terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 14

 

Aluísio de Azevedo (Último lance)


Dez luíses!

Era tudo que lhe restava!... Eram as últimas moedas da larga e velha herança que até a ele chegara, escorrendo sonoramente, de degrau em degrau, por uma nobre escadaria de avós. Dez luíses!...

E D. Filipe, depois de agitar na mão fidalga, as derradeiras moedas de ouro, encaminhou-se lentamente para o lugar que meia hora antes havia abandonado à banca da roleta.

De pé, apoiado ao espaldar da sua cadeira ainda vazia, deixou cair sobre o tabuleiro verde o seu frio olhar indiferente e altivo. Os números desapareciam afogados no ouro e na prata dos outros jogadores.

Permaneceu imóvel por longo tempo, sem ver o que olhava. Seus sentidos estavam de todo ocupados pelo pensamento que lhe trabalhava aflito dentro do cérebro: - Era preciso refazer a fortuna esbanjada, ou parte dela... Mas com cem mil francos, apenas cem mil! Poderia salvar-se, sem cair no ridículo aos olhos do meio em que se arruinara... Com cem mil francos correria, sem perda de tempo a Paris, solveria as dívidas que ali deixara garantidas sob palavra, e logo em seguida, a pretexto de qualquer exigência da saúde, simularia uma viagem à Suíça e partiria para a América, com o que lhe restasse em dinheiro. Na América engendravam-se rápidas riquezas; descobriam-se dotes fabulosos! Se fosse preciso trabalhar - trabalharia!

Não sabia em que, e como, iria trabalhar, mas a miragem do novo mundo surgia-lhe à imaginação num sonho de ouro; numa apoteose de milagres de reabilitação, em que a sua incompetência para qualquer trabalho produtivo encontraria lugar entre os vencedores. Nenhum programa, nenhuma ideia acompanhava aquela esperança; confiava na América como confiara nas cartas e na roleta. Era ainda uma esperança de jogador. Era a cega confiança no acaso!

Não seria a América também um tabuleiro verde, banhado pelo ouro da Califórnia?... Ele era a moeda jogada num último lance pelo desespero!

Iria!

E, depois?... Como seria belo volver à Europa, muitas vezes milionário, com um resto de mocidade, para continuar a gozar os vícios interrompidos?...

E, enquanto castelavam seus doidos pensamentos, sucediam-se os golpes da roleta, e o ouro e a prata dos jogadores perpassavam em rio por defronte dos seus olhos distraídos.

- Mas, e se eu perder?... interrogou ele à própria consciência.

E o fidalgo não teve ânimo de entestar com a solução que esta pergunta exigia, como se temesse abrir de pronto, ali mesmo, um duro e violento compromisso com a sua honra.

Todavia, se perdesse aquele miserável punhado de moedas, que lhe restava além do... suicídio?... Que lhe restava no mundo, que não fosse ridículo e humilhante?...

E viu-se sem vintém, esgueirando-se como uma sombra pelas ruas escuras, com as mãos escondidas nas algibeiras do sobretudo, fugindo de todos, desconfiado de que a sua irremediável miséria fosse de longe pressentida como uma moléstia infecciosa. Teve um calafrio de terror.

As falazes hipóteses de salvação, que covardemente se lhe apresentavam ao espírito, lembrando amigos ricos e recursos inconfessáveis, eram amargamente repelidas pelo seu orgulho, ainda não vencido.

- Façam suas apostas, senhores! exclamou o banqueiro.

E D. Filipe sorriu resignado e triste, como respondendo afirmativamente para dentro de si mesmo à voz que apelava para seus brios, e, depois de sacudir ainda uma vez as dez moedas, espalmou a sua linda mão inútil e, com um ar mais do que nunca indiferente e sobranceiro, despejou-as na seção do vermelho que à mesa lhe ficava em frente.

- Rien ne va plus!

Uma vertigem toldou-lhe a fingida calma.

A pequena esfera de marfim girava já no quadrante da roleta. Fez-se em toda a sala um silêncio que doía de frio.

Se naquele golpe, em vez de um número vermelho, viesse um número preto, pensou o desgraçado, qualquer mendigo das ruas seria mais rico do que ele!...

E a bola girava já com menos força, prestes a tombar no número vencedor.

O fidalgo deixou-se cair assentado na cadeira, fincando os cotovelos na mesa e escondendo o rosto nas suas duas mãos abertas.

A bola tombou no número. Vermelho!

Os dez luíses de D. Filipe transformaram-se em vinte. E o fidalgo não teve um gesto; esperou novo golpe, aparentemente imperturbável.

O tabuleiro esvaziou-se e de novo se encheu de reluzentes paradas. O banqueiro fechou o jogo; a bola girou, caiu.

Veio outra vez vermelho.

D. Filipe continuou imóvel, sem tirar as mãos do rosto. Sobre os seus vinte luíses derramaram-se outros vinte.

E o jogo continuou, silenciosamente.

E, no meio do surdo ansiar dos que jogavam, um terceiro número vermelho dobrou a parada de D. Filipe, que conservava a sua imobilidade de pedra.

Tão forte, porém, era o arfar do seu peito, que todo o corpo lhe acompanhava as pulsações do coração.

Vermelho!

E oitenta luíses despejaram-se sobre os oitenta luíses do jogador imóvel.

Vermelho!

E o ouro começou a avultar defronte dele.

Vermelho ainda!

E as moedas iam formando já um cômoro de ouro defronte daquela figura estática, da qual só se viam distintamente as duas mãos, muito brancas, ligeiramente veiadas de azul puro.

Ainda vermelho!

E a figura imperturbável parecia agora de todo petrificada. E as duas mãos brancas pareciam fitar escarninhamente os outros jogadores, rindo por entre os dedos fixos.

A imobilidade e a fortuna do singular parceiro começavam a impressionar a todos.

Vermelho!

E já os olhares dos homens e das mulheres não se podiam despregar daquele misterioso companheiro de vício, cuja fisionomia nenhum deles conhecia ainda, absorvido como até então estivera cada qual no próprio jogo.

Vermelho! Vermelho!

E o monte de ouro ia crescendo, crescendo, defronte daquelas duas mãos que pareciam cada vez mais brancas, mais escarninhas, e mais ferradas ao rosto do jogador imóvel.

Vermelho! Vermelho! Vermelho!

E as moedas alargavam a zona inteira, escorrendo por entre os cotovelos do jogador de pedra, e caiam-lhe pelas pernas inalteráveis, e rolavam tinindo pelo chão.

Vermelho! E os jogadores esqueciam-se do próprio jogo para só atentar no jogo do singular conviva; à espera todos que aquelas duas mãos de mármore se afastassem; que aquela escarninha máscara caísse, revelando alguém.

E a cada golpe uma nova riqueza vinha dobrar a riqueza acumulada defronte do sinistro mascarado de mármore. Em vão, ao lado dele, uma formosa criatura, com ares de rainha e olhos de criada, aquecia-lhe havia meia hora a perna esquerda com a sua perna direita; em vão, por detrás da sua cadeira, formara-se um palpitante grupo de mulheres, que riam forte e lhe discutiam a fortuna, apostando, a cada novo golpe da sorte, se o original jogador sustentaria ou não o lance por inteiro.

E já quando o vermelho era ainda uma vez anunciado pelo trêmulo banqueiro, partia de toda a sala uma explosiva exclamação de pasmo.

Era preciso tocar a cada instante o tímpano, pedindo atenção e silêncio.

Mas os comentários reproduziam-se, fervendo em torno da estátua feliz. Uns protestavam contra a loucura daquela pertinácia, pedindo para seu castigo um número negro; outros se entusiasmavam com ela e soltavam bravos de aplauso; outros ainda calculavam o ouro acumulado, somando os lances.

E o banqueiro, cada vez mais pálido, tomava com a mão trêmula a bola fatídica, e, a tremer, fazia-a girar na gamela dos números, e, a tremer, anunciava ofegante o número vencedor que era sempre vermelho.

Cada número vinha acompanhado de um coro de pragas e gargalhadas.

Até que, num desalento do capitão vencido, o banqueiro, dando ainda o último vermelho, anunciou com uma voz de náufrago sem esperanças:

- Banca... à glória!

Mas, nem assim, o imperturbável jogador misterioso fizera o menor gesto; ao passo que em redor dele se acotovelavam os viciosos de ambos os sexos e de todas as nações, formando uma rumorosa e irrequieta muralha, ansiosa de curiosidade.

Chamaram-no de todos os lados, em todas as línguas e em todos os tons.

Ele se não moveu.

Tocaram-lhe no ombro; tocaram-lhe na cabeça.

Nada!

Sacudiram-lhe o corpo.

A estátua continuou imóvel.

Então, dois homens, tomando cada um uma das mãos do fidalgo, arrancaram-lhas do rosto, enquanto um terceiro lhe levantava a cabeça.

E um só grito de horror partiu dentre toda aquela gente.

Quem à glória levara a banca e ali estava imóvel a jogar com eles durante a noite, provocado pelas mulheres e invejado pelos homens, era um cadáver frio, de olhos escancarados a boca semi-aberta, e com duas lágrimas compridas escorrendo pela algidez das faces contraídas.

Largaram-no espavoridos; e o morto tombou com a cabeça sobre a mesa, colando o rosto e as mãos de mármore sobre o seu ouro, como se o quisesse defender da cobiça dos outros jogadores sobreviventes, que já discutiam aos gritos a legitimidade daquela posse.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. 1895.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXIV

À luz de fortes abraços
o amor possa começar,
sempre que cruzar os braços
seja só para abraçar.
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Ao chegarmos neste mundo
começamos um passeio,
por vezes longo e fecundo,
noutras, partido no meio.
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Aos homens faltam alento,
ó Deus nunca os deixeis sós!
Sede Vós o seu sustento
sendo eles a vossa voz.
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Dizem que ninguém aguenta
uma dança de salão,
quando alguém joga pimenta
espalhada pelo chão.
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Entre a tentação do 'ter'
e o poder de dominar
está a sede do 'poder'
levando o homem a sonhar.
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Faça sempre por dever,
não por mera obrigação,
mais do que só por fazer
pode ter vida em ação...
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Fulge forte o sol no além,
mas a vida brilha mais,
outra luz maior não tem
nem há de morrer jamais.
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Gotas de chuva carregam
novas forças para o chão,
lentamente os pingos regam
sobre a terra a plantação.
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Inseridos num contexto
de lutas buscando a paz,
muitos usam de pretexto
guerras que a vida desfaz.
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Licitude e temperança,
virtudes que poucos têm,
confundem com liderança
que à penumbra se sustém.
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Milhares de confidências
fazemos todos os dias,
muitas de benevolências
outras de meras fobias.
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Mundo novo está surgindo
debaixo do nosso olhar,
muitas mãos vão construindo
caminhos pra palmilhar.
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Nas densas noites, errantes,
tememos a escuridão,
nem as estrelas brilhantes
um consolo elas nos dão.
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Nem todo e qualquer lugar
temos um livro pra ler,
na biblioteca do lar
há muito para aprender.
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No mundo das fantasias
vigora a contradição,
a estrela brilha de dia
e à noite o sol faz clarão.
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No reduto dos anseios
emergem nobres projetos,
desenleiam nos passeios
novos caminhos concretos.
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Nunca devemos fazer
algo que não seja honesto,
pra não termos que colher
um fruto amargo e funesto.
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Nunca siga inoperante
pelas estradas da vida,
mas com a fé dum migrante,
rumo à 'terra prometida'.
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O homem peca, não por ser,
tão mau num certo momento,
mas também por não saber,
empregar o seu talento.
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O homem tem seu momentinho
que se torna um Valentão,
teme os dentes do ratinho
mas não teme os do leão.
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Quem projeta se protege
e ao buscar a proteção
toda a tática que elege
lhe assegura a projeção.
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Se a dor devagar nos mata
num gesto cruel e atroz,
está no efeito "cascata"
o inimigo mais feroz.
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"Tá nervoso"? Então nos deixe!
Vá pescar com seu cinismo...
O que tem a ver o peixe
com o tal do nervosismo?
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Tantas lágrimas rolaram
sobre o rosto já cansado,
face as dores que sobraram
dos espinhos do passado.
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Tardes quentes, borbulhantes,
manhãs tépidas, serenas,
quase em tudo semelhantes
às noites calmas e amenas.
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Ter riquezas não condiz
em sentir felicidade,
tem pobre muito feliz
por conter a dignidade.
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Todo retorno presume
uma suposta partida,
sem ele à dor se resume
se quem parte for a vida.
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Tudo tem em seu contorno
algo esquecido jamais,
nada maior que o retorno
do filho à casa dos pais.
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Vivo palácio de cores
nos canteiros do jardim,
rosa, rainha das flores,
rei do perfume, o jasmim.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Raul Pompéia (As Festas de Reis de minha Prima)

Conheci muito o dr. Sinfrônio. Nunca lhe achei cara de poeta... Pois ele o fora!

Uma única vez na vida, às escondidas, como se tivesse vergonha... Mas fora... Vim a sabê-lo, alguns anos depois da sua morte.

Não quero dizer que este póstumo achado lhe valha a glória. Poeta, é modo de escrever. São umas linhas execráveis, sem metrificação nem graça, em que bela rima à toa com janela ou com singela, como no "Era no outono..." de B.Pato...

São versos de paixão, espécie de carta de namoro a linhas curtas, começadas em letra maiúscula.

Mostrou-me o filho, um velho amigo de colégio que me ficou da infância; mostrou-me, fazendo considerações a propósito de certas ingenuidades que todos têm e certas fraquezas em que todos caem. Aquele homem prático, prosaico, impregnado de negócios do foro e alguma política rasteira, empírica de mais, sem horizontes largos, aquele burguês redondo tivera um dia de pieguice aguda na sua vida! Lá estava o corpo de delito, descoberto em meio dum aluvião de rascunhos de correspondências, contas, recibos, papelada forense, traças e poeira.

Era uma página da mocidade incontestavelmente.

O papel estava cor-de-palha e a letra extinta. Mas sentia-se ainda, naquele fragmento de papel, a frescura juvenil de uma alma ardente, embora um tanto avessa à música das liras.

Nada me entristece mais do que um verso apaixonado, e errado! Parece-me a pomba do sentimento, rolando no chão de asas e pés quebrados... Pés quebrados!

Ora, imaginem que pena: - Cupido cambaleante e trôpego!

Quando um homem furta-se aos afazeres positivos da vida e arroja-se ao cometimento de uma estrofe, certo de que não tem veia, nem teve apurada educação literária, contando apenas com um raio celestial de inspiração, guiando-se apenas pela bamba norma fundamental da letra grande, por princípio, linha curta, por base e rima alternada, por fim; quando um mortal faz isto, é que tem todas as vísceras escalavradas de paixão! O amor roeu-lhe já o coração fibra a fibra e começa a morder-lhe as células do cérebro. É um heroísmo que se enternece.

Respeito estas desventuras literárias, quando as descubro, principalmente percebendo que elas queriam ficar sempre escondidas na obscuridade tímida das fraquezas humanas.

No momento em que o meu velho amigo mostrou-me o pecado literário do pai, não foi preciso esforço, para eu conservar-me sério.

"Quando te vejo, ó gentil imagem...

Começava assim a poesia e prolongava-se pelo papel abaixo, exaltando os dotes da minha prima Isaura.

Isaura contava nesse tempo quatorze ou quinze anos e não era absolutamente feia, conquanto já tivesse, no meio da cara o mesmo pedaço de nariz que hoje distingue a maturidade dos seus trinta e oito. Menos crescido, talvez.

A prima Isaura sempre foi namoradeira e nunca achou casamento. Não sei se os namorados espantavam os casamentos, ou se a falta de casamento excitava os namoros. Nunca achou casamento, eis o fato. O único marido que lhe andou ao alcance da mão foi o dr. Sinfrônio.

Sinfrônio teve a fantasia de se apaixonar pela Isaura. Esta, porém, que estreava nos esplendores da puberdade, entendeu que toda a vida os Sinfrônios haviam de ameigar para ela a pupila e desprezou o primeiro à espera de outro mais bonito, senão menos esbodegado.

Sinfrônio era feio e pobre. Acabava de formar-se em direito e queria fazer família, para entrar regularmente na vida prática. Abstraindo-se-lhe o nariz, a Isaura não era detestável. Sinfrônio deitou namoro. De repente, com grande surpresa sua, reconheceu que estava caído perdidamente pela menina... Sempre nariz à parte, suponho.

Neste período, cometeu, fora de si, algumas poesias (entre outras a que eu vira) que, durante as reuniões da família da minha prima, cuja casa ele frequentava, conseguia fazer chegar-lhe às mãos. Isaura deu corda, a princípio. Pouco depois abandonou o pobre Sinfrônio por um pilantra que fingia fazer caso dela.

A ingratidão da menina exasperou o dr. Sinfrônio, que, a modo de desfeita à gentil imagem dos seus malogrados arroubos poéticos, tratou de casar-se logo com outra; e o fez sem dificuldade.

Muito arrependeu-se Isaura, tempos depois, do desdém com que tratara o dr. Sinfrônio. Os Sinfrônios não se repetiram...

E, por maior desdita, foi o nariz avultando com a idade e descrevendo uma órbita insensível em direção ao queixo, que saiu-lhe amavelmente ao encontro...

Ainda hoje cresce o nariz; cresce, e Isaura não desanima. A esperança foi sempre a sua força.

Lá vai uma história que prova evidentemente que a prima Isaura não desanima.

A nossa família retine-se toda para os dias de Natal, Ano Bom e Reis.

Há sempre uma festa em nossa casa, por ocasião dos três grandes dias. Uma festa que dura semanas...

A prima Isaura não falta nunca; vem com a mãe, os cunhados, a melhor gente deste mundo, folgazãos, despretensiosos e amigos de agradar a todos.

No dia de Reis do ano passado, a prima obsequiou-me com um trabalho da sua agulha, uma coisinha chique.

Já não me lembro bem o que era... Desde essa época, observo que não sou indiferente à minha estimável Isaura. Não havia, entretanto, documentos comprobatórios, salvo uns olhares que notei, sorrisos que apanhei no ar, atenções que me cativavam - pura cortesia, em última análise, temperada naturalmente por um afeto vulgar entre primos...

Mas, como qualquer afeto, por mais vulgar que seja, toma caráter grave, quando se trata da prima Isaura, eu esperava tudo...

Dois dias antes do seis de janeiro deste ano, a minha amável Isaura, enfeitada com os pés-de-galinha dos seus trinta e oito e um ligeiro sorriso enrugado nos lábios, acercou-se de mim, meio acanhada...

Tomou-me entre os dedos os berloques do relógio, com uma graça infantil e meiga...

- “Temos coisa”, pensei.

- Edmundo - disse ela - quando me dá as festas... deste ano?...

- E você? prima... – perguntei igualmente.

É o que ela queria.

- Depois de amanhã bem cedo, você há de achá-las... no seu quarto... há de gostar, afianço... E não seja ingrato!

Dado o recado, Isaura deixou os berloques e afastou-se, confusa como uma noiva, levando diante de si, como um belo fruto maduro e longo, o magnífico nariz, ruborizado de velhos pudores virginais.

Álea Jacta!

No dia de Reis, ao levantar-se, de manhã, observei, através da meia treva do quarto fechado, que, sobre a minha mesa, havia alguma coisa.

Eram flores elegantemente apertadas em buquê e uma carta, um pequeno envelope fechado.

Flores! Carta! Bravíssimo, senhora minha prima!

- Ah, meus pressentimentos negros! – suspirei.

E suspirando abri a janela. A luz alegre da manhã caiu sobre as flores, palpitantes de frescura, rociadas de brilhantes gotas d'água. Que esplêndida coroa de cravos rubros e que formosa camélia branca ao centro!

Admirei de uma só vez as flores e o bom gosto da minha Isaura. Que mimo!

E a carta!... E o envelope! Uma joia de papelaria! Pombos em cromo, entretecidos com malmequeres e rosas...

Tive pena de rasgar aquilo.

Uma letra bonita desenhava em sobrescrito - Primo Edmundo.

Eram as festas efetivamente da Isaura; quase posso dizê-lo já - da minha namorada Isaura!

Quando abri o envelope, foi como se quebrasse um frasco de perfume... A carta era uma poesia!

Com certeza a intensa nuvem de aromas que me povoava o quarto vinha das flores daquelas estrofes!

Versos de amor! Santo Deus! Acordo em dia de Reis, entre os braços parnasianos de Safo!

De repente, estremeci... Era possível?!... Mas eu conhecia aqueles versos!...

Li-os outra vez:

"Quando te vejo, ó gentil imagem

Ora, ora! Eram os versos, os cambaios versos do dr. Sinfrônio, impingidos em segunda edição, e assinados sobre aquele delicioso papel de cetim pelo doce nome de Isaura!...

Tu, só tu, puro amor!...

Uma vez, um pobre apaixonado armara umas palavras desconcertadas, parecendo, de longe, versos... Vinte e tantos anos mais tarde, uma apaixonada, amorosa até o crime, plagia ousadamente a coisa e a impinge como sua, masculinizando-lhe devidamente o sentido!...

Mistos de ousadia e fraqueza que amor prepara.

Notável coincidência fora aquela de ter visitado, dias antes, o filho do falecido Sinfrônio!... que eu tanto conhecera, sem nunca descobrir-lhe vestígios do fogo sagrado que um dia lhe acendera no cérebro a paixão violenta e que o levara a urdir trabalhosamente a epopeia dos encantos de Isaura, para muitos anos depois, esta respeitável senhora, mutatis mutandis, converter em mavioso hino de amor (por este seu criado!) e festas de Reis, acompanhando o hino de uma coroa de cravos rubros com uma camélia branca ao centro!...

Triste destino dos poetas!

Malvadas tentações de Cupido!

Incansável Isaura!

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. UFSC. Conto publicado em 1884.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte I

Alguns autores não gostam muito de escrever a estrutura do enredo de seus textos, preferindo algo mais fluido e direto. Entretanto, essa estratégia ajuda a dar uma noção melhor da história que se quer desenvolver. No fim das contas, ela serve de guia para detalhes como ambientação, personagens e eventos transcorridos, além de ser a solução de muitos bloqueios criativos.

 
MONTANDO A PIRÂMIDE DE FREYTAG

1. Identifique as seções da pirâmide de Freytag.

O esquema quinário de Freytag, mais conhecido como pirâmide de Freytag, é uma das formas mais tradicionais de estruturar o enredo de uma história. A pirâmide é dividida em seis seções (ou cinco, dependendo da fonte): introdução, incidente incitante, ação em ascensão, clímax, ação de queda e resolução. A introdução fica em uma linha à esquerda da pirâmide, seguida pelo incidente na base, a ação em ascensão na curva, o clímax no topo, a ação em queda na curva da direita e a resolução na linha também à direita.

Esse tipo de diagrama é comum entre autores de romances que precisam estruturar as ações na história. A pirâmide ajuda a mostrar se o enredo contém todos os elementos e se acarretaria uma reação positiva nos leitores ao ser publicado.

Você pode esboçar a pirâmide ou escrever somente os nomes das seções, mas às vezes vale a pena ter a representação visual nessa etapa.

2. Pense em uma introdução cativante.

Muitos romances começam já pelo incidente incitante, mas não custa nada partir da introdução, que integra os estágios de planejamento do enredo.

Identifique os elementos desse estágio e você vai enxergar melhor o protagonista e os temas centrais em jogo.

A introdução deve incluir a ambientação da história, dar informações do protagonista e falar um pouco do conflito dele.

Você pode resumir isso tudo em algumas linhas ou pensar em uma cena completa, na qual o protagonista esteja conversando com outros personagens e explorando o mundo.

Por exemplo: Harry Potter, de J.K. Rowling, é uma das franquias de maior sucesso da literatura contemporânea. O primeiro livro da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal, apresenta o leitor ao protagonista, o pequeno Harry. Ao mesmo tempo, ela leva o leitor ao mundo dos trouxas e dos bruxos da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

3. Identifique o incidente incitante.

O incidente incitante é o evento da história que muda o rumo da vida do personagem principal. Ele pega o protagonista de surpresa, apresenta um risco sério e, muitas vezes, aparece logo depois da introdução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, o incidente incitante acontece quando Harry recebe a visita do meio gigante Hagrid, que revela que o jovem é um bruxo e foi aceito em Hogwarts. Essa informação muda não só a vida, mas a trajetória de Harry enquanto personagem. O garoto deixa a situação de miséria com os Dursley e o mundo dos trouxas para trás e viaja à escola, dando o pontapé inicial à sua jornada.

4. Crie a ação em ascensão.

A ação em ascensão, que fica na curva ascendente da pirâmide de Freytag, é a seção mais longa do enredo. Nela, você vai desenvolver os personagens, explorar o relacionamento de uns com os outros e organizar os eventos importantes que levam ao clímax.

Além disso, a sensação de suspense e mistério fica cada vez maior conforme a ação em ascensão avança. A ação em ascensão inclui uma série de eventos e você tem a opção incluir cada um na pirâmide de Freytag. Só não se esqueça de deixar os acontecimentos mais tensos e arriscados próximos ao clímax.

Veja, por exemplo, a série de eventos na seção da ação em ascensão de Harry Potter e a Pedra Filosofal:

Harry acompanha Hagrid ao Beco Diagonal, onde compra todos os materiais de estudo necessários (incluindo a varinha mágica). Harry deixa a casa dos Dursley e toma o trem para Hogwarts na plataforma 9¾. Em seguida, ele conhece outros três personagens principais da série: Rony Weasley, Hermione Granger e Draco Malfoy, que se torna um dos inimigos do jovem bruxo. Harry recebe a Capa da Invisibilidade. Harry toma conhecimento da Pedra Filosofal e conta o que sabe a Rony e Hermione.

5. Escreva o clímax da história.

O clímax é o ponto mais tenso e importante da história para o protagonista e o próprio leitor. É nele que o personagem principal sofre um grande baque, se vê obrigado a tomar uma decisão importante e assim por diante.

Muitas vezes, trata-se também de um evento externo a que o protagonista precisa sobreviver para chegar à ação de queda e, por fim, à resolução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, o clímax acontece quando Harry descobre que existe um plano em ação para roubar a Pedra Filosofal. Ele se une a Rony e Hermione para proteger o artefato.

6. Identifique a ação de queda.

A ação de queda é a parte mais movimentada da história, quando o enredo acelera para chegar à resolução. O leitor deve estar em constante suspense ao longo da seção, conforme descobre como o protagonista lida com o clímax.

A ação de queda pode se estender por diversos capítulos, principalmente se o protagonista estiver lidando com um clímax muito intenso. Ela chega a ter ares de uma jornada completa, apesar de ser mais acelerada, e leva os personagens à resolução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry é obrigado a tomar uma série de decisões de vida ou morte para evitar que a Pedra Filosofal caia nas mãos erradas. Essa jornada é contada ao longo de alguns capítulos, nos quais o jovem bruxo precisa ultrapassar diversos obstáculos.

7. Crie a resolução da história.

A resolução, também chamada de conclusão, acontece no fim do enredo. É nessa seção que o leitor descobre se o protagonista obteve êxito na sua jornada ou se fracassou. Muitas vezes, ela também revela como o personagem principal mudou ao longo da obra, seja física, mental ou psicologicamente (ou de todos os jeitos). Ele deve enxergar o mundo de um jeito diferente em relação à visão que tinha no início.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, a resolução acontece quando Harry confronta o Professor Quirrell na última câmara que contém a Pedra Filosofal. O jovem descobre que Quirrell foi possuído pelo Lorde Voldemort e, em seguida, combate o bruxo das trevas pela pedra. Harry vence, desmaia de cansaço e acorda na enfermaria de Hogwarts, rodeado de amigos. Depois, o Professor Dumbledore o visita e conta que o menino sobreviveu à luta por causa do amor de sua mãe. A Pedra Filosofal é destruída, Voldemort torna a desaparecer e Harry volta à casa dos Dursley para as férias de verão.

8. Brinque um pouco com as seções da pirâmide.

O bom de começar com a pirâmide de Freytag na ordem certa é que tudo fica mais claro na sua cabeça, mas você também pode ajustar as seções nos esboços seguintes. Que tal começar com o incidente incitante e só depois falar da introdução? Ou colocar o clímax bem no final, em vez do meio?

Experimente opções que deixem o enredo mais único e dinâmico. Faça este exercício: escreva as partes da pirâmide em post-its e cole na parede. Depois, reorganize-os até achar uma ordem que seja interessante.


Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Versejando 99

 

Sammis Reachers (Ele não queria ser motorista...)

Alcemir 'Maricá' trampava há 25 anos como cobrador da Ingá. Era homem de baixa estatura e corpo magro, conservado apesar da idade. Rosto sempre de sobrancelhas franzidas, como se fosse um cara 'brabo'.

Mas de brabo só mesmo a cara, e acerta o ditado quando diz que quem vê cara, não vê coração...

Entre lutas e dívidas, certo dia sua mulher, morena forte e enfezada, de estatura bem maior que a dele, mandou esse recado na cara do pequeno Alcemir:

- Agora chega, Alcemir! Com esse seu salário de fome não dá pra gente viver! Ou você vira motorista, ou eu largo de você e arrumo um!

No dia seguinte lá foi o nosso Alcemir, triste e amuado, falar com a chefia da empresa. Antigo e bom funcionário, ele imediatamente conseguiu uma chance na garagem, ou 'escolinha',

- Hoje à tarde mesmo você pode vir fazer o teste.

E assim, à tarde lá estava o assustado Maricá. O chefe da garagem era o lendário 'Seu' Joel, excelente, mas muito, muito exigente profissional. Um verdadeiro sargentão. Após as apresentações, Joel diz:

- Bem senhor Alcemir, sei que o senhor já sabe dirigir, pois possui carteira de motorista, categoria B. Está vendo aquele ônibus ali? Vá até lá, ligue o carro e saia bem devagarinho.

Missão dada é missão cumprida; Maricá entrou no veículo, sentou-se no 'cockpit', limpou o suor do rosto tenso. Girou então a chave na ignição e ligou o motor; mas em seguida, ao invés de liberar o freio de mão e passar a marcha à ré. Maricá levantou-se do banco e desceu do veículo bem, mas bem devagar (afinal Seu Joel não lhe mandara ligar o carro e sair bem devagarinho?), na ponta dos pés e olhando assustado para o Seu Joel, que não acreditava no que via...

Hoje o Alcemir, conformado, é um ótimo profissional do volante e continua a prestar serviços para a mesma casa, com ótima conduta e presteza.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Acrobacia Inesperada)

Esta aconteceu no pátio da Sorocabana, no tempo em que Itararé era o maior entreposto madeireiro da América do Sul, e os lados da linha férrea eram completamente cercados por pilhas e mais pilhas de tábuas que ofereciam como passagem apenas estreitas e pequenas aberturas entre si.

Minha irmã Linéa e eu saímos numa tarde de domingo para visitar nossa amiga Lídia que morava do outro lado da linha.

O movimento no pátio era intenso e as manobras ininterruptas tornavam o cruzamento dos trilhos um perigo para quem não tivesse algum traquejo.

Por isso mesmo, já de antemão a Lídia se oferecera para orientar-nos na complicada travessia. Ela era filha do chefe da estação e tinha uma habilidade incrível para se locomover no meio daquele inferno de máquinas em constante movimento. À hora marcada, lá estava ela à nossa espera.

Naquele tempo todo mundo gostava de se trajar muito bem, mas nos domingos a coisa era um exagero! Estavamos as três elegantíssimas, os vestidos muito bem ajustados, meias finas e altíssimos sapatos de salto Luis XV que mal nos permitiam manter o equilíbrio. E assim equipadas, fomos enfrentar a difícil operação.

Passamos os trilhos e chegamos a um ponto em que a abertura entre as pilhas de tábuas era mínima. Estávamos justamente procurando o melhor jeitinho de passar para o outro lado sem rasgar a roupa, desfiar a meia, ou até mesmo enroscar o salto e quebrá-lo, danificando toda aquela irrepreensível elegância... quando eu olhei para um lado e a certa distância avistei um grande animal chifrudo.

"Lídia, o que é aquilo?"

"É um bode", respondeu ela com um arzinho entre preocupado e gaiato. "E ele avança na gente..."

"E que tal se ele inventa de avançar na gente agora? Neste lugarzinho mais crítico?"

Parece que o bicho escutou nossa conversa, pois foi eu acabar de falar e ele desembestou para o nosso lado numa velocidade que só avião a jato! Nenhuma de nós viu mais nada... Quando nos demos conta, estávamos as três confortavelmente instaladas, minha irmã e eu em cima de uma pilha, e a Lídia em outra. O bode ficou no meio...

"Venham aqui", chamava ela, rindo meio nervosa.

"Venha você para cá", respondíamos.

Situação mais ridícula era impossível. Apesar do susto, davamos boas risadas. E ali ficamos até que apareceu um garotinho, provavelmente o dono do bicho. Pegou o animal pela cordinha do pescoço e ele o seguiu docilmente, deixando o caminho livre para nós.

"Vamos descer!"

Falar foi fácil. Descer é que foi o diabo! Coisa mais inexplicável era minha irmã encontrar-se ali cm cima, ela que não conseguia subir nem em uma cadeira, que lhe dava tonturas... Quanto a mim, sempre fora chegada a proezas daquele gênero, eternamente enroscada aos galhos mais altos das árvores as quais me identificava como um verdadeiro macaco. Mas de saia justa, salto alto e meias... bem, a coisa em um pouco diferente. Se a escalada fora uma brincadeira, a descida foi uma barra!

Finalmente no chão, ajudei a Linéa, desajeitada para aquele tipo de coisa e medrosa como ela só! Não sei como a Lídia tinha se arranjada, mas já descera.

Estavamos intactas. Nem um fio de meia puxado. Lindas e arrumadinhas chegamos à casa da Lídia para uma tarde gostosa que terminou com chá, biscoitinhos e os deliciosos docinhos de banana que ela tão bem sabia fazer.

E tudo isso apesar de — literalmente - ter dado "bode" no programa...

(Tribuna de Itararé- 10/10/84)


Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Adega de Versos 68: Reginaldo Albuquerque

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 42 -

Na minha opinião existem dois tipos de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar.
Érico Veríssimo (Cruz Alta/RS, 1905 – 1975, Porto Alegre/RS)

E as viagens? E aquele sujeito com a bonomia na intimidade, possuído pelos demônios das viagens?

Há tempo viajou para outras paragens nas planuras do universo. Deve estar junto ao Quintana, lá na estrela Aldebarã.

O escriba da póvoa de Cruz Alta nos deixou tanta coisa boa - os escritos, a cordialidade, o bom papo junto à sua Mafalda, sempre divertida. Ficaram também seus livros de viagens - México, Gato Preto em Campo de Neve, Israel em Abril, A Volta do Gato Preto - , além das vilegiaturas em forma de romances nos caminhos do tempo e o vento, escritos junto a solos de clarineta.

Livros e viagens se misturam quando estamos na estrada. Caminhos e destinos.

Embrenhar nas leituras é entrar no mundo das viagens. Cada livro é uma viagem. Cada viagem, um livro aberto.

Que deleite andejar pelas leituras, trilhando por tantos livros. Que delícia ser obsessionado pelo demônio das viagens.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (Esperando...)

– Fecha aquela janela que deita para a rua... assim; abaixa o estore*... agora abre as duas do jardim.

– Está bem?

– Está bem. Vai arranjar-te; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabelo da testa; gosto das testas nuas!

A criada saiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, cantarolando, na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário favorito sobre uma corbeille* de flores naturais, daí a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhinhas mais tenras; revistava as garrafas de cristal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta palavra: “– Adoro-te!”

Modificava, sob o musgo fresco da fruteira, a posição das uvas e dos pêssegos vermelhos, mudava para outro lado o galheteiro; alisava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o store de cretone branco, e, debruçando-se das janelas do jardim, puxava para dentro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguesinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère*.

Correu a reparar as duas faltas e saiu. Foi à cozinha.

– Então, André, a sopa está boa?... e o peixe... deixa-me ver o peixe...

E, avançando o narizinho arrebitado, ela cheirava as panelas, fazendo os seus comentários:

– Olha, ó André, o rosbife não me parece bom...

O cozinheiro franziu a testa, indignado; ela continuava:

– Ora! as ervilhas estão com bispo; logo as ervilhas, de que Luís gosta tanto!

– Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas!

– Não estão queimadas! E que cheiro é este?

– É mesmo o cheiro das ervilhas.

– Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo?

– Prove-as, minha ama.

Para convencer-se ela provou as ervilhas; achando-as deliciosas, murmurou disfarçadamente: está bom, está bom... e os bolinhos, fez?

– Esqueci-me: também há tanta coisa!...

Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luís, com quem se casara havia apenas um ano, ela voltou para dentro.

Foi pedir conselhos ao seu psyché*. Estava pálida. “Isto há de ser, pensou, por causa das fitas verdes.”

Trocou-as por fitas azuis... estudou-se: continuava feia... “Bem! agora, fitas cor-de-rosa... hão de me ir melhor...” Mas as fitas cor-de--rosa desagradaram-lhe tanto como as azuis e as verdes. Lembrou-se do colar de coral. Os colares de coral passaram de moda... mas que importa! são bonitos! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afogou entre as rendas do peito a flor cor de sangue de uma orquídea nova.

“São quase seis horas! Luís não tarda! vou esperá-lo ao piano!”

Tocou várias peças, ora um idílio, ora uma sonatina; mas, impaciente, descaiu a dedilhar polcas e valsas.

De vez em quando levantava-se, ia à janela. Viu passar um vizinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou:

“A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... ele tem mais pressa de a ver do que Luís de me ver a mim!...”

Após o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bonde imediato; viam-no quase sempre passar através das grades do jardim, onde ela descia para receber Luís.

O relógio marcava já seis e um quarto! Ela não voltou para o piano: instalou-se na janela. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu. Parecia que iria devorar todo o rosbife! “Decididamente, Luís, supunha ela, teve algum negócio grave a prendê-lo até mais tarde... aposto em como vem naquele bonde...” Mas o bonde passou. “Vamos a ver! se o primeiro carro que passar for tilburi, é porque ele vem antes das seis e meia; se for coupé é porque só vem às sete.” O primeiro carro a passar foi uma caleça. Às sete horas Luís não tinha chegado.

A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar; a infeliz rapariga, em pouca harmonia com o cozinheiro, estorcia-se de fome. A ama repreendeu-a: quando for ocasião, eu saberei mandar servi-lo! disse.

Ela já não tinha vontade de comer: passada a hora habitual, o estômago não sentia necessidade de alimento. Entretanto, continuava à janela.

Eram já sete e meia! A casa do Ramos iluminava-se; apareciam vultos na sala de visitas; uma das filhas ia para o piano e ela adivinhava o Ramos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado da esposa, que estava de casaco branco e saias engomadas. “São velhos, e são mais felizes do que eu”, suspirava.

Deram oito horas. Voltava muita gente para a cidade, de onde os bondes vinham agora quase vazios. Por que será que Luís não veio? conjecturava a triste esposa. Saiu da janela, e, caindo em uma poltrona, começou a chorar.

Erguia-se no seu espírito uma suspeita: a infidelidade de Luís!

“Ele ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer!” Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! E Luís, quando chegasse, compreenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levantou-se, foi ao seu quarto e, tendo vestido uma capa, ia colocar o chapéu, quando foi ferida por uma ideia horrorosa: Um desastre! “Meu Deus! exclamou a pobrezinha: Luís foi pisado por algum trem!...”

Aterrorizada, hirta, no meio do quarto, ela assistia a toda a cena. O marido atravessava a rua, correto, distinto, elegante... súbito, esbarra-se nele um indivíduo, cai-lhe a luneta; Luís curva-se para erguê-la; nisto ouve gritos, é atropelado, cai, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ventre! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luís é tirado em braços, esfacelado, inerte, morto!

Correu de novo à janela, debruçou-se: ninguém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luís, Luís! e as lágrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pálidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente sucedera ao esposo um desastre qualquer! Lembrou-se de ter visto no escritório, uma vez que lá fora surpreendê-lo no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquilo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse dessa arma tão perigosa... Quem lhe diria que não fosse esse maldito revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo!? Ele era distraído e míope: puxando uns papéis, tateando a mesa, à procura de algum objeto, poderia bater no gatilho e a bala ter partido!

A cada carro que se aproximava ela estremecia: “É ele, vem-no trazer desfigurado... moribundo... Ó meu Luís! meu Luís!!

Nisto uns passos conhecidos esmagam a areia do jardim, ela levanta-se e escuta... sobem a escada, tocam de uma maneira especial a campainha; e ela, reconhecendo o sinal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, comovida e trêmula!

– Que é isso, Mimi? perguntou ele, atônito; como estás transtornada!

– Oh! Luís! por que tardaste tanto?! Que susto que eu tive! Meu Deus! Deixa-me ver-te bem! Que te sucedeu?!

– Mas, filha! não me sucedeu nada de extraordinário! Tolinha! É preciso acostumares-te!

– Acostumar-me...

– Terás muitas vezes de jantar sozinha...

– Ah!

Enquanto ele lhe expunha o motivo da sua ausência, ela via, magoada, extinguir-se o inolvidável período da sua lua de mel!

Como badaladas fúnebres, soavam e ressoavam aos seus ouvidos as frases do marido:

– É preciso acostumares-te... Terás muitas vezes de jantar sozinha!
= = = = = = = = = = = = =
Notas:
Corbeille = Coroa.
Estore = tipo de persiana ou cortina.
Étagère = Aparador.
Psyché = Espelho


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXVII

VINHO


MOTE:
O sol engravida a chuva,
e a terra se faz seu ninho,
no ninho se faz a uva,
e a uva desfaz-se em vinho!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
O sol engravida a chuva,

com carinho, gota a gota,
como se fosse uma luva
na mão da Chuva Garota!

Produz-se morna umidade
e a terra se faz seu ninho,
e em grande fertilidade
vai nascendo o seu carinho!

O Sol, então, coadjuva,
formando um ninho de amor...
no ninho se faz a uva,
de delicioso sabor!

Numa simbiose preciosa
vemos, aberto o caminho,
nascer a uva gostosa...
e a uva desfaz-se em vinho!
= = = = = = = = = = = = =

TUA CARTA

MOTE:
Tua carta inesperada
tantas lembranças me trouxe,
que eu vivi de um quase nada,
um quase tudo tão doce!...
Analice Feitoza de Lima
(Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP)


GLOSA:
Tua carta inesperada

me chegou fazendo alarde;
era tão apaixonada,
que coloriu minha tarde!

Essa carta, em minha mão,
tantas lembranças me trouxe,
que um temporal de emoção,
em minha alma triste, armou-se!

A quimera idealizada
no real foi se tornando,
que eu vivi de um quase nada,
o amor que vinha chegando!

E a minha ânsia de amar,
não ligou que um sonho fosse,
pois, a mim, fez vivenciar
um quase tudo tão doce!…
= = = = = = = = = = = = =

RENASCER

MOTE:
Na vida tem melhor sorte
quem consegue vislumbrar
não um fim dentro da morte
mas um novo despertar!
Arlindo Tadeu Hagen
(Juiz de Fora/MG)

GLOSA:
Na vida tem melhor sorte

aquele que tem, na fé,
seu verdadeiro suporte
e enfrenta a vida de pé!

É bem mais feliz, verdade,
quem consegue vislumbrar
essa doce realidade,
sempre a nos acompanhar!

Entender que é um transporte
a uma outra dimensão,
não um fim dentro da morte,
pois a morte é evolução!

Nascer, morrer, renascer!
E pra sempre continuar,
pois um fim não vai haver,
mas um novo despertar!
= = = = = = = = = = = = =

QUANDO MORRE…

MOTE:
Quando morre um trovador,
o céu fica mais bonito.
– Mais uma estrela do amor
a cintilar no infinito!
Benedito Vieira Telles
(Maringá/PR)

GLOSA:
Quando morre um trovador,

só a Terra fica triste,
pois perdeu um grande amor,
que, agora, não mais existe!

Mas o céu, fica radiante,
o céu fica mais bonito,
ele fica mais brilhante,
e acolhe o filho bendito!

Nasce no céu, com fulgor,
unindo, então, suas trovas,
– Mais uma estrela do amor
entre as estrelas mais novas!

Trovador, a tua luz
lançada aos céus, como um grito,
é a estrela que reluz
a cintilar no infinito!
= = = = = = = = = = = = =

MINHAS LÁGRIMAS

MOTE:
Amanhece… e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho
mas minhas lágrimas... não!
Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)

GLOSA:
Amanhece… e eu me agasalho

no sonho que me restou,
nesse meu sonho grisalho
que em meu coração ficou!

Mas eu me sinto sozinho,
na mais fria solidão,
é gelado o meu caminho,
cheio de pedras no chão!

O Sol faz o seu trabalho,
mas não brilha para mim,
porque o sol enxuga o orvalho
mas nem me vê triste, assim!

O Sol acarinha o mundo
em profunda inspiração,
abranda um penar profundo,
mas minhas lágrimas... não!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. julho de 2005.

sábado, 29 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 28: Orlando Brito

 

Machado de Assis (A Cena do Cemitério)

Não mistureis alhos com bugalhos; é o melhor conselho que posso dar às pessoas que leem de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo horrível. Escutai; não perdereis os cinco minutos de audiência.

Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornais de manhã, o fiz à noite. Pouco já havia que ler, três notícias e a cotação da praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que aparecem. A cotação da praça, conquanto tivesse a mesma feição, não a li com igual indiferença, em razão das recordações que trazia do ano terrível (1890-91). Gastei mais tempo a lê-la e relê-la. Afinal pus os jornais de lado, e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakespeare. O drama era Hamlet. A página, aberta ao acaso, era a cena do cemitério, ato V. Não há que dizer ao livro nem à página, mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom. Eram alhos com bugalhos.

Sucedeu o que era de esperar, tive um pesadelo. A princípio, não pude dormir, voltava-me de um lado para outro, vendo as figuras de Hamlet e de Horácio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a balada e a conversação. A muito custo, peguei no sono. Antes não pegasse! Sonhei que era Hamlet, trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até aí nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural, ele não o achou menos. Saímos de casa para o cemitério, atravessamos uma rua que nos pareceu ser a Primeiro de Março e entramos em um espaço que era metade cemitério, metade sala. Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas ou incompletas, mistura de coisas opostas, dilacerações, desdobramentos inexplicáveis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia ser cemitério. Tanto era que ouvimos logo a um dos coveiros esta estrofe:

 Era um título novinho,
Valia mais de oitocentos;
Agora que está velhinho
Não chega a valer duzentos.


Entramos e escutamos. Como na tragédia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ofélia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papéis. A um deles ouvia bradar que tinha trinta ações da Companhia Promotora das Batatas Econômicas. Respondeu-lhe outro que dava cinco mil réis por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela boca de José: "Meu senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o plantassem era indício certo da decadência e da morte."

Não entendi bem, mas os coveiros, fazendo saltar caveiras do solo, iam dizendo graças e apregoando títulos. Falavam de bancos, do Banco Único, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os respectivos títulos eram vendidos ou não, segundo oferecessem por eles sete tostões ou duas patacas. Não eram bem títulos nem bem caveiras; eram as duas coisas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos de olhos, dentes por assinaturas. Demos mais alguns passos, até que eles nos viram. Não se admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e vender. - Cem da Companhia Balsâmica! - Três mil réis. - São suas. - Vinte e cinco da Companhia Salvadora! - Mil réis! - Dois mil réis - Dois mil e cem! - E duzentos! - E quinhentos! - São suas.

Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui interrompido pelo próprio homem: "- Pronto Alívio! meus senhores! Dez do Banco Pronto Alívio! Não dão nada, meus senhores? Pronto Alívio! senhores... Quanto dão? Dois tostões? Oh! não! não! valem mais! Pronto Alívio! Pronto Alívio!" O homem calou-se afinal, não sem ouvir de outro coveiro que, como alívio, o banco não podia ter sido mais pronto. Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakspeare. Um deles, ouvindo apregoar sete ações do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto à reticência. Como espírito, não era grande coisa; daí a chuva de tíbias que caiu em cima do autor. Foi uma cena lúgubre e alegre ao mesmo tempo. Os coveiros riam, as caveiras riam, as árvores, torcendo-se aos ventos da Dinamarca, pareciam torcer-se de riso, e as covas abertas riam, à espera que fossem chorar sobre elas.

Surgiram muitas outras caveiras ou títulos. Da Companhia Exploradora de Além-Túmulo apareceram cinquenta e quatro, que se venderam a dez réis. O fim desta companhia era comprar para cada acionista um lote de trinta metros quadrados no Paraíso. Os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível? Esta dúvida entrou no espírito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlântico, para ir consultar um teólogo europeu, levando consigo tudo o que havia mais cognoscível entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da companhia. Eis aqui, porém, surdiu uma voz do fundo da cova, que estavam abrindo. Uma debênture! uma debênture!

Era já outra coisa. Era uma debênture. Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome do título. Uma debênture? - Uma debênture. Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia:

- "Alas, poor Yorick!" Eu o conheci, Horácio. Era um título magnífico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloquente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? Diz-me cá, Horácio.

- Meu senhor...

- Crês que uma letra de Sócrates esteja hoje no mesmo estado que este papel?

- Seguramente.

- Assim que, uma promessa de dívida do nobre Sócrates não será hoje mais que uma debênture escangalhada?

- A mesma coisa.

- Até onde podemos descer, Horácio! Uma letra de Sócrates pode vir a ter os mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta debênture.

- Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ela.

- Nada? Pobre Sócrates! Mas espera, calemo-nos, aí vem um enterro.


Era o enterro de Ofélia. Aqui o pesadelo foi-se tornando cada vez mais aflitivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o jovem Laertes saltou dentro da cova, saltei também; ali dentro atracamo-nos, esbofeteamo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava...
 
- Acorde, patrão! acorde!

Fonte:
Machado de Assis. Páginas recolhidas. 1894.

Baú de Trovas XLI


O amor, para ser gostoso,
jamais deve ser pamonha!
Tem de ser escandaloso,
cego, surdo e sem-vergonha...
A. A. DE ASSIS

Lá vêm os noivos chegando!
Assisto a festa... e depois,
fico invejoso pensando
na festa só deles dois...
ADAUTO GONDIM

A caminho do cartório,
ante o fado me prosterno:
— perto dela... é o purgatório!
E longe dela... o inferno!
ANTÔNIO TORTATO

De tanto falar asneira,
com franqueza, o Dr. Caio
mais parece uma toupeira
com ares de papagaio...
APARÍCIO FERNANDES

Quem da sogra fala mal,
naturalmente se esquece:
neste mundo cada qual
tem a sogra que merece.
AUGUSTO ASTÉRIO DE CAMPOS

Fui ao cinema contigo
e ficamos de mão dada.
Do nosso amor eu sei tudo,
do filme não soube nada!...
CECIL RAMON MODESTO

Quando o doutor Serafim
deixou, rico, a medicina,
a Morte gemeu assim:
— Como vou ficar mofina!
CELSO FURTADO DE MENDONÇA

O boquinha, volta e meia,
bebendo pela cidade,
é sempre de cara cheia
que enfrenta a cara metade...
COLBERT RANGEL COELHO

Apesar de tão variável
em beleza e sentimento,
a mulher é incomparável
naquele certo momento...
DAMIÃO MENDONÇA DE SANTANA

Se a mulher é admirável,
tome um bom chá de cautela,
— pois ela será variável
na proporção em que é bela!...
DIOMEDES SANTOS

De tua boca engraçada,
fonte de loucos desejos,
eu nunca esperei mais nada
senão tolices e beijos.
DJALMA ANDRADE

Engraçado, mas profundo,
não sei se já percebeste:
hoje, as almas do outro mundo
têm medo das almas deste.
DURVAL MENDONÇA

— Doutor, desejo cortar
do cão o rabo que agita.
Não quero vê-lo abanar
quando a sogra me visita...
ÉDISON RUIVO DE SOUZA

Quando eu era gato novo,
miava pelos telhados.
Hoje, que sou gato velho,
ninguém ouve meus miados...
EDSON MACEDO

Minha sogra não reclama
o tratamento que eu dou.
Até de filho me chama
— só não diz que filho eu sou...
ÉLTON CARVALHO

O meu guarda-chuva tem
este mistério tamanho:
— Se o levo, a chuva não vem,
mas se o deixo... tomo um banho!
HERALDO LISBOA

Tinha a sogra falecido
e ele triste se mostrou.
Surgiu breve um desmentido,
e o coitado, então, chorou.
ILDEFONSO DE PAULA

É tão feio e gordo, eu creio
que não se chega a um acordo:
se ele é mais gordo que feio,
se ele é mais feio que gordo.
J. DIAS DE MORAES

Do jeito em que a moda vai,
de uma coisa eu me convenço:
— não demora, e a mulher sai
de bota, peruca... e lenço!
JORGE ROCHA

— Mamãe, a nossa empregada,
desse jeito, assim, não vai!
Após beijar meu irmão,
correu e abraçou papai!...
JOSÉ MARIA DO VALLE E SILVA

Jurou eterna viuvez...
Chorou tanto e ~ quem diria...
durou apenas um mês
a solidão de Maria!...
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA

Um homem muito magrinho
não pode, em boa verdade,
casando com mulher gorda,
chamar-lhe "cara metade".
LÍDIA CORREIA SERRAS PEREIRA

São tão caros, atualmente,
os remédios, seu Doutor,
que não fazem bem à gente...
fazem bem ao vendedor.
MAGDALENA LÉA

Passei os olhos, ligeiro,
no seu olhar proibido,
e sobre mim vi primeiro
os olhos do seu marido.
MURILO G. LOPES

Desquitadas mãe e filha,
tem a nota igual fadário.
Conclusão: nessa família,
o desquite é hereditário.
NELSON VA2

A mulher, ou por vaidade,
ou por ser demais esperta,
depois de uma certa idade,
não tem mais idade certa!
NERO DE ALMEIDA SENA

Neste mundo interessante
há muito doutor de beca,
que, em vez de mente brilhante,
tem o brilho na careca.
PAULO EMÍLIO PINTO

Certos críticos se impõem
como mestres de poesia...
Mas os versos que compõem,
Santo Deus, que porcaria!
RODRIGUES CRÊSPO

Não tendo de quem falar,
cuspindo infâmias a esmo,
costuma se confessar
pra falar mal de si mesmo!...
SYLVIO MACHADO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Carolina Ramos (O Horror de uma Queimada!)

Nota do Blog: Este conto foi publicado dia 27, contudo por nossa falha faltou uma explicação da Carolina sobre o conto, especificando que apesar do texto estar no livro dela, o verdadeiro autor é anônimo. Seguem, portanto, o preâmbulo... e o conto novamente.
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MAIS UM DEDO DE PROSA COM O LEITOR:

Há coisas que, uma vez chegadas, se acoplam à nossa mente e não saem nunca mais. No meu caso, a imagem das queimadas é uma delas.

Quando ainda muito jovem, li, com olhos atônitos, num dos meus primeiros livros de leitura, o relato de um grande escritor que descrevia com extremo realismo uma queimada. As tintas que coloriam as imagens eram tão vivas que, de modo indelével, gravaram aquele horror em minha mente para que não mais fosse esquecido.

Foge-me o nome do autor. Aliás, naqueles tempos de leitora iniciante, o nome do autor era o que menos importava. Não sei por que, ao relembrar o fato, acode-me sempre o nome augusto de Monteiro Lobato. Pesquisei e não posso assegurar seja dele o tal texto, do qual guardo apenas a emoção, que resumo em poucas palavras: - a pequena onça, ou, quem sabe, outra fêmea qualquer, fugida às labaredas, novamente as enfrenta e sucumbe, ao tentar salvar a cria.

A partir deste desfecho e com base na triste imagem resguardada por minha memória juvenil, reproduzi, posteriormente, aquela história. E este mesmo texto vi-me tentada a selecionar, agora, para publicá-lo aqui, uma vez que se casa, perfeitamente, com o espírito deste "Canta... Sabiá!", embora a assegurar de antemão que o enredo, hoje burilado, absolutamente, não me pertence. E que esta publicação seja como que uma homenagem ao autor desconhecido, cujo texto mergulhou fundo em minha alma adolescente permanecendo em mim até hoje.

Portanto, repito, conto, aqui, o que já foi contado e naturalmente melhor do que o faço agora, uma vez que a intensa emoção despertada acompanhou-me desde sempre, possibilitando que a guardasse viva em minha memória, a ponto de me permitir recompô-la e repassá-la aos netos e bisnetos que a vida me daria.

Precedido por esta ressalva e, em homenagem ao verdadeiro autor, aqui vai "o horror de uma queimada", eco longevo de um protesto contido desde criança, em repúdio à incúria humana.

O HORROR DE UMA QUEIMADA

Queimando em silente chama,
a floresta, em triste sina,
caindo ao chão, ainda clama
pela vida… que termina…!
Mara Melinni
(Caicó/RN)


Línguas do morro estalavam de gozo ao lamber gulosas a encosta do morro. A subir sempre, deixavam para trás o estigma desolador da calcinada e negra mortalha do nada, a identificar o terror de uma queimada!

Ante a tórrida investida, a própria atmosfera reverberava de medo enquanto as árvores do bosque vizinho estremeciam de horror, na cruel expectativa de serem as próximas vítimas.

Já o dia avançara em horas quando a mão irresponsável, ou mais que isso, criminosa, ateara a primeira fagulha.

A imprudência de uma ponta de cigarro atirada da estrada fora o bastante.

- A chama bruxuleante aprumara-se como vela a arder, silenciosa, num prenúncio de
velório a curto prazo.

Fera encurralada a pressentir perigo, a natureza eriçava-se num brado de alerta enquanto pássaros assustados flechavam o espaço em ruidosa fuga! A algazarra das cigarras calara-se. Por todo lado, prevalecia a angustiante sensação de catástrofe iminente.

Mercê da prolongada estiagem, nada mais a relva seca poderia fazer do que responder ao estímulo daquela brasa de cigarro e ardia ligeira como rastilho de pólvora, logo a alcançar tufos de capim mais volumosos - por sua vez a estenderem o desastre à aba da floresta.

Resinas múltiplas em combustão embalsamavam a atmosfera. E um aroma indefinido resguardava, no fundo, o terrível cheiro de morte!

Ligeira, a jaguatirica ultrapassou em pânico a barreira incandescente, atirando-se, em desespero, para fora da mata esbraseada. Só, então, parou ofegante, olhos esgazeados, presos ao fogaréu, como que imantados pelo inferno do qual por instinto haviam, milagrosamente, escapado! No pelo chamuscado, as marcas do horror vencido.

Trêmula, a oncinha permaneceu imóvel por mais alguns instantes, eletrizada pelo terror que deixava transparecer a luta íntima em que se debatia! Decidiu-se, por fim. E, num impulso suicida, arremeteu de volta, invadindo a cortina rubra que cercava a floresta incendiada!

Cada instante ganhava proporções gigantescas!

Quando a pequenina onça, personagem heroica deste drama, deixou o trágico picadeiro, trazia nos dentes o corpo desfalecido da cria, sofrida e indefesa. Longe do perigo e com a insuperável esperança das mães, a fragilizada fêmea depositou na relva sã a cria inerte, a tentar reanimá-la com todos os recursos ditados pelo instinto materno. Num esforço desesperado, lambia sôfrega as pequeninas patas crestadas, penteando com a língua macia o pelo fumegante do filhote.

Prosseguiu, sem interrupção, até que as forças lhe fugiram... tombando, enfim, inerte, junto ao filho morto.

A queimada, com fúria assassina, prolongava feroz a sua obra devastadora, enquanto no
rol dos desmandos humanos mais duas inocentes vítimas eram somadas.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.
- Trova de Mara Melinni inserida no texto, por José Feldman.

Estante de Livros (Antígona, de Sófocles)


Sinopse:

Antígona é uma peça teatral escrita por Sófocles em 441 a.C. cujos fatos aconteceram por volta de 1.250 a.C., em Tebas na Ásia Menor, na qual exalta a coragem de uma princesa que enfrenta o rei arriscando a própria vida em defesa de um princípio.

Numa das mais belas e dramáticas tragédias já escritas, Sófocles devassa em toda a sua profundidade o amor, a lealdade, a dignidade.

O confronto entre Creonte e Antígona encena rivalidades centrais da experiência humana, a justiça e a injustiça, o direito natural e o direito positivo, a sociedade e o indivíduo, o Estado e a consciência, a prática e a moral, a submissão e a rebeldia, o masculino e o feminino, o velho e o jovem.

O enredo

A intriga da história começa com uma alusão à guerra dos Sete contra Tebas, na qual os dois irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, se confrontam em lados opostos na disputa pelo trono.

Ambos morrem no campo de batalha, mas aos olhos de Creonte, tio daqueles, Polinices é considerado traidor de Tebas e, por isso, não lhe são concedidas honras fúnebres.

A Decisão

Creonte, com a morte dos dois sobrinhos Etéocles e Polinices, torna-se rei de Tebas.

A sua primeira decisão como regente, foi enterrar o sobrinho Etéocles com todas as honras funerárias e deixar o corpo de Polinices insepulto. Para que se cumpra a sua decisão, decreta que a pena para a desobediência, é a morte.

A Contestação

Antígona, apesar do interdito do rei Creonte, quer sepultar o irmão Polinices e evoca para tanto um princípio da lei não escrita.

Antígona diz a Creonte que acima da Lei da Cidade existe a Lei Divina e que está acima das leis cósmicas incorporadas na ordem social.

A Desobediência

Antígona recusa-se a cumprir a ordem de Creonte e, considerando tratar-se de um dever sagrado dar sepultura aos mortos, infringe a ordem do soberano e realiza os rituais fúnebres a que o irmão tem direito.

As Consequências

Devido a este ato de piedade, Antígona é condenada à morte pelo rei de Tebas e encarcerada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem descende.

A ação impiedosa do rei será punida no final da tragédia: ao tomar conhecimento da morte de Antígona, Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, suicida-se.

Por consequência deste segundo suicídio, é a vez de Eurídice, mãe de Hêmon, decidir "morar eternamente no Hades".

O Impasse


Abre-se aqui um abismo entre a consciência do indivíduo que está aberta para a Lei Divina supra-cósmica e a consciência do meio social que está presa no meio da ordem cosmológica.

Este abismo gera um conflito entre a Lei dos Céus (dos deuses) que ela defende e a Lei da Terra (dos homens) que Creonte precisa fazer cumprir. Cria-se assim um impasse, resultante da contraposição entre duas esferas de poder: A Lei dos deuses e a Lei humana.

O Dilema

Todo o enredo da tragédia de Tebas gravita em torno desse dilema moral que dura mais de 3 mil e 250 anos e que faz de Antígona uma das mais importantes obras que dá os princípios basilares para o cristianismo:

Cumpre-se a Lei do Céu ou a Lei da Terra?

Considerações importantes

1. A falta de Antígona foi o de desrespeitar uma ordem do rei.

2. Creonte tinha razão quanto a defesa da Lei da Terra (Poder temporal), todavia sua decisão interferiu sobre a Lei dos Céus (Princípio espiritual). Logo, qual das leis deve ser cumprida?

3. Este dilema já dura 3.250 anos porque as duas posições são imprescindíveis para a humanidade.

4. Creonte era um governador e não um estadista* esse foi o seu maior problema.

* Estadista é aquele que consegue sacrificar a Lei da Terra em prol da Lei dos Céus.

5. É preciso considerar a hierarquia das leis divinas sobre as disposições humanas.

6. Imaginar que o humanismo é a solução para os problemas humanos é de uma ingenuidade incrível. Equipara-se ao raciocínio de uma criança de 8 anos.

7. Perder a noção do sagrado é a pior coisa que pode acontecer ao ser humano. Foi o que aconteceu com Creonte quando toda uma tragédia se abateu sobre a sua regência e sua família.

Conclusão

1. O ser humano pela sua condição de dualidade (Divina e Terrena), viverá permanentemente em conflito entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal de cuja ambiguidade não conseguirá sair jamais. Por essa razão que o problema já dura mais de três milênios.

2. Não há solução coletiva para o problema. A solução para conflito resultante da dualidade humana será sempre individual, pois não há solução fora do indivíduo, porque nada substitui a sua consciência individual das coisas.

Sobre o autor:

Sófocles (495 a.C. – 406 a.C.) nasceu e morreu em Atenas, na Grécia, e foi um dos maiores intelectuais da Antigüidade clássica. Autor prolífico e consagrado em seu tempo produziu cerca de 120 peças das quais restaram conservadas apenas 7, entre as quais Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, Ájax e Electra.

Fonte:
Texto de Anatoli Oliynik, em seu blog Anatoli: um blog cultural.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 545

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 50, 51 e 52


EXCESSO DE COMPANHIA


Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
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EXPERIÊNCIA

O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete
eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.

Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:

— Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.

O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
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FURTO DE FLOR

Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava, e eu furtei a flor.

Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida. Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.

Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.

Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:

— Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste jardim!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.