidianamente com seus mais intrincados artigos).

E terminou, assim.

— A nós, cultivadores do Direito Penal, deveremos saber dimensionar tudo de bom, onde nossos futuros clientes depositarão aquele pedaço do bolo alimentar que estiver entalado em suas gargantas e resolverem descarregar. Eles descarregando, nós os limparemos de suas dores de barrigas.

O doutor Augusto Matraca se levantou de sua cadeira, furioso, soltando fogo pelas ventas, prestes a explodir. Derrubou a cadeira onde estava sentado. Os demais professores e diretores estranharam o seu gesto. O sujeito, todavia, não se conteve. Estava deveras transtornado. Em sua raiva fuzilou o aluno com os olhos, como se lhe despisse das roupas.

— Com todo respeito, futuro colega. Me perdoe a interrupção. Rogo também que me desculpem os excelentes mestres que aqui estão, os alunos formandos que ouviram a minha palestra e, claro, o público em geral que, igualmente, me prestigiou. Voltando ao que disse o brilhante aluno aqui, ao meu lado, devo esclarecer o seguinte:

— O Direito Penal pode até ser um círculo de um, ou com um amontoado de novas normas desconhecidas. Todavia, veja bem... Eu disse todavia, com todo respeito e vênia, jamais será um círculo onde o homem comum, simplesmente chegará e obrará. Pelo amor de Deus, com suas palavras estou me sentindo impotente. Talvez, não sei, somos como duas ervilhas perdidas no interior de uma vagem...

Tomou fôlego, se serviu de um gole do copo de água:

—... No final, eu irei para um lado e o prezado, para o outro e a vagem, tomará possivelmente, um outro direcionamento. Pois bem: concluindo, em cima do que o senhor disse ai, lhe asseguro que nada tem em comum com o Direito Penal. Nada. Onde o homem descarrega, meu caro e futuro advogado, é no reservado, ou seja, num banheiro hermeticamente fechado, não de um, ou por um círculo redondamente triangular com um amontoado de normas insculpidas.

E concluiu, sem perder a vermelhidão que lhe tomara conta do rosto:

— Neste particular, o senhor deverá ter em mente, não as normas do Direito Penal, apenas uma privada com um vaso obeso, que lhe fará as honras ao traseiro, para expelir o seu bolo alimentar. Consequentemente tendo às suas costas, uma cordinha de nylon para puxar a descarga e permitindo que a porção alimentar saia de suas entranhas, se esvaia pelos encanamentos esgotais.

Dita estas palavras, o sisudo doutor Augusto Matraca fechou a sua matraca. Não só ela. A cara também. Pediu licença ao imenso auditório e ao corpo de professores e saiu de cena sumindo para a sala reservada onde se reuniam todos os docentes que ali naquele estabelecimento de ensino lecionavam.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021.
Texto enviado pelo autor.

sábado, 17 de abril de 2021

Adega de Versos 13: A. A. de Assis

 


Célio Simões (O Estranho Casal do Sofá)

Dentre os muitos endereços que tive em Belém ainda na fase áurea da solteirice, um deles muito me marcou pelas boas lembranças e grandes amizades que fiz, durante os anos de 1973 a 1975 em que lá morei. Falo da CEUP - Casa do Estudante Universitário do Pará, antigo feudo da tradicional família Lobato e desde 26.05.1957 quando foi fundada, acolhedor albergue de estudantes vindos do interior do Pará ou de outros estados, principalmente Amazonas, Maranhão, Piauí e Goiás, que não tinham família em Belém.

Quando lá ingressei, por especial convite do saudoso amigo e presidente à época José Gumercindo Rebelo (que tão precocemente nos deixou), a entrada principal do casarão de dois andares, de belíssima e clássica arquitetura, era pela Av. 16 de Novembro, tendo um enorme terreno vazio aos fundos, tão extenso que chegava até à Tv. São Francisco.

Nesse vasto espaço depois foi erguido um segundo prédio de três andares, depois dele uma quadra de esportes, ambos fazendo frente para a Tv. São Francisco, naquele tempo uma rua de terra esburacada, contendo no trecho que vai da Av. Almirante Tamandaré até a Rua Veiga Cabral muitas áreas sem qualquer edificação, cheias de mato, com solo alagadiço que submergiam no período chuvoso de Belém entre Fevereiro e Abril, hoje totalmente urbanizado, com mansões, edifícios residenciais de luxo e asfalto de primeira qualidade.

Éramos mais de setenta estudantes e para não dizer que inexistiam mulheres naquele grupo heterogêneo, eram elas representadas pelas bondosas Paula e Jacira, incumbidas dos serviços de limpeza, lavagem da roupa e do preparo dos alimentos, que elas davam conta com a prestimosa ajuda do Edir, responsável pela manutenção e eventuais reparos nas instalações da casa.

Além dos quartos onde moravam os estudantes, a CEUP dispunha de outros espaços comuns como a sala de estudos, a sala de TV e o refeitório, onde a cada dia era servido bem cedo o desjejum, um prosaico café com leite e pão careca, o suficiente para impedir que saíssemos com o estômago roncando rumo à UFPa, única instituição de ensino superior pública existente. Também no refeitório era servido o almoço, um composto de picadinho de carne bovina misturado com arroz quebradiço, encimado por um invariável ovo de galinha cozido colocado, que pela aparência ganhou da turma o mimoso apelido de “Ninho de Japiim”. Não havia jantar e o pessoal se defendia da broca nas lanchonetes próximas.

Para manter tudo funcionando, havia uma Diretoria muito atuante, tendo o Gumercindo como presidente e o Antônio “Padre” como seu vice e braço direito na gestão administrava, fazendo sabe Deus como render os escassos recursos oriundos de convênios firmados com instituições públicas, a principal delas a própria UFPa, renda essa complementada pela módica taxa mensal que era cobrada dos moradores. Quando a situação apertava, o que não era raro, promovíamos na quadra esportiva animadas festas dançantes com entrada paga, que faziam o regalo dos jovens do Bairro do Jurunas, que ali encontravam ambiente mais concessório capaz de burlar os rígidos padrões de conduta daqueles bons tempos, desde que, naturalmente, a coisa não descambasse para atitudes mais ousadas, principalmente quando corriam soltos e generosos a cerveja e o rum e afloravam indômitos os instintos reprimidos pela moral e os bons costumes, na busca ávida dos caminhos de Eros.

Quando de lá me retirei em 20 de Dezembro de 1975 diretamente para o altar da Igreja da Trindade onde casei, a entrada principal continuava sendo pela Av. 16 de Novembro, vizinha ao convento dos religiosos franciscanos, onde residia meu antigo e estimado professor Frei Prudêncio Kalinowski, incumbido da capelania do Presídio São José, na Praça Amazonas, transformado anos depois no Polo Joalheiro, um dos pontos mais visitados pelos turistas que demandam Belém. O portão da Tv. São Francisco era pouco utilizado, dadas as sofríveis condições da via, com parca iluminação noturna, porém utilizada por mim com frequência por dois motivos: meu quarto era no térreo do prédio novo, portanto, mais próximo de ser alcançado por lá, além do que, eu e Orlando Santos éramos os únicos universitários que tínhamos carro e eles ficavam estacionados à noite num terreno baldio e elevado situado em frente ao dito portão, para fugir aos alagamentos comuns no inverno.

Aquela casa regurgitava de vida, de esperança, de sonhos, com perspectivas de ascensão social e profissional daquela juventude na flor da idade, objetivos comuns que amenizavam as eventuais divergências surgidas no relacionamento diário entre seres de origem distintas, afeitos porém à sadia camaradagem nos momentos de lazer, principalmente nas ferrenhas disputas de futebol de salão com os times da vizinhança ou nos amistosos da tarde entre os próprios moradores, onde quase ninguém brigava.

Dali saíram para a vida personalidades que brilharam em suas atividades como médicos, engenheiros, advogados, executivos, políticos, professores, artistas, enfim, gente forjada na luta dura e honesta, porquanto ali nenhum havia nascido em berço de ouro. Sobre a bem-amada CEUP ter a fama de mal assombrada, como em outra oportunidade já tive oportunidade de escrever, me ocorreu contar aqui, 45 anos depois da minha saída de lá, um fato que realmente me deixou intrigado.

As noites das sextas-feiras eram para os estudantes uma espécie de libertação de tudo o que ficara contido durante a semana. Não tínhamos nem aula nem trabalho aos sábados e assim era possível avançar sem peias nas festas e confraternizações da cidade, como convidados ou furões, principalmente se a mesa fosse farta, quando podíamos tirar a barriga da miséria. O cardápio generoso e gratuito dos aniversários e bodas era a nossa suprema e gloriosa vingança contra o insípido “Ninho de Japiim”. Pois foi numa madrugada de sábado que tudo aconteceu, depois de um fantástico arrasta-pé na Cidade Velha, quando lá para as duas da madrugada decidi voltar, alma refeita dos prazeres mundanos que os vinte e cinco anos nos propicia.

Estacionei o Fusca no local de sempre e driblando as crateras da rua e a escuridão empurrei o portão e caminhei tranquilo para o interior do prédio, atravessando todo o espaço que correspondia à quadra de esportes, até chegar no pátio interno situado antes dos quartos, oportunidade em que avistei o casal refestelado no estropiado sofá que alguém colocou ali para dar ao local um aspecto de sala de visita, onde eram recebidos amigos e parentes dos moradores.

Em silêncio cheguei bem próximo deles e notei que estavam dormindo meio abraçados. Fiquei ali parado imaginando como eles tinham conseguido entrar, pois as regras de acesso eram rígidas a estranhos, justamente para preservar a segurança e evitar que aos cômodos tivessem acesso gente desconhecida ou de conduta duvidosa. Já passava um pouco das duas da madrugada quando de repente ele despertou, olhando-me com expressão de espanto. Procurando acalmá-lo, indaguei quem os autorizara a entrar e utilizar o sofá como cama. Respondeu-me o rapaz, um tipo magro, pele clara, barba por fazer, falando um portunhol que viabilizou em parte o entendimento. Mencionou a palavra “padre” e aí eu fiquei sem saber se a licença partira do Antônio “Padre” (nosso vice-presidente) ou se o seráfico Frei Prudêncio, vizinho de parede, resolvera de repente mandar gente estranha dormir na casa dos outros...

Com a conversa em voz alta, a moça acordou também. Bela e diáfana, cabelos alourados cor de violão velho, tinha aquele olhar lânguido de cabra morta e trajava uma saia de tecido indiano enrugado parecendo que havia saído do bico de um bule, aspecto em tudo comparável ao de “Jenny”, a namorada hippie de Forrest Gump, personagens do filme americano rodado em 1994, verdadeiro sucesso de bilheteria. Foi dela que partiu, também em portunhol, a informação de que “estavam viajando pela América”, o que me deixou ainda mais cabreiro, pois não vislumbrei nenhuma bagagem por perto, nem mesmo uma singela mochila, apetrecho inseparável dos andarilhos.

Desconfiado, pensei em chamar alguém da Diretoria, mas mudei de ideia e num gesto amistoso e humanitário, lhes ofereci o meu quarto, guarnecido apenas com a cama, uma pequena mesa de estudo e a mala com documentos e pertences pessoais, que eu mantinha no cadeado. Disse-lhes que o aposento, embora modesto, seria um pouco mais adequado para dormir do que aquele sofá roto e já com as molas de fora, mas eles recusaram, dizendo que iriam embora de manhã bem cedo. Mesmo entretido na conversa, notei que pelo portão da São Francisco entrou o Edir quase corendo, fugindo da chuva persistente que começara a cair; quando passou por nós, fez um gesto vago e disse algo como se indagando alguma coisa. Enveredou no rumo do prédio antigo, xingando o aguaceiro com todas as objurgatórias que deve ter aprendido nas suas andanças pelo Ver-O-Peso.

Continuamos a conversa. Ratifiquei a oferta do quarto e em face de nova recusa, pedi licença, fui lá dentro, peguei meia folha de papel almaço e escrevi o seguinte bilhete: “Jacira, entrega o meu café da manhã ao casal portador deste bilhete. Eles dormiram no sofá do prédio novo e devem estar com fome. Amanhã no almoço eu falo contigo. Muito obrigado”.

Voltei na mesma pisada e entreguei-lhes o papel, explicando do que se tratava e indicando o caminho para o refeitório. Sem qualquer emoção pela suposta nobreza do gesto, o jovem depois de cuidadosamente dobrá-lo o guardou no bolso, quando novamente o Edir passou por nós, dizendo em voz alta que esquecera de fechar o cadeado do portão. Ato contínuo sumiu na escuridão, regressando logo depois quando, dirigindo-se a mim, falou algo que dessa vez ouvi muito bem, ao mesmo tempo em que rodava o indicador em torno da têmpora, no clássico gesto que simboliza que alguém está ficando "gira": - Tu vai ficar falando só a noite inteira? E foi embora pela tétrica alameda de acesso ao sobrado.

Eu também já estava cansado e por isso resolvi encerrar aquele papo furado com aquela dupla. Dando boa noite ao moço, estendi a mão para apertar a dele e ao tocar a sua pele gelada e úmida igual sapinho do pote, senti os ossos estalando sem qualquer consistência e a custo consegui disfarçar a súbita repugnância que experimentei. Aproximando-me da sua companheira, dei-lhe um educado e universal beijo de despedida e levei novo susto. Foi encostar o meu rosto no dela e minha incipiente barba arrepiou todinha, dando-me a recorrente sensação que sentimos quando aproximamos o braço de um televisor recém-desligado e os pelos ficam eriçados pela energia estática dos elétrons ainda não completamente dissipados. Depois disso fui me deitar em busca do sono reparador, porém pensando com meus botões:

– Arre égua, essa mulher dá choque parece poraquê do Laguinho...

Dia seguinte, à hora do almoço, encontrei a Jacira na azáfama de sempre. Com seu jeito de índia caiapó, me fitou com seus olhos orientais quase sumidos no rosto largo e risonho, perguntando se já podia servir o meu almoço. Antes da resposta, resolvi matar a curiosidade:

– E o casal do bilhete, tomou hoje o café da manhã?

– Que casal?

– Um casal de gringos, para quem eu doei meu café com pão.

– Por aqui não apareceram... limitou-se a dizer, quase monossilábica.

Nisso entrou o Edir no refeitório, cumprimentou todo mundo e me olhando de esguelha, falou com jeito gozador:

– Agora tu deu pra falar sozinho?

– Como é que é? Ficou doido cara?

– Eu doido? Quando cheguei ontem de madrugada, passei por ti fugindo da chuva e te vi conversando animado com o sofá. Voltei depois pra fechar o portão e novamente tu falavas sozinho. Quando retornei de vez pra dormir tu tava ensaiando dar um beijo no vento e depois disso tudo o doido sou eu? E caiu na gargalhada...

Ficou claro para mim que, por alguma razão, só eu vira o romântico par com quem conversei. Perdendo por completo a fome retornei ao quarto, reconstituindo de memória os fatos, tentando entender todo aquele imbróglio protagonizado pelo estranho e misterioso casal. Parei em frente ao velho sofá e o que vi me convenceu que algo inusitado acontecera naquela chuvosa madrugada. No lugar onde sentara a moça, restava abandonado o mesmo bilhete que escrevi para a Jacira e que na minha frente foi dobrado com esmero e colocado no bolso da surrada calça jeans usada por aquela esquisita criatura.

Fonte:
Obidos

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 2 –

Após fazermos amor,
nos meus braços adormece,
e eu, com bastante fervor,
beijo-a e lhe faço uma prece.
= = = = = = = = = = =

As lágrimas que derramo,
quando me encontro ao seu lado,
são, meu Amor, porque lhe amo
muito além do desejado
= = = = = = = = = = =

Às vezes eu sinto um tédio,
meu coração quer falhar.
O meu único remédio
é você,  seu lindo olhar!
= = = = = = = = = = =

É mentira quando falo
que mais feliz estou eu.
E na mentira me embalo
depois que ela me esqueceu.
= = = = = = = = = = =

É triste ficar distante
de você, ó minha amada.
Vejo em tudo o seu semblante;
sem você não valho nada!
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Eu sinto que estou amando.
Adeus maldita desgraça,
o seu fim está chegando,
o amor agora me abraça.
= = = = = = = = = = =

Eu sinto que estou amando
como nunca amei alguém.
Parece que estou sonhando,
pois esse amor me faz bem.
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Eu sinto que estou amando,
– desta vez é de verdade –
e aos poucos me abandonando
a tal infelicidade.
= = = = = = = = = = =

Eu sinto que estou amando
e este amor é tão perfeito,
que aos poucos vai ocupando
mais espaço no meu peito.
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Fiz dela minha rainha,
tornando-me escravo seu,
Mas hoje, linda andorinha,
sei que ela já me esqueceu.
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Hoje quem sofre sou eu,
e sofrer me desconforta.
Sei que ela já me esqueceu
e por isso a quero morta.
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Mate-me em sua memória,
convença-se que morri.
Não deixemos para história,
os versos que lhe escrevi.
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Neste peito, um coração
que muitos chamam de pedra,
se debate com unção:
é o amor que nele medra.
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Ninguém nunca vai a amar
nem igual nem melhor que eu.
Tristonho chorei um mar
depois que ela me esqueceu.
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Nosso amor... Os nossos medos...
Nossas novas esperanças...
Nossas mãos... Os nossos dedos...
Nossas vidas... Alianças...
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Olha-me com tanta pena,
que chego a pensar... Confesso.
O seu olhar me envenena...
Não me olhe assim, eu lhe peço.
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Penso, às vezes, que sou louco,
me entregar dessa maneira.
Pra você pode ser pouco,
ou uma grande besteira.
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Perdoe-me, mas tenho pressa:
você se casa comigo?
Sabe que lhe amo, confessa!
Dar-lhe-ei amor e abrigo.
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Quando a vejo não disfarço,
sua beleza me encanta.
Diz-me, Senhor, o que faço
pra conquistar essa santa?
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Quando você põe em mim,
esses olhos cor de mel
e esses lábios de carmim,
eu deliro, vou-me ao céu.
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Sei que ela já me esqueceu
e que rasgou cada poema
que lhe fiz. Amá-la é meu,
entre outros, maior problema.
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Sei que ela já me esqueceu,
mas a amo. Isso me aborrece.
Lhe escrevi, não respondeu,
finge que não me conhece
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Tornei-me um senhor ateu.
O meu ego ficou ferido,
depois que ela me esqueceu
por um amor proibido.
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Trago solto aqui no peito
batendo descompassado
este coração, sujeito
misterioso e apaixonado.
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Trago solto aqui no peito,
na mais penosa mazela,
o coração, que assim feito
eu, vive a chorar por ela.
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Trago solto aqui no peito,
se contorcendo de dor,
grande, débil e imperfeito,
um coração sofredor.
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Trago solto aqui no peito
um coração melancólico
que diz assim, deste jeito,
“ah! Deus nunca foi católico”.
= = = = = = = = = = =

Um dia ela foi a minha
companheira e eu fui o seu.
Só fui ver que era mesquinha
depois que ela me esqueceu.
= = = = = = = = = = =

Vejo-me em pleno abandono,
faminto e jogado ao léu,
feito um cachorro sem dono,
e uma estrela, só, no céu.
= = = = = = = = = = =

Você não sabe do que
eu sofro quando estou só,
e nem mesmo do porquê
qual me faz me sentir pó.
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Você quer ver-me em ruína,
quer ver a minha desgraça.
Mas eu não tenho essa sina,
e vou vivendo com graça.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

Marcelo Spalding (Dica de Escrita) 6 clichês a serem evitados no texto


O clichê é uma forma gasta pelo excesso de uso ao longo do tempo. O conceito é muito produtivo porque é a antítese da criatividade, ou seja, quanto mais um texto for repleto de clichês, menos criativo e menos marcante para o leitor ele será. Ainda que, por vezes, se torne um sucesso comercial, já que muitos buscam apenas entretenimento.

Para o escritor de literatura, o cuidado com o clichê deve ser constante, pois ele pode surgir de diversas formas no texto. Lembrando, é claro, que o escritor criativo muitas vezes utiliza o clichê no seu texto para torná-lo cômico, para marcar a fala de um personagem ou até para tornar o texto mais próximo de um determinado público. Este uso, porém, deve ser intencional e consciente, pois o escritor assumirá também os riscos inerentes ao clichê.

Confira os seis clichês mais comuns da literatura:

1) Clichê na estrutura narrativa

Nada pior do que uma história que mal começa e nós sabemos como vai terminar. É aquela história de que o mordomo sempre é o culpado ou de que a mocinha pobre sempre vai acabar ficando com o galã rico e solitário na novela das seis.

Quando se escreve com o objetivo de emocionar o leitor, surpreendê-lo, é muito importante fugir dos clichês narrativos, já tão desgastados pelo uso. E tenha cuidado redobrado com o final clichê: dá vontade de chorar quando um ótimo conto de suspense no final o narrador revela que tudo aquilo não passava de um sonho…

2) Clichê no início do texto


Começar um texto é extremamente difícil, e talvez por isso haja alguns começos repetidos à exaustão. O personagem acordar é um dos maiores clichês, especialmente se for cedo e ele for acordado por um despertador. Outro clichê é começar pelo clima: "era uma noite escura e fria"... Lembre-se: o leitor começa a ler seu texto porque você o divulgou bem e tem um bom título, mas ele não continua a ler se o começo for ruim.

3) Metáforas e construções clichês

Aqui estão os clichês mais engraçados e repetidos. "Coração partido", por exemplo. A metáfora até é bonita e razoavelmente precisa, mas de tanto ser usada tornou-se um belo exemplo de clichê. Assim também expressões como "chorou copiosamente", "azul da cor do mar", "linda de morrer"...

4) Cenas clichês


Há algumas cenas que já se tornaram clichês nas narrativas contemporâneas. A maior delas é fumar depois do sexo. Ou o personagem chorar (embora o choro seja importante, não precisa ter alguém chorando em todas as histórias do mundo!). Outra cena que se repete muito é o personagem olhar para alguma fotografia e lembrar de algo. Ou o personagem ir até a janela. Parece que quando o autor não sabe o que fazer com o personagem, leva-o para a janela…

Claro que é nossa experiência de leitura que irá determinar o que soa mais ou menos clichê para nós. Procure, porém, evitar o óbvio, especialmente o péssimo hábito que hoje muitos autores têm de repetir fórmulas consagradas no cinema blockbuster ou nas novelas de televisão.

5) Clichês nos diálogos

O diálogo precisa ser suficiente e necessário para se justificar, então nada de diálogos do tipo "Oi", "Oi", "Tudo bem?", "Tudo", "Calor hoje, né?", "É". O narrador só deve abrir espaço para as personagens quando a fala delas for essencial. A não ser, é claro, que esses clichês ditos pelas personagens sejam importantes para a narrativa, demonstrem, por exemplo, a insegurança dos dois.

6) Clichês na pontuação


Há dois sinais que são muito importantes, mas não devem ser usados com exagero sob pena de descambarem para o clichê. Trata-se da exclamação e das reticências. A rigor, quase todas as frases em literatura têm algo além do que está escrito, então não precisa terminar todas as frases com três pontinhos! Quanto à exclamação, que acabei de usar, guarde-o para momentos em que a personagem realmente esteja dando ênfase, e não a cada frase afirmativa, pois isso faz com que perca a força quando utilizado.

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) A primeira revista de Maringá


“A redação era a casa de cada um de nós”

Criador da primeira revista de Maringá, Antonio Augusto Assis, viveu os entraves do início dos impressos do interior. Mais conhecido por assinar seus textos como A. A. de Assis, o professor aposentado pelo departamento de Letras da UEM (Universidade Estadual de Maringá), jornalista e escritor por paixão, Antonio Augusto de Assis, idealizou a Maringá Ilustrada, primeira revista de Maringá.

Nasceu em São Fidélis, interior do Rio de Janeiro, 285 km da capital carioca. Migrou em direção ao Sul ainda jovem, passando, primeiro, por Bauru (SP) e só em janeiro de 1955 Assis mudou-se para Maringá. Seu primeiro contato com o jornalismo foi aos 16 anos, quando escreveu um artigo para o jornal O Fidelense. Ele já passou por diversos periódicos maringaenses, entre os quais A Hora, O Jornal de Maringá, A Tribuna de Maringá, A Folha do Norte do Paraná e na primeira revista, a Maringá Ilustrada, que depois se chamou Norte do Paraná. Também trabalhou na Rádio Cultura.

Assis conversou com a equipe do jornal Matéria Prima. Contou como foi fazer a primeira revista de Maringá e as “aventuras” de noticiar os fatos da cidade e do interior do Paraná.

Confira abaixo:

1) A Maringá Ilustrada foi uma revista comemorativa. Como surgiu a ideia de fazer o que viria a ser a primeira revista da cidade?

- Aristeu Brandespim era um colega e contador de Maringá e resolveu me chamar para criar a revista. Ele era sonhador e quis fazer a revista para comemorar os dez anos de Maringá. Convidou a mim e Ary de Lima, a primeira safra do jornalismo da cidade. Primeiro, Aristeu começou a vender anúncios, para garantir que a publicação fosse para as ruas. E a gráfica era em São Paulo, porque aqui não tinha. Enquanto ele vendia publicidade, a gente [Assis e Ary de Lima] escrevia a história dos primeiros dez anos de Maringá, registrando a vida dos pioneiros que fundaram o município. Posso dizer que fizemos o primeiro registro histórico da cidade.

2) E a cidade tinha potencial jornalístico nessa época?


- A cidade tinha cerca de 30 mil habitantes. Não tinha potencial. Ela tinha mais peito do que potencial. As pessoas que vieram, arriscavam tudo para fazer de Maringá uma boa cidade para se viver. Na revista a gente se reservou a escrever mais a história do que realmente notícias, porque aqui não acontecia muita coisa. Eu ajudei a publicar, no que pode se chamar a primeira grande notícia de impacto da cidade. Foi a queda de um dos aviões da Esquadrilha da Fumaça, no aniversário de Maringá, que bateu num mastro do centro da cidade e caiu na caixa d’água da estação ferroviária. Eu e o Taborianski [Edgar Taborianski, fotógrafo da revista] estávamos lá e publicamos a foto dos destroços do avião, um grande furo jornalístico.

3) Depois do sucesso da Maringá Ilustrada, Aristeu Brandespim e o senhor deram continuidade à produção de revistas. A seguinte foi a Norte do Paraná em Revista (NP). Como era a produção?

- Como ela agradou tanto, Aristeu resolveu criar uma revista permanente. E como ele queria mais do que Maringá, mudou o nome da revista para Norte do Paraná. Mas depois da 4ª ou 5ª edição ela repercutiu para todo o Estado e mudamos o nome para Nôvo Paraná. E o escritório era na casa de cada um de nós. Nos reuníamos na casa do Aristeu para discutir o que seria publicado, não existia um local [uma sede] da revista. A gente tinha um Jeep e cobríamos todo o norte do Paraná. Depois de um tempo ela ganhou expressão e criamos escritórios em Curitiba e Londrina. A equipe, composta [no começo] por mim, Frank [Franklin Vieira] Silva, Ademar Schiavone e Ademaro Barreiros, viajava de avião, carro, ônibus e trem para atender o Estado inteiro.

4) A revista durou cerca de duas décadas. A que se deve o sucesso desse impresso?

- A revista teve sucesso pelo jeito que a escrevíamos. A gente escrevia o que interessava ao povo do interior do Paraná, que era sobre eles mesmos. Não era fofoca, publicávamos notícias diferentes. Nós corríamos por diversas cidades para fazer matérias que não fossem apenas desastres ou crimes, sempre procuramos achar algum detalhe do cotidiano do cidadão. Além disso, ela era impressa com um ótimo papel e também ótima fotografia. Os fotógrafos eram Jasson Figueredo e Edgar Taborianski. A revista fazia o estilo da cidade. A cabeça do jornalista era a cabeça da cidade. Ela só acabou quando Aristeu morreu, ele levou a revista com ele para o túmulo. E como já estávamos dispersos em outros trabalhos resolvemos deixar [de lado] a publicação.

5) Não era tão fácil ser jornalista em Maringá na época. Quais eram os maiores problemas enfrentados?

- Na verdade as dificuldades eram superadas pelo sonho. Eu e os companheiros pagávamos pelo sonho. Existiam problemas que a gente enfrentava, como escrever em máquinas de escrever, mandar publicar em São Paulo, que demorava quase dois meses para voltar impressa para Maringá. Esses eram os maiores problemas da revista, porque o resto… a gente era sonhador, não importava o problema, a gente estava realizando um sonho.

6) Como o senhor disse, a revista publicava algo diferente. Conte uma curiosidade da revista.

- Uma das reportagens mais marcantes eu fiz junto com Frank Silva. A gente contou a história das primeiras damas das cidades do interior, entre Londrina e Paranavaí. Em vez de mostrar o prefeito, mostrávamos suas mulheres, que ninguém conhecia. Convencemos os prefeitos a fazer isso, já que eles estavam sempre na mídia. Ficou uma reportagem muito bonita, que mostrava a importância das mulheres dos políticos, que conviviam com a vida agitada dos maridos políticos. Aproveitamos para mostrar a importância da família no trabalho desses prefeitos.

(Matéria extraída do site "Jornal Matéria Prima")