quinta-feira, 24 de março de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 02

 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXVII

A lua em seu plenilúnio
esbanja fulgor e encanto,
para que em seu novilúnio
lance à noite o negro manto.
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Ao começar mais um dia
olhe no espelho da vida,
diga à imagem, na alegria,
a luta há de ser vencida!
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A vida esconde segredos,
que nem todo homem entende,
este vive imerso em medos
e em falsas crenças se prende.
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Cada letrinha interposta
no papel branco da vida,
sempre revela a resposta
da pergunta, quando lida.
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Cinco minutos na fila,
têm sabor de eternidade,
pior quando se afunila
e está apenas na metade.
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Com a tarde não se iluda,
a noite vem e a domina,
treva em luz, a lua muda,
e o sol o dia ilumina.
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De cada pedra que arrasa,
ou deturpa o teu projeto,
ergue as paredes da casa
sem esqueceres do teto.
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Fonte da vida mais terna,
família, berço do afeto,
pais e filhos, senda eterna,
trilham sob o mesmo teto.
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Mentir com atrevimento
sem remorso e sem piedade,
nunca falta um argumento
para esconder a verdade.
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O amargo do chimarrão
torna mais doce a amizade
e a cuia, de mão em mão,
distribui felicidade.
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O amor puro e verdadeiro
não deve ser confundido,
com um elo interesseiro
de egoísmo revestido.
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O entardecer na floresta
surge à sombra da magia,
as aves vibram em festa
no final de mais um dia.
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O perdão nunca acontece
longe do arrependimento,
o que pede, sempre cresce,
e quem dá sente um alento.
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O vento sopra voraz
e arrasa tudo onde passa,
cospe o pó, deixando atrás
rastros de espessa fumaça.
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Pelos caminhos terrenos
busca a paz, planta amizade,
colherás frutos amenos
nos campos da eternidade.
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Quando o frio bate à porta
ouve em gritos, do vivente,
fica fora e te comporta,
porque aqui dentro está quente!
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Quando o vivente aparece
de lenço rubro abanando,
de per si a cena esclarece:
um gaúcho vem chegando!
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Quem odeia os semelhantes
pondo-os no fundo do poço,
chora, por nele entrar antes,
com a pedra no pescoço.
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Se o destino tem autor,
esse autor pode ser eu,
pra ser dele o construtor,
liberdade Deus me deu.
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Só Deus sabe o que o futuro
ao mundo tem reservado,
não seja ele um tanto escuro,
nem obscuro ou depravado.
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Só permanece calado
quem nada tem a contar,
para que falar se ao lado,
ninguém para pra escutar?
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Tem a pedra o dom do abate
e o poder da intemperança,
cora a face de escarlate
com o pincel da vingança.
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Tendo o rumo já traçado,
mais fácil é navegar,
mesmo o mar sendo agitado,
são, pode ao porto chegar.
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Todo o respeito rompido
numa relação delgada,
infla na alma do ofendido
uma amizade negada.
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Vento brando, nunca assusta,
da planta balança a flor.
Se forte, mesmo a robusta,
não resiste o seu furor.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (“Uma paixão no deserto”, de Honoré de Balzac)


Uma Paixão no Deserto (Une passion dans le désert) é um conto de Honoré de Balzac publicado em 1837 nas edições Delloye et Lecou no tomo XVI dos Estudos filosóficos de "A Comédia Humana". Balzac já havia publicado uma versão em 1830 na "Revue de Paris". É considerada uma das suas melhores narrativas breves.

O livro traz três contos de Balzac: Uma paixão no deserto, O carrasco e A estalagem vermelha. Todos os contos ambientados no período das guerras napoleônicas. Uma paixão no deserto narra uma amizade incomum entre um soldado perdido no deserto e uma pantera, O carrasco mostra o extermínio de uma nobre família espanhola e A estalagem vermelha narra o destino de dois amigos que foram cúmplices de um crime,sendo que apenas um deles foi legalmente condenado. Os três contos tem em comum algo peculiar ao ser humano:o instinto de sobrevivência, que o faz cometer atos de qualquer natureza. É um passeio sobre a condição humana, suas ambições, egoísmos e mesquinhez.

O soldado perdido no deserto acha refúgio em uma gruta e consegue domesticar uma pantera pela qual sente alguma forma de amor. Como única companhia no deserto, o homem projeta emoções humanas na fera, com quem vive em miraculosa harmonia. Um dia, contudo, um gesto brusco lhe dá a impressão de que o animal vai devorá-lo e ele o apunhala. Ele se apercebe tardiamente de que o gesto era um sinal de afeição da parte do animal. O narrador é um homem que, um dia, encontrou o soldado num espetáculo de um domador de feras. A historia desse encontro serve de narrativa moldura. Ele conta o relato do soldado à sua companheira.

O conto Uma paixão no deserto de Honoré de Balzac, está carregado de elementos estruturais que o associam à história do colonialismo no tocante ao comportamento das culturas em choque. Sua peculiaridade está na relação que ele apresenta com o realismo do autor, o que permite verificar um tratamento estético ou um questionamento do colonialismo, em certa medida, diferente do que era feito até então, apesar de este tema ter sido exaustivamente explorado pela literatura de todo o período colonial e pós-colonial. A partir das considerações sobre o realismo literário moderno colocadas por Lukács e por Auerbach, é possível demonstrar que o realismo balzaqueano é responsável por uma abordagem muito mais grave do tema, discutindo o Outro dentro da complexidade do universal humano.

Este realismo e a eficiência na representação literária conduzem uma narrativa extremamente tensa e carregada de significado histórico e social, não obstante a brevidade do texto. O conto também oferece uma abertura para o diálogo entre diferentes narrativas (não europeias, inclusive), pois vários de seus aspectos estão presentes de formas peculiares em outros textos literários. O conto de Balzac tem como ponto de partida para traçar uma cadeia de argumentações com base na constatação de que, entre os universais humanos, sempre haverá um lugar para a negação do Outro.

Fontes:
Maria Braga Barbosa. Uma Paixão no Deserto: o conto de Balzac como metáfora do choque de culturas no colonialismo. Excerto do resumo. Disponível no repositório da Universidade de Brasília.
Wikipedia
Skoob

Honoré de Balzac (Uma Paixão no Deserto)


Pensa que os animais não têm suas paixões? Pois é exatamente o contrário: podemos comunicar-lhes todos os vícios decorrentes do nosso estado de civilização.

A primeira vez que vi o sr. Martin, fiquei surpreso. Estava diante de um velho soldado com a perna direita amputada. Seu rosto espantara-me. Tinha uma dessas cabeças intrépidas, nas quais estão escritas as guerras de Napoleão. Com uma franca expressão de bom humor era sem dúvida um desses guerreiros que nada surpreende, que acham motivo para rir das contorções de um camarada agonizante, enterrando-o ou pilhando-o de coração leve, desses que se metem corajosamente nos caminhos das balas, enfim, um desses homens que não perdem tempo em deliberações, e que não hesitariam em se tornar amigos do próprio diabo. Fomos jantar juntos e, à sobremesa, ele contou-me sua história, que lhes vou relatar.

Durante uma expedição ao alto Egito sob o comando do General Desaix, um soldado da Provença caiu nas mãos dos Mangrabinos, e foi preso pelos árabes nos desertos além das quedas do Nilo. Os Mangrabinos pousaram certa noite, acampando sob palmeiras, onde haviam antes escondido provisões. Contentaram-se em atar as mãos do prisioneiro et após comerem algumas tâmaras e alimentarem seus cavalos, foram dormir.

Quando viu que ninguém o estava vigiando, o Provençal furtou com os dentes uma cimitarra, firmou a lâmina entre os joelhos e cortou as cordas que lhe prendiam as mãos. Num momento estava livre. Tomou de um rifle a de uma adaga, de um saco de tâmaras secas, aveia, pólvora e montando a cavalo dirigiu-se a galope para o ponto onde esperava encontrar o exército francês. Tão impaciente estava para encontrar um bivaque, excitou tanto o animal a correr, que este chegou a morrer, deixando-o sozinho no deserto. Após andar algum tempo na areia com toda a coragem de um fugitivo convicto, foi obrigado a parar, pois o dia findava. Apesar da beleza da noite oriental, sentiu que não podia continuar. Felizmente encontrara uma pequena colina, no topo da qual algumas palmeiras se elevavam.

Estava tão cansado que caiu numa rocha de granito, recortada a capricho como um leito, e ali ficou dormindo sem precauções de defesa. Lamentou ter deixado os Mangrabinos, cuja vida nômade lhe sorria agora que estava sem ajuda. Foi despertado pelo sol cujos raios inclementes causavam, caindo com força no granito um calor intolerável. Ao olhar em torno, viu com horror que um oceano sem limite se estendia diante dele. A escura areia do deserto ia para além donde a vista pode alcançar, e vibrava como aço de tão ofuscante. Parecia um mar de espelho, ou lagos misturados formando um grande espelho. O céu era de oriental esplendor e insuportável pureza. Tanto o céu como a terra estavam ambos em fogo.

O silêncio era terrível na sua selvagem e terrível majestade. O infinito e a imensidade fechavam-se sobre a alma, de todos os lados. Nenhuma nuvem no céu, nenhuma vibração no ar, nenhuma fenda na areia, movendo-se em pequeninas ondas. O horizonte terminava como no mar, com uma linha de luz, fina como uma lâmina de uma espada. O provençal abraçou-se com uma palmeira, como se ela fosse o corpo de um amigo e chorou. Sentado, gritou, a fim de medir a sua solidão. Sua voz não despertou ecos. O homem tinha vinte e dois anos. Carregou a carabina, da qual esperava a sua libertação.

Pôs-se a lembrar a França, as cidades que atravessara, os rostos dos companheiros, os menores detalhes de sua vida. E a sua fantasia mostrou-lhe as pedras da amada Provença, na ilusão do calor que ondulava na folha estendida do deserto. Temendo o perigo dessa cruel miragem, dirigiu-se ao lado oposto da colina. Nesse local viu sinais de que fora antes habitado; a pouca distância, palmeiras cheias de tâmaras. Então o instinto que nos prende a vida acordou de novo no seu coração. Desejou viver até a passagem de atuns árabes. Ou talvez ouvisse o som de algum canhão, pois que por esse tempo Bonaparte atravessava o Egito.

Quando provou daquele inesperado maná, teve certeza de que as palmeiras tinham sido cultivadas por algum habitante, tão boas eram a passou, desesperado a uma quase insana alegria. Voltou ao topo da colina e pôs-se a cortar uma das palmeiras estéreis, que lhe serviram abrigo. Lembrou-se dos animais deserto e, no caso de algum vir beber na linfa visível na base das rochas que mais abaixo desaparecia, resolveu resguardar-se nas pedras colocando uma barreira à entrada da sua ermida. Com folhas da palmeira, uniu a esteira em que dormiria. E adormeceu, cansado.

Durante a noite seu sono foi perturbado por um ruído extraordinário, soergueu-se, e o silêncio permitiu-lhe distinguir os acentos alternados de uma respiração cuja selvagem energia não podia pertencer a um humano. Seu coração gelou-se, sobretudo quando percebeu através das sombras dois olhos amarelos. A vívida irradiação da noite no deserto ajudou-o a distinguir os objetos, e viu assim um animal deitado a dois passos. Era um leão, um tigre, ou um crocodilo.

Imaginou as piores coisas, sentindo a respiração mais próxima, coragem para fazer um movimento. Um cheiro forte encheu a caverna, foi quando ele percebeu a presença de um terrível companheiro.

O reflexo da lua, descendo no horizonte, iluminou o abrigo, tornando visível e resplandecente a pele pintada de uma pantera. O leão do Egito abria e fechava os olhos, a face voltada para o homem. Este sou primeiro em matá-lo com a carabina, mas viu que não havia distância bastante entre ambos. E a ideia de despertar a fera o fez enrijecer. Chegava a ouvir as batidas do próprio coração, amaldiçoando esse ruído, com medo que o animal o ouvisse e despertasse, pois enquanto este dormia ele podia raciocinar e encontrar um meio de fugir. Duas vezes pôs a cimitarra para cortar a cabeça do inimigo, mas se falhasse seria morrer na certa; preferiu esperar até amanhecer, que não tardou.

Não podia examinar a pantera à vontade: o focinho estava cheio de sangue. “Ela jantou bem", pensou, sem se lembrar de que o festim poderia ter sido de carne humana. "Felizmente não está com fome".

Era uma fêmea. Os pelos da barriga e dos flancos esbranquiçavam-se. Muitas marcas pequenas parecendo pelúcia formavam lindos braceletes em volta das patas. A cauda sinuosa era também branca, terminando em círculos pretos. Em cima do corpo, vestido de ouro fosco, macio e suave, manchas características em forma de rosetas, que distinguem a pantera das outras espécies felinas.

Essa tranquila e formidável hóspede ressonava numa atitude graciosa como a de um grande gato deitado numa almofada. As patas nervosas, manchadas de sangue, estavam estendidas adiante da cabeça, que nelas descansava. Se a visse numa jaula, o provençal a teria admirado pela graça e pelos vigorosos contrastes de viva cor que lhe emprestavam aos pelos um esplendor imperial; mas perturbava-o o seu sinistro aspecto.

A presença da pantera, embora adormecida, não podia deixar de produzir o efeito que os olhos magnéticos da serpente exercem sobre o rouxinol. Como os homens habituados ao perigo, que desafiam a morte e oferecem o corpo às balas, o homem, vendo na situação um mero episódio trágico, resolveu representar o seu papel honrosamente. Considerando que os árabes o teriam matado, e que, portanto, estava vivo quase que por milagre, esperou corajosamente, com excitada curiosidade, o despertar do inimigo.

Quando o sol raiou, a pantera abriu os olhos, estendeu as patas com energia, bocejou, mostrando o formidável aparelho dos dentes e da língua pontuda. Lambeu o sangue das patas e coçou a cabeça com um gesto gracioso. "Está fazendo a sua toalete", disse o francês para si mesmo. "Agora vamos dizer bom dia ao outro", e tomou da adaga que furtara dos Mangrabinos. Nesse momento a pantera virou a cabeça e olhou-o fixamente, sem se mover. A rigidez dos seus olhos metálicos e aquele brilho insuportável fizeram que ele estremecesse, principalmente quando o animal caminhou para ele. Procurou, porém, olhá-la carinhosamente dentro dos olhos, para magnetizá-la, e quando a teve bem junto a si, com um movimento gentil e amoroso, como se acariciasse a mais belas das mulheres, passou-lhe a mão pelo corpo, da cabeça à cauda, coçando-a. O animal mexeu a cauda voluptuosamente, e seu olhar ameigou-se, e quando, pela terceira vez, o francês acariciou-a, a pantera deu um desses miados que os gatos dão quando sentem prazer. Mas esse som de uma garganta tão poderosa e profunda ressoou na caverna como as vibrações derradeiras de um órgão na igreja.

Compreendendo a importância de suas carícias, o homem redobrou-as, de modo a surpreender e assombrar a sua imperial cortesã. Quando teve a certeza de haver extinguido a ferocidade da caprichosa companheira, cuja fome felizmente fora satisfeita na véspera, levantou-se para sair da caverna; a pantera deixou-o ir, e depois, quando ele se achava no topo da colina, pulou com a leveza de uma andorinha e foi esfregar-se nas pernas dele, espichando as costas para cima fazem os gatos enquanto soltava outro gemido de prazer.

Ele levou a ousadia ao ponto de acariciar-lhe as orelhas, a barriga e a cabeça, o mais que pôde. Quando viu que dava bom resultado, coçou-a com a ponta da adega, esperando o momento oportuno para matá-la, mas a dureza dos ossos dela fê-lo temer um insucesso. A sulina do deserto mostrou-se gentil para com o seu escravo; ergueu a cabeça, esticou o pescoço, e manifestou o seu deleite. E o soldado resolveu dar-lhe uma punhalada na garganta. Levantou a lâmina, quando a pantera, satisfeita, deitou-se graciosamente aos seus pés, olhando-o com certa simpatia, como se o examinasse.

O homem pôs-se a comer tâmaras, enquanto ela o olhava; finda a refeição, ela pôs-se a lamber-lhe as botas, com a língua áspera, limpando com maravilhosa habilidade a poeira acumulada nas dobras. E ele admirou as proporções do animal, certamente um dos espécimes mais esplêndidos da raça. Como era refinada a cabeça, do tamanho do de uma leoa! Havia nela a fria crueldade de um tigre, é verdade, mas também a vaga semelhança com o rosto de uma mulher sensual. Parecia um Nero embriagado: saciara-se de sangue e queria divertir-se.

O soldado experimentou se podia andar, e a pantera deixou-o, contentando-se em acompanhá-lo com os olhos; e foi quando ele verificou os vestígios do cavalo: a pantera arrastara a sua carcaça por ali, já dois terços do animal tinham sido devorados. Isso tranquilizou o homem.

Concebeu ele então a louca esperança de continuar em bons termos com a pantera durante o dia todo; voltou para junto dela e teve a inenarrável alegria de vê-la abanar a cauda, em quase imperceptível movimento.

Sentou-se, sem medo, ao seu lado e começaram a brincar; segurou-lhe as orelhas, virou-a no chão, de costas, bateu-lhe nos flancos mornos e delicados. Ela deixou-o fazer o que quisesse e quando ele puxou os pelos das patas, encolheu as garras cautelosamente. O homem, com a adega na mão, imaginava enterrá-la no peito da pantera, mas temia que ela o envolvesse num abraço fatal, na derradeira convulsão; além disso, sentiu uma espécie de remorso que o fazia respeitar uma criatura que não lhe fizera nenhum mal.

Parecia-lhe ter encontrado um amigo, num deserto ilimitado; meio inconscientemente lembrou-se da primeira namorada, que ele apelidara "Mignonne", por contraste porque era tão atrozmente ciumenta que, durante todo o tempo em que durara aquele amor, vivera apavorado por causa da faca com que ela sempre o ameaçara. E essa lembrança fê-lo pôr na pantera o mesmo nome, agora que a admirava com menos terror. Até o fim do dia estava familiarizado com essa perigosa posição; até quase já gostava do perigo que nela encontrava. E o animal até já se habituava a olhar para ele quando gritava em voz aguda: "Mignonne!”
               
Ao pôr do sol Mignonne deu vários urros profundamente melancólicos. "Ela é muito bem-educada. Está rezando as suas orações", disse o corajoso soldado. "Bem minha lourinha, vou te pôr na cama", disse-lhe, contando, com a atividade das próprias pernas para correr o mais depressa possível assim que ela adormecesse, a fim de procurar outro abrigo para a noite. Esperou com impaciência a hora da fuga, e andou vigorosamente na direção do Nilo; mas mal tinha feito um quarto de milha na areia quando ouviu a pantera correndo-lhe atrás, soltando um daqueles terríveis urros, que eram piores que o ruído de seus pulos. "Bom ela está enrabichada por mim.

Nunca encontrou outro ser humano antes, de modo que é muito interessante ser o seu primeiro amor". Nesse momento o homem caiu numa dessas areias movediça, tão terríveis para os viajantes e das quais é impossível salvar-se. Sentindo-se perdido, deu um grito; a pantera segurou-o pela gola com os dentes e, pulando para trás, retirou-o da areia movediça como que por magia. — "Ah! Mignonne!" exclamou ele acariciando-a entusiasmado. “Estamos unidos para a vida e para a morte! Palavra de honra, que não estou brincando!" E voltou.

Desse momento em diante o deserto pareceu-lhe habitado. Continha um ser com o qual podia falar, e cuja ferocidade lhe parecia até amena, embora não pudesse explicar a si mesmo aquela estranha amizade. Por mais que desejasse ficar vigilante, dormiu.

Ao despertar não encontrou Mignonne; subiu a colina, e a distância saltando em sua direção, como fazem esses animais que não podem correr devido a extrema flexibilidade da coluna vertebral. Mignonne chegou com a boca cheia de sangue; recebeu a carícia do companheiro, mostrando-lhe o quanto isso a fazia feliz. Seu olhar parecia mais amoroso do que na véspera.

"Senhorita, és um amor. Então andaste comendo algum árabe? não faz mal. Eles são tão animais quanto tu. Mas não vás comer franceses, porque então não te quero mais".

Ela brincava como um cão com o dono, por vezes até provocando-o com a pata.

Passaram assim alguns dias. Essa companhia permitiu que o provençal apreciasse a sublime beleza do deserto; a solidão revelou-lhe todos os seus segredos. Descobriu na alvorada e no por-do-sol aspectos desconhecidos do mundo. Estudou na noite o efeito da lua sobre o oceano de areia, onde erguia ondas rápidas. Após o calor e a exaustão do dia, abençoava a noite, porque caía sobre o deserto a saudável frescura das estrelas, e ele ficava a ouvir a música imaginária do céu. E a solidão ensinou-o a desenrolar os tesouros dos sonhos.

Passava horas inteiras lembrando-se de pequenos nadas, comparando a vida presente a passada. Terminou por gostar apaixonadamente da pantera: pois que alguma espécie de afeição era uma necessidade.

Fosse porque a sua força de vontade se projetasse poderosamente modificando o caráter da sua companheira, ou fosse porque ela encontrasse presa abundante nas suas precatórias excursões pelo deserto, o fato é que ela respeitava a vida do homem, e ele deixou de temê-la, vendo-a tão domesticada.

Passava a maior parte do tempo dormindo, mas precisava vigiar para que o momento da libertação não lhe escapasse, caso alguém passasse na linha do horizonte. Sacrificara a camisa para fazer uma bandeira, que prendera ao topo de uma palmeira, cuja folhagem retirara. Arranjara um meio de mantê-la sempre esticada, por meio de uns pauzinhos, pois que o vento podia não estar soprando na hora em que algum viajante passasse ao longe.

E era nas longas horas, em que abandonava a esperança, que se divertia com a pantera. Aprendera-lhe as diferentes inflexões da voz, dos olhos; estudara os caprichosos padrões das rosetas que lhe marcavam de ouro o pelo. Mignonne não se zangava quando ele lhe segurava a cauda para contar os anéis mais escuros e ele sentia prazer em contemplar-lhe a silhueta, a brancura do peito, a postura graciosa da cabeça. Mas quando ela estava brincando é que ele adorava olhá-la; a agilidade e a leveza jovem de seus movimentos eram-lhe contínua surpresa; gostava de ver o jeito ágil com que ela pulava e subia e lambia o pelo. Por mais rápido que fosse o pulo, por mais incerta que fosse a pedra onde ela se encontrasse, parava sempre ao escutar a palavra "Mignonne".

Um belo dia, enorme pássaro atravessou o espaço. O homem deixou a pantera para ver o novo hóspede; mas após esperar um pouco a sultana do deserto protestou com um miado profundo. "Meu Deus? será que ela está com ciúme?" exclamou ele, vendo o olhar que ela lhe lançou. A águia desapareceu no ar, enquanto o soldado admirava o contorno recurvo da pantera. A profusa luz do sol tornava-lhe a pele de puro ouro, queimando-se de um modo infinitamente atraente. O homem e a pantera olharam-se como se se compreendessem, a coquete estremeceu ao sentir a carícia da mão na sua cabeça, os olhos brilharam como relâmpagos, e depois fecharam-se.

“Ela tem alma", disse ele, olhando para a tranquilidade dessa rainha das areias, dourada, branca, solitária e ardente tal como elas.

E ambos terminaram como terminam sempre as grandes paixões, com um desentendimento. Por algum motivo um suspeita do outro, teme uma traição. Não chegam a se explicar, devido ao orgulho e também por teimosia. Às vezes basta urna palavra ou um olhar.

E o soldado provençal contou-me que, sem saber se a ferira ou não, viu-a de repente virar-se furiosa e enterra-lhe na perna os agudos dentes... gentilmente, quase... E ele, pensando que ela ia devorá-lo, meteu-lhe a adaga no peito. Ela rolou, soltando um grito que lhe gelou o coração, e viu-a morrendo, olhando-o porém sem ressentimento. Teria dado o mundo inteiro — até a sua condecoração, que nessa ocasião ainda não recebera — para fazê-la voltar à vida. Era como se tivesse assassinado uma pessoa! e os soldados que viram a bandeira e foram salvá-lo encontraram-no em prantos.

Fonte:
Honoré de Balzac. Uma paixão no deserto. Publicado em 1837.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 20

 

Cecy Barbosa Campos (Noite da saudade)

A reunião de amigas se formara a pretexto de comemorar a chegada da mais nova à idade sexy. As outras quatro já se haviam tornado sexagenárias e comentavam, galhardamente, as proezas cometidas depois de ultrapassada a barreira dos sessenta.

— Nesta idade, eu me sinto livre como um passarinho e não preciso ficar constrangida em falar o que penso e rir bastante das piadas que ouço quando participo das excursões da terceira idade. — comentou Marina.

Vilma, que sempre achara a amiga "escrachada" demais para o seu gosto, observou que nunca tivera que se conter para não rir das bobagens que ouvia, pois, realmente, não achava graça nos programas apimentados da televisão e não se interessava pelo teatro, quando eram apresentadas comédias que ela considerava vulgares. Da mesma forma, evitava as pessoas que falavam palavrões e que pretendiam se tornar muito íntimas.

Julina, sempre conciliadora, admitiu que não se incomodava quando, entre amigos mais liberais, a conversa descambava para certas inconveniências, mas não se sentia em condições de "dar corda", preferindo rir discretamente e não estender o assunto.

Daí, passaram a outro tópico e as mudanças de comportamento das gerações, que se seguiram à geração delas, foram abordadas. Em muitos casos, criticaram as atitudes dos jovens; em outros, elogiaram a postura mais liberal dos pais de adolescentes nos dias de hoje e, no fundo, demonstraram uma ponta de inveja por não terem vivido em tempos mais permissivos. Reconheciam que sentimentos de culpa impediam-nas de extravasarem seus desejos e ansiedades.

A reunião tornou-se, a partir de então, uma verdadeira Noite da Saudade. Foram lembrados os primeiros namorados, os primeiros bailes, os primeiros beijos. Os encontros escondidos, os beijos furtivos, os abraços sufocantes e rápidos, pois sempre havia alguém por perto.

Zuíeika lembrou do dia em que, ao sair de casa, despistadamente, para encontrar o namoradinho na esquina, viu a irmã menor ao seu encalço e a convenceu a voltar. Ela teria a incumbência de distrair a mãe simulando uma forte dor na barriga. Assim, a mãe não perceberia a ausência de Zuíeika. A irmã sentiu-se importante pela tarefa que lhe foi atribuída, mas cobrou uma taxa que foi paga várias vezes, até que Zuleika chegou à conclusão de que o namorado não valia o rombo na mesada, tantas eram as balas e bombons que tinha de gastar para subornar a irmã.

— Ih, as irmãs menores sempre davam muita despesa - lembrou Celina. – Também comprei muita bala para que as minhas irmãs não contassem que, ao apagar das luzes no cinema, havia sempre algum namorado que se sentava ao meu lado.

— Vocês se lembram quando começamos a frequentar bailes depois da formatura do ginásio? — perguntou Marina. — Nossos pais ficavam sentados às mesas, com os olhos fixos, seguindo nossos passos. Papai até se levantava para não me perder de vista quando, espertamente, o meu par me conduzia para o miolo, Eu adorava, mas levei o maior susto quando um, mais avançadinho, me sapecou um beijo no rosto. Até parei de dançar com ele quando chegamos à extremidade da pista, de tanto medo que fiquei de meus pais terem visto tanta ousadia. E logo eu, que sempre gostei de um bom beijo tipo saca-rolhas! — contou às gargalhadas.

Vilma, a mais recatada, recordou o seu momento especial.

— Susto levei eu, numa noite em que meus pais saíram para jantar fora. Comentei com o garoto que eu estava namorando. Ele era do científico, mais sabido, e logo teve a ideia de ir lá para casa. Pouco depois da chegada dele, Mamãe entra na sala, voltando antes do esperado. Papai havia esquecido a carteira e não chegaram a entrar no restaurante. A minha sorte foi que o meu pai ficou esperando na garagem e só a minha mãe voltou ao apartamento. Mesmo assim, as consequências não foram nada agradáveis, pois a Mamãe armou um cerco de vigilância intensivo e ficou horrorizada de pensar que um rapaz estivera sozinho comigo no apartamento. É claro que a sua maior preocupação foi de que o fato fosse comentado pelos porteiros ou tivesse sido visto por algum vizinho o que me tornaria "falada", o termo usado naqueles tempos.

Todas riram, mas não deixaram de se surpreender, pois, logo a Vilma, que era considerada o exemplo das certinhas, fora a mais audaciosa e cometera o pecado mais grave na faixa dos seus quinze anos.

Brincando, insistiram que ela contasse outra das suas proezas. Entretanto, a recatada senhora não poderia demorar na reunião para não provocar desconfianças no ciumento marido.

Despedindo-se, as velhas amigas comprometeram-se a marcar um outro encontro, no qual, sem falta, haveriam de fazer o Jogo da Verdade.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) VIII


ASSIM EM SUAS MÃOS NOS TROCA A VIDA

(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Assim, em suas mãos nos troca a vida
As sendas que escolhemos percorrer
Só porque ela quer, pode e tem prazer
Em ver a nossa sorte confundida.

Não vale a pena a um sonho dar guarida
Por no peito um desejo de viver
Que a vida tem o modo e o poder
De nos abrir na alma uma ferida.

Impotentes ficamos para dar
Outros rumos ao nosso caminhar
Sujeitos aos caprichos do destino.

Aos ombros carregando cruz tão má
Indo o Homem, por onde quer que vá
Será sempre um eterno peregrino.
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BUSCANDO A LUZ DA MADRUGADA PURA
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Buscando a luz da madrugada pura
Vou perseguindo o rasto desta aurora
Do sol, o raio primo não demora
A dividir em duas a planura.

O sol, quebrando a noturna clausura
Nos montes crava a ardente e rubra espora
E queima o céu e traz a fúlvida hora
Em que a anemia desce à sepultura.

Pleno, sento-me à beira do crepúsculo
Saboreando o dom de ser minúsculo
Mas peça deste mundo singular.

Desponta a branca lua, como gesso
E eu cerro os olhos lassos e adormeço
À espera já de um novo despertar.
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NÃO HÁ DISTÂNCIA ENTRE UM NADA E UM NADA
(Narciso Alves Pires in "Para Além do Adeus")

Não há distância entre um nada e outro nada
Já que todos os nadas são iguais
Mas o nada que dizes me dói mais
Do que a mágoa que fosse a mais pesada,

Já sei que a minha sorte foi traçada
Para morar num barco preso ao cais
Sem provar o mar chão e os temporais
E não tive, sequer, uma largada.

Ê tudo igual nos tempos que medeiam
As horas destes dias que semeiam
No meu peito uma ausência de porto.

Confinado ao tão pouco que hoje sou
Fico aqui, sei que não chego nem vou
No ponto de partida eu já estou morto.
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NUNCA A CASA FICOU SÓ DE TÃO VAZIA
(Rui Balsemâd da Silva in "Meu grito meu canto")

Nunca a casa ficou só de tão vazia
Como nesse dia trinta de Agosto
Quando os olhos te fechei, e o teu rosto
Ficou da mesma cor da cama fria.

A tua alma pura é que aquecia
Esta tua casa onde tinhas posto
Coisas poucas, pequenas, mas com gosto
Com esse amor que à vida te prendia.

Mas da vida, sem ódios, te esvaíste
E nesse dia negro tu partiste
Para onde pertencias; o Além.

Regressaste ao lugar de onde vieste
E já que aos outros tudo de ti deste
Daqui nada levaste, ó minha Mãe!
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ONDE SÓ HAJA ESPUMA SAL E VENTO
(Sophia de Mello Breyner Andresen in "Mar novo")

Onde só haja espuma, sal e vento
Irei plantar o germe da Poesia
Deixando que ela cure essa anemia
Que mói lugar tão ermo e avarento.

Por efeito do lírico fermento
Que a pobreza do chão e ar vencia
O verso cometeu a ousadia
De florir onde não havia alento.

A frase tudo vence quando prima
Pela pujança forte dessa rima
Que é gerada na verve de um poeta.

E o poema faz-se arma de batalha
Que peleja no chão por onde espalha
O Belo que na alma se arquiteta.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

Isabel Furini (Escritor não tem nada para fazer na vida?)

Há pouco tempo, estava saindo de uma aula, quando uma pessoa aproximou-se e disse: “Você é escritora porque não tem nada para fazer na vida, eu tenho muitas coisas para fazer... não tenho tempo para escrever”.  

Olhei-a, se essa frase tivesse sido pronunciada por um estressado executivo paulista teria sentido, mas não, ela é aposentada.

E escritor é escritor por opção ou porque não tem nada para fazer da vida? Será que escritor não tem outras atividades para ocupar o seu tempo.

Bom, no meu caso, além de escrever livros, oriento Oficinas para futuros escritores no Solar do Rosário e em outros locais, e não é só ministrar a aula, é preciso preparar o material para cada aula é isso leva tempo. Todos os professores têm o mesmo problema, preparar aulas e corrigir os textos dos alunos exige tempo.

Entre outras atividades, eu mantenho esta coluna semanal no ICNews.  E para resenhar um livro, primeiro é necessário lê-lo. Pode até ser uma leitura rápida, mas é preciso conhecer o livro. Também ministro palestras. Não são muitas, mas exigem um trabalho especial.  Faço leitura crítica, ou seja, eu leio, analiso e faço a crítica de originais. Geralmente são os novos escritores que enviam suas obras para que eu possa dar orientações.

Em síntese, para uma pessoa que é escritora “porque não tem nada para fazer na vida”, eu considero que realizo bastantes atividades.  Como disse minha amiga Helena, é bom gritar: “Oh, como estou cansada!  Fiz a leitura crítica de um livro enorme”. Ou “Hoje demorei a manhã inteirinha resenhando um livro, essa coluna dá muito trabalho!”.

É, talvez essa seja uma boa opção falar do que faço para que as pessoas vejam que escrever livros não é tarefa para desocupados nem para vagabundos.

Nos anos 90, tive a honra de visitar várias vezes Helena Kolody. Lembro-me que uma vez ela disse: “Você é humilde demais, Isabel, e humildade demais prejudica”. Maravilhosa Helena! Seu olhar sempre era certeiro. Quando escutei essa aposentada desprestigiar meu esforço e meu trabalho dizendo: “você é escritora porque não tem nada para fazer na vida”, eu percebi claramente que devia mudar minha atitude. Ao final até a galinha sai cacarejando depois de botar um ovo, ou seja, até ela faz alarde para que reconheçam seu trabalho.

Fonte:
Livros e dicas para escritores
https://livrodoescritor.blogspot.com/search/label/cr%C3%B4nica

terça-feira, 22 de março de 2022

Versejando 105

 

André Carneiro (Planetas habitados)

– Olhe como são bonitas, milhares de estrelas...

— E quase todas devem ser rodeadas de planetas como o nosso, habitados, provavelmente...

— Custa-me acreditar...

— Os cientistas dizem que há milhões, talvez trilhões de planetas, só nas galáxias mais próximas. A vida existiria como aqui.

— Devo ter pouca imaginação. Acho difícil visualizar planetas habitados, com seres iguais a nós, vivendo como nós.

— Por que "iguais e vivendo como nós"? É pretensão injustificável deduzir que só animais semelhantes tenham desenvolvido inteligência. E os objetos de forma arredondada, vistos em nossa órbita? Muita gente os vê a olho nu.

— Não seriam pessoas sugestionáveis ou com defeitos na vista? Li num artigo: essas aparições são fenômenos naturais pouco estudados, ou máquinas voadoras feitas aqui mesmo, em experiências secretas.

— Talvez, em parte. Mas já há uma boa documentação e não vejo motivo de espanto em supor que outros planetas do nosso sistema sejam habitados.

— Mas os seres que comandam ou pilotam essas naves espaciais, por que não pousam e entram em contato?

— Não passa de orgulho gratuito pensar que habitantes de outros planetas estejam interessados em dialogar conosco. Esses engenhos talvez sejam minúsculos, comandados a distância. Estarão apenas nos estudando com seus aparelhos? E é bem possível que eles sejam tão diferentes de nós que não haja uma possibilidade de entendimento imediato.

— Falariam línguas impossíveis de se aprender? Quem sabe emitam ruídos, ou comuniquem-se por gestos...

— Nossos cientistas acabariam descobrindo a chave. Ou eles, mais inteligentes, nos ajudariam a compreendê-la.

— Aquela estrela brilhante não é um planeta?

— É. Ali há condições para a vida. Talvez primitiva e diversa da nossa, pois sua temperatura é extraordinariamente alta.

— Escrevem muitas histórias sobre aquele planeta. Costumam inventar seus habitantes como sendo monstros destruidores, interessados em conquistar a galáxia...

— Histórias e hipóteses... Quem sabe eles têm mesmo duas antenas na cabeça, um olho atrás, outro na frente, quatro braços e seis patas.

— Seria engraçado se fosse assim.

— Por quê?

— Pior se tivessem dois braços, um par de olhos em cima do nariz.,.

— Seu conceito de beleza é muito exclusivista.

— Gente normal como nós poderia se entender com monstros pavorosos?

— Fique tranquilo. É provável que eles só existam nas histórias. E descobriram que lá a atmosfera é oxigênio puro. De mais a mais, o terceiro planeta possui só um terço de matéria sólida. O resto é uma substância líquida onde a vida é improvável.

— Esta conversa me abala os nervos. Imaginar monstros pernaltas, com dois olhos na frente. Toque aqui a antena.

  — Adeus. Não pense mais no assunto. E saia com cuidado para não incomodar as crianças. Seis patas fazem muito barulho...

Fonte:
André Carneiro. O homem que adivinhava. Publicado originalmente em 1966.
Livro enviado pelo autor.

André Carneiro (1922 – 2014)


Nota do Editor do Blog José Feldman: 
André Carneiro foi uma espécie de mentor para mim, desde quando o conheci nos anos 90, quando ministrava o Curso Ficção Científica na Literatura e no Cinema, na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Graças a ele peguei o gosto por escrever contos, até então era apenas um leitor. Escrevíamos contos e líamos no curso, fazíamos cópias a todos os que participavam do curso e para o André, e todos dissecavam o conto, sempre com a palavra final dele explicando o que estava bom e o que estava “fora da casinha” no conto, geralmente era um massacre (rsrs). Recordo que ele tinha predileção pelo escritor Kurt Vonegut Jr. e nos deu um conto deste autor para dissecarmos. Achamos falhas no conto e questionamos ele sobre o autor, e ele sempre bem humorado disse ao final: "Gosto de Kurt Vonegut Jr... menos este conto". Fizemos amizade desde então, até a morte dele em 2014, em Curitiba. André Carneiro, Artur da Távola e Nilto Maciel (de Fortaleza) são 3 escritores e amigos muito queridos que guardo com muito carinho.
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André Carneiro teve uma carreira artística e literária eclética. Considerado um dos mais importantes escritores brasileiros de ficção científica de todos os tempos, também foi poeta, fotógrafo, cineasta, artista plástico, publicitário, crítico, hipnotizador clínico, entre outras atividades.

Inserido como um dos poetas mais respeitados da chamada Geração de 45 e um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro, também foi um dos destaques da chamada Geração GRD da ficção científica brasileira durante a década de 1960, ao lado de Rubens Teixeira Scavone, Fausto Cunha, Jeronymo Monteiro e Dinah Silveira de Queiroz. É o autor do gênero com maior destaque internacional, com seus contos e romances publicados em 16 países.

Natural de Atibaia, cidade do interior paulista, André Granja Carneiro nasceu em 09 de maio de 1922. Filho de Recaredo Granja Carneiro, provedor da Santa Casa de Atibaia e vereador na cidade durante muitos anos, e de Engracia de Almeida Carneiro, a primeira funcionária pública do sexo feminino no estado de Goiás, descendente do bandeirante Bartolomeu Bueno.

Foi diretor de Cultura e Turismo da Prefeitura de Atibaia e secretário da Sociedade Amigos de Atibaia, quando conseguiu para a cidade o título de Estância Hidromineral e Turística. Antes, em 1946, já havia criado a primeira biblioteca pública da cidade, que originou a Biblioteca Municipal atual. E também fundou o Clube de Cinema, com César Mêmolo Jr., que promovia debates após as sessões semanais. Além disso, como membro do Conselho de Turismo de Atibaia, criou os primeiros guias e cartazes ilustrados com fotos para a divulgação da cidade.

No Brasil é mais reconhecido como poeta. Em 1947, com outros escritores e poetas jovens, funda a Revista Brasileira de Poesia, divulgadora dos preceitos estéticos do que foi conhecida a chamada Geração de 45: a revalorização da palavra; a criação de novas imagens; a revisão dos ritmos e a busca de novas soluções formais. O poeta vê na poesia, mais do que produto intuitivo, o resultado da experiência da linguagem e da existência humana.

Junto com Péricles Eugênio da Silva Ramos, e outros organiza o 1º Congresso Paulista de Poesia (que oficializou a Geração de 45), realizado na Biblioteca Municipal de São Paulo, em abril de 1948. Tendo sido eleito secretário e com forte participação nos debates, Carneiro ganhou destaque e chamou a atenção de Oswald de Andrade, presente no evento junto com outros grandes escritores da época e que se tornou seu amigo, passando a visitá-lo com frequência em Atibaia. De acordo com o crítico Antônio Cândido (o convidado para fazer o discurso de abertura), após o Congresso Paulista, ocorreu um aumento expressivo de estreias em livros dos novos autores.

Assim, André Carneiro teve o seu primeiro livro de poesia, Ângulo e Face, publicado em 1949, pelo poeta Cassiano Ricardo, através do Clube de Poesia de São Paulo, do qual era presidente, ganhando prêmios e homenagens com sucesso nacional.

O poeta e crítico Ferreira Gullar lamenta que “a poesia sóbria e humana de um poeta como André Carneiro passe despercebida do grande publico. Ângulo e Face encerra em suas poucas páginas uma deliciosa e purificada mensagem lírica, feita de angústia e melancolia. Poemas construídos arquiteturalmente, num equilíbrio de verbalismo e emoção”. Para Oswald de Andrade, a poesia de André Carneiro neste livro “é uma continuidade modelar do Modernismo numa renovada e luminosa expressão”.

Em abril de 1949, criou o jornal literário Tentativa, junto com Cesar Mêmolo Jr. e sua irmã Dulce Carneiro (também poetisa), que alcançou grande repercussão nacional e internacional, sendo considerado, na época, o melhor jornal literário do Brasil. Uma das razões do seu sucesso foi sua isenção das polêmicas modernistas e por abrir espaço a várias tendências dos escritores das gerações 20, 30 e 45 e poetas em fase de ascensão. Além disso, sua distribuição era feita diretamente para os intelectuais e livrarias das grandes cidades e de outros países.

Em seu primeiro número, Tentativa teve a apresentação de Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins. Uma das grandes repercussões do jornal foi a publicação na edição nº 4, em outubro de 1949, de uma entrevista com o escritor Graciliano Ramos, falando sobre os textos e poetas da época. Vale ressaltar que Graciliano nunca havia dado nenhuma declaração à imprensa até então.

O jornal tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional, seja da nova geração, como Domingos Carvalho da Silva, Lorival Gomes Machado e Cassiano Nunes, seja das gerações mais antigas, com seus autores já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade; ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, José Lins do Rêgo, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com participações especiais ou inéditas como Hilda Hilst, publicada ali pela primeira vez. E ainda contava com correspondentes estrangeiros em Paris, Buenos Aires, Lisboa e nas principais capitais brasileiras. Foi publicado até maio de 1951, em treze edições bimestrais.

Numa ação conjunta da prefeitura de Atibaia e do Arquivo Público do Estado de São Paulo o jornal foi reeditado em fac-símile, no livro A Geração 45 através do jornal Tentativa (Arquivo do Estado, 2006), com as principais edições impressas na época. A edição conta com artigos introdutórios do próprio André, do professor Osvaldo Duarte, da Universidade Federal de Rondônia, do jornalista Alberto Dines, entre outros.

A publicação seguinte de André Carneiro, Espaçopleno (Clube de Poesia, 1963), ganhou o prêmio Pen Clube de São Paulo. Era uma caixa de papelão no formato de 15,5×23 cm, que acondicionava 27 fólios soltos com 27 poemas ilustrados com xilogravuras. O prefácio foi de Domingos Carvalho da Silva e o planejamento gráfico e xilogravuras de Luis Dias. O crítico Wilson Martins ressaltou que “é uma obra de arte em si mesmo. Qualquer coisa como uma tradução tipográfica da poesia e nos remete ao clima intelectual de que os poemas de Mário Quintana são uma das expressões. Um dos melhores livros ultimamente publicados”.

Espaçopleno também recebeu, em 1966, o Prêmio “Alphonsus de Guimaraens”, da Academia Mineira de Letras. No prefácio, o escritor Domingos Carvalho da Silva escreveu: “O que distingue André Carneiro como poeta é principalmente a sua oposição a qualquer solução retórica. A emoção estética que ele busca é essencialmente a da revelação da beleza e do mistério das coisas. Sua poesia – que é de recusa total aos mitos clássicos, às confidências pessoais e a qualquer forma de misticismo - começa, sob o aspecto da temática e do léxico, nos dias atuais, e a celebração do submarino, da nave espacial, do engenho atômico, da radiologia, do robô, da cerâmica esmaltada, do polietileno, da publicidade subliminar e do amor também, mas um amor doméstico e quotidiano com considerações práticas”.

Mais outro livro de poesias premiado, desta vez o Prêmio Nacional Nestlé, foi Pássaros Florescem (Scipione, 1988), traduzido em inglês por Leo L. Barrow, da Universidade do Arizona, dez anos depois, com o título de Birds Flower (Las Arenas Press, Tucson, 1998), em edição bilíngue. O editor-chefe de O Estado de São Paulo e membro da Academia Paulista de Letras, Nilo Sclazo, assinala que “os poemas reunidos neste livro suscitam no leitor aquela sensação de estranheza que, segundo os estudiosos de teoria literária, constitui traço fundamental da criação original”.

O tradutor Leo Barrow já havia publicado a poesia de André Carneiro na primeira antologia do Modernismo brasileiro em língua inglesa em An Introduction to Modern Brazilian Poetry: Verse Translations (Poetry Club of Brazil, 1954), com retratos e ilustrações apresentando os poetas resenhados com desenho de Darcy Penteado, em bico de pena.

Nos anos 1960 e 1970, foi colaborador do prestigioso Suplemento Literário, caderno semanal do jornal O Estado de São Paulo, com seus contos, poesias, críticas e fotografias. Dirigido por Antônio Cândido e Décio de Almeida Prado, o Suplemento tinha como preocupação a ideia de garantir na imprensa um espaço regular para o debate de ideias e a divulgação de autores novos e consagrados, especialmente os escritores brasileiros.

O último livro de poesia de André Carneiro, a antologia Quânticos da Incerteza (Redijo, 2007), com organização de Osvaldo Duarte, numa realização da prefeitura da Estância de Atibaia, apresenta suas poesias mais maduras. Para o artista plástico, poeta e arte-educador Nestor Isejima Lampros, Quântico da Incerteza, decorre da “interposição do poeta frente à era das máquinas, da era espacial, com lirismo e às vezes com um humor que acontece quando reconhece que o mundo não pode ficar alheio à fissão atômica, mesmo às inclusões de naves espaciais, que podem infestar o meio universal, e que por sermos desacreditados, somos forçados a repudiar como conversa de carochinha. Ele transpõem a vida na cidade terrena, para a vida intergaláctica”.

No exterior, apesar de ter sido publicado na França, na primeira antologia dos melhores poetas brasileiros, Poémes du Brésil (Dessein et Tolra, Paris, 1985), a atividade mais conhecida de André Carneiro foi a de escritor de ficção cientifica, sendo o primeiro membro da América do Sul a integrar a ambicionada Science Fiction and Fantasy Writers of America, entidade profissional de escritores americanos.

Foi o único autor brasileiro na antologia The Definitive Year’s Best Selection, publicado pela editora norte-americana Putnam, em 1973, com citação do seu nome na capa como “Internacional Master”. E, também, da edição inglesa The Penguin World Omnibus of Science Fiction (Penguin Books, 1986), editada por Brian Aldiss e Sam J. Lundwall, que reuniu histórias dos quatro cantos do mundo.

Representou o Brasil no romance colaborativo de ficção científica internacional Tales from the Planet Earth (St. Martins, 1986), organizada por Frederik Pohl e Elizabeth Anne Hull, que reuniu 19 autores de países diferentes. O tema unificador era a posse alienígena de um corpo humano (com ou sem permissão de seu proprietário natural) por uma inteligência de uma estrela distante.

Em 1977, com o objetivo de divulgar a ficção científica latino-americana no mercado editorial francês, o tradutor belga Bernard Goorden selecionou alguns contos que havia traduzido, entre eles Zinga, o Robot e A Escuridão, de André Carneiro, e os publicou na coleção Ides… et Autres, da editora Recto-Verso, da Bélgica.

Como não conseguiu publicar na França, Goorden tentou na Suécia e obteve êxito, publicando o volume Det Nödvändigaste (Delta Förlag, 1978) em uma tiragem de 2.000 exemplares. E, mais tarde, conseguiu que o escritor A. E. Van Vogt, um dos mais influentes autores de ficção científica, escrevesse uma introdução, além de autorizar o uso do nome na capa, ao lado do seu. Graças a esta estratégia de marketing, a antologia foi publicada simultaneamente em alemão, com uma tiragem de 20 mil exemplares; e na Espanha Lo Mejor de la Ciencia Ficción Latinoamericana (Martínez Roc, 1982), com uma tiragem de oito mil exemplares.

A. E. Van Vogt escreveu que o conto Escuridão (“Darkness”, em inglês) não só “é um dos maiores trabalhos escritos na ficção científica, mas também da literatura mundial. Não é apenas ficção científica de ação superficial, mas literatura no seu melhor sentido. André Carneiro merece a mesma audiência de um Kafka ou Albert Camus”.

Na Suécia, seus contos foram publicados no final dos anos 1970 pela revista Jules Verne Magasinet, criada em 1940 – a única revista do mundo de ficção científica durante uma época. A partir de 1972, ela passou a ser dirigida por Sam J. Lundwall, o mais influente e importante editor de ficção científica na história da publicação sueca. Proprietário da editora Delta Förlags, Lundwall publicou uma extensa lista de livros do gênero na coleção Delta Science Fiction. Entre eles, a versão sueca do primeiro romance de André Carneiro, Piscina Livre (Moderna, 1980), que foi publicado simultaneamente no Brasil. Carlos Drummond de Andrade afirmou que “em Piscina Livre, André exercita de maneira brilhante a originalidade de ficcionista”.

Piscina Livre desenvolve uma temática onde uma nova ordem, envolvendo a sexualidade e o amor, se apresenta como pano de fundo para uma devastadora crítica à moral e aos costumes de hoje. Essa assinatura estilística da ficção de André Carneiro teve início no conto que dá nome ao seu primeiro livro em prosa, Diário da Nave Perdida (Edart, 1963), que recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano, do Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, em 1967. Para o crítico Clóvis Garcia, essa antologia “mostra a que nível de qualidade artística pode chegar a ficção científica quando tratada por um verdadeiro autor, seriamente preocupado com as reações humanas e as qualidades literárias de suas histórias”.

André Carneiro organizou a antologia de contos de ficção científica É Proibido Ler de Gravata (Multifoco, 2010), com os participantes da Confraria de Escritores, a partir da Oficina de Literatura e Poesia, em Curitiba, orientada por ele.

Seu ensaio Introdução ao Estudo da Science Fiction (Conselho Estadual de Cultura, 1967) foi o primeiro estudo em português apresentando e discutindo em seu texto alguns dos principais temas relacionados à ficção científica e recebeu o Prêmio Literário Câmara Municipal de São Paulo. A escritora Dinah Silveira de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, o trata por “nosso mestre da ficção científica”.

Entre junho de 1962 e novembro de 1981, a Embaixada do Brasil em Madri publicou 52 números da Revista de Cultura Brasileña, cujo promotor foi João Cabral de Melo Neto, e que teve como primeiro diretor o também poeta Ángel Crespo. Na edição 28 tivemos um texto de André Carneiro: “Introducción al Estudio de la Ficción Cientifica”; na verdade, a reprodução dos capítulos 1º e 2º, além de uma parte do 5º, do livro “Introdução ao Estudo da Science Fiction”. Neste mesmo número também foram publicados cinco contos brasileiros de ficção científica dos autores Antônio Olinto, Clóvis Garcia, Leon Eliachar, Rachel de Queiroz e Zora Seljan, tirados do livro Histórias do Acontecerá (Edições GRD, 1961).

A Revista de Cultura Brasileña foi um espelho da produção cultural do Brasil da época. Mais que um boletim de informações ou notícias, a revista foi uma espécie de compêndio da cultura brasileira, em que se encontravam trabalhos assinados por, entre outros nomes de prestígio, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, José Guilherme Merquior, Otto Lara Resende, e traduções de seu diretor Angel Crespo e de Damaso Alonso.

A Universidade Federal de Pernambuco promoveu, em 2009, o seminário “Intersecções: Ciência e Tecnologia, Literatura e Arte”, com o lançamento da coletânea de ensaios de mesmo nome, organizada pela profª Ermelinda Ferreira da UFPE, que debateu, entre outras, as obras de André Carneiro. Foi publicado, também, seu conto Noite de Amor na Galáxia. Essa coletânea reuniu ensaios advindos de duas disciplinas do mestrado em Teoria da Literatura da UFPE, onde se estabelece um intercâmbio entre a literatura, as artes plásticas, o cinema e a música.

André Carneiro foi diretor de edições da Editora Edart e do Clube de Poesia de São Paulo, do qual também foi presidente, assim como foi eleito para diversos cargos na União Brasileira de Escritores. E por muitos anos foi membro do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Como diretor de propaganda da Companhia Cacique de Café Solúvel, dirigiu o lançamento do Café Pelé, onde fez inúmeros comerciais para a televisão e curtas metragens, dirigindo, nas décadas de 1970 e 1980, celebridades como Pelé e o piloto Émerson Fittipaldi.

Sua atuação no cinema nacional começou com filmes artísticos de pesquisa. Ganhou vários prêmios e um dos filmes, Solidão (1951), representou o Brasil no 13º Concurso Internacional de Cinema Amador, realizado em agosto de 1951, em Glasgow, Escócia, sendo depois exibido na França e Itália.

Além de Solidão, outros de seus curtas-metragens foram recuperados pela Fernandes & Mendonça – Som e Imagem, uma produtora de Curitiba que digitalizou alguns filmes, com telecinagem feita por Mario Mendonça e Megg Fernandes, a partir dos originais em formato 8mm. Também está disponível na internet Estudo de Continuidade e Movimento (1950), premiado em 1951 no 3º Concurso Cinematográfico Nacional para Amadores, patrocinado pelo Foto-Cine Clube Bandeirantes e realizado no Museu de Arte de São Paulo. Este curta recebeu em 1952 o prêmio “Estímulo” de melhor filme gênero experimental e representou o Brasil, junto com Último Encontro (1951), em mostras de cinema no Reino Unido, Itália, França e Holanda.

No cinema profissional, André Carneiro se destacou principalmente como roteirista, trabalhando com grandes nomes do cinema nacional como Roberto Santos, Abílio Pereira de Almeida e Walter Hugo Cury. Seu roteiro Os Pereyras (1954), ganhou o Concurso Nacional de Cinema do Quarto Centenário de São Paulo. Seu roteiro mais importante, A Vida de Meneghetti, foi vendido para o produtor italiano Carlo Ponti que, infelizmente, não realizou o filme por ter tido um grande prejuízo no Brasil.

Seu conto O Mudo foi transformado em roteiro no sofisticado filme de longa-metragem, pela Embrafilme, Alguém (1970), dirigido por Júlio Xavier Silveira, com Nuno Leal Maia, Myriam Rios e Ewerton de Castro no elenco. Já o conto O Homem que Hipnotizava interessou ao cineasta Roberto Santos, que assinou um contrato com André com a intenção de fazer um filme (em plena ditadura) de um homem que se auto-hipnotizava e transformava a própria realidade. Era o brasileiro iludido pelo governo, um símbolo do Brasil, cegado pela censura, acreditando nas mentiras do “milagre econômico” e do célebre bolo que seria repartido quando crescesse. Infelizmente, Roberto Santos morreu sem realizá-lo. Mas, o diretor e dramaturgo Ziembinsky comprou o conto para o programa Caso Especial, da Rede Globo, que foi produzido e anunciado como Mergulho no Espelho, com Marcelo Picchi, mas não foi ao ar por proibição da censura do governo militar.

Escuridão, sua história mais famosa, foi adquirida por um produtor espanhol a fim de ser transformado em filme. Publicado em 1963, Escuridão antecedeu em mais de três décadas o romance Ensaio sobre Cegueira, do escritor português José Saramago, publicado em 1995, que retrata um mundo onde as pessoas ficam repentinamente cegas. É inquietante a semelhança com a obra de Saramago ao notarmos cenas marcantes e temas comuns. Para o escritor e compositor Bráulio Tavares, a noveleta Escuridão “emprega um estilo propositalmente distanciado, em que nomes, datas, tempos e espaços parecem diluir-se na escuridão geral, deixando somente o fluir vagaroso e angustiante de uma situação impossível à qual o personagem central procura acostumar-se, com a obstinação de um bicho cuja primeira certeza, acima de todas as outras, é a de que é preciso continuar vivendo, e tentando”.

Mas, ao contrário do que se passa no livro de Saramago, lembra o jornalista e escritor Antônio Luiz M. C. Costa, nesta noveleta de André Carneiro “se enfatiza os atos de solidariedade mais que os de egoísmo. Os cegos se mostram benevolentes e dão uma ajuda desinteressada a pelo menos alguns dos desesperados, dentro dos modestos recursos de que dispõem. Apesar da situação absurda, a narrativa é muito convincente e consegue fazer do infantil medo do escuro algo mais aterrorizante que qualquer monstro, vampiro ou psicopata de filmes de terror. A sensação de desamparo e impotência que nos invade a cada vez que somos surpreendidos por um apagão noturno de poucas horas é aprofundada até ao limite”.

André Carneiro foi professor de roteiros no Senac de São Paulo, onde dirigiu o roteiro piloto do programa sobre profissões “Deu Trampo”, em setembro de 1997, para os canais a cabo da TV Senac. A partir de uma profissão, eram apresentados depoimentos sérios, mas bem-humorados, além de esquetes que satirizavam algum estereótipo da atividade. Misturava a linguagem dos programas Armação Ilimitada e TV Pirata, da Rede Globo, com ritmo jovem, mas nem tão alucinante, dos programas da MTV.

Para ele, o cinema e a fotografia estão misturados, assim todas as suas atividades têm um inegável parentesco intrínseco entre elas. Como fotógrafo, foi um dos primeiros fotógrafos artísticos do Modernismo brasileiro. Sua fotografia Trilhos (1951), em que observa do alto, uma sequência vazia de linhas de bondes curvas e brilhantes, ornada por alguns poucos pedestres, é considerada um dos marcos do Modernismo fotográfico no Brasil. Está exposta no Tate Gallery, em Londres, em exibição permanente.

Em 2007, ele foi incluído com destaque na exposição coletiva Fragmentos – Modernismo na Fotografia Brasileira, da Galeria Bergamin, em São Paulo, sob curadoria de Iatã Canabrava. Foi realizada entre 21 de Abril a 26 de Maio, com a participação de 24 fotógrafos pertencentes às vertentes do fotoclubismo brasileiro, que determinaram a produção das décadas de 1940 e 1950. Esse movimento começou em São Paulo no Foto Cine Clube Bandeirante e se estendeu a outros estados. A Exposição percorreu, além de São Paulo, as cidades do Rio de Janeiro e Belém do Pará.

A mostra da Galeria Bergamin foi precursora – e em certa medida se desdobrou – da exposição Moderna Para Sempre – Fotografia Modernista Brasileira na Coleção Itaú (2013/2014), promovida pelo Itaú Cultural para celebrar o aniversário de São Paulo, lançando ao público o olhar de artistas modernos que registraram o crescimento, a urbanização e a transformação da metrópole.

Como artista plástico, André Carneiro foi o criador da pintura dinâmica, técnica que usa líquidos químicos que tomam formas em compartimentos transparentes justapostos. Perito em cortar vidros usando diamante, graças ao trabalho que realizava na loja de materiais de construção que herdou do pai, criava quadros com diversos compartimentos de vidros com líquidos de cores variadas, além de mercúrio e outros materiais. Manuseado pelo espectador, formavam milhares de combinações plásticas.

Também realizou exposições de “Poesia Colagem”, técnica com a qual criou várias capas de livros de autores brasileiros e ilustrou diversos de seus próprios poemas.

Nos anos de 1960, ganhou destaque por seus estudos e pesquisas na parapsicologia e hipnose, realizando pesquisas no Instituto Quevedo, entre outros. Sobre o tema, publicou O Mundo Misterioso do Hipnotismo, em 1963; e Manual de Hipnose, em 1978. Tornou-se um dos poucos membros brasileiros do Parapsychological Association, a mais respeitada instituição internacional de Parapsicologia, com sede nos Estados Unidos.

Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme, organizado por José Sanz, que aconteceu no Rio de Janeiro, em promoção do Instituto Nacional do Cinema, do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara. As palestras e exibições de filmes do Simpósio aconteceram no Teatro Maison de France. Carneiro contava com orgulho ter assistido ao filme Metrópolis ao lado de Fritz Lang, assim como 2001 – Uma Odisseia no Espaço ao lado de Arthur C. Clarke, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de ficção cientifica, como A.E. Van Vogt, Frederick Pohl, Brian Aldiss, Poul Anderson, Robert A. Heinlein, e outros.

Foi condecorado pelo governo francês com a Medalha de Prata da Cidade de Paris, da Societe D’Education et Encouragement, em 1950, por suas atividades de intercâmbio cultural e cooperação artística entre Brasil e França. Em 1951, é feito “Membre D’honneur” da Academie Ansaldi, de Paris. Em 1999, recebeu o prêmio Laurel Solidário Casa do Escritor, caracterizado por uma placa de prata gravada para celebração das datas mais expressivas na vida pessoal e artística do escritor. Em 2007, foi escolhido “Personalidade do Ano” pelos editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.

Em 2009, foi diplomado pela Academia de Letras do Brasil, onde também recebeu o título de Doutor Honoris Causa, pelo presidente seccional do  Paraná, o escritor, poeta e gestor cultural José Feldman, com quem manteve amizade por longos anos, desde quando ministrara cursos de ficção científica na literatura e no cinema, na Oficina da Palavra (Casa Mário de Andrade), no início dos anos 90. Segundo Feldman, graças a ele deixou de ser leitor e enveredou pela literatura. “Desde as oficinas na Oficina da Palavra, que foram três que participei, nas quais André ministrava criamos um vínculo pela nossa paixão pela ficção científica e a música. Conheci minha única esposa, Alba Krishna, poetisa e romancista, com quem estou até hoje, no curso dele. André frequentava a minha casa, no Bom Retiro, em reuniões que eu realizava com literatos e músicos nas famosas Noites de Vinho, Blues e queijos. Também frequentava a casa dele, lembro vagamente era nos lados da Lapa, em São Paulo, o que me encantava era o conteúdo dentro dela, era realmente como viajar numa nave espacial por outras dimensões. A quantidade de livros, esculturas, discos, coleções, pinturas, decorações era uma coisa bárbara, tanta coisa num apartamento tão pequeno. A gente se reunia na cozinha, o lugar mais espaçoso, para bater papo. André contava a vida dele de tal modo, alegre, cativante, que ao nos despedirmos sempre já ansiava para novo encontro para saber mais dele. Nossos encontros acabaram quando fui para Curitiba, mas quando me mudei para o interior do estado (Ubiratã e Maringá), André já com problemas na visão foi morar com o filho em Curitiba, contudo mantivemos ainda contato por emails e por telefone. André sempre me incentivou quando abracei os contos e principalmente a gestão cultural. Sempre me escrevia elogiando o meu trabalho, meu blog e os ebooks que eu produzia. Guardo com muito carinho todos os seus livros, antigos e todos que ele lançava e carinhosamente me enviava com dedicatória sempre me elogiando e incentivando.”  

Em setembro de 2012, foi homenageado com a leitura de seus poemas de ficção científica, em comemoração aos seus 90 anos, durante o VI Fantasticon – Simpósio de Literatura Fantástica, organizado pelo editor Silvio Alexandre, com realização da Biblioteca Pública Viriato Corrêa e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo,

Em julho de 2014, recebeu o Troféu MegaCon Brasil pelo conjunto de sua obra e sua valiosa contribuição para a literatura nacional, durante o evento MegaCon 2014, um encontro das comunidades nerds, geeks, otakus, de ficção científica entre outros, no campus da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba.

A Prefeitura de Atibaia (SP) promoveu a 1ª Semana André Carneiro, de 24 a 30 de marco de 2014, para homenageá-lo. A Semana contou com uma exposição dos livros de André Carneiro (que passaram a fazer parte do acervo permanente da Biblioteca Central de Atibaia), um Museu de Rua com ampliação de fotos e reproduções de fotos e de obras de artes plásticas, além da exibição do longa-metragem “Alguém”, dirigido por Júlio Xavier Silveira, baseado no seu conto O Mudo. Esse evento cultural ofereceu diversas atrações à população, como o 7º Curta Atibaia e o 8º Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual (FAIA), mostras competitivas, exibições, debates, palestras, além de atividades nas áreas de cinema, fotografia, artes plásticas e literatura.

Para o escritor Roberto Causo, Carneiro “trouxe para a ficção científica brasileira não apenas textos de qualidade, mas questões importantes e de peso junto ao mainstream literário, como a denuncia do conservadorismo social, a referência à cultura das drogas, a impermanência do real e as dificuldades de comunicação na modernidade, rendendo-lhe comparações com Franz Kafka e os mágico-realistas latino-americanos”.

A obra literária de André Carneiro se caracteriza quase que sistematicamente por um enfoque psicossocial, onde a crítica à estrutura vigente sempre se mostra aguda e sutil. A técnica do contraponto narrativo, na qual conta a história sob diferentes perspectivas, presente em algumas de suas criações, faz lembrar Aldous Huxley, de cuja literatura Carneiro era um admirador confesso. Essa estrutura narrativa, aliada aos temas sociológicos e psicológicos abordados principalmente nas suas ultimas criações, mostra uma ficção científica mais preocupada com o humano do que com o tecnológico.

Faleceu no dia 4 de novembro de 2014, aos 92 anos de idade, em razão de complicações cardiorrespiratórias, em Curitiba (PR), onde viveu seus últimos 15 anos. De acordo com seu filho Henrique, ele foi cremado sem qualquer cerimônia, como sempre quis, avesso às pompas funerárias e aos convencionalismos em geral. Suas cinzas foram espalhadas ao pé de uma pitangueira, em Atibaia, junto de algumas árvores que sempre protegeu, como um verdadeiro ecologista, antes dessa palavra se tornar conhecida. Deixou ex-esposa, a irmã, dois filhos e um neto.

Fonte:
Excertos da biografia por Silvio Alexandre para a Semana André Carneiro
https://www.semanaandrecarneiro.com.br/andre-carneiro/biografia/
Complementação por José Feldman

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor) Parte final

XII
Das ruínas levantado,
Vê-se o espírito surgir;
Vem com passo fatigado,
Como guerreiro cansado,
À sua sombra dormir.

XIII
Presto acorda, e então, cedendo
Da fome aos cruéis assomos,
Alguns ramos segurando,
Vai colhendo, e vai tragando
Os amargos negros pomos.

XIV
Comeu, ergueu-se, é já outro!
Foi-se do rosto a meiguice!
Do tronco um ramo quebrado
Serve ao triste de cajado —
Eis a imagem da velhice.

XV
Está tudo terminado!
Está completa a sentença!
Aos fogos sucedem gelos,
Que anunciam nos cabelos
A idade da indiferença!

XVI
Lá vai o velho mesquinho,
Lá vai desacompanhado,
O caminho da existência,
Nutrido pela exp’riência,
Ao desengano arrimado.

XVII
Só seus pés tocam a terra,
Os olhos do céu na luz,
Entregue a culto profundo,
Lá vai, fugindo do mundo,
Cair nos braços da Cruz.

XVIII
Lá expira... mas dizei-lhe —
Amor! Vereis num transporte
Como seus olhos cintilam,
Como a um tempo se aniquilam
Todas as forças da morte!!...

XIX
É que amor inexorável
Nos seus planos iracundos,
Se os mortais torna cativos,
Nem minora o mal dos vivos,
Nem respeita os moribundos.

XX
Restaura as forças da vida,
Não nos consente morrer;
Porque lá nas sepulturas
Seus tormentos e torturas
Não se pode padecer.

XXI
Envenenados farpões
Nos manda em suspiros ternos;
Cinge aos olhos mago véu,
E pelos jardins do céu
Nos encaminha ao inferno.

XXII
Fugi, humanos!... fugi
De seu veneno traidor!
Sem culto, desamparados,
Sumam-se, ao tempo votados,
Altares, templos de Amor...

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 51) Reação em cadeia


O AQUILEU ERA REALMENTE um homem com agá maiúsculo. Macho até debaixo d’água. Como delegado titular da homicídios, um exemplo de policial linha dura. Queria tudo certinho e dentro dos conformes. Seus subordinados sabiam da fama, por essa razão, quando sentado em sua cadeira no amplo gabinete, ninguém brincava. Até advogado de porta de cadeia receava visitar preso nessas ocasiões. Sexta-feira passada, depois do expediente, decidiu pescar com amigos, numa cidadezinha fora do seu Estado.

Geralmente nessas pescarias rolavam muita carne no espeto, cerveja e mulheres bonitas. Até aí, tudo bem. O Aquileu não estava de serviço, nem perto de sua jurisdição, ao contrário, mais de seiscentos quilômetros o separavam da pacata Santa Gertrudes. Ademais, que mal havia sair da rotina e distrair um pouco as ideias? Como filho de Deus, gozava direitos iguais como todo ser humano mortal. Assim, passou a mão nas tralhas, tirou da garagem uma BMW vinho adquirida recentemente, ainda sem placas e com os plásticos nos bancos e ganhou mundo.

Na roda de amigos e garotas, a algazarra corria às mil maravilhas. Depois de pescar num riozinho de águas límpidas e beber todas, se embrenhou, para caçar, mato adentro, com alguns dos muitos rapazes que haviam sido convidados. No decorrer da farra, contudo, e no alvoroço que se seguiu, deixou cair, por descuido, numa espécie de clareira, todos os documentos. Daí em diante, nada restou nos bolsos que o identificasse. Pior, na história toda, é que ninguém viu a carteira rolar, nem o próprio interessado em reavê-la. Aliás, estava como os demais, fora de si e grogue. Mal conseguia parar em pé.

No domingo à noite, apesar dos companheiros insistirem para que não voltasse sozinho (afinal, passara todo o dia misturando cerveja, vinho e cachaça), Aquileu, teimoso, feito uma mula, tomou um demorado banho de cachoeira, mandou para dentro um bem nutrido e forrado prato de arroz com feijão e carne de porco e, em seguida, encarou a longa estrada de volta. Quilômetros à frente, uma blitz o fez interromper a viagem. Tinha nego armado até os dentes espalhados por todos os lados. Elementos haviam saqueado um supermercado, e levado todo o dinheiro da féria, coincidentemente com uma BMW vinho.

A Civil, e a Rodoviária fecharam o cerco. Não passava nem agulha. O que interceptou Aquileu chegou gritando:

— Pula fora, devagarinho, não faça nenhum gesto suspeito e mantenha as mãos onde eu possa vê-las.

— Sou da casa...

— Identificação?

Não havia. Somente nessa hora o Aquileu efetivamente deu conta de que deixara, ou perdera, os documentos. Absolutamente nada, ao alcance das vistas, que fizesse dele um cidadão honesto e decente.

Ainda assim, procura daqui, mexe dali, vira de um lado, futuca de outro, qual o quê. Nem os do carro, no porta-luvas, para salvar a pátria:

— O bafômetro. Tragam o bafômetro.

— Meu amigo, sou delegado de polícia.

— Identificação?

Fizeram uma vistoria minuciosa. Arrancaram tudo de dentro da BMW, inclusive uma pistola sete meia cinco, uma escopeta, duas caixas de munições e cartuchos deflagrados. Diante de tamanhas evidencias, partiram para uma geral.

Aí, nessa geral, a cobra entrou em cena e começou a fumar de verdade. Aquileu era bom de briga. Lutava, kung-fu, karatê, e capoeira, além de conhecer a fundo outros esportes violentos. Por ter recusado a assoprar o bafômetro, e por não poder provar o transporte das armas e das balas, levou um tapa no meio das ventas. Furioso, não deixou por menos. Revidou. Partiu para a desforra devolvendo o tabefe. Um esquisitão, que segurava um revolver trinta e oito, perdeu a arma e dois dentes. Outro beijou o asfalto com a testa esfolada.

Um terceiro voou longe e caiu de quatro dentro de uma valeta perto do acostamento. A confusão, de repente criou formas gigantescas. Cada um que tentava pegar à unha o Aquileu, ou ajudar os companheiros, saia com a fuça vermelha e os olhos inchados. Vendo que perdiam terreno, um dos presentes solicitou reforço pelo rádio. Pintou, na área, meia dúzia de viaturas vindas de todas as direções, sirenes ligadas e as luzes intermitentes ligadas. Um barulho infernal. Acionaram, também, o comissário do lugarejo, um velhote metido a valentão, que atendia pelo nome de Bode Chifrudo. A criatura chegou, quase no mesmo instante do pedido de socorro.

Aquileu, por mais brigão e arisco que fosse, e ainda, levando em consideração os vapores do álcool acumulado, e, exausto, de tanto dar e receber cacetadas, acabou dominado. Aliás, completamente nocauteado. Finalmente, conseguiram lhe colocar as algemas:

— Cadê o valentão? — inquiriu Bode Chifrudo.

— Tá ali, doutor.

Muito brabo e abusando do seu poder Bode Chifrudo chutou com força as costas de Aquileu:

— Então você é um delegado?

— Positivo. Seu colega. Meu nome...

— Identificação?

— Acredite, não posso provar agora, mas...

— Seus comparsas foram para onde? Que rumo tomaram? E o produto do roubo, onde esconderam? Cadê o restante das armas? Além de você, quantos mais conseguiram fugir? Desembucha de uma vez que é melhor. Lá na cadeia faço uso de uns métodos interessantes para fazer o sujeito soltar a voz. Tenho certeza que o meu amigo “delegado” —, desculpe, o doutorzinho —, particularmente, vai adorar...

Com a prisão do suspeito desfizeram a barreira. Levaram Aquileu, a BMW e as armas para a Delegacia. Na porta do prédio onde funcionava a DP, uma multidão de curiosos aguardava a chegada do comissário e do misterioso assaltante. Assim que se viu frente ao edifício, Bode Chifrudo ordenou a um agente que levasse o “delinquente” para os fundos da construção e desse um chuveiro frio no mais novo Jean-Claude Van Damme do pedaço para lhe acalmar os ânimos agitados. Em obediência, dois “canas” de olhos vermelhos e cabelos em desalinho se apresentaram para dar inicio ao tratamento vip. Esse tratamento se consistia, primeiramente, na revista corporal, ou como é conhecida, na gíria dos malandros, a “arrancada das penas do frango”.

Depois, na sequência, vinha o “banho do descarrego”, ou o jato de água fria com mangueira de bombeiro, que atirava a criatura longe. Por derradeiro, uma visita à sala especial, onde “encapuzados” faziam qualquer brutamontes soltar a língua e confessar que matou a mãe, pegou a irmã e palitou os dentes com a sogra. Nessa ordem, começaram pela camisa. Em seguida o cinto, os sapatos, o relógio, o celular, o cordão de ouro, a pulseira, até que chegou a vez da calça. Aquileu voltou a ficar endiabrado e a distribuir porradas, mesmo estando com os braços para trás, presos ao bracelete.

Todavia, apesar de fazer lamber o chão mais umas dez criaturas, seus esforços resultaram novamente em vão. Dominado, uma vez mais, por grandalhões com traços de Arnold Schwarzenegger, finalmente a jeans do delegado rolou pernas abaixo. O espanto veio junto. A comoção pegou a todos, de surpresa.

A cena que surgiu, tomou forma em rostos de aparências rudes que nunca abriram brecha para sorrisos. Olhares incrédulos seguidos de um "Oh!..." em uníssono, pipocou de canto a canto. O comissário Bode Chifrudo veio lá da recepção, onde dava entrevista à Rádio Comunitária. Tudo girava em torno de política. O prefeito, o padre, os vereadores, todos, sem distinção, se faziam presentes no átrio da delegacia.

Repórteres dos dois jornais diários, ávidos por um “furo” jornalístico, inédito naquele condado, tiveram permissão para adentrarem no recinto e fotografarem o absurdo. Um sensacionalismo chocante e bizarro que certamente aumentaria a venda dos periódicos por muitas semanas. A gargalhada vinda dos fundos da construção estrondeava apocalipticamente pelos quatro cantos e criava mais força, à medida que a notícia ia se propagando, numa velocidade incrível, de boca em boca, entre a multidão em polvorosa.

O parrudo delegado Aquileu, saradão, queimado de sol, corpo atlético e de boa aparência, no lugar da cueca, usava uma minúscula calcinha cor de rosa.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Edy Soares (Manuscritos (di)versos) 01: Sequidão Perene

  
Poema obtido no Facebook do poeta.

Nilto Maciel (Os Dez Dias de Raimundo)

Meu único filho viveu apenas dez dias. Cheguei do laboratório há pouco. A morte dele ocorreu ontem. Os médicos da equipe científica responsável pela experiência exigiram de mim absoluto sigilo. Eu, no entanto, não cumprirei a promessa.

Muita gente me chama de louco, mentiroso. Quase ninguém acredita na história desses dez dias. Mesmo quem viu de perto Raimundo. Mesmo quem acompanhou o seu desenvolvimento físico e mental em tão pouco tempo.

Quem foi a mãe? Não houve mãe. Ele nasceu em laboratório. Ao nascer, deram-lhe leite e me entregaram. “Leve-o para casa e cuide bem dele” – aconselhou o dr. Ângelo. “Traga-o amanhã, para avaliação.”

Entregou-me também um manual de instruções. No capítulo relativo a unhas e cabelos lia-se: Cortar unhas e cabelos, três ou quatro vezes, somente no primeiro dia. A partir daí, unhas e cabelos crescerão tão pouco que somente no último dia de vida da criatura será preciso chamar barbeiro e manicure.

Criatura é o nome dado pelos cientistas ao meu filho, o ser criado em laboratório. Deitei-o no banco do carro e corri para casa. Durante o percurso, jogou fora os panos e se pôs a pular no banco e balbuciar palavras. Coloquei-o no berço, fui tomar banho e almoçar.

Durante este tempo não parou de gritar. Ao meio-dia se arrastava pelo chão da casa. Algumas horas depois, falava sem parar, corria para lá e para cá, chutava bolas, gritava.

Pediu-me para ir à praia. Prevenido pelos médicos, havia comprado roupas e calçados de diversos tamanhos. Fomos ver o mar. Ele parecia acostumado às ondas. Nadou como um peixe. Regressamos no início da noite. Falava tudo, conversava sem parar. Vasculhou minha biblioteca e leu, em meia hora, alguns livros. Cansado, dormiu cedo. Também dormi cedo, preocupado com o rápido desenvolvimento de Raimundo.

Cedinho voltamos ao laboratório. O dr. Ângelo nos recebeu sorridente, abraçou o menino e o conduziu ao consultório. “Está muito bem” – assegurou, após os primeiros exames. “É como se tivesse dez anos de idade. Prepare-se para a adolescência, ainda hoje.

No carro, o menino olhava através do vidro para as meninas nas ruas. Ria, piscava, mandava beijos. Seria aquele meu pior dia? Chegados à casa, o garoto abriu a geladeira diversas vezes. Sentia muita fome.

Recebi um telefonema e passei quase uma hora em conversa. Dr. Ângelo me dava conselhos: saísse a passeio com o menino, viajasse para o campo. Para me libertar do médico, chamei Raimundo. Nada de resposta. Corri a casa em busca dele. Por onde andava o safadinho? Cansado de perambular pelas ruas, busquei o apoio do dr. Ângelo. Ele me deu sossego. O rapazinho andaria à cata de mocinhas. Voltasse para casa e aguardasse Raimundo.

À noite ele voltou. Ele e uma garota muito bonita. Falavam sem parar, de paixão instantânea, amor sem fim. A barba dava-lhe ares de maturidade. A mocinha parecia não perceber nada, nenhuma mudança no corpo dele. Como se estivesse cega. Chegada a noite, dormi no sofá. Eles tomaram conta de um quarto. De manhã ele me contou, em segredo, ter passado a noite em conúbio com a moça.

Hoje ela ainda chora a morte prematura do seu grande amor. Disse estar grávida. Será meu primeiro neto. E eu só tenho vinte e poucos anos de idade.

Ao fim do terceiro dia ele saiu de casa. Não suportava mais aquela prisão. A jovem chorou muito. Tentei impedir tal aventura. Regressou dois dias depois, cabelos grisalhos, cansado, sujo, maltrapilho. Foi conhecer o sertão. A mocinha se apavorou. Não acreditou no que viu. Aquele homem envelhecido não poderia ser o seu belo Raimundinho. Deveria ser o nosso pai. Para ela, eu e Raimundo éramos irmãos, pois parecíamos ter ambos vinte anos, quando nos conhecemos, os três.

Conduzi-a à biblioteca e contei-lhe a verdade. Ela riu de mim, chamou-me de louco, mentiroso. Só voltou a me ver no dia da morte de meu filho.

No sexto dia levei-o ao consultório do dr. Ângelo. Sentia dores na cabeça. O médico não se mostrou preocupado. É assim mesmo. No dia seguinte levei o velho Raimundo para casa. Lia sem parar, falava esquisitices, andava pela casa, ia às ruas. No nono dia percebi a loucura instalada nele. Não me conhecia, não se lembrava de quase nada. Conduzi-o de novo ao doutor.

Ele me segredou: “Hoje ou amanhã a criatura morrerá. É como se tivesse cerca de cem anos de idade. Deixe-o comigo. A experiência está apenas começando.

Eu me retirei e à noite fui vê-lo pela última vez. Já não vivia o meu filho. Eu, no entanto, não poderia retirar o cadáver. Raimundo não existira para o mundo. Nem nascimento, nem óbito. Uma experiência, apenas.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.