terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Hinos do Brasil (Estados: Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul)

Hino do Estado do Rio Grande do Norte

Letra por Dr. José Augusto Meira Dantas
Melodia por José Domingos Brandão


Rio Grande do Norte esplendente
Indomado guerreiro e gentil,
Nem tua alma domina o insolente,
Nem o alarde o teu peito viril!

Na vanguarda , na fúria da guerra
Já domaste o astuto holandês!
E nos pampas distantes quem erra,
Ninguém ousa afrontar-te outra vez!

Da tua alma nasceu Miguelinho,
Nós, como ele, nascemos também,
Do civismo no rude caminho,
Sua glória nos leva e sustém!

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!

Foi de ti que o caminho encantado
Da Amazônia Caldeira encontrou,
Foi contigo o mistério escalado,
Foi por ti que o Brasil acordou!

Da conquista formaste a vanguarda,
Tua glória flutua em Belém!
Teu esforço o mistério “inda” guarda
Mas não pode negá-lo a ninguém!

É por ti que teus filhos descantam,
Nem te esquecem, distante, jamais!
Nem os bravos seus feitos suplantam
Nem teus filhos respeitam rivais!

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!

Terra filha de sol deslumbrante,
És o peito da Pátria e de um mundo
A teus pés derramar trepidante,
Vem atlante o seu canto profundo!

Linda aurora que incende o teu seio,
Se recama florida e sem par,
Lembra uma harpa, é um salmo, um gorjeio,
Uma orquestra de luz sobre o mar!

Tuas noites profundas, tão belas,
Enchem a alma de funda emoção,
Quanto sonho na luz das estrelas,
Quanto adejo no teu coração

A tua alma transborda de glória!
No teu peito transborda o valor!
Nos arcanos revoltos da história
Potiguares é o povo senhor!
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Hino do Estado do Rio Grande do Sul
Letra por Francisco Pinto da Fontoura
Melodia por Joaquim José de Mendanha


Como a aurora precursora
do farol da divindade
foi o Vinte de Setembro
o precursor da liberdade.

Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra

Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo

Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
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“Estrofe suprimida em 1966”
Entre nós, reviva Atenas
Para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
E na virtude romanos.

Fontes:
Wikipedia
RN
RS

Benedita Azevedo (Dias de Leitura)

Lúcia era uma professora de classe especial e procurava estimular as crianças para a leitura. Andava com uma pasta cheia de livros que as crianças chamavam de biblioteca.

- Vamos turma, hoje é dia de Leitura!

- Oba! Quero ouvir a história do João e Maria - pediu Sérgio, uma das cinco crianças com as quais Lúcia trabalhava na escola.

- Eu quero a do Patinho feio – atropelou Luisinho; ele tinha dificuldades para andar, devido à paralisia infantil que o acometera aos 3 anos - vestia uma linda jaqueta vermelha, gorro azul com vermelho e luvas azuis.

- Eu quero a do gigante, aquele do pé de feijão – choramingou Paulinha, vestindo um macaquinho amarelo e gorro de pompom da mesma cor.

- Tia Lúcia, eu queria a história da Cinderela e a carruagem de abóbora – solicitou Solange, com seu cachecol amarelo e o gorro com pompom vermelho.

- Tia Lúcia, será que tem aquela historinha que fala porque o canguru salta em duas patas? – mais uma vez solicita Sérgio, todo agasalhado, usando óculos, com pinta de intelectual.

- Será que na sua biblioteca tem a história do Pinóquio? Eu gosto quando o nariz dele cresce. Quem manda ser mentiroso, não é tia? – Comentou Paulinha, encolhendo-se de frio, ajeitando as luvas amarelas e colocando o gorro-cachecol.

- Será que dá para contar a lenda do Negrinho do pastoreio, aquele que foi enterrado no formigueiro? – pediu Solange, com seu gorro de listras vermelhas e brancas, enterrado até as sobrancelhas.

As crianças não davam folga para Lúcia falar. Todos falavam atropelando-se verbalmente. Por fim ela que observava a reação de cada um, pediu que eles a ouvissem.

- Eu tenho um lindo livro de capa azul, cheio de estrelas cor de ouro, onde poderemos passear por todas essas lindas histórias e até viajar no arco-íris.

- Viajar no arco-íris? Aquele todo colorido? Mas a gente pode mudar, tia! Quando alguém viaja nele, quem é homem pode virar mulher e quem é mulher pode virar homem quando chegar do outro lado! – tagarelou Flora que se mantivera calada até aquele momento.

- Mas no meu arco-íris, não acontece isso não! A gente embarca no meio de um campo cheio de flores, viaja pelas estrelas e pode passar por todas as histórias que vocês querem ouvir.

- Então vamos logo, entrar no livro de estrelas e viajar no arco-íris. – falaram as crianças em coro.

- Vamos lá, todos estão bem agasalhados? Pois viajaremos por lugares muito frios. – anunciou a tia Lúcia, já bem agasalhada, com seu casaco de lã grossa, botas e um lindo gorro, para proteger suas orelhas do frio. - Visitaremos “João e a Maria” fugindo do quarto da bruxa. O patinho feio virando um lindo Cisne. João chegando às nuvens no pé de feijão e descendo com o saco de ouro. A Cinderela no seu lindo vestido de tafetá dourado bordado com pedras preciosas e os sapatinhos de cristal, dançando com seu príncipe. Depois encontraremos o Pinóquio com seu grande nariz e a fada de cabelos azuis, que o fez descobrir que não valia a pena mentir. Pegamos o Pinóquio e vamos até o Rio Grande do Sul salvar O Negrinho do Pastoreio do formigueiro.

Lúcia sentou-se no meio da sala com todas as crianças. Abriu o livro azul com estrelas douradas e em pouco tempo todos viajavam pelas histórias, da preferência de cada um.

Minha Estante de Livros (“Senhora”, de José de Alencar)


Sendo um dos últimos de Alencar, Senhora é um romance urbano que retrata o casamento por interesse numa sociedade de aparências do século XIX, mesma época em que o autor vivia. Nessa obra pertencente à época literária do Romantismo já é possível observar características do Realismo e do Naturalismo. Através dos diálogos e discussões entre Fernando e Aurélia, podemos notar a visão crítica que estes possuem da sociedade, onde o casamento não é apenas por amor, e mais por interesse.

O romance pertence a segunda metade do século XIX, onde a sociedade vivia de aparências e contradições. Alencar critica a sociedade, não de uma perspectiva esperançosa de mudanças, mas de perspectivas atuais e sem soluções aparentes. O casamento por interesse era um costume social muito criticado pelo autor.

A obra Senhora, de José de Alencar é dividida em quatro partes. A primeira delas, nomeada de “O preço do casamento”, começa descrevendo uma jovem moça chamada Aurélia, rica e frequentadora de bailes da alta sociedade. Aurélia, sendo órfã e herdeira de uma grande fortuna, estava sempre acompanhada de sua parenta D. Firmina e acreditava que todos só se interessavam por ela por causa de sua beleza e do seu dinheiro.

Em um baile de costume, Aurélia começou a se questionar sobre sua educação e seu destino. Escreveu uma carta ao Sr. Lemos dando-lhe a missão de arrumar seu casamento com o atual noivo de Adelaide Amaral, o Fernando Seixas. Seixas era pertencente a uma família de situação pouco favorável e pretendia arrumar um casamento com uma moça rica para oferecer melhores condições para sua mãe e suas irmãs, e também para seus luxos.

Lemos faz a proposta de casamento a Seixas, que mesmo sem conhecer a noiva, recebe um adiantamento do alto dote e aceita o compromisso. Quando foi apresentado à Aurélia, Seixas sente uma profunda humilhação, pois em tempos passados tinha rompido um noivado com ela para ficar noivo de Adelaide, que era mais rica. Na noite de núpcias, Aurélia chama seu então marido de homem vendido.

Na segunda parte, chamada “Quitação”, é contada a história de Aurélia. D. Emília era sua mãe e Pedro Camargo, seu pai. Pedro era filho bastardo de um rico fazendeiro e casou-se com Emília sem conhecimento de seu pai. Anos depois, acaba morrendo e seu pai não conhece sua neta. D. Emília fica em má situação para criar sua filha. Nesse momento, Seixas se elege como pretendente de Aurélia e assume o compromisso de se casar com ela. Porém, se arrepende por ter se apaixonado por uma moça pobre e órfã e assume compromisso com Adelaide, moça rica na sociedade. Perto de falecer, o avô de Aurélia a procura e deixa para ela toda sua fortuna. Após a morte de sua mãe, Aurélia tem como tutor Sr. Lemos, seu tio, e como acompanhante, D. Firmina.

A terceira parte tem como título “Posse” e descreve a rotina de Aurélia e Fernando enquanto casal. Eles vivem uma vida de aparência; desfilam de mãos dadas, trocam carinhos e gentilezas diante de bailes ou de amigos. Mas quando estão sozinhos, trocam palavras ferinas e acusações. Fernando se vê como um escravo de Aurélia, tendo ela como sua dona e a obedece em todos os seus desejos.

Na quarta e última parte, “Resgate”, temos os principais acontecimentos da trama. Os desejos não realizados de Aurélia e Fernando são passados pelo autor com muito erotismo. Porém, por orgulho, Fernando e Aurélia não se deixam envolver. Podemos notar nessa parte a visível transformação de Fernando que passa a recusar o luxo que tanto já desejara. Fernando passa então a trabalhar dedicadamente e faz um negócio importante, em que arrecada um valor e devolve para Aurélia todo o dinheiro do dote. Ele então pede o divórcio. Comprovada a mudança de Fernando, Aurélia lhe mostra o seu testamento escrito no dia do casamento, onde é deixada para Fernando toda sua fortuna e é declarado o seu amor por ele. O casamento então se consuma e os dois se tornam um casal de amantes.

ANÁLISE


Aurélia, personagem principal do livro Senhora, de José de Alencar, participa da tríade do autor – juntamente com Lucíola e Diva – em que representa o “perfil de mulher” da sociedade brasileira através de uma visão romântica. Através desse perfil, Alencar busca compreender os sentimentos e os motivos que os impulsionam, através do relato minucioso dos pensamentos e ações da mulher. Aurélia, sendo pobre, era frágil, meiga, compreensiva e sonhadora. Após a decepção que teve com Fernando ao ser abandonada em troca de um casamento por interesse, passa a ser fria, calculista e temperamental. Aurélia faz questão de, por vaidade, mostrar à sociedade que é rica e dona de Fernando.

Já Fernando inicia o enredo sendo um homem extremamente interesseiro e sedutor que mesmo estando apaixonado por Aurélia, desmancha seu noivado com ela para assumir compromisso com Adelaide, que era rica. Porém, ao se casar com Aurélia e se sentir humilhado diante da situação, ocorre uma transformação em sua personalidade. Para se transformar no par de Aurélia e completar o romance com um desfecho feliz, essa mudança de comportamento é necessária ao enredo. Fernando passa a ser um homem compromissado com o trabalho e tem por objetivo principal devolver à Aurélia o valor correspondente ao dote que recebeu, para assim ficar livre.

Senhora faz parte da fase literária que chamamos de Romantismo. Entretanto, em várias passagens e através dos personagens do enredo, podemos notar características pertencentes ao estilo do Realismo já se mostrando. Alencar faz uma dura crítica ao costume da época em que casamento muitas vezes não era visto como uma união de um casal apaixonado e sim como um negócio, em que dotes são pagos.

Personagens


Aurélia Camargo
: Jovem rica de 18 anos órfã, chama atenção de todos pela sua beleza e excentricidade. Muitos moços da sociedade a desejam como esposa, porém, ela pede a seu tio que faça um acordo com Fernando Seixas e casa-se com ele. Aurélia demonstra inteligência e planejamento de suas ações, para que tudo saia conforme seus planos.

Fernando Seixas
: Jovem de 18 anos que, apesar de sua família viver de maneira muito simples, tinha uma pose e um lugar de respeito na sociedade. Interesseiro, procura casamento com uma moça rica para melhorar sua situação financeira. É servidor público. Só após o casamento com Aurélia é que começa a ocorrer uma transformação em sua personalidade.

D. Emília: mãe de Aurélia, casa-se com Pedro por amor e deixa sua família para viver esse amor.

Lemos: Irmão mais velho de D. Emília que só aparece após saber que sua sobrinha herdou uma valiosa herança. A pedido de Aurélia, arruma seu casamento com Fernando.

Pedro Camargo: filho bastardo de Lourenço Camargo, casa-se escondido de seu pai com D. Emília e morre, deixando Aurélia órfã.

D. Firmina: mora com Aurélia e a faz companhia.

Adelaide
: Ex-noiva de Fernando, é apaixonada por Torquato e por ele ser pobre, só consegue se casar com a ajuda de Aurélia.

Torquarto Ribeiro
: moço pobre e apaixonado por Adelaide, foi muito amigo de Aurélia quando ela era pobre.

Eduardo Abreu: Apaixonado por Aurélia, paga as despesas do sepultamento de D. Emília, mesmo estando viajando.
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José de Alencar nasceu no Ceará em 1829 e em 1830 muda-se para o Rio de Janeiro, junto com sua família. Aos 14 anos, mudou-se para São Paulo, onde inicia sua faculdade de Direito. Destacou-se como um grande romancista de nossa literatura, além do romance urbano Senhora, publicou outras tendências de romance, como o romance indianista Iracema e o romance regionalista O gaúcho. Além de escritor, foi também crítico teatral e político. Morreu aos 48 anos em 1877, na cidade do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 15


 

Helena Kolody (Mendigos)


Para lá da ponte preta, havia só duas casas.

Logo depois da ponte, o casebre da Bruta Béstia. E muito mais longe, no mato cerrado, a choupana do lazarento, sempre fechada.

Quando o bando de crianças ia colher guabirobas, quase sempre encontrava a Bruta Béstia, a caminho da cidade. Era uma italiana grande e feia, de nariz vermelho, cabelos emaranhados fugindo do lenço sujo. Trazia sempre um filho ao colo. Seguiam-na os outros filhos, os menores vestidos apenas com uma camisinha que mal chegava ao umbigo. Era uma tropilha bizarra.

A mais velha, ruiva, de olhos gateados; o segundo, louro; havia um quase mulato. Ranhentos e sarnosos, dava nojo olhá-los.

Ninguém sabia o nome da mulher. Aparecera Deus sabe donde e como exclamasse frequentemente: “bruta béstia!”, pegara-lhe o apelido.

A alegria da criançada era gritar-lhe, pelas costas e prudentemente à distância:

— Bruta béstia!

A mulher virava-se como se alguém a houvesse mordido.

— Bruta béstia é a tua mãe!

E desfiava um rosário de impropérios.

A gurizada guinchava de gosto. Quanto mais feios os palavrões, maiores as gargalhadas.

A raiva da mulher ia amainando. Então, como quem atira ao fogo uma braçada de lenha, tornavam a gritar:

— Bruta Béstia!

Reacendia-se-lhe a cólera.

Afinal, a mulher desistia da luta, arrebanhava os filhos e seguia rumo à cidade, onde ia esmolar. Ir juntar guabirobas era melhor que o melhor dos brinquedos. Meninos e meninas, munidos de cestas, varavam o Matinho — assim o povo chamava o grande terreno desabitado, que ficava para cá da ponte preta.

Os meninos marinhavam pelas enormes guabirobeiras e sacudiam-lhes os galhos. O capim ficava juncado de guabirobas graúdas e amarelas. Começava, então, a disputa pelas melhores.

— Essa “gavirova” é minha.

— Fui eu que vi primeiro.

Às vezes, um pé vingativo esmagava a fruta.

— Ói a tua gavirova!

Mas as cestas se enchiam. Na volta, as crianças vinham a chupar as frutas melhores. Muitas vezes, acontecia de chegarem em casa com umas poucas guabirobas feias e amassadas.

Só quando começavam a escassear as frutas do lado de cá é que passavam, com certo receio, para o outro lado da ponte preta, onde a estrada deserta corria pelo mato cerrado. Mas a tentação era grande. Um informava:

— Eu sei de uma gavirovêra, lá do outro lado... Dá cada gaviróva deste tamanho!

E lá iam todos.

Ao avistarem o casebre do morfético, instintivamente se afastavam. Às vezes, o mais curioso ia espiar pelas frestas.

De longe, gritava-lhe a irmã:

— Espera, Toninho, que vô contá pra mamãe!

O lázaro era o papão da cidade. As mães ameaçavam os filhos. Não vá pra rua, que o lazarento te pega. As crianças iam mesmo, mas tinham um medo do lazarento! Corria a notícia de que os leprosos procuravam passar aos outros a sua moléstia, acreditando que assim ficassem limpos. Mas aquele leproso nunca fizera mal a ninguém. Vinha sempre mendigar na cidade.

Lembro-me bem da primeira vez que o vi. Eu havia chegado do sítio por aqueles dias e fui brincar na praça, com outra menina. Eu nunca tinha visto praça. Aquela era um grande gramado, ensombrado de árvores e cortado em diagonal por uma ruazinha. Era domingo e havia muitas meninas brincando na praça.

Ao chegarmos, uma se destacou e veio ao nosso encontro.

— Quem é essa menina?

— É a neta de D. Jandira.

A outra foi logo convidando:

— Vâmo brincá de pega?

Fez-se o círculo. A menina foi tirando a sorte:

Um, dois, três, quatro,
Quantos pelos tem o galo
Acabado de nascer?
Um, dois, três, quatro.

Aquelas em que terminava a quadrinha, iam saindo.

Afinal, ela anunciou:

— Mãe é a Lila. O “frái” é o coreto. Não vale correr na rua.

Eu fiquei atrapalhada. Baixinho, perguntei à companheira:

— Onde é o coreto?

— Ali, naquela casinha redonda, no meio da praça — disse alto a menina, apontando o coreto.

As outras riram. Senti que fiquei vermelha.

Afinal, começou o brinquedo.

Os gritos das perseguidas pela “mãe” enchiam a praça. A miúdo, soava, em triunfo: mãe! E lá ia um tapa nas costas da alcançada.

Mudavam os papéis e recomeçava a correria. De quando em quando, uma gritava: “frái!” e sentava-se, ofegante, na escadinha do coreto.

Eu estava quase à parte e acabei por ficar apreciando o jogo.

A certa altura, uma avisou:

— Ói o lazarento!

Num fechar de olhos, debandaram todas.

Fiquei ali, apatetada. Lazarento!

Só então, reparei naquele homem que vinha pela rua da praça. Passou bem perto de mim, enorme e vermelho. O rosto era dum rosado vivo, os olhos lacrimejantes, os lábios e o nariz muito inchados, as orelhas crescidas e pendentes. A roupa parecia querer rebentar, de tão justa. Na mão enorme, levava um bastão, com que ajudava os passos. Andava devagarinho, arrastando os pés, embrulhados em trapos ensanguentados e metidos em chinelas. Não olhava para ninguém e parecia não ouvir.

Debalde as meninas, agrupadas no outro extremo da praça, esganiçavam, num coro desatinado:

— Lazarento!

Naquele dia, Toninho fora sozinho ao mato colher guamirim. Fartara-se daquela frutinha de sabor acre, que lhe deixara pretos os dentes, a boca, os dedos. Na volta, passou rente à casa do leproso e não pude deixar de ir olhar pelas frestas.

Estava entretido na sua bisbilhotice, quando se sentiu agarrado. Ao voltar o rosto, deu com a cara vermelha do morfético, que o apertou contra si e esfregou a sua face no rosto do menino.

Toninho estava mudo de horror.

— Dez com este! — disse, em triunfo, a voz rouca do leproso. Solto, o menino largou-se a correr, gritando e limpando o rosto.

E nunca mais se viu o lazarento na cidade, nem se soube do seu paradeiro.

Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 15 –

 Ante um conselho que é justo
eu me curvo e me ajoelho
e pago por qualquer custo
o custo de um bom conselho!
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Aos corpos que, entre os farrapos
dormem sujos pelo chão...
Restam-lhes pois entre os trapos,
velhos trapos de ilusão!!!
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Ao vencer tempo e distância,
a velhice, abraço e aceito;
mas os bons tempos da infância
são crianças no meu peito!
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Busquei, na fonte de um templo,
a paz de um novo horizonte;
e achei essa paz no exemplo
que há no silêncio da fonte!…
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Deus pôs no amor tanta essência,
que, o seu grande Benfeitor,
não permite que a ciência
ponha limites no amor!
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Esse dia me distrai,
e enche-me de amor, de afetos;
dos afetos, por ser pai
das filhas e dos meus netos!
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Há uma paz no olhar da mata
quando a brisa em leve açoite,
soprando a velha cascata
embala o pranto da noite!
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Lembrando os tempos antigos,
mesmo apesar da distância...
Escuto os passos amigos
dos meus amigos de infância!
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Levi, ao ver que me olhava,
confesso aqui, entre nós,
que era o neto que faltava
na vida de seus avós!
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Mãe, é poema de amor
que, a qualquer filho se apega;
alívio que afasta a dor
da cruz que o filho carrega!
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Mãe - nessas tuas letrinhas
ouço os mais lindos fonemas
que formam todas as linhas
dos versos dos meus poemas!
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Nos momentos mais grotescos,
quando chove no sertão...
A chuva pinta arabescos
de esperanças pelo chão!
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Nossos sonhos sintetizam
a paz de todos os temas
que, docemente, deslizam
nos versos dos meus poemas!
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Nos teus bilhetes queimando
vi com certo desconforto...
Frases de amor me acenando
das cinzas de um sonho morto!
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O entardecer se assemelha
a um fogaréu tão bonito,
que a tinta de cor vermelha
se espalha em todo o infinito!
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Os teus cansaços não vão
impedir que o teu suor,
seja o fermento do pão
que te alimenta melhor!
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Por esse amor que carrego,
não vejo maldade alguma;
sou tão cego, quanto um cego
que não vê coisa nenhuma!
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Prefiro os caminhos tortos
aos enlevos mais risonhos,
a ver os meus sonhos mortos
entre as cinzas de outros sonhos!
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Qual velho papel carbono,
quase sem tinta e sem cor...
Vai-se o meu sonho sem dono
buscando sonhos de amor!
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Quando escuto a tua voz,
há um silêncio que me acalma!...
E, é nesse instante, entre nós,
que escuto a voz de minha alma!
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Sinto na mãe que se enlaça
nos braços de uma criança...
Que um sonho de amor se abraça
aos bracinhos da esperança!
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Soprei cinzas!... E, ao soprá-las,
entre as cinzas da lembrança...
Escutei todas as falas
do meu tempo de criança!
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Sou como as folhas sem dono
que se arrastam pelo chão,
nas tardes tristes de outono
depois que os ventos se vão!
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Tua carta de alforria
eu queimei sem embaraços,
porque quero todo dia
ser escravo de teus braços!
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Vivo cercado de afetos!
Na paz do mesmo endereço...
Vejo em meus filhos e netos
a vida em seu recomeço!
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Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Emiliano Perneta (Sensações e bizarrias)


Não sou sectário de nenhum sistema filosófico. Não sigo Schopenhauer, nem sigo Augusto Comte. Sou às vezes mais pessimista que o primeiro, porque acrescento à sua frase: “A vida não merece ser vivida” a seguinte: “Não devíamos ter nascido”. Sou mais otimista que o segundo, porque há dias em que rio tão feliz e satisfeito, tão alegre e vibrante, que parece que o universo inteiro ri comigo. Glória, áurea vaidade, que se desfaz no túmulo, no nirvana!

É um engano dizer-se que o artista ambiciona a glória. A glória consiste neste contentamento íntimo, duradouro e eterno, que o artista traz dentro de si, de poder criar obras-primas e executá-las.

Eu devia ter entrado para a Academia aos 13 anos de idade, porque só nessa idade eu poderia suportar as tolices dos meus colegas, berrar nas eleições, entusiasmar-me na festa 11 de agosto.

Como um homem custa a descobrir uma coisa que estava em si mesmo há tempo! Ele proclamava a mortalidade, o desespero dos conhecimentos dos mistérios, e entretanto ele mentia, porque sempre no fundo da sua alma, não sei onde, ele conservava a esperança de que viria a saber destes mistérios, e só agora é que ele descobriu isso!

Dizei tudo quanto tendes de dizer enquanto é cedo, porque senão tempo virá em que tudo ouvireis, tudo quererei dizer e não o podereis.

Dá-se um fato, o imbecil sempre o compreende torto; não lho expliqueis, é pior, compreende de outro modo, mais estupidamente ainda. Como um homem de espírito se torna fútil no meio de imbecis!

Evolução! Isto não passa de uma cruz que a imbecilidade põe aos ombros dos homens de talento e que estes conduzem pela via infinita e dolorosa do Progresso. Eu não sei fazer inveja aos outros porque não a sinto. Ou por outra: sinto-a de um modo tão esquisito, com tanta nobreza, que a raros poderia fazer experimentar o mesmo sentimento.

Quando ouço um imbecil dizer uma barbaridade, que é o que sempre ele diz, a respeito da poesia ou qualquer outra coisa sagrada, eu tenho vontade de protestar. Mas se avanço a primeira frase, paro logo desanimado, com uma preguiça mortal de remover aquela estupidez mais pesada que uma montanha.

Olho para o céu. Está escuro e odiento. Nestas ocasiões, sinto uma irritação nervosa contra a fatalidade que me condenou a viver sob esta abóbada — de camadas gasosas e de mistérios — a mesma irritação que sentiria se visse-me preso num subterrâneo.

O único modo de ser-se amigo dos homens e principalmente de seu dono — é ser-se baixo, adulador, paciente, humilde e serviçal como um cão. É por isso que o cão é o emblema da amizade.

Religião! Tirai-me este peso dos ombros. Eu, às vezes, sinto em mim todo o cansaço da humanidade sob esse fardo eterno.

Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Versejando 100

 

Eduardo Affonso (Na Pressão…)

Não tenho medo de solidão.

Não tenho medo de cair no banheiro, bater a cabeça no tento de mármore do box e só me encontrarem quando eu já tiver escorrido pelo ralo e não restar nem o esqueleto, porque os cachorros terão levado os ossos para a sala e tudo que restará de mim será um fêmur meio roído, na boca do Tião.

Não.

Eu tenho medo é de panela de pressão.

A panela de pressão é uma esfinge. Uma bomba-relógio. Um campo minado.

Meu pai, homem intimorato, daqueles de andar com duas armas – uma na canela, outra embaixo do sovaco – só foi derrotado pelo câncer e pela panela de pressão (não nessa ordem, obviamente).

Ele entrava na cozinha apenas para perguntar por que é que o almoço ainda não estava pronto. Ele almoçava às 11 horas em ponto, para poder estar no Fórum pontualmente ao meio-dia. Por volta de 10h45, começava o inferno astral da minha mãe:

– Conceição, já são quase 11 horas. Cadê o almoço, Conceição?

Minha mãe suspirava resignada, e cozinhava, de modo que às 10h59 a primeira travessa chegasse à mesa, onde meu pai já a esperava, de garfo e faca na mão.

Um dia – morávamos em Visconde do Rio Branco – meu pai extrapolou sua jurisdição.

Invadiu a cozinha e resolveu pular os intermediários e pressionar diretamente a panela de pressão.

A panela, claro, não tinha a paciência infinita da minha mãe.

Seguiu-se uma explosão. Quando cheguei em casa não entendi o que havia acontecido, ou de onde surgira aquele teto cravejado de feijão.

Ninguém se feriu, e, tirando o feijão e o teto, salvaram-se todos. Meu pai deve ter entendido que ninguém está acima das leis da física. Que tudo neste mundo tem seu tempo, cada coisa tem sua ocasião.

O feijão com arroz, aquele dia, foi só arroz, quebrando – ao que eu saiba, pela primeira e única vez – uma milenar tradição.   Minha mãe saboreou, grão por grão, essa vitória, obtida por interposta panela.

Fim do flexibeque.

Um lar só é um lar quando tem tapetinho na porta e panela de pressão. O tapetinho eu não tenho, mas comprei a panela, há alguns anos. Trouxe-a para casa como quem abre os portões para um cavalo de Tróia, sabendo o que ele guarda na barriga.

Usei-a poucas vezes, durante as faringites – quando uma sopa descia bem melhor que um sanduíche. Mas sempre o fiz com respeito, quase com reverência.

Levanto a válvula com a ponta dos dedos e espero que a panela desabafe, se acalme, sinta que está entre amigos. Depois, dou-lhe uma ducha de água fria, para aquietar-lhe os ânimos. Ela ainda resmunga um pouco, solta algum vapor pelas ventas, e só quando parece pacificada é que dou um passo para trás e destravo a tampa.

Tem funcionado.

Hoje, vencendo um trauma de décadas, cozinhei feijão. Escapamos incólumes: eu, a panela, o teto, o fogão.

Mais algumas experiências bem sucedidas com essa criatura explosiva e já me sentirei capaz de arriscar alguma coisa com uma mulher de Escorpião.

Manuel Du Bocage (Sonetos) V

“ÂNSIAS TERRÍVEIS, ÍNTIMOS TORMENTOS”


Ânsias terríveis, íntimos tormentos,
Negras imagens, hórridas lembranças,
Amargosas, mortais desconfianças,
Deixai-me sossegar alguns momentos.

Sofrei que logre os vãos contentamentos
Que sonham minhas doidas esperanças;
A posse de alvo rosto, e loiras tranças,
Onde presos estão meus pensamentos.

Deixai-me confiar na formosura,
Cruéis ! Deixai-me crer num doce engano,
Blasonar de fantástica ventura.

Que mais mal me quereis, que maior dano
Do que vagar nas trevas da loucura,
Aborrecendo a luz do desengano ?
= = = = = = = = = = = = =

“CANTA AO SOM DOS GRILHÕES O PRISIONEIRO”

Canta ao som dos grilhões o prisioneiro,
Ao som da tempestade o nauta ousado,
Um, porque espera o fim do cativeiro,
Outro, antevendo o porto desejado;

Exposta a vida ao tigre mosqueado
Gira sertões o sôfrego mineiro,
Da esperança dos lucros encantado,
Que anima o peito vil, e interesseiro;

Por entre armadas hostes destemido
Rompe o sequaz do horrífico Mavorte,
Co’ triunfo, co’a glória no sentido:

Só eu (tirano Amor! tirana Sorte!)
Só eu por Nise ingrata aborrecido
Para ter fim meu pranto espero a morte.
= = = = = = = = = = = = =

“FIEI-ME NOS SORRISOS DE VENTURA”

Fiei-me nos sorrisos de ventura
Em mimos femininos, como fui louco!
Vi raiar o prazer, porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura.

No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo úmido e ouço,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:

Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, e fúnebre transporte,
Áridos matos, lobrega floresta!

Ah! Não me roubou tudo a negra sorte;
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.
= = = = = = = = = = = = =

“OLHA , MARÍLIA, AS FLAUTAS DOS PASTORES”

Olha , Marília, as flautas dos pastores,
Que bom que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-te! Olha não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.
= = = = = = = = = = = = =

“OH TREVAS, QUE ENLUTAIS A NATUREZA”

Oh trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra, e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza.

Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que vós minha tristeza;

Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.

Volvei pois, sombras vãs, ao fogo eterno,
E lamentando a minha desventura,
Movereis a piedade o mesmo inferno.
= = = = = = = = = = = = =

“TRISTE QUEM AMA, CEGO QUEM SE FIA”

Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa!
Aspira a vê-la estável! Mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia.

Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel dessa
Que o peito me afagava, e me feria.

Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico.

Vejo mil Circes plácido, risonho;
E se fé me prometerem, ouço e fico
Como quem despertou de aéreo sonho.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994. Disponível na Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

Irmãos Grimm (A mochila, o chapeuzinho e a corneta)


Era uma vez três irmãos que foram ficando cada vez mais pobres. Até que chegaram ao ponto de passar fome.

- Isto não pode continuar assim! - disseram eles, afinal.

- É melhor irmos pelo mundo afora tentar a sorte.

Puseram-se, então, a caminho. Andaram muito e pisaram muito chão, sem que se apresentasse a sorte. Assim chegaram um dia, a uma floresta muito grande, em meio da qual se elevava uma montanha. Ao se aproximarem, viram que toda ela era de prata. Disse, então, o mais velho:

- Encontrei a sorte que desejava e não quero outra maior.

- Recolheu toda a prata que podia carregar e voltou para casa.

Os outros dois, porém, disseram:

- Exigimos que a sorte nos dê algo mais que prata.

E, sem tocar no metal, seguiram adiante.

Depois de andar durante mais dois dias, chegaram a uma montanha que era de puro ouro. O segundo irmão ficou a pensar, indeciso: "Que devo fazer? Levar o ouro de que preciso para o resto de minha vida, ou seguir adiante?

Afinal resolveu-se. Encheu os bolsos e, despedindo-se do irmão, voltou para casa.

O terceiro ficou a pensar: "O ouro e a prata não me dizem grande coisa e continuarei procurando a sorte. Talvez ela me reserve coisa melhor."
    
Continuou caminhando e, três dias depois, chegou a uma floresta maior ainda que as outras; esta agora não terminava nunca e, como não achava nada para comer nem beber, esteve a ponto de morrer de fome. Trepou, então, numa árvore bem alta para ver se descobria o limite daquela floresta mas não conseguiu enxergar outra coisa senão as copas das árvores que se estendiam infindáveis.

Dispôs-se a descer e disse a si mesmo: "Se pudesse, ao menos, encher o estômago mais uma vez.”

E eis que, ao tocar o chão, viu, com assombro, debaixo da árvore, uma mesa magnificamente posta, coberta de abundantes pratos de  que se desprendia um aroma apetitoso.

"Desta vez - pensou - meus desejos se cumpriram no momento oportuno." E, sem pensar em quem poderia ter trazido aquele banquete, acercou-se da mesa e comeu até fartar-se.

Quando terminou, teve uma ideia. "Seria uma pena que esta linda toalhinha se estragasse aqui no bosque", e, dobrando-a com cuidado, guardou-a. Depois prosseguiu sua jornada e, à noite, quando tornou a sentir fome, quis por a toalha à prova. Estendeu-a e disse:

- Quisera que voltasse a cobrir-te de boa comida!

Mal expressou esse desejo, a toalha se cobriu de pratos, cheios de saborosíssimas iguarias.

- Sei agora, - disse ele - onde cozinham para mim. Isso é melhor do que a montanha de ouro e a de prata.

Mas não satisfez com a toalhinha mágica; achou que ela não bastava para retirar-se e viver tranquilamente em sua casa e continuou a jornada em busca da sorte.

Certa noite encontrou, num bosque solitário, um carvoeiro coberto de fuligem. Estava fazendo carvão e tinha ao fogo umas batatas que lhe  deviam servir de janta.

- Boa noite, melro negro! - disse, saudando-o.- Como vives nesta solidão?

– Todos os dias, para mim, são iguais. - respondeu o carvoeiro. - De noite, sempre há batatas para  a janta. Se te apetece, te convido.

   - Muito obrigado! - disse o viajante. - Não quero privar-te de tua refeição, pois não esperavas convidados. Mas, se contentas com o que tenho, sou eu que convido.

- E quem irá trazer-te a comida? Vejo que nada carregas contigo e, em duas horas de caminho, não há quem possa dar-te alguma coisa.

- Mesmo assim teremos uma ceia - respondeu o outro- tão boa como jamais tiveste igual.

E, tirando a toalhinha da mochila, estendeu-a no chão e disse:

- Toalhinha, cobre-te!

No mesmo instante apareceram cozidos e assados, tudo quente como recém-saído da cozinha. O carvoeiro arregalou os olhos, mas não se fez de rogado. Serviu-se, metendo bocados cada vez maiores na boca tisnada. Depois de jantarem, o carvoeiro falou, satisfeito.

- Escuta aqui, gostei da tua toalhinha; seria de grande utilidade para mim aqui na floresta, onde ninguém cozinha algo apetitoso. Proponho-te uma troca! Ali, naquele canto, está pendurada uma mochila de soldado. É, na verdade, velha e de feia aparência, mas possui qualidades prodigiosas. Como não mais preciso dela, poderia trocá-la pela tua toalhinha.

- Primeiro quero saber que qualidades prodigiosas são essas de que falas - retrucou o rapaz.

- Vou  dizer-te. - explicou o carvoeiro. - Sempre que bateres nela com a mão, verás surgir à tua frente um cabo e seis soldados, armados até os dentes, que farão tudo o que ordenares.

- Está bem! Já que não tens outra coisa, aceito a troca! - disse o outro.

Deu a toalha ao carvoeiro e, pondo a mochila ao ombro, despediu-se.

Depois de haver andado um pouco, resolveu experimentar as qualidades mágicas da sua mochila e deu-lhe uma batida. No mesmo instante apareceram os sete guerreiros. O cabo perguntou-lhe:

- Que ordena meu amo e senhor?

- Marchem, a toda pressa, de volta ao carvoeiro e exijam que lhes entregue minha toalhinha mágica.

Os soldados deram meia volta e pouco depois estavam de regresso com a toalha que haviam tirado do carvoeiro. O rapaz, então, mandou que se retirassem e prosseguiu caminho, confiando em que a sorte ainda se mostraria mais propícia.

Ao por-do-sol, encontrou outro carvoeiro que estava também, preparando sua refeição.

- Quer jantar comigo? - convidou o homem tisnado. - Batatas com sal, mas sem gordura. Se aceitas, senta-te a meu lado!

- Não! - retrucou o rapaz. - Quero que sejas tu o meu convidado.
   
E tirou a toalha que, depois de estendida, ficou logo cheia com os mais deliciosos manjares. Alegres da vida, comeram e beberam juntos. Quando terminaram a refeição, o carvoeiro disse:

- Sobre aquele banco, ali, está um chapeuzinho velho e sovado, mas que possui propriedades espantosas. Quando alguém o põe e lhe dá uma volta na cabeça, aparecem doze canhões, em fileira, que começam a disparar derrubando o que há por diante, sem ninguém possa resistir a seus efeitos. A mim, de nada serve e bem o trocaria pela tua toalha.

- Não é mau. - respondeu o rapaz e, apanhando o chapéu, colocando-o na cabeça, entregando, ao mesmo tempo, a toalhinha.

Mal, porém, andara um trecho do caminho, bateu na mochila e ordenou aos soldados que lhe trouxessem, novamente , a toalhinha. "Uma coisa traz outra, - pensou - e parece que minha boa sorte ainda continua.”

Seus pensamentos não o haviam enganado. Ao fim de uma hora, encontrou mais outro carvoeiro que, como os anteriores, o convidou a comer suas batatas sem gordura. Ele lhe ofereceu, também, uma janta extraordinária à custa da toalha mágica, e o carvoeiro ficou tão entusiasmado que propôs trocá-la por uma cornetinha dotada de qualidades ainda superiores às do chapeuzinho: quando a tocavam, todas as muralhas e baluartes caíam por terra, reduzindo cidades a montes de escombros. O jovem aceitou a troca mas, pouco depois, ordenou a seus soldados trazerem de volta a toalha, com o que ficou de posse da mochila, do chapeuzinho e da cornetinha.

"Agora, – disse para si mesmo - sou um homem feito e é tempo de voltar para casa a ver como estão passando meus irmãos.”

Ao chegar à cidade onde moravam, viu que seus irmãos haviam construído uma bela casa e se entregavam à boa vida com o ouro e a prata que tinham encontrado. Apresentou-se a eles, mas , de vestes rasgadas, chapeuzinho roto e a velha mochila, os outros dois se negaram a reconhecê-lo como irmão. Riram-se dele, dizendo:

- Pretendes te fazer passar pelo nosso irmão que desprezou o ouro e a prata porque desejava coisa melhor? Não há dúvida que voltará com grande magnificência; numa carruagem, como verdadeiro rei, e não feito um mendigo!

E assim correram com ele de casa. Indignado, o rapaz pôs-se a bater na mochila até que cento e cinquenta homens se apresentaram, perfilados, diante dele. Ordenou que cercassem a casa de seus irmãos e deu ordens a dois soldados para apanharem varas de marmelo e com elas surrarem os dois insolentes até que estes reconhecessem quem ele era.

Tudo aquilo provocou uma enorme balbúrdia. Os habitantes do povoado correram a prestar socorro aos dois agredidos , mas nada puderam fazer  contra os soldados do jovem.

O caso  chegou, finalmente, aos ouvidos do rei, ao qual zangado, enviou um capitão à frente de sua companhia, com ordem de expulsar da cidade aquele desordeiro. Mas o homem da mochila reuniu, num instante, uma tropa mais numerosa ainda, e rechaçou o capitão com todos os seus homens, obrigando-os a retirar-se com os narizes ensanguentados.

Mesmo assim, disse o rei:

- Ainda poderemos liquidar com esse aventureiro.

E, no dia seguinte, enviou contra ele um grupo maior, mas sem obter melhor resultado do que na véspera. O adversário lhe opôs mais gente e, para terminar mais depressa, deu umas voltas no seu chapeuzinho. Imediatamente a artilharia entrou em ação, derrotando os homens do rei  pondo-os em fuga.

- Agora não darei a paz, - pensou o jovem - até que o rei me dê sua filha em casamento e eu fique governando o país em seu nome.

Mandou comunicar sua decisão ao rei e este disse à sua filha:

- A necessidade obriga. Que remédio me resta senão ceder ao que ele exige? Se quero obter a paz e conservar a coroa em minha cabeça, devo entrega-te.

Celebrou-se, pois o casamento, mas a princesa sentia-se aborrecida pelo fato de ser o marido um homem vulgar que andava sempre com um chapéu roto à cabeça e uma velha mochila aos ombros. Com muito gosto ter-se-ia desfeito dele. Dia e noite ficava a cismar como satisfaria seu desejo.

Pensava ela: "Estarão na mochila suas forças mágicas?" E começou a tratá-lo com fingido carinho.

Quando o coração do marido se abrandou, ela lhe disse:

- Se ao menos tirasses essa velha mochila... Ela não te fica bem e faz com que me envergonhes de ti.

- Minha querida, - respondeu-lhe o marido - esta mochila é meu maior tesouro. Enquanto eu a possuir, não temo nenhum poder do mundo!

E revelou à mulher os poderes mágicos da mochila.

Ela, então, enlaçou o marido como para beijá-lo, mas, com rápido movimento, tirou-lhe a mochila dos ombros e escapou-se. Depois, sozinha, pôs-se a bater-lhe e ordenou aos soldados que detivessem o seu antigo senhor e o expulsassem do palácio. Os homens obedeceram e a ingrata esposa enviou, ainda, outros mais, com ordem de fazê-lo sair do país. O rapaz estaria perdido se  não tivesse o chapeuzinho. Assim que pode libertar as mãos, deu-lhe um par de voltas e, no mesmo instante, a artilharia começou a entrar em ação, destruindo tudo. A princesa não teve outro remédio senão apresentar-se, pedindo misericórdia.

E como pediu com tanto carinho prometendo corrigir-se, o marido concedeu-lhe a paz. E ela fingiu tão bem que ele se convenceu de que era profundamente amado. E um dia acabou confessando à mulher que, caso alguém se apoderasse de sua mochila, nada poderia contra ele enquanto não lhe tirasse, também, o chapeuzinho.

E aí então, de posse de seu segredo, ela aguardou que o marido adormecesse e arrebatou-lhe o chapeuzinho. E por mais uma vez, ordenou que o expulsassem.  

Mas ao pobre rapaz ainda restava a cornetinha, num acesso de cólera, se pôs a tocá-la com toda as suas forças. Imediatamente começaram a ruir por terra, muralhas, fortificações, cidades e vilas, acabando com o rei e sua filha. E caso não houvesse parado depois de tocar um pouquinho, tudo se transformaria num montão de ruínas, sem ficar pedra sobre pedra.

Ninguém mais se atreveu a lhe oferecer resistência, tornando-se ele o soberano de todo o país

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos. vol.1. Publicados em 1812.

Isabel Furini (O Chapéu na literatura)

“Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu.”
  Do conto: Capítulos do chapéu de Machado de Assis

Falar de chapéus é falar de um acessório que, além de proteger a cabeça do Sol e do vento, pode aumentar o glamour das pessoas. Em literatura elementos como bolsas, relógios, luvas, bengalas, chapéus e outros, podem servir para destacar a singularidade de algum personagem.

Em alguns locais do mundo as festas de casamento exigem que as mulheres escolham elegantes chapéus. O chapéu é muito usado nas históricas cidades da Europa, como Londres, por exemplo, onde as nobres cabeças são muitas vezes ornadas com belos chapéus - como símbolo de elegância.

Um chapéu tem que ser adequado para o tipo de rosto, para potencializar o charme... e até a altura. Sim, segundo alguns autores essa era a função do chapéu de Napoleão: torna-lo mais alto aos olhos dos outros.

Na literatura o chapéu também fez sua aparição em grandes livros. Por exemplo, quem não lembra de Sherlock Holmes, o famoso detetive inglês e seu chapéu. Miss Marple, a idosa também detetive, usava um chapéu surrado.

Talvez como disse Machado de Assis no conto citado (Capítulos do chapéu): “O princípio metafísico é este: — o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado a eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação.”
 
E qual é essa força que o chapéu empresta ao ser humano? É força da escolha, de se distinguir, singularizar. Um homem de chapéu destaca-se na multidão.
 
Também em livros infantis aparecem personagens usando chapéus. O chapeleiro louco do livro Alice no País das Maravilhas usa uma cartola muito especial, com um pano amarrado e uma carta. Também podemos lembrar de Chapeuzinho Vermelho. E as bruxas? Elas quase sempre estão representadas com um chapéu preto pontudo. Já os gnomos são representados com um gorro colorido. O imaginário representa Papai Noel, também com um gorro.

Dick Tracy, Indiana Jones e Freddy Krugger (personagem de A Hora do Pesadelo) são caracterizados usando chapéu.

A belíssima Brett Ashley, na obra O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway, usava um chapéu masculino sem perder a feminilidade. Ao contrário, com esse ornamento a sua beleza e sensualidade pareciam aumentar.

Em O Lustre de Clarice Lispector, um chapéu é citado no início da história. No final Virginia, a protagonista, morrerá e será reconhecida por aquele chapéu marrom. O chapéu adquire um simbolismo especial. É como um personagem do livro.
 
O romance de Menalton Braff, Moça com Chapéu de Palha (2009), também traz a imagem de uma mulher usando um chapéu. Em A Insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, lemos: “Por isso, quando Sabina colocou diante dele o chapéu-coco na cabeça...”

Bill McGovern, o personagem de Stephen King também usava chapéu. Lemos: “O chapéu marrom surrado que estava usando lhe dava um ar elegante, como o de um repórter de filme policial dos anos quarenta.” (...)

Os Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas usavam chapéus de abas largas com uma pluma decorativa.

Em Don Quixote de la Mancha lemos: “Como no caminho lhe começou a chover, receoso ele de que lhe estragasse o chapéu, que naturalmente seria novo, pôs-lhe por cima a bacia.”
 
Um fato interessante é que na cidade de Oviedo (Astúrias) Espanha, existe um concurso e literatura chamado Cuentos e Sombreros (Contos e Chapéus), promovido pela chapelaria Albiñana.

O chapéu, como acessório dos personagens e como elemento que pode revelar um forte simbolismo, já conquistou o seu espaço na cabeça de alguns protagonistas e de seus autores.

Grande ou pequeno, masculino ou feminino, elegante ou bizarro, o chapéu pode ser encontrado não só nas vitrines das chapelarias, mas também na literatura.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 69: Álvaro Posselt

 

A. A. de Assis (“Amnestia”)

Vou falar de novo do professor Polyclínio. Ele era desses de não dizer as coisas sem minuciosa explicação. Cada palavra no seu devido lugar e com o significado exato. Um vizinho dele chegou meio avexado, falando dos entreveros que mantinha com a mulher: “Ela é dura na queda, seu professor. Tá certo que fiz minhas travessuras na vida, mas isso foi já faz muito tempo. Volta e meia ela me pega no pé e sai com os desaforos. Tem hora que chega a me dar gana de desmaridar. Só à custa de muita reza vale-me o santo de me reassossegar”.

O bom mestre pediu-lhe que mandasse Dona Zina falar com ele. Daria uns conselhos de velho experimentado, habituado a lidar com as mais complicadas filosofias, psicologias, etceterologias. Ela decerto haveria de acabar com aquelas rabugências.

A mulher foi, sentou-se, aceitou um chazinho. Provocada pelo paternal Polyclínio, narrou as artes do marido, reconhecendo, entretanto, que “o safado nos últimos tempos andava mais caseiro e quieto”.

– Pois olhe, querida vizinha e amiga, eu lhe garanto que o Lico se emendou de vez e de verdade. Então acho que está na hora de dar um fim nessas brigas tolas. Proponho que a senhora, generosa como é, além de perdoá-lo, lhe ofereça uma anistia.

– Merecer ele não merece, mas já perdoei sim senhor.

– Perdão é pouco. Tem que ser anistia mesmo. Perdão é coisa que muita gente diz que dá, mas não dá. Fica com a mágoa encalhada no coração. Basta um mínimo furrubundum pra vir tudo de novo à goela.

– Se explique mais melhor, faz favor.

– Explico sim. “Anistia”, no grego, é “amnestia” (de “mnes”, que significa “memória”). Juntando o prefixo “a”, que indica “negação”, temos “a-mnestia”, isto é, algo não lembrado, varrido da memória. Anistia é o mesmo que esquecimento total.

Dona Zina ficou mais perdida do que antes. Vá lá saber que trem era esse que o velho sábio estava tentando lhe enfiar no ouvido...

– Deixemos pra lá os gregos, disse ele. Quero só que a senhora esqueça todas as descabeçadas que o seu marido andou aprontando no bem antes do hoje. Quem sabe a senhora, mesmo sendo uma abençoada pessoa, também tenha alguma parte na culpa. Mas agora que os dois estão mais maduros tratem de apagar as más lembranças e comecem de novo a vida.

– O senhor professor acha que dá?

– Acho sim. “Amnestia”... anistia... esquecimento completo... Perdão é uma palavra bonita, mas anistia tem bem mais força: enxota da memória as causas da mágoa. Se alguém fez algo errado, esqueça de vez. E bola pra frente, cabeça erguida, coração limpinho. Entende?

– Entender não entendo muito não, mas entendo sim.

– Vá em paz. E dê um abração no meu amigo Lico.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-1-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) IV

BRUMAS E VARAS DE PESCA

 
Coberto por brumas
Corre o rio caudaloso
Águas, outrora serenas
Hoje, se mostram agitadas
 
Passam por corredeiras
Descem em cachoeiras
Cumpriram enfim o destino
Ao desaguar no oceano
 
Que acolherá em seu seio
Abarcando o estuário como
A mãe, aconchega o rebento
Assim, serão unos!
 
Duas varas de pesca
Arrastadas da margem...
Seguem junto, boiando
Frutos do esquecimento!
 
De um pescador desatento...
Objeto de esporte, a água levou
Só o samburá ficou...
Assim, navega o presente!
 
Levado pelo filho pródigo... rio
Que a casa dos pais retornará... o mar...
Qual  o destino das varinhas?
Isso... Netuno... decidirá...
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É PRIMAVERA
 
Cai a chuva indolente
entristecendo o dia
Que deveria estar radiante
até há pouco o sol ardia...
 
Mas as nuvens choram
lágrimas em pranto sentido
Pelo rosto de um deus destilam
o olhar da mulher, o deixa aturdido
 
Ante aflitiva confidência
e o coração da musa destroçado
Seus sonhos de amor esfacelaram...
 
Desapareceu seu homem amado!
apagou-se qual estrela cadente
Hoje as cores do arco íris desbotaram...
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FLORES

Sopra uma brisa refrescante na ilha
Farfalhado as folhas dos coqueirais
Causando inveja às açucenas
Que ladeiam o cais...
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RENDEIRA


Dedos ágeis da rendeira
Tecem a renda de bilro
Cruzam linhas e cores
Nos alfinetes o destino...
Dedos calejados
Labuta cansativa
Deixa vagar pensamentos
Mocidade e seus momentos
À sombra da choupana

Tem o mar como cenário!

Olhar triste e perdido
Desesperança surgindo...
Onde estará seu amor?
O Raimundo pescador
Exímio jangadeiro
A noite passou
O dia clareou
A tarde findou
E ele não regressou…
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ROMANTISMO     
 
Trago no peito a dor insuportável
lancinante, sufocante da doença
Instalada e classificada de incurável
o romantismo, arraigado, é esperança...
 
Do encontro almejado e, sempre adiável
diante dos obstáculos surge mudança
Resta-me exercitar a persistência, inabalável
atributo que extermina a desesperança
 
Finda e reinicia os anos, em longa espera
A visualizar ao longe teu semblante
Quem sabe são, lembranças de outra era!
 
Assim, nesta febre delirante
de uma paixão, não, efêmera
Percebas meu amor, abrasante!
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(SÓ) ENTRE O BREU
 
Que os ais dos meus anseios
Misturem-se, ao vento a bramir
Dissipem meus devaneios
E a angustia, que tento oprimir
 
Sem perspectivas e galanteios
A dor da saudade vou suprimir
Apago assim, os candeeiros
Imaginando poder dormir...
 
(Só), entre o breu, trovoadas
Vejo o raio partindo um galho
No rosto, lágrimas desvairadas
 
Diante do portentoso carvalho
A chuva a cair como chibatadas
E um tapete de folhas, sobre o cascalho…

Aparecido Raimundo de Souza (Aos milagres de certas graças)

AS DUAS AMIGAS, Cimara e Cineide, caminham sem pressa alguma para o ponto de ônibus. São quase onze horas. O sol está escaldante. Apesar disso, as beldades proseiam e riem animadamente, enquanto cruzam as ruas na tentativa de galgarem o ponto da condução, na praça da igreja matriz, aquela hora, apinhada de gente.

Cimara: — Mudando de pau pra cavaco, acho que não te falei. A minha mãe perdeu o celular e não sabe onde. Na volta, você me ajuda a procurar?

Cineide: — Fácil, amiga. Nem precisa se dar ao luxo. Ligue para ele...

Cimara: — Você acredita que não sei o número da minha velha?

Cineide: — Que número que você não sabe?

Cimara: — Do celular da minha mãe, ora bolas. De quem mais? Acorda, colega...

Cineide: — Eu que não sou nada da sua mãe tenho o número dela. Deixa ver aqui na agenda do meu aparelho...

Cimara: — Achou?

Cineide: — Anota ai no seu: nove, nove, nove, cinco, oito zero, zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Gravou?

Cimara: — Sim, amiga: nove, nove, nove, cinco, nove... oito zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Confere?

Cineide: — Liga logo e deixa de onda...

Cimara: — Estou fazendo isso, amiga. Droga! Ninguém atende. A bateria deve ter descarregado...

Cineide: — Vamos fazer o seguinte, Cimara?

Cimara: — Diga, amiga...

Cineide: — Que tal deixarmos os nossos salões de beleza para amanhã? Hoje, segunda-feira, deve estar assim de gente. Olhe como andam os ônibus. Aproveitando que dona Glória sai cedo para o trabalho, sugiro voltarmos agora à casa dela, já que é perto da sua e da minha e revirarmos tudo de pernas para o ar. Assim que toparmos com ele, se estiver por lá, logicamente, botamos para carregar e aí a gente liga em seguida dos nossos aparelhos até descobrirmos, de uma vez por todas, onde ele se encontra...

Cimara: — Bem pensado, Cineide. Por que não atinei com isso antes?

Cineide: — Por que você não é ninguém se eu não estiver por perto para lembrar certas coisinhas simples. Resumindo, Cimara: eu sou o pensamento vivo que aflora e você a cabeça objetiva que coloca o que mentalizo em movimento.

Cimara: — Você tem toda razão, minha linda. Sem você eu não seria nada.

Cineide: — E eu sem você me pilho como um zero à esquerda, apesar de estarmos ambas com quase trinta anos nas costas. Na volta da sua mãe, passamos em minha casa e almoçamos. Gostou da ideia?

Chegam no quintal de dona Glória. Um outro problema surge em obstáculo: Cimara não vislumbra como ganhar o interior da enorme moradia. Lembra, entrementes, que a sua genitora deixa as chaves dependuradas num local apropriado onde, aliás, repousam todas as demais pecinhas pertencentes aos outros cômodos. Sua mãe carrega, na bolsa, somente a tetra de três voltas de acesso à sala.

Cimara: — Reze, Cineide, para que a mãe não tenha feito como eu faço no meu quadrado. Por medo encadeio, com escoras, todas as janelas. A da despensa ela sempre deixa encostada...

Volteiam em torno da construção. De posse de um cabo de vassoura forçam o tal envidraçado do depósito. Realmente, não havia sido imobilizado.

Cineide: — É meio alto. Consegue subir e pular?

Cimara: — Com a sua ajuda... me disponho a qualquer travessura. Como estou de vestido, e não temos suporte de apoio. Por favor, quando me segurar, não espie a minha calcinha...

Vai daqui, tenta dali, agarra acolá, a jovem alcança seu intento. Sem mais delongas, passa a mão nas chaves da cozinha e, de reforço, a que descamba na varanda. Engrena as veredas de regresso.

Uma trabalheira danada para “despular” de onde começou a aventura. Colocar a brecha invadida na posição normal e abandonar o conforto do peitoril de mármore no qual se agarrara, atrelada ao afoito acelerado da descida. Ao se soltar, um movimento abrupto faz com que ambas se desequilibrem e beijem o chão rolando cada uma para um canto. Rostos sujos de terra, mãos e roupas igualmente emporcalhadas, Cimara exibe num sorriso contagioso o resultado edificante do que se propusera em sua missão:

— Pronto, amiga. Agora podemos escolher. Você prefere vir comigo pelo conforto da sala ou começamos a escalada usando os descaminhos tortuosos dos fundos?

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 29: Rodolpho Abbud

 

Nilto Maciel (Menino Insone)

Vontade de falar com a mãe: não conseguia dormir. As sombras das redes nas paredes, nas portas, no guarda-roupa, no chão escondiam almas. A luz da lamparina bruxuleava. Súbito uma novidade: o irmão menor bota as pernas fora da rede, senta-se, levanta-se e caminha em direção a uma das portas.

Para onde irá?

Abre a porta e some no corredor.

O menino quer falar com a mãe. Ela dorme e poderá se assustar. Melhor ir atrás do outro.

E se ele também estiver dormindo?

Muitas vezes lhe disseram: não se deve acordar quem anda durante o sono. Pode morrer. O menino permanece de olhos bem abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos.

Por onde andará o irmão? Terá ido ao banheiro?

Possivelmente não, pois não abriu a porta para o quintal.

Um ratinho corre pelo canto da parede. O pai ronca no quarto ao lado. Um cachorro late longe. Outros dão resposta.

Será nos quintais ou no meio das ruas? O dia está para chegar ou falta muito tempo para clarear? Nenhum galo cantou ainda.

E o irmão? Estará dormindo no chão do corredor, da cozinha, junto às baratas?

O menino fecha os olhos. O rato deve ter sumido num buraco. Será profundo, raso, estreito, largo? Outros ratos habitarão aquele mundo de trevas. Lá não deve haver lamparinas. Quem as acenderia? Quem compraria querosene? E o perigo de incêndio! Não, não há perigo. Tudo é calmo, tudo é calmaria. Bichinhos são lindos. Coelhos correm pelo chão gramado da praça. Todos muito brancos, olhinhos arregalados, focinhos trêmulos. Queremos comer cenoura, seu menino. Onde vou arranjar cenouras, meus amigos? Então vamos brincar de correr.

Não havia mais ninguém na praça, um ventinho soprava as folhas das árvores, os cabelos do menino. Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. Tudo colorido. O sol se escondia atrás de um monte alto. Passarinhos voavam e piavam no céu. Outros meninos corriam e brincavam na praça. O menino abriu os olhos. A luz da lamparina parecia se apagar. Silêncio absoluto no quarto. O pai não roncava mais. Na rede ao lado o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) IX, motes e glosas


Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.


O divino Nazareno,
Por falsas acusações,
Morreu entre dois ladrões,
Mas altaneiro e sereno;
Eu, que sou fraco e pequeno,
Diante da grande luz,
Só devo morrer na cruz
Do espinhaço de um jumento...
Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.

= = = = = = = = = = = = =

"Nosso velho burocrata
Diz não ter substituto."


O livro cheira a barata..
O balcão suja os clientes;
Cochila detrás das lentes
Nosso velho burocrata.
Falta o termo, esquece a data,
Mastiga mais um minuto...
Pra recolher o tributo,
O freguês fica maluco,
Mas, mesmo assim, o caduco
Diz não ter substituto.
= = = = = = = = = = = = =

Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não tive roupas modernas;
A vida não me deu prêmios,
Porque fui um dos boêmios
Da perdição das tavernas;
Inda tenho boas pernas
Para os sopapos da estrada,
Mas, logo ao fim da jornada,
O mundo vai me esquecer...
Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não vivo só de cantar
O que a poesia me aponta,
Trabalho para dar conta
Dos encargos de meu lar;
não vivo em mesa de bar,
bebo na minha morada,
mas, os de língua malvada,
contestando meu viver,
quando eu morrer, vão dizer
que fui poeta e mais nada!

= = = = = = = = = = = = =

Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Eu não sei comer sozinho
O pão que a vida me dá;
Quero que um pedaço vá
Para a mesa do vizinho;
Quando à margem do caminho
Encontro uma flor de lis,
Faço como sempre fiz:
Dou a alguém por amizade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Minha alegria se some
E minha alma cambaleia,
Se estou de barriga cheia,
Vendo crianças com fome;
Peço até que Deus me tome
Aquilo que eu sempre quis,
Se eu me mostrar na matriz
esquecendo a caridade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.

= = = = = = = = = = = = =

Vindo ao mundo, peguei o trem da vida,
Mas não sei o tamanho da viagem.


– Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora,
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014
Livro enviado por Rosileide Barros.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte 2

USANDO O MÉTODO DO FLOCO DE NEVE

1. Resuma o enredo em uma frase.

O método do floco de neve é muito comum na estruturação de romances, mas também serve para contos e outros textos curtos. Nele, você vai poder explorar o enredo em incrementos e estruturar as cenas em uma planilha. Para começar, resuma toda a história em uma frase que a explique bem.

Escreva um resumo breve e direto, sem incluir descrições específicas demais ou mesmo nomes próprios.

Não passe de 15 palavras e concentre-se no grande tema do enredo.

Por exemplo: o livro Garota Exemplar, da norte-americana Gillian Flynn, poderia ser resumido como "Um casamento aparentemente perfeito é arruinado quando a esposa desaparece".

2. Resuma o enredo em um parágrafo.

Depois de resumir a história em uma frase, é hora de você expandir o conceito a um parágrafo inteiro que descreva a ambientação, os principais eventos, o clímax e o final. Você pode usar a estrutura de "três desastres e um final", na qual três coisas ruins acontecem na história antes de ela chegar ao clímax. O objetivo é pensar em eventos cada vez piores, mas que sejam resolvidos pelo protagonista no fim das contas.

Escreva um parágrafo com cinco frases. Uma delas deve descrever a ambientação; depois, uma deve falar de cada evento desastroso (com um total de três); em seguida, a última frase deve descrever o final.

Veja um exemplo de parágrafo:

"Para todo mundo que vê de longe, Nick e Amy parecem ter um casamento perfeito. No entanto, Amy desaparece sob circunstâncias misteriosas em uma noite e surge a hipótese de que havia uma trama secreta contra ela. Nick é acusado por assassinar a esposa e se vê obrigado a se defender perante um júri. Depois, ele descobre que a esposa fraudou a própria morte e está viva, mas determinada a colocá-lo atrás das grades. Nick a confronta e eles discutem, mas no fim das contas Amy o convence a continuar casado com ela com uma ameaça".

3. Crie sinopses para os personagens.

Depois de escrever o resumo, é hora de se dedicar aos personagens. Crie uma história para cada um e inclua características importantes, como nome, motivação, objetivos, conflitos e epifanias. Dedique um parágrafo a cada um desses elementos.

As sinopses dos personagens não precisam ser perfeitas. Você provavelmente vai fazer algumas alterações quando começar a escrever cenas do romance final. No entanto, elas dão uma boa ideia de quem esses personagens são e de que papel eles exercem no enredo.

Veja um exemplo de sinopse de personagem:

"Nick tem 35 anos e trabalha como repórter, mas é demitido após dez anos de empresa. Ele está casado com Amy há também dez anos e a vê como 'menina de ouro', a esposa e a parceira ideal. No entanto, o desemprego começa a afetar a sua autoconfiança, principalmente quando se lembra de que Amy vem de uma família rica e herdou uma fortuna há pouco tempo. Ele acha que tem que ser o provedor do casamento e se sente ameaçado pela independência financeira e pelo sucesso profissional da esposa. Quando Amy desaparece, ele vive um conflito entre tentar encontrá-la e retomar sua infelicidade conjugal. Com o tempo, Nick acaba percebendo que a sua esposa tramou para acusá-lo do desaparecimento dela".

4. Crie uma planilha com cenas.

Depois de escrever o resumo em um parágrafo e as sinopses de cada personagem principal, é hora de você juntar os dois e transformar esses resumos em cenas. Essa lista dá uma noção melhor do enredo da história como um todo.

Use um programa de planilha, como o Excel, para organizar as cenas na ordem em que elas aparecem. Você pode ter algo entre 50 e 100 cenas, dependendo do tamanho da história. Faça duas colunas, uma para os personagens cujos pontos de vista o leitor acompanha e outra para explicar brevemente o que acontece. Em seguida, comece a listar também os eventos um a um usando o resumo como guia.

Por exemplo:

"Nick descobre que Amy desapareceu. Personagem central: Nick. O que acontece: Nick chega em casa depois de passar a noite trabalhando como bartender e nota que a porta de entrada foi arrombada. Ele também encontra uma poça de sangue no corredor e sinais de combate físico na sala, com poltronas reviradas e marcas de unhas nas paredes. Nick procura na casa inteira, mas não encontra Amy".


Continue fazendo isso com cada cena que está naquele resumo de um parágrafo. Quando terminar, você vai ter a estrutura geral do enredo e a lista de cenas que o integram, o que facilita bastante a sua vida na hora de montar o texto final.

Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 20

 

Franz Kafka (O Novo Advogado)

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Há muito pouco em seu aspecto que nos lembre ter sido ele certa vez o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia.

Claro, se você conhece sua história, você é pessoa bem informada. No entanto, mesmo um simples meirinho, a quem eu vi outro dia nas escadas de entrada do Palácio da Justiça, um homem com a consideração profissional de um pequeno apostador das corridas, lançava seus olhos estupefatos para o advogado na medida em que ele subia os degraus de mármore levantando bem as pernas e fazendo ressoar suas pisadas.

De um modo geral, a Ordem dos Advogados aprovou a admissão de Bucéfalo. Com admirável compreensão, diziam que, sendo a moderna sociedade o que é, Bucéfalo está em situação difícil, e portanto, considerando também sua importância na história do mundo, ele merecia, pelo menos, uma recepção amistosa. Atualmente - não se pode negar - não existe mais Alexandre o Grande. Há um grande número de homens que sabe matar pessoas; a destreza de atingir com a lança um amigo do outro lado da mesa de um banquete é coisa que não falta; e para muitos a Macedônia é demasiadamente estreita, tanto que estas pessoas amaldiçoam Felipe, o pai - mas ninguém, ninguém de fato conhece o caminho para as Índias. Mesmo na época de Alexandre as portas da Índia estavam fora de alcance, embora a espada do Rei apontasse o caminho para eles.

Hoje as portas foram removidas para bem mais longe e para bem mais alto; ninguém mostra o caminho; muita gente usa espadas mas apenas para brandi-las, e o olhar que tenta segui-los se confunde.

Assim, talvez seja melhor fazer o que Bucéfalo fez e mergulhar nos livros de direito. À luz suave do candeeiro, com os flancos livres do incômodo das esporas de qualquer cavaleiro, liberto e longe do clamor das batalhas, lê e vira as páginas dos nossos alfarrábios.

Fonte:
Franz Kafka. Um médico rural. Publicado em 1919.