quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Nilto Maciel (O Sétimo Aniversário de Branca de Neve)

No final da tarde, Sandra e Morais davam ordens aos garçons e os últimos retoques no salão de festas, arrumavam os docinhos, os enfeites. Não paravam de falar aos filhos para que se comportassem. Nada de briguinhas, confusões. Queriam uma festa sem defeitos. Luzia, fantasiada de Branca de Neve, ia e vinha pelo salão, sorriso em todo o rosto. Olhava os ornamentos das mesas e paredes. Vistoriava o pequeno palco. Bruno se acercava das guloseimas, pronto a dar o bote. Saulo brigava com o irmão. Não metesse a mão em nada. Morais completava a admoestação. Nenhum deles devia se antecipar ao início da festa, servindo-se antes da chegada dos convidados. Impacientavam-se todos. As crianças corriam, os pais fumavam e se irritavam. E nada de convivas. “Será o trânsito?” Inquieto, Morais chamou um garçom. Sandra se exaltou. O marido não devia beber antes da chegada dos amigos. “Cerveja ou uísque?” A senhora acendeu mais um cigarro e se pôs a andar pelo salão, a revistar adornos e manjares. Um rapaz se apresentou, carregando uma filmadora. Morais pôs-se a dar-lhe instruções. Os meninos ora corriam, ora se abeiravam das mesinhas repletas de gulodices. O sol se punha atrás dos prédios.

A chegada de Xênia, Osvaldo e filhos causou exaltação nos anfitriões. Alegria geral, abraços, risos. Iniciaram-se as filmagens. A menina Ana correu ao encontro de Luzia e entregou-lhe um presente. As demais crianças se fizeram arredias. Sentaram-se os quatro adultos. Morais sorvia goles de cerveja. Cheio de euforia, gritou pelo garçom: trouxesse copos para o casal amigo. Sandra reclamou: queria também um copo. Luzia abriu o embrulho, com pressa, sob as vistas dos irmãos e visitantes. Bateram palmas, deram vivas. A aniversariante arrastou a amiguinha pelo braço: iria mostrar-lhe todo o salão. Branca de Neve e os Sete Anões, desenhados e pintados em folhas de cartolina e isopor, anunciavam fantasias. O palco, a cortina, o pano de fundo. “Vai haver uma peça, sabia?”

Sandra anunciou a chegada de Elizabete, Jonas e a pequena Vanessa. E levantou-se para recebê-los. A menina correu na direção de Luzia, presente à mão. Mais abraços, beijos, parabéns. Morais gargalhava, enquanto Jonas se esforçava para mostrar a musculatura do braço. Sandra falava alto. Os garçons serviam bebidas e salgadinhos.

Adão surgiu de mansinho, a esbanjar fumaça pelas narinas. Os anfitriões se disseram surpreendidos. Não o esperavam para tão cedo. O convidado conduzia um objeto embrulhado em papel colorido. Perguntou pela aniversariante. Gritaram-lhe o nome. Luzia sorriu e correu. Apresentavam Adão aos casais convidados quando se anunciaram Onira, Getúlio e duas meninas. Elizabete cruzou as pernas. Onira ajeitou os óculos, enquanto acariciava a filha: “Continua dando aulas?”

Morais fumava, Sandra ria e gargalhava: “Continue filmando, rapaz.” Elizabete gritou por Vanessa. As meninas recém-chegadas se dirigiram a Luzia. Queriam entregar uma lembrança, apenas uma lembrancinha. Getúlio passava mão na testa, e parecia rir ou chorar. Osvaldo olhou para o relógio de pulso. Adão dava risada a gosto. Luzia controlava o sistema de som. As crianças iam e vinham pelo salão, olhos nas iguarias. Umas dançavam, outras conversavam. Sandra chamou a aniversariante. Hora de dar início à encenação. Rebuliço no salão. Mais convidados chegavam, carregados de mimos e sorrisos.

“Vamos iniciar o teatro. Apaguem as luzes e silêncio.” Bateram palmas. A anfitriã dava ordens ao cinegrafista: não deixasse escapar uma só ação da peça. No palco, acendem-se algumas luzes. Dois personagens se mostram em vestes reais. Mimam uma boneca: a filha há tempos esperada. O rei (Morais) se dirige à rainha (Sandra): A filha teria por nome Branca de Neve. A plateia bate palmas. Xênia ajeitava o cabelo, olhos fitos no palco. O narrador anuncia a morte da rainha. O rei se põe a chorar. Sandra retira-se do tablado e corre à mesa, a rir. Movimento inverso realiza Xênia.

O narrador anuncia: O rei terá nova esposa. Um padre passa a celebrar o casamento real. Getúlio mete mão no bolso. A meninada permanecia silenciosa. A nova rainha se mira frente ao espelho mágico: “Existe alguém mais linda do que eu?”  A garotada grita “existe, existe.” Jonas alisava o queixo. Sandra fumava. Luzia entra em cena: “Sou Branca de Neve.” A rainha se observa diante do espelho e pergunta quem é a mais bela do reino. Uma voz vinda dos fundos grita: “Há uma menina muito mais bela do que Vossa Majestade”. Morais se retira do palco e chama um garçom: “Mais cerveja, que o rei está morto”.

Risos e gargalhadas. Luzia pede silêncio, irritada. Sobe ao estrado Jonas. A rainha se dirige a ele e ordena: “Leve a menina ao bosque, mate-a, arranque o coração e o traga a mim”. Onira cochichava para Sandra. O caçador arrasta a princesa pelo braço. A menina grita e cai. Riem na plateia. Sandra brada: “Cuidado com minha filha.” Luzia se ajoelha e pede clemência: “Não me mate, por favor.” Jonas, o caçador, ergue a mão, olha para a menina e também se ajoelha: “Perdão, princesa. Vou enganar a rainha. Ela quer o seu coração, como prova de que a matei. Vou, pois, matar um cervo e arrancar-lhe o coração. Fuja para bem longe daqui”. Luzia corre para o fundo do palco e Jonas sai pela lateral. Reaparece no salão, a rir e ajeitar a camisa. Batem palmas.

Onira olha de viés. Xênia se ergue e se retira. Branca de Neve reaparece no palco; ao fundo o desenho de uma casinha. Deita-se numa caminha e adormece. Jonas esfrega as mãos e levanta os ombros. Entram no palco sete anões, representados por meninos e meninas. Onira cutuca um pé de Sandra. A princesa desperta. Os anões se põem a conversar com Branca de Neve.  Sandra quebra um copo. Alvoroço no salão. Morais fumava e batia pé no chão. Reaparecem a rainha e o espelho: “Quem é a mais bonita do reino?” Uma voz rouca ecoa no salão: “A mais bela de todas é Branca de Neve.” A rainha se desgrenha. Risos, vaias. Getúlio ajeita o cabelo com mão.

Uma bruxa (Sandra), disfarçada de velhinha, carrega maçãs numa cestinha e bate à porta da casinha dos anões. Jonas enche a boca de empadas. A bruxa oferece uma maçã à princesa. Gritos, conselhos: “Não aceita a maçã; é envenenada.” Luzia sorri, olha para a plateia: “Eu tenho que aceitar e comer. Faz parte da história.” Dá uma mordida na maçã e cai. Os anões gritam, choram. Os convidados batem palmas.  Xênia olhava para as pernas de Getúlio. Entra em cena o príncipe, representado por Saulo. Elizabete aproxima-se de uma das mesas, rebolando. A princesa ressuscita. Luzia se ergue e abraça o irmão. O narrador fala do casamento da princesa. E encerra, em voz pausada: “E viveram felizes para sempre.”

Mais palmas, assobios, aplausos. Xênia pinta-se diante de espelhinho, calada. As luzes se acendem. Palmas, gritinhos, ovações, agitação na plateia. As crianças se dispersam, correm. Sandra olhava para a barriga de Jonas. A aniversariante pergunta se está na hora dos parabéns. Sua mãe levanta-se, retira-se da mesa e grita: “Vamos cantar os parabéns.” A criançada se agita e corre em direção à mesa maior. Luzia se posta junto ao bolo. Todos cantam “Parabéns pra você”. O grande bolo com sete velinhas é cercado de adultos e crianças. Aparecem fotógrafos de todos os lados. Luzia sopra e apaga as velas do bolo. O primeiro pedaço entrega à mãe ou ao pai? Abraços, beijos, gritos, cantos. Inicia-se a distribuição do bolo em pratinhos. Osvaldo não para de falar: “Bebida é fundamental, tudo é droga.”

Getúlio ajeita a cabeleira e anuncia, baixinho, para Osvaldo: “Sonho que sou escravo.” “Escravo da mulher? Só se for da melhor.” “Com mulher de farda nem o Diabo pode.” Onira deixa a mesa, irritada. Sandra sai atrás dela. “Ele tem outra.” Getúlio olha para elas e se volta para Osvaldo: “Casamento não foi feito para mim.” Adão ajeita os óculos e discorre sobre sexo imaginário. Xênia alisava a face: “Amizade com mulher, até certo ponto.” Onira olhava para o busto de Xênia: “Sabia do nascimento do bebê de Oxesiscrana?” Adão ajeitou os óculos, cigarro nos dedos, e separou-se do grupo. Osvaldo chupou o copo: “Todo governante é ditador.” “Todo ditador é governante.” “Não, toda mulher quer governar homem.”

Morais olhava para Jonas: “Clube de futebol virou negócio.” “Tudo é negócio mesmo.” “Como é aquela frase? Tempo é dinheiro.” “Time is money.” Adão acendeu um cigarro: “Droga significa volta à inocência.” “Usar droga para não ser adulto?” “Ele quer dizer o seguinte: drogado parece criança.” “Não é bem isso.” Elizabete piscou para Sandra: “Homem tem de ser fogoso.” “Muito fogo para se queimar.” “Não vá me queimar com esse cigarro.” Sandra fumava e olhava para os quadris de Elizabete: “Homem só pensa em sexo na hora, pouco antes, muito antes, mas só por um minuto.” Sandra, Elizabete, Xênia e Onira se dão as mãos e se põem a dançar. “Na Idade Média o casamento...” “A idade média para o casamento deve ser aos vinte anos.” “Cadê os sete anões?” “Mais cerveja aqui, garçom.” “ E a aniversariante já fugiu com o príncipe?” “Quem quer bolo?” “O príncipe se escafedeu, se safou.” “Morais, ainda tem uísque?” Jonas mordeu orelha de Elizabete: “Adoro orelhas.” Ela se esquivou: “Adoro minhas crianças e odeio cigarro, bebida, conversa fiada.”        

Um casal com filhos se despedia dos anfitriões e da aniversariante. Derrama-se cerveja numa mesa. Crianças pulavam, corriam, se esgoelavam. Onira chamou o marido. Adão tentava conversar com Getúlio: Sabia o significado dos anões?  “Uma louca!” Sabia? “São os sete pecados capitais?” Mais convidados se retiravam. “Por que já vão?” Espoucavam balões. “Mais cerveja?” Sandra se pôs a cantar como os anões. Palmas, assobios. Um dos anões chorava, aos berros. Outros se iam, atrás dos pais. Os anfitriões agradeciam os presentes e as presenças dos convidados. Os garçons cambaleavam. O cinegrafista ria. Pedaços de bolo e salgadinhos espalhados no chão. Cerveja e refrigerante derramados. Gritavam, vociferavam, gargalhavam, dançavam, corriam, caíam, choravam, reclamavam.

Súbito as luzes se apagaram. “É o fim do mundo.” “Passam anos e vêm anos e é essa mesma coisa.” “É o caos, meu amigo.” “Mãe, cadê você?” O vulto de uma bruxa passeava pelo salão. Uma voz sibilava: “A morte vem vindo.” Havia medo nos olhos das crianças e angústia em cada adulto. Meia-noite.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) O vocativo e sua importância para organizar diálogos

 
Uma das vírgulas mais esquecidas é a vírgula que isola o vocativo. E olha que essa é uma daquelas regras sem exceção, fáceis de lembrar e que são obrigatórias. O motivo talvez você não lembre bem o que é o tal vocativo. Pois vejamos:

Vocativo é a forma linguística usada para chamamento ou interpelação no discurso direto. Por exemplo:

> Maria, venha cá!

> E agora, José?

> Não acredito, Joana, que você fez isso.

> Ave Maria, cheia de graça.

Muitos confundem o vocativo com o sujeito, e por isso mesmo o vocativo é isolado por vírgulas, observe a diferença das frases:

> Esse juiz é corrupto.

> Esse, juiz, é corrupto.

Outra confusão habitual é do vocativo com o aposto. Mas lembre-se, no vocativo você está falando com alguém, e no aposto em geral está se falando sobre alguém.

> Ronaldo, ontem sua equipe trabalhou muito bem.

> O diretor da equipe de vendas, Ronaldo, ontem trabalhou muito bem.

Na segunda frase, não se está falando com o Ronaldo, e sim sobre o Ronaldo, diretor da equipe de vendas.

O USO NOS DIÁLOGOS

Em diálogos literários, o vocativo é muito útil porque ele é uma das três formas de se mostrar ao leitor quem está falando (as outras são as intervenções do narrador e a personalidade linguística).

Usar intervenções do narrador ("disse João", "respondeu Maria") é a forma mais comum mas também mais simples, além de interromper a fluidez do diálogo com essas intervenções. Já usando o vocativo, você consegue ir organizando a conversa sem precisar recorrer às marcações.

Vejamos um exemplo, do texto do colega Rhaniel Farias:

- Não dava para esperar mais um pouco, Eduardo?

- Você sabe que não. A dor só piora.

- Tem ideia do que está fazendo, do que isso vai provocar nas pessoas que te amam?

- Já conversamos sobre isso, Sofia. Preciso fazer, não vou voltar atrás.

Note que pelas quatro falas iniciais do diálogo já sabemos que quem está conversando é Eduardo e Sofia. A primeira fala, como usa o Eduardo como vocativo, é da Sofia, que está falando COM o Eduardo. Então as falas ímpares (1, 3, 5) serão da Sofia.

Já na fala 4 é o vocativo é a Sofia, ou seja, alguém (no caso Eduardo) está falando COM A Sofia. Então as falas pares (2, 4, 6) serão da Sofia.

Criada essa lógica, o autor pode ir até o fim do diálogo sem usar os vocativos novamente nem precisar de intervenção do narrador. Caso o diálogo fique longo, os vocativos podem voltar eventualmente, para irem lembrando o leitor de quem está falando com quem.

Cuide, também, diálogos com mais de duas pessoas. Aí talvez seja inevitável usar a interferência do narrador, mesmo que alternando com o uso do vocativo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 6 – Oxum


Oxum faz o amor brotar
em todas as estações ...
E a água doce cantar
as mais singelas canções ...


Há uma cantiga de outrora que diz assim: "Oxum é uma criança que esqueceu de envelhecer, mas quando ela dança, seus filhos param de sofrer. Verde é a cor de Oxossi, branco de Nanã Buruquê, Oxum bordou sua saia com a flor do amanhecer".  

Oxum é a deusa das águas doces, dona do ouro. Ela também representa a sabedoria e o poder feminino, sem deixar de ser esposa de Xangô, rei justiceiro. Oxum é a protetora da família. Diante do espelho, reflete muitas personalidades, pois mulher, em sua essência, é aquela que abriga em suas entranhas múltiplas faces da vida. Sua representatividade reina na África, na Ásia, no Brasil e em Aruanda, onde nasceu para ramificar entre os seres todas as bênçãos de amor.

Numa bela tarde de verão, enquanto se refrescava  à  beira do rio, alguns de seus filhos foram ao seu encontro. Logo começaram a brincar ao seu redor, não resistindo ao doce encanto dos erês, mãe Oxum, logo vai participar das cirandas.

Era uma tarde serena de céu azul, sol fulgurante e cheiro de jasmim. Nessa ocasião, seu esposo Xangô, que é um juiz exemplar, viajava, fazendo a propagação da lei.  O cenário era perfeito. Até que a triste imagem de uma jovem a chorar, rouba a cena.

Oxum pede às crianças que se retirem e pergunta:

- Moça, você precisa de ajuda?  

A jovem chorava sem parar estava com uma péssima aparência. Cabelo desarrumado, olhos borrados de maquiagem.

- Sente–se à beira da água comigo. – disse a deusa dos rios.

- Me disseram que você aconselha pessoas perdidas.

- Aconselho todos os tipos de pessoas, mas se encontra perdida de quem, de você ou de algum familiar?

  - Sinto–me perdida em todos os sentidos. Não sei quem sou. Ajude-me! – pediu a soluçar.

- Ajudo com prazer, mas antes, feche os olhos, relaxe o corpo e respire. Nesse instante, borboletas coloridas começaram a sobrevoar sobre a cabeça da moça. Oxum agradece a mensagem enviada pela natureza. E minutos depois elas começam a dialogar.

- O que aconteceu com você, meu anjo?

 - Anjo, eu? Só se for um anjo decaído. – diz ela menosprezando a si própria.

- A mim pouco importa que tipo de anjo é você. Estou aqui para ouvi-la. Conte – me o seu problema.

- Eu era de uma família boa. Fui bem educada e recebi muito amor dos meus pais, mas com a chegada da adolescência, comecei a me deixar influenciar pelas más companhias, passei a desobedecer meus entes e só fazia o que me dava na cabeça, sem pensar nas consequências. Com isso, fiquei com muitos homens, mesmo sem sentir amor por nenhum deles. Até com drogas me envolvi. Achava tudo bonito, da moda. Como já era esperado, meus pais não aceitaram a realidade que escolhi viver. Então fugi de casa. Hoje sou assim, uma mendiga.

- Você se arrepende das escolhas que fez?   

- Sim. Estou muito arrependida.

- Vou explicar uma coisa: nos tempos atuais, tudo parece ser permitido, mas na real, isso é um grande engano. Liberdade é uma coisa, libertinagem é outra coisa tão desigual, que sinceramente, não sei como tantas pessoas podem confundir.

"Na verdade, sei sim, apenas tenho dificuldade em aceitar. Existe um plano do qual não posso mencionar quem são os organizadores, que tem a intenção de destruir tudo o que é belo: honestidade, amizade, família. Eles manipulam as mentes das pessoas de todas as idades, principalmente dos jovens, na tentativa de convencê-los a errar sem perceber que estão caindo numa cilada. Por exemplo, os jovens não sonham mais poder encontrar um amor. Com isso, toda vez que seus corpos sentem sede de carinho, deitam-se com um novo parceiro. Muitas meninas, da adolescência até a fase adulta, já terão levado mais homens pra cama do que a maioria das prostitutas de tempos antigos levaram em seus tempos de juventude. E os meninos já terão beijado mais garotas do que Dom Juan beijou no decorrer de sua vida inteira. Aliás, Dom Juan, em comparação ao que os meninos de hoje têm aprontado pode ser comparado a um frade.

"É normal se relacionar, viver, ser feliz. O único problema em questão é a libertinagem. Isso é uma das razões da decorrente depressão entre os jovens. Seus anjos da guarda batem à porta de suas consciências, a fim de alertá-los, mas poucos ouvem."

- Quero me redimir. – disse a moça, ao ouvir a voz serena de Oxum exalando bálsamos de sabedoria.

- Procure seus pais. Recomece sua vida. Jogue rosas no rio e peça em oração ou cânticos, o amor que sua alma realmente necessita. E seja feliz. Muito feliz!

A menina se afasta. Oxum se pôs a rezar por ela. E depois volta a brincar com as crianças.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Margarida de Souza Menezes (Caderno de Trovas)


A felicidade é uma criança.
Está no teu coração, podes crer.
De te acenar não se cansa,
brincando de se esconder...
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Alegre e cheia de vida,
dás calor ao ambiente.
Mas quando te vais, querida,
o inverno cai de repente!
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Cristão, verdadeiramente,
este paradoxo humano:
Quem não briga é que é valente!
O "valente"... é desumano!...
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Cuida com muito carinho
do teu pensamento, meu bem...
Voa mais que um passarinho,
vê as asas que ele tem!...
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Debaixo dos laranjais,
olhando para minha janela,
eu não sei o que mexia mais:
se as laranjas ou o busto dela...
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De pintura eu não entendo,
para dar uma opinião.
Mas, se insistes, o que estou vendo
é um imenso borrão!...
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De porte altivo e franco,
pelas ruas caminhando,
pareces um cisne branco,
sobre as águas deslizando
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Deus fez a vida da gente
descuidada, feliz e boa;
mas o homem, esse descrente,
complicou tudo à toa...
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Deus não tem forma humana!
Deus é vida, é beleza,
Deus é o amor que emana
mais forte que a Natureza!...
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Ela fala como uma louca,
que prática que ela tem!
Enquanto ele mal abre a boca,
para dizer: "Sim, meu bem!...
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És alegre, és risonho,
causas dor de cotovelo!
Por pareceres um sonho,
provocas até pesadelo...
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Esteja sempre preparado,
não vendo, da vida, somente a beleza!
Para que o revés inesperado
não colha você de surpresa...
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Eu conheço muita gente
que vegeta; não sabe viver.
Eu desejo a essa gente
que, ao menos, saiba morrer!
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Faz de Jesus o teu instrutor!
Mesmo que todos te arrasem,
pensa: "Perdoai-lhes, Senhor!
Eles não sabem o que fazem..."
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Fico olhando para ela,
que fala como uma louca!
Parece que a língua dela
mal cabe dentro da boca!...
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Mata a sede do vizinho,
oferece um copo d'água,
pois um gesto de carinho
ameniza a própria mágoa...
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Não blasfemes, meu amor!
Tens o mar, a terra querida,
e, seja lá como for,
foi Deus quem te deu a vida!
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Não precisas de confidente,
para as teus dramas relatar;
Deus está sempre presente,
pacientemente a te escutar,
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"Nossos filhos, nossa alma!"
— é o que você sempre diz.
A cada um a sua palma
de ser ou não ser feliz!
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O calor horrível, infernal,
a alegria em plena avenida!
Todos fogem, no carnaval,
no carnaval desta vida...
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O dia corre veloz
quando está tudo a contento.
Quando tudo é contra nós,
passa preguiçoso e lento...
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O homem, esse desconhecido,
não se conhece, o ignorante!
Procura tudo aturdido,
muito além do horizonte!
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Olha a vida com humildade,
quebra a arrogância em pedaços!
Verás que a felicidade
se jogará em teus braços!
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O pensamento nos faz muito mal!
Inventa, tira falsa conclusão...
Tem a força do vendável,
destrói como um furacão!...
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"O que se leva da vida
é a vida que a gente leva!"
— Não queiras com isso, querida,
viver em trajes de Eva!...
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"Os homens são todos iguais!"
— diz a mulher com maldade.
Ela não os distingue mais,
porque já passou da idade...
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O sol morre e o céu amigo
de estrelas se vai cobrindo.
O sol nasce e traz consigo
a manhã linda sorrindo...
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Quando falas, fico escutando,
para saber o que queres.
Quando falo, continuas falando!
São sempre assim as mulheres?!
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Quando tu passas, menina,
vais espalhando o pavor.
És a maior assassina,
matando todos de amor!...
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Quando vamos ao cemitério,
na garganta sentimos um nó.
Mas não existe mistério:
é o pó, que volta a ser pó...
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Quem ri não conhece doença,
o riso é o melhor remédio!
Quem só vive na descrença
morre de tristeza e de tédio...
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Se acham ridículo dizer
tudo o que a gente sente,
como é ridículo o viver
e o sentir dessa gente!...
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Se as vãs riquezas da terra
não te ofuscam a visão,
quantas virtudes encerra
teu pequeno coração!...
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Se a tua vida é um limão,
criatura, não fiques parada;
Alegra o teu coração,
faz da vida uma limonada!
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Se estás sério, a casa fica sombria;
quando ris, aqueces o ambiente.
Tal qual uma manhã muito fria,
quando o sol sai de repente...
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Se os destinos são traçados
em linhas curvas ou retas,
em que linhas são colocados
os destinos dos poetas?!...
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Se queres a liberdade,
anda, procura com calma;
está junto com a felicidade,
no interior de tua alma!
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Sinto uma alergia incrível
por homem, vejam que horror!
Mas, penso: seria horrível
nessa vida, sem o amor!...
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Tal qual no céu anda a lua
à mercê de mil lampejos,
minha boca, colada à tua,
vive à mercê dos teus beijos.
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Tocaste, por casualidade,
o teu braço contra o meu;
sob a tua eletricidade,
o meu corpo estremeceu...
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Todos temos no coração
o pecado que a Humanidade leva;
porém ela é a reencarnação
de Adão, ou da própria Eva...
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Vemos que, à luz da Verdade,
sabedoria consiste
nesta grande realidade:
Deus é! O homem existe...
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Margarida de Souza Menezes nasceu em 1907, em Recife/PE. Casou-se com o advogado Dr. Antônio Antunes Figueiredo, que foi Secretário de Governo no Estado do Rio de Janeiro e um dos fundadores do Clube de Regatas Icarai, de Niterói/RJ. Cirurgiã-dentista diplomada pela Faculdade de Odontologia de Recife, tendo se dedicado à profissão por longos anos, aposentada. São seus pais Maria de Souza Menezes e Carlos de Souza Menezes, ele português, dentista e compositor em Recife e na Bahia, com discos gravados e músicas tocadas pelas orquestras locais, fazia parte da Tuna Portuguesa do Recife como violoncelista, autor de um dos primeiros chorinhos do Brasil: "A Minha Brasileirinha".

Além de poetisa, Margarida Menezes foi também compositora musical e declamadora. Colaborou na imprensa de vários estados brasileiros. Publicou: "Entardecer", "Sonhos Nordestinos", "Teus olhos, um sonho, nada mais..."Meus versos, meu tesouro", com o pseudônimo Teresa Bianca, e "O que eu vi em teu olhar" e as sátiras "Conceitos Psico-Filosóficos", novamente com o nome Margarida Menezes, "Alma Livre" e "Sem Segredos". Escreveu um romance de ficção: "Retrato de um Passado"; um. livro de psicologia e filosofia: "Humanidade Imatura"; um de parapsicologia: "O Sexto Sentido" e outro "A Explicação do Novo Testamento".

Residia em Florianópolis/SC, quando publicou estas trovas em 1979
.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.


Martins Pena (Duguay-Trouin*)

A VINGANÇA


Na manhã do dia 11 de setembro de 1711, os sinos da Igreja da Sé, situada no morro do Castelo, e os tambores dos regimentos de milícias tocaram a rebate. O povo corria atemorizado pelas ruas da cidade; uns dirigiam-se para o Castelo e outras eminências da cidade, e os mais timoratos corriam para as suas casas. Os soldados de milícias, saindo fardados e armados de suas habitações, dirigiam-se com a pressa que lhes permitia o seu armamento, para se reunirem aos seus respectivos corpos. A guarnição portuguesa, desde o dia 10 já estava sobre pé, e se tinha postado no prolongamento da costa, compreendida entre o Forte do Calabouço e o Saco do Alferes. O ruído das armas, os pesados passos dos soldados, o surdo rodar das carretas das peças de artilharia, o som do clarim, tudo enfim atemorizava as almas fracas, ao mesmo tempo que incutia valor nos peitos valentes e destemidos.

O povo, que coroava o morro do Castelo, podia distinguir com facilidade uma esquadra que bordejava fora da barra: era ela a causa do terror espalhado entre os habitantes de São Sebastião. No dia 10, depois do meio-dia, viu-se algumas velas que se dirigiam para a entrada do porto; em pouco tempo pôde-se distinguir a sua nacionalidade. Todos os navios traziam o pavilhão francês.

O governador D. Francisco de Castro, não esperando da parte dos franceses senão hostilidades, já por cobiçarem as inumeráveis riquezas minerais, descobertas nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, já pelo assassinato cometido na pessoa do Almirante Du Clerc, deu ordens para que as fortalezas do porto e a guarnição fizessem todo o possível para impedir a entrada da esquadra inimiga.

Toda a tarde do dia 10, e parte da manhã do dia 11, os franceses bordejaram fora da barra e do alcance da artilharia dos fortes. O seu prudente chefe, o Almirante Duguay-Trouin, não queria aventurar a sorte da esquadra debaixo de seu comando, em um ataque mal dirigido, e onde não visse um feliz êxito; assim esperava ele um vento favorável para poder entrar com vantagem no porto. Às 8 horas da manhã principiou a soprar da parte do sul um vento rijo e forte. Duguay-Trouin faz sinal a toda a sua esquadra para que o siga, e ele, pondo-se à sua frente, dirige a proa de seu navio para a entrada da barra.

As pessoas que viam das iminências e arredores da baía o aspecto hostil que tomava a esquadra inimiga, esperavam com ansiedade o êxito do combate.

As fortalezas e fortes abriram o fogo, porém a esquadra continuava a sua marcha. A capitania foi a primeira que sofreu o fogo dos fortes; uma chuva de balas caía ao redor dela e fazia ferver o mar; os artilheiros franceses, como morrões acesos, esperavam com impaciência o momento do combate. Duguay-Trouin, depois de estudar a posição de toda a sua esquadra, manda fazer sinal para que ela abra o seu fogo, e embocando a sua buzina de comandante, solta estas palavras há muito esperadas: – Fogo! fogo de bombordo e estibordo!!

Uma detonação terrível se ajuntou ao concerto infernal. Toda a esquadra seguiu o exemplo.

– Assim! assim! meu bravos!.. sustentem o fogo; que um turbilhão de fumaça nos oculte à artilharia dos fortes!

Uma fumaça densa e branca ocultou aos olhos dos espectadores a cena do combate; porém eles ainda podiam conhecer que a esquadra continuava a avançar.

Um mancebo de alta estatura, que comandava uma das companhias postadas no Forte do Calabouço, via com impaciência que a esquadra francesa penetrava no porto, e que os navios de guerra portugueses estavam estacionários.

– Ah! que não esteja eu dentro de uma daquelas Naus! Então; enquanto uma só tábua estivesse unida a outra, eu defenderia a entrada do porto!... Agora é que eles principiam a suspender ferro!... mas já é tarde!!... Oh! e eu nada posso!!...

Henrique tinha razão. A esquadra portuguesa foi lenta em seu movimento; e quando ela quis impedir a marcha vitoriosa da esquadra francesa, foi tarde.

Duguay-Trouin atravessou toda a baía, fazendo continuadamente fogo, e com pouco custo apoderou-se da Ilha das Cobras, aonde desembarcou.

Henrique, temendo o bombardeamento da cidade pela esquadra francesa e Fortaleza da Ilha das Cobras, pede licença ao comandante de seu batalhão, por um instante, para ir pôr em segurança a sua querida irmã Henriqueta.

Henriqueta e Henrique moravam em uma casa com frente para o mar e, por conseguinte, exposta ao fogo inimigo. Henrique sobe apressadamente as escadas de sua casa e encontra a sua cara irmã muito assustada. Ela lança-se nos braços de seu irmão e oculta as suas belas faces no peito deste.

Ambos amantes, ambos órfãos, viviam estes dois irmãos. Henrique tinha 16 anos e Henriqueta 10 quando perderam seu pai; a vinda de Henriqueta ao mundo tinha custado a vida à sua mãe... Infelizes!...

Henrique sentia por esta única pessoa de sua família o amor sagrado e puro de um irmão; amor sem tempestade e egoísmo.

– Henrique, diz Henriqueta, eu tenho medo destes tiros!...

– Não tenhas medo.

– Tu queres que eu não tenha medo?! ah! mas eu não posso, eu tremo!

– Sossega, minha cara irmã; vai ajuntar alguma roupa tua para sairmos desta casa.

– Sim, sim eu vou... Vê, vê Henrique, aquele navio que ainda vem fazendo fogo!? – e ela apontava para um dos navios franceses que cobriam a retaguarda da esquadra, e que ainda não tinha lançado ferro.

– Ele se há de cansar. Vai aprontar a tua roupa.

Henriqueta caminhava para seu quarto, quando uma bala, atravessando a parede, passa assobiando por diante dela.

– Ah! Henrique!!...

Ambos ficaram pálidos como a morte. Henrique sustém sua irmã meio desfalecida, e a conduz para uma cadeira.

– Minha irmã, cobra alento, não te assustes.

– Henrique, eu tenho medo!!...

Uma pancada forte e seca fez este voltar a cabeça, e ver ao mesmo tempo uma das janelas, que estavam bem fechadas, fazer-se em mil pedaços, e uma bala, batendo em sua irmã, atirá-la no chão toda ensanguentada!

– Henrique, adeus!... (foram as últimas palavras que proferiu esta desgraçada.) E Henrique?

Oh! eu não posso pintar o seu desespero. Ele levantava a sua irmã em seus braços,

beijava as suas faces já frias, procurava reanimá-las; dirigia preces ao céu, para que lha restituísse; levantava os braços para a esquadra francesa em sinal de maldição... Oh! como não devia ele sofrer!...

– Infames assassinos! dizia ele, infames! ah eu juro pelo frio corpo de minha irmã, de vingar-me! ah! sim, tremei!...

Henrique não pôde por muito tempo resistir ao terrível choque, que feriu repentinamente a mais cara afeição de sua alma, ele caiu desmaiado junto de Henriqueta.

Alguns de seus amigos, procurando-o, acharam-no neste estado e com muito custo conseguiram que ele recuperasse os sentidos. Henrique não deu mais uma só palavra, porém via-se no seu olhar frio e brilhante que uma só ideia o preocupava.

Quando ele acompanhou o corpo de sua irmã para a sua última morada, antes que o túmulo os separasse para sempre, chegou-se para ela, e dando-lhe um beijo, disse-lhe com voz trêmula:

– Henriqueta, tu serás vingada!...

D. Francisco de Castro vendo os franceses senhores da Fortaleza da Ilha das Cobras, retirou-se para Mata-Porcos, e de lá expedia as ordens para a defesa da cidade.

Duguay-Trouin lhe enviou uma nota, pedindo satisfação pela morte de Du Clerc e a entrega de seus assassinos. D. Francisco de Castro recusou ambas as coisas, e então começaram de novo as hostilidades.

A noite de 21 a 22 de setembro foi uma noite de horror. Nuvens de uma cor medonha se estendiam como um manto por todo o firmamento, e de entre as vagas do mar se ouvia um mugido triste e sinistro. Os gritos de – alerta! bom quarto! – que os sentinelas e marinheiros enviavam uns aos outros só interrompiam este lúgubre silêncio.

meia noite, o almirante francês, seguido de grande número dos seus, desce com precaução para uma das praias que cercam a fortaleza, onde já estavam prontos alguns lanchões, e manda embarcar a sua gente, e lhes ordena que tomem por abordagem a esquadra portuguesa.

– A noite está escura, diz o almirante, ela nos favorece. Marinheiros franceses, fazei o vosso dever!

Os lanchões partem; o almirante sobe para a fortaleza e manda apontar toda a sua bateria para a cidade.

As sentinelas postadas nas praias da cidade viam ao longe um rastilho luminoso, causado pela ardentia do mar, e uma sombra negra, que os precedia; porém não ouvindo bulha de remos, não desconfiaram ser surpresa alguma da parte dos inimigos.

Os franceses para melhor ocultarem a sua empresa tinham envolto os remos com pano, e assim caminhavam silenciosamente.

A fortuna teria coroado a sua tentativa, se um forte relâmpago não viesse mostrar aos portugueses o perigo que os ameaçava. Os soldados gritam às armas, e uma descarga de mosquetaria de uma das naus faz retroceder os lanchões franceses. Foi este o sinal do combate.

As baterias da Ilha das Cobras principiaram a fazer fogo sobre a cidade, a esquadra seguiu o exemplo: os navios portugueses atiraram sobre os franceses, porém sem se aproximarem, por estarem estes cobertos com a artilharia da fortaleza. O estampido do trovão, então em todo o seu furor, a luz dos relâmpagos, os tiros de uma numerosa artilharia e os gritos das pessoas, que fugiam espavoridas de suas habitações, faziam um todo horrível.

Todo o povo fugia atropeladamente para fora da cidade; a mesma guarnição abandonou os seus postos: a noite ocultou aos franceses o abandono da cidade.

Uma só pessoa não fugia com os outros: via-se que com infatigável vigor carregava barris do Forte do Calabouço para sua casa: esta pessoa era Henrique.

– Aonde vais, Henrique, gritaram os seus companheiros, que já tinham abandonado as armas para correrem com maior presteza; aonde vais? Vem conosco; daqui a pouco tudo estará reduzido a ruínas e cinzas; vem.

– Não! respondeu Henrique; ainda não vinguei Henriqueta: e ele continuava no seu porfiado trabalho.

* * * * * * * * * * * * * * *

Depois de quatro horas de um continuado fogo, Duguay-Trouin à frente dos seus desembarca na cidade. Um silêncio de morte reinava por toda a parte! As ruas estavam em algumas partes impraticáveis pela queda de edifícios abatidos pelas balas. Aqui e ali viam-se cadáveres de diversas pessoas que a morte tinha surpreendido na sua fuga.

– Saque! Saque!! gritavam os soldados franceses.

Todo o cuidado do almirante foi infrutífero para impedir o saque. Os soldados corriam desenfreados pelas ruas. Um grupo deles tendo no meio Henrique aproxima-se a Duguay-Trouin, e lhe entregam o que eles dizem prisioneiro.

– Como te chamas? pergunta o Almirante.

– Henrique.

– Por que não fugiste com os teus compatriotas?

– Porque amo os franceses; e porque sem mim eles não encontrariam um imenso tesouro.

– Um imenso tesouro! E onde está ele?

– Se vós me prometeis metade, a outra é vossa; e eu também exijo que me leveis para França.

Um sorriso imperceptível correu pelos seus lábios.

– Eu exijo que me acompanhe uma força de pelo menos 50 homens, pois desconfio que haja oposição.

Duguay-Trouin dá ordem a uma companhia que acompanhe Henrique, e recomenda todo o cuidado ao chefe que a comanda, porém ele deixa-se ficar.

– Não vindes, senhor? lhe diz Henrique.

– Não, o capitão que comanda os meus é mais que suficiente para esta expedição. Henrique viu a sua principal vítima escapar-se; mas ele levava 50 atrás de si. Acompanhado dos soldados encaminha-se para a sua casa, depois de ter penetrado no interior, volta-se para o capitão e diz:

– Senhor, mandai que dois soldados guardem a porta, e que todos os outros nos acompanhem.

– Até aqui, replica o capitão, eu vos tenho seguido sem hesitar, porém permiti que eu agora tome algumas precauções. Camarada, continua o capitão voltando-se para um soldado; ficareis ao lado deste homem, e ao menor sinal de traição cravai a vossa espada no seu coração. Agora podeis conduzir-nos.

Henrique, tendo de um lado o capitão e do outro o soldado com a espada desembainhada, e abrindo a porta faz ver uma grande quantidade de barris.

– Eis aqui o tesouro! diz ele.

O capitão desce, e vê com espanto que todos os barris estavam cheios de pólvora.

– Traição! Traição! gritam todos.

O soldado que estava junto de Henrique quer atravessá-lo com a espada; porém este saltando para cima de um barril e puxando por uma pistola diz:

– Henriqueta eu te vingo!! e disparando a pistola para dentro de um dos barris, comunica o fogo a esta quantidade enorme de pólvora!!

Uma forte explosão se ouviu, e uma coluna imensa de fogo, paus e corpos humanos, subiu até às nuvens!!! Toda a cidade tremeu.

Henrique e os 50 homens que o acompanharam todos morreram!

Um mês depois Duguay-Trouin partiu para França levando consigo 4 naus, 6 fragatas, 60 navios do comércio português e 600 mil cruzados; porém não gozou de todas estas presas feitas no Brasil. Uma grande tempestade destroçou, antes de chegar à França, grande parte da sua esquadra.

A Providência castigou a França por ter querido invadir a América...
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* René Trouin, melhor conhecido como René Duguay-Trouin mas também grafado como Du Guay-Trouin (Saint-Malo, 10 de junho de 1673 — Paris, 27 de setembro de 1736), foi um corsário francês. Alcançou o posto de almirante e de comandante na Ordem de São Luís.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Adega de Versos 65: Carolina Ramos

 

Raul Pompéia (Maladetto Francesco!)

Houvera dois dias de chuvarada. As ruas tinham o calçamento lavado. Pelas sarjetas inundadas corria um burburinho d'água em direção aos esgotos. Os lampiões estendiam pela. calçada panos de fogo, enquanto as chamas de gás, engaioladas em suas caixas de vidro, debatiam-se doidamente a cada rajada... E o vento passava violento, furtando ao céu turbilhões de nevoeiro e guarda-chuvas aos transeuntes...

Francesco, que andava adoentado, havia dias, foi para a casa nessa noite muito mais cedo que de costume.

Para a casa... expliquemos.

Na rua... há uma portinha.

Isto é a boca de um corredor apertado entre altos muros, pelos quais escorre o sol branco e ardente do verão, ou, conforme o tempo, a chuva das invernadas, que os borra de luxuriantes paisagens feitas a capricho pela vegetação da umidade.

Passam por aí a viração encanada e uma multidão de sujeitos maltrapilhos, que chegam geralmente à tardinha, para saírem, no dia seguinte, à hora em que vêm os lábios rosados da. manhã osculando os cirros fugitivos do arrebol.

Estes indivíduos, com mais algumas mulheres que vivem a lavar roupas no pátio em que termina o corredor, são os inquilinos de umas coisas chamadas quartos, feitos de tabuado, onde o zum-zum das intriguinhas miseráveis e a algazarra das disputas dos moradores justificam o nome de cortiço que se dá às habitações da espécie. O cortiço está à esquerda do pátio das lavadeiras, no fim do corredor.

Nesta passagem entrou Francesco.

Havia uma lâmpada de querosene fixada na parede, à entrada do pátio. Apesar dos esforços dessa pobre lâmpada, cuja luz não conseguia varar a opacidade das suas três faces de vidro, não estava claro o lugar, Francesco lá foi, vacilante e cambaleando de tonteira.

Em um dos quartos do cortiço desapareceu.

Francesco Picolo era um pobre napolitano que nunca conhecera os pais e que viera para ao Brasil de envolta com um aluvião de colonos italianos importados para o Rio. Tinha seis ou sete anos; era louro como uma dessas figurinhas de Murilo que há espalhadas pela tela da Conceição e notavam-se-lhe abaixo dos olhos grandes e alegres, duas manchas róseas, destacadas na alvura pálida e quase sempre suja do semblante. Era miúdo e vivo, de uma vivacidade risonha e galhofeira.

Havia um ano que Francesco residia no Brasil, vivendo na companhia de Giuseppe de tal, um italiano maduro, focinho de calabrês, que viera de Nápoles com ele e se arvorara em seu protetor. Este protetor esperava os pequeninos lucros que o menino auferia de sua atividade e dava-lhe em paga maus-tratos.

Francesco vendia gazetas; e anunciava com tal graça a sua mercadoria, que era um gosto vê-lo na rua apregoando:

— A gazeta! a gazeta!... com a folha erguida na mão direita em gesto de Pedro I do Rocio. Quem o via, tão criança, tão gracioso e tão miserável, não resistia e... lia a Gazeta da Tarde ou a de Notícias do dia. Quando, à noite, esgotava-se a sacola de couro preto dos jornais, entornava ele a sua bolsinha num canto retirado do passeio, ou em alguma soleira, onde desse luz, e punha-se a fazer suas contas. Separava o cobre, com que devia comprar a 30rs. as folhas do dia seguinte; contava os lucros da venda, e exultava, se o ganho subia a 400rs; porque então podia esconder à ganância de Giuseppe dois ou três vinténs.

Estes vinténs furtados Francesco os arriscava na vermeIhinha, apostando sempre pela coroa das moedas atiradas ao ar. Seguia uma sua máxima: quase sempre ganha quem aposta pelas coroas. E ele ganhava frequentemente. Esta fortuna fazia raiva aos garotinhos seus parceiros, de sorte que quase nunca o jogo acabava, senão pela fuga de Francesco Picolo, adiante da perseguição dos outros, que queriam tomar-lhe os ganhos, abusando de sua superioridade do tamanho e de força. Mas Francesco era ligeiro e sempre escapava.

Não era a vermelhinha a única distração do nosso birichino*; o pequeno Picolo tinha outros costumes da rua. Pendurava-se à traseira dos bondes, para enfurecer os condutores, vaiava a polícia; protestava contra as prisões gritando à barba dos urbanos: não pode! Assíduo como um repórter a todos esses grandes acontecimentos que enchem diariamente o noticiário dos jornais, não havia suicídio ou assassinato em cujo teatro não fosse vista a sua carinha loura, fitando os circunstantes ou a vítima, com o seu olhar azul, largo e compassivo. Não perdia incêndios. Era o primeiro a comparecer. Aproveitava a ocasião para brincar um pouco com a morte, mostrando-lhe de perto a sua vidinha alegre e miserável; arriscava-se dando risadas; expunha-se por pândega. E fazia tudo e tudo passava desapercebido. Pequeno demais para ser visto não encontrava embargos; barafustava por qualquer orifício e saltava em pleno perigo. A morte era o seu Polichinelo; Francesco brincava sem tropeços.

Muita vez prestou ele um bom serviço; em compensação, não lhe era raro levar do incêndio uma escoriação no braço, na cabeça, na perna, ou uma queimadura no pé. Sabem o que fazia? Ia fazer letras como as dos jornais ou riscar caricaturas pelas paredes caiadas de fresco, com o sangue das arranhaduras. O resto ficava por conta do seu médico: o tempo.

Tinha ainda o pequeno napolitano o costume de aproveitar os tumultos das festas populares, para furtar lenços e o mais que fosse possível. Uma vez furtou um grande guarda-chuva de alpaca burguesa, que o fez rir a perder. Este furto, mais incômodo que a famosa raposa do espartano, mereceu-lhe um puxão de orelhas do primeiro guarda urbano que o viu. O respeitável zelador da ordem pública deu ao menino o castigo e ficou-se com o guarda-chuva.

— Eu o deixo pra você, gritou-lhe Francesco à distância, porque é muito grande para mim.

E o urbano guardou conscienciosamente o objeto para si. Furtava o ladrão...

Não eram as façanhas dos incêndios, como não eram as escamoteações de prestidigitador da escola de Licurgo, o cúmulo do arrojo do menino.

Ia muito além. Ninguém imagina até onde. Pensam que se trata de pedras arremessadas à vidraças do chefe de policia ou outra coisa, como trepar no eixo de um carro de Nosso-Pai para bulir com o vigário pela abertura posterior do coupê?...

Nada, nada... O arrojo ia adiante. Assim que Francesco Picolo, do meio da rua do Ouvidor, ouvia, lá para as bandas da rua Direita, certo tropear de cavalaria, com a nota de um clarim, destacando-se por cima, quando lhe passavam por diante dois redondos ginetes de dorso em arco sob o peso de lustrosos e ofegantes caboclos, encasquetados em luzidas barretínas, espadas nuas à destra...

Ele já sabia. Aí vinha o seu homem.

Francesca abria as magras perninhas, firmava-se nelas como um Rodes em miniatura e esperava de olho vivo e gazetas ao sovaco.

Em pouco, chegava um grande carro a trote largo. No carro vinha um senhor de cabelos brancos e branquíssimas barbas, enfeixadas numas bochechas amplas e tintas de rosa. Toda a gente dobrava-se em zumbaias para aquele velho, a quem devia doer a espinha, tantos eram os cumprimentos que fazia para a rua... Pois ele não; Francesco Picolo era rebelde. Quando o velho do carro passava por ele e cabeceava-lhe um dos tais cumprimentos... Era tempo. Francesco, com o seu gorro no alto da cabeça, arregaçava as ventas para o velho e mostrava-lhe a língua insolentemente. Depois da careta, dava uma risada e saía a gritar:

— A gazeta! a gazeta! 40 réis!

Esta sua originalidade não degenerou, até que uma vez... Não vinha só, o velho de barbas brancas. Ao lado dele sentava-se uma velhinha de vestido roxo, os cabelos empastados à testa. Tinha um sorriso bom aquela velhinha.

Quando o carro passou por Francesco, o birrichino fez a costumada careta. A velha sorriu docemente para ele e demorou o olhar, até que o permitiu a janela do carro.

Francesco ficou gostando daquela pobre velha... Olhou para ele com tanta suavidade!... Houve uma revolução naquele pequenino cérebro. O revolucionário foi o coração.

Francesco tomou uma resolução: quando de então em diante passasse por ele o homem de barbas brancas, ele tiraria o seu gorro de veludo sovado ao marido daquela boa velha que sorrira para ele...

Apesar de seus costumes da praça pública, Francesco Picolo não era ainda um menino pervertido, mas o que nele predominava mais do que qualquer traço fisionômico do caráter era a bondade do coração.

A prova disso tinha-se, eloquente, indiscutível, em uma tristeza profunda, que de tempos a tempos se apoderava do espírito do pobre menino.

Aquela almazinha, feita de garotagem inocente e risonha, tinha momentos de melancolia contraditórios com ela. Faziam-lhe o efeito de falenas voando ao meio-dia.

Essa tristeza, que podia parecer a abstração idiota das crianças enfermas, tinha uma explicação.

Explicava-se por uma história contada por Francesco a uma boa mulher que lhe dera remédios num hospital, onde ele estivera, havia meses. Era uma história pequenina, delicada e triste, uma nênia escrita numa pétala de rosa. Ei-la:

Ainda na Itália, Francesco Picolo tivera uma irmãzinha. Em Nápoles. Antonieta era mais criança do que ele... e tão bonitinha!... Como ele se lembra!... E como se lembra daquela noite de frio!... De frio e de morte; tudo o mesmo...

Ele e Antonieta vagueavam a esmolar longe, muito longe da mansarda onde os recebiam caridosamente para dormir, aos pobrezinhos que não tinham pais... Era tarde e caía muita neve. Umas toalhas brancas assustadoras estendiam-se pelas cumeeiras dos edifícios e pelas ruas.

Ia a noite se adiantando; urgia escolher um abrigo para a noitada, um canto aonde não chegasse a luz nem o olho da polícia.

Os meninos não gastaram muito tempo a procurar; que mesmo não o permitia o cansaço. Sentaram-se a uma soleira, num ângulo sombrio. Abraçaram-se as pobres crianças, apertaram-se, para que cada um aquecesse ao outro com a temperatura do próprio sangue e fecharam as pálpebras enregeladas e sonolentas.

— Que frio! murmurava Antonieta, tiritando.

Quando o dia seguinte se difundiu cor de leite por cima da espessura das neblinas do inverno, Francesco foi despertado pelo dono da loja a cuja porta dormira com a irmã. Reconheceu então, o desgraçado, que cingia nos braços um corpozinho branco, hirto e gelado.

Esse corpozinho foi-lhe arrancado pela polícia e...

Francesco não tinha mais irmã. O dono da loja, compadecido dos soluços que sufocavam o pequeno mendigo, acolheu-o dentro da casa.

Passados três dias, fê-lo embarcar-se com os colonos que iam partir para o Brasil.

— Além do Atlântico, não há inverno. No Brasil o frio não assassina e o pão não falta. Vai criança, e os olhos de Deus não te percam.

Trazido pelas auras desta bênção, chegou Francesco Picolo à América.

Nessa partida estava o segredo da sua tristeza.

Fora disso era um refinado traquinas e o mais ativo vendedor de folhas que se conhecia na rua do Ouvidor.

Giuseppe, o generoso protetor de Francesco, dormia cedo. Quando não passava misteriosamente a noite fora de casa, às oito horas, quem lhe entrasse no quarto vê-lo-ia preguiçosamente estendido numa maca improvisada sobre duas caixas.

Na noite em que Francesco voltou mais cedo, já o malandro roncava na maca. A entrada do menino fez rumor.

— Quem entra? perguntou Giuseppe com uma voz de ébrio, e remexendo-se todo na cama.

— Sou eu, disse o menino.

— Vamos fazer nossas contas. Chegue-se! convidou o dorminhoco erguendo-se a meio, com a mão a esfregar os olhos.

Francesco aproximou-se, com uns passos pequenos, vacilantes. O coração batia-lhe forte e ele sentia na fronte o calor de um diadema de fogo.

A luz do corredor vinha enviesada pelo quarto dentro. Giuseppe notou a dificuldade dos passos do pequeno.

— Então vens bêbado, Francesco? exclamou ele.

O menino não deu resposta.

— Aposto que não trazes hoje nem um vintém...

Francesco sem dizer palavra, tirou a bolsa de couro que trazia pendente do ombro e colocou-a sobre a cama do protetor.

Imediatamente em seguida, foi estender-se sobre um montão de roupas usadas, que jaziam ali para um canto.

Depois de recolher-se um outro italiano da laia do protetor de Francesco e que o auxiliava no pagamento dos poucos mil-réis do aluguel do cômodo, trancou-se a porta deste. A luz do corredor ficou lá fora e o quarto entregue às exalações da imundície que nele reinava e às trevas.

Começou-se então a ouvir uns gemidos apertados, uns arquejos contidos.

Passado algum tempo, bradou uma voz sonora:

— Até que horas teremos essa música?

A música durou pouco.

Minutos mais tarde o gemido calou-se; o arquejo foi substituído por um respirar violento, opresso, sibilante, até que mesmo estes últimos acordes da música se abafaram.

No dia seguinte, abriu-se a porta e a manhã entrou.

Um dos italianos foi para a rua e o outro, o protetor de Francesco, tendo se acordado também, viu o menino ainda a dormir e pulou da maca para despertá-lo. Giuseppe estava furioso. Pois aquele tratante ainda rolava na cama!...

Às cinco horas estavam já longe, as folhas estavam na rua a vender-se e o preguiçoso do Francesco dormia ainda!...

— Ó Francesco! Francesco!

O patife nem se movia.

Giuseppe atirou-lhe um valente pontapé.

— O Francesco!...

O menino, que se acomodara no alto do montão, rodou até aos pés de Giuseppe.

— Estará morto, este diabo? gritava ele com espanto.

Estava morto, sim...

Francesco Picolo morrera durante a noite.

Isto era um transtorno para os negócios de Giuseppe.

Nada menos que um desfalque de quatrocentos réis diários.

— Maladetto Francesco! exclamou ele lançando ao pequeno morto um olhar raivoso, maladetto Francesco!

Não passou disto a oração fúnebre do pobre birichino. Mais compassivo esteve o sol que penetrou no quarto e amortalhar aquele cadáver num raio generoso, vivificante.

Nessa hora, uns sinos ao longe rebentavam em alegres tintilações.

E havia no espaço uma dessas manhãs de cidade, luminosas, festivas que o beatério enche de badaladas e o sol inunda de claridade e de azul.
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* Birichino = rapaz vivaz e atrevido (geralmente dito com indisfarçável complacência).
Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXV


É UM CAMPO VERDE E VASTO
 
É um campo verde e vasto,
        Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
         Sem águas a correr.

Só campo, só sossego,
        Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
        E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
        No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
        O mal é erro e dor.

Agir é não ter casa,
        Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes ou asa
         Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
        Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
         À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
        O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
         E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
         Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
         Nem horizonte no fundo.
====================

EU ME RESIGNO
 
Eu me resigno.
Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que,  vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...

Eu me resigno.
Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põe m tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
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EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
 
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
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EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
 
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
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FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
 
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
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FLOR QUE NÃO DURA
 
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

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FLUI, INDECISO NA BRUMA
 
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.

Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.

É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
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GLOSAS
 
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso,  nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.

Minha Estante de Livros (Estórias da Casa Velha da Ponte, de Cora Coralina)


Decifrar os caminhos da vida de Cora Coralina é adentrar o espaço da memória da cidade de Goiás no estado de Goiás, das suas representações e da complexidade dos deslocamentos entre o passado e o presente da cultura que a constituiu. Falar da obra de Cora Coralina é estabelecer uma conexão forte deste passado, pois ele constituiu a chave fundamental para entender a sua trajetória pessoal e de poetisa.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas chamada de Aninha e pseudônimo Cora Coralina, perdeu o pai aos dois meses de idade e, após este falecimento, sua mãe casou-se novamente. Cresceu no período que corresponde ao fim da Monarquia e a instalação da República no Brasil e foi criada entre nove mulheres.

A vida de Aninha pode ser dividida em três grandes fases: a infância e juventude vivida em Goiás (de 1889 a 1911); o período do casamento, passado em São Paulo (de 1911 a 1955) e a fase da vida madura, na qual Ana voltou a viver em Goiás (de 1956 até o seu falecimento em 1985).

A infância de Aninha transcorreu em um período de restrições materiais, decorrente da decadência da mineração, da abolição da escravidão, das ausências e de lutas pela sobrevivência econômica, social e moral da Villa Boa de Goyaz. Uma época de forte disciplina entre os seus habitantes, herança do período colonial, escravista.

A cidade de Goiás, Patrimônio Mundial e Cultural da Humanidade é o grande personagem dos livros de Cora Coralina. A cidade é apresentada e re-inventada através de uma deliciosa viagem no tempo, promovida pelo texto poético, que inclui simplicidade, odores, cores, sentidos e o movimento cotidiano da vida tranquila e saborosa, coisas boas que perpassam toda a trajetória da sua obra.

O livro Estórias da Casa Velha da Ponte é o quarto dos seus dez livros. Publicado após a morte da escritora possui 109 páginas e transporta o leitor através de dezoito contos pelos mistérios da “Procissão das Almas”, sensações de “… depená o frango na casa da vizinha” e muitos causos da cidade de Goiás. Seus personagens e tradições perpassam as gerações desde o século XIX e a leitura encanta e possibilita uma viagem pelo interior de um Brasil pouco conhecido, “velho documentário de passados tempos, vertente de estórias e de lendas”.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que, segundo W. Benjamim, sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros.

Como toda residência de interior habitada muito tempo pela mesma família, a casa velha da ponte vivia cheia de histórias. Construída "em pedra, madeirame e barro", com as suas "folhas de portas pesadas de árvores fortes descomunais serradas a mão", a sua senzala desativada e seus imensos portais, a própria casa já era uma parte viva da história da cidade de Goiás Velho.

As suas paredes presenciaram histórias de amor e suicídios de escravos, enquanto lagartixas buscavam as brechas para se aquecer. Um dos antigos proprietários, recebedor dos quintos reais, tinha se apossado do dinheiro do Estado. Para fugir da prisão, teria ocultado no porão moedas e barras de ouro, dando origem assim à lenda do tesouro enterrado. Mais tarde, em época de esplendor, a família só "almoçava sua gorda feijoada goiana em pratos e talheres de ouro".

Tradições como essas embalaram a infância de Cora Coralina, criada na velha casa, já então decadente, "cerradas portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam". Essas histórias domésticas e outras vividas na cidade, que impressionavam a menina, são o material vivo e humano do livro, registro de velhas tradições e, ao mesmo tempo, retrato fiel e pitoresco de uma comunidade do Brasil Central no final do século XIX e início do século XX, com as suas prostitutas segregadas, vivendo em becos, capazes de valentias, como a narrada no delicioso Minga, zoio de prata, os famosos raptos de donzelas (“Cortar em Riba do Rasto”), tão frequentes no Brasil antigo, as solteironas (“Quadrinhos da Vida”).

Nem faltam as estórias de assombração e assombramento (“Procissão das Almas”, “O Caso de Mana”), sempre tão vivas no imaginário popular, narradas com aquela insuperável simplicidade e leveza de Cora Coralina, encanto de seus versos, encanto de sua prosa.

Na escrita coralineana se confirma o autobiográfico a partir do título e se efetiva a cada momento do relato. A narradora-personagem traz informações que são passíveis de verificação, outras fazem parte do imaginário popular que ao serem repassadas de geração para geração adquirem feição meio lendária. A questão do ouro enterrado nas paredes da Casa Velha da Ponte foi fato que se popularizou e mesmo Cora Coralina não se furtou à curiosidade de mandar escavar o velho porão em busca do ouro perdido. A Casa Velha da Ponte foi adquirida quando do nascimento de Helena, segunda irmã mais velha de Cora Coralina, pelo seu pai, o Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães, no século XIX.

A Casa Velha da Ponte é elemento provocador de retorno ao passado, de protagonista ela passa a mera coadjuvante dos fatos e dos acontecimentos que fazem parte de sua história. Eles, sem pedirem licença, invadem a cena narrativa e centralizam o motivo da enunciação, depois novamente a Casa volta a ocupar seu espaço e demarca a sua existência em três esferas temporais: no presente, no passado e no mítico.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 25: Vera Vargas

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 41 –

Nossos antepassados certamente sabiam apreciar melhor a vida em relação aos costumes e princípios que temos hoje. Mas se fizemos algo de errado, sempre há tempo para mudar.

Na vida desenfreada dos nossos dias, ficaram de lado o lazer, a recreação, o ócio criativo. Essa é a vida a ser vivida? Inflacionamos os dias com tantos afazeres - até os dispensáveis -, caímos na roda-viva da correria, semeamos o insensível para todo o lado, bestificamos os bons dias, ironizando a vida da própria vida.

Em recente livro o humanista Juan Arsuaga afirmou literalmente que "a vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado. Essa vida não é humana. Deve haver algo mais, e essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza".

E acrescenta o também antropólogo:

"Apreciar a beleza é uma questão de educação e sensibilidade. Procure o que é belo na vida. Há muita beleza".

A missão é trabalhar com afinco, mas viver a vida em plenitude.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lima Barreto (Coisas de "mafuá")

 - Mas, onde esteve você, Jaime?

- Onde estive?

- Sim! Onde você esteve?

- Estive no xadrez.

- Como?

- Por causa de você.

- Por minha causa? Explique-se, vá!

- Desde que você se meteu como barraqueiro do imponente Bento, consultor técnico do “mafuá" (*feira, mercado) do padre A, que o azar me persegue.

- Então eu havia de deixar de ganhar uns "cobres"?

- Não sei! A verdade, porém, é que essas relações entre você, Bento e "mafuá" trouxeram-me urucubaca. Não se lembra você da questão do pau?

- Isto foi há tanto tempo!... Demais o Capitão Bento nada tinha a ver com o caso. Ele só pagou para derrubar a arvore; mas você...

- Vendi o pau, para lenha, é verdade. Uma coisa à toa de que você fez um “lelé” medonho e, por causa, quase nós brigamos.

- Mas o capitão não tinha nada com o caso.

- À vista de todos, não! Mas foi o azar dele que envenenou a questão.

- Qual, azar! Qual nada! O capitão tem os seus "quandos" e não há negócios que se meta, que não lhe renda bastante.

- Isto é para ele, mas para os outros que se metem com ele, sempre a roda desanda.

- Comigo não se tem dado isso.

- Como não?

- Sim. Tenho ganho "algum" - como posso me queixar?

- Grande coisa! O dinheiro que ele te dá, não serve pra nada. Mal vem, logo vai.

- A culpa é minha que o gasto, mas do que não é minha culpa - fique você sabendo - é que você tenha sido metido no xadrez.

- Pois foi. Domingo, anteontem, não fui ao "mafuá" de você?

- Meu, não! É do padre ou da irmandade.

- De você, do padre, da irmandade, do Bento ou de quem quer que seja, o certo é que lá fui e caí na asneira de jogar na tua barraca.

- Homessa! Você foi até feliz!... Tirou uma galinha! Não foi?

- Tirei! É verdade, mas a galinha do "mafuá" foi que me levou a visitar o xadrez.

- Qual o quê!

- Foi, Pena! Eu não tirei a "indrômita" à última hora?

- Tirou, e não vi você mais.

- Tentei passá-la ao Bento, por três mil-réis, como era costume, mas ele não quis aceitar.

- Por força! A galinha já tinha sido resgatada três ou quatro vezes, não ficava bem...

- A questão, porém, não é essa. Comprei A Noite, embrulhei nela a galinha e tomei o bonde para Madureira. No meio da viagem, o bicho começou a cacarejar. Tentei acalmar o animal, ele porém, não estava pelos autos e continuou: "crá-crá-cá, cró-cró-có". Os passageiros caem na gargalhada, e o condutor me põe fora do bonde e, tenho eu que acabar a viagem a pé.

- Até aí...

- Espere. O papel estava despedaçado e, também, para maior comodidade, resolvi carregar a galinha pelos pés. Ia assim, quando me surge pela frente a "canoa" dos agentes. Suspeitaram da proveniência da galinha, não quiseram acreditar que eu a tivesse tirado do "mafuá". E, sem mais aquela, fui levado para o distrito e metido no xadrez, como ladrão de galinheiros. Iria para a "central", para a colônia, se não fosse ter aparecido o caro Bernardino que me conhecia, e afiançou que eu não era vasculhador de quintais, à alta hora da noite.

- Mas que tem isso com o “mafuá"?

- Muita coisa: vocês deviam fazer a coisa clara. Dar logo o dinheiro de prêmio e não galinhas, bodes, carneiros, patos e outros bicharocos que, carregados alta noite, fazem a polícia tome um qualquer por ladrão... Eis aí!

 Fonte:
Lima Barreto. Marginália (obra póstuma), 1953. Crônica de 1921.

VI Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Trovas Premiadas) Nacional Veteranos


Tema: Jorge Amado


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VENCEDORES
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1
Jorge Amado, vida e glória,
bela herança nos deixou;
nas letras, honrou a história,
na história, a vida gravou.
Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca
Angra dos Reis – RJ


2
Jorge Amado nos encanta:
sua obra, vista a fundo,
é ponte que se levanta
de Itabuna para o mundo!
José Ouverney
Pindamonhangaba – SP
 
3

Dona Flor ou Gabriela,
personagens geniais
que em cada história revela
Jorge, dentre os imortais.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG

4  

- Jorge Amado, um literato,
voava quando escrevia,
compondo um lindo retrato
das tradições da Bahia.
Marciano Batista de Medeiros  
Parnamirim – RN


5 (?)
 Com fardas de general
a mãe-de-santo previa...
Hoje, em fardão de "Imortal"
te vejo na "Academia"
  Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ

 
6
Revelou grandes encantos
deste solo abençoado!
Terra de Todos os Santos!
Bahia de Jorge Amado!
Fernando Antônio Belino
Sete Lágoas – MG

 
7
Cheiro de cravo e canela,
gosto de amor delicado:
temperos de Gabriela
aos olhos de Jorge Amado.
Elizabeth Aparecida de Castro Mendonça Fontes
Joinville – SC

8

Versátil, Jorge semeia
talento em qualquer ação;
seu legado é grande teia
viva em cada geração.
Marina Caraline de Almeida Carvalhal
Itaperuna/RJ
 
9

- Um mundo igual à Bahia:
alegre, livre, encantado.
Era por essa utopia
que lutava Jorge Amado.
A. A. de Assis
Maringá – PR


10
Casa do Rio Vermelho,
 de Jorge Amado foi lar.
Em teu portal, me ajoelho,
como se fosse um altar.
 Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora - MG


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MENÇÕES HONROSAS
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1
Disse um dia Jorge Amado
que não morre a trova e quem
faz da trova seu legado
eterniza o amor e o bem.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho – RO


2
Tendo um pincel temperado
com cravo, sal e canela,
Jorge pintou seu pecado
no corpo de Gabriela.
Francisco Gabriel
Natal – RN

3

Nome forte abençoado,
codinome de um guerreiro;
no mundo todo aclamado:
Jorge Amado, Brasileiro!
Paulo Marcelo Ribeiro de Araújo
Estrela Dalva – MG

 4

 Em Salvador, da Bahia,
Jorge Amado devaneia.          
- Cada conflito o escrevia:
eis “Os Capitães da Areia”!
Ari Santos Campos
Camboriú – SC

5

Escritor sempre inspirado,
hoje orgulho nacional,
sem dúvida é Jorge Amado
pela sua obra imortal.
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte – MG


6
Cansado dos ares nobres,
Jorge nas ruas vagueia
na pele dos “anjos pobres”
de seus capitães de areia.
Francisco Gabriel
Natal - RN


7
Autor de livro famoso,
de um enredo bem tramado,
ouso afirmar, orgulhoso,
que Jorge tornou-se... amado...
Antonio Colavite Filho
Santos – SP
 
8

 O grande autor Jorge Amado,
com obras de encantos mil,
nos deixou em seu legado
um retrato do Brasil!
Renata Paccola
São Paulo – SP


9
Jorge Amado e ninguém mais
foi tão grande observador...
tanto que disse: imortais
são a trova e o trovador.
Mário Moura Marinho
Sorriso – MT

10

Gabriela, Dona Flor,
entre outras, teu dom fecundo,
Jorge Amado, és escritor
que mostra a Bahia ao mundo.
Cezar Defilippo
Astolfo Dutra – MG


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MENÇÕES ESPECIAIS
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1
Para ter, em profusão,
um talento bem regado,
quisera, em meu coração,
ter o amor de Jorge Amado!
Elias Pescador
São Paulo – SP

2

Os "quitutes africanos",
já falava Jorge Amado,
hoje se dizem baianos.
Que delicioso bocado!
Luis Parellada Ruiz
Londrina – PR

3

Talento que chegou cedo,
entre lutas impossíveis,
Jorge Amado traça o enredo
dos romances mais incríveis.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG
 
4

Jorge Amado, realista,
 entre risos e tristeza,
 relata a vida hedonista
 dos ricos sobre a pobreza!
Sílvia Alice de Carvalho Soares
Angra dos Reis - RJ


5
É Jorge de 'Gabriela'
que no romance, eu diria,
faz da Cultura a janela
pra iluminar a Bahia!
Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira – PE

6

Pôde o mundo conhecer
da Bahia um bom bocado,
quando o mundo pôs-se a ler
o mundo de Jorge Amado!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo – SP
 
7

O seu nome é Jorge Amado,
grande escritor brasileiro
Partiu deixando o legado
e saudade ao mundo inteiro!
Danusa Almeida
Campos dos Goytacazes – RJ

8

Jorge Amado ao compilar
cores, cheiros e magia
propôs ao mundo escutar
a voz forte da Bahia.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba – SP
 
9

 Devoto do Candomblé,
inspirou-se em Orixás;
Amado, esse homem de fé,
foi um amigo veraz!
 Glória Tabet Marson
São José dos Campos - SP

10 (?)

Voltou, baiano dileto,
pra reatar o que ficou!...
Não houve exílio completo,
tua alma, ninguém levou.
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ


Fonte:
Resultado enviado pela presidente da Seção, Jaqueline Machado.

Aluísio de Azevedo (Polítipo)


Suicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa.

Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exiguidade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das coisas cá da terra.

Não conheci ainda criatura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos, porém, na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.

O livro era excelente, mas a encadernação detestável.

Imagine-se um homenzinho de cinco pés (*1,52 m) de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma ideia do tipo do meu malogrado amigo.

Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança.

Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho vítima de alguma violência, ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita.

E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.

Outro doloroso caiporismo dos seus, era o de parecer-se com todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, amanuense (*escrevente) de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes.

Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao certo. A circunstância da sua falta absoluta de barba dava-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo era quase um bonito moço, porém de baixo para cima era simplesmente horrível.

Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até as orelhas e o chapéu até a gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário, e quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem por, um nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.

Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou comovido:

– Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada!

De outra vez quando ainda a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajes de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor com esta singularíssima frase:

– Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?… E quer ver se me engana com essas calças?

Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia despedido de casa.

Não se dava conflito de rua, em que passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palmadas no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade.

Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo ver nele um colega desertor.

E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.

Uma existência impossível!

Se achava-se numa repartição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:

– Garçom! Há meia hora que reclamo que me sirva.

Se ia provar um paletó na loja do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pareciam com Boaventura.

Num clube familiar, quando o infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão.

– Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?!

O mísero voltara-se inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado àqueles enganos.

Que vida!

Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar.

No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles.

Havia choro a valer e, entre o clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases:

– Meu filho morto! Meu filho morto!

– Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem!

– Ó senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca!

– Mas não me engano! É o meu caixeiro!

– Dir-se-ia que este moço era um meu antigo companheiro de bilhar!…

– E eu aposto como é um velho, que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro!

– Qual velho, o que! Conheço este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!

– Estudante! Ora muito obrigado! Há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era médico velho!

– Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a “Gazeta” à casa. É que a morte alterou–lhe as feições.

– Meu pai!

– O Bernardino!

– Olha! Meu padrinho!

– Jesus! Este é meu tio José!

– Coitado do padre Rocha!

Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa!

E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.