domingo, 10 de julho de 2022

Raul Pompéia (História cândida)


Vou contar-lhes hoje uma história cândida, a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.

Rachadinha chamava-se assim por ser filha de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao nascer com um pequenino talho.

Vou contar-lhes a história de Rachadinha, uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.

Era cândida, disse eu, antes ingênua.

Nada conheço mais arriscado, e logo arriscado para dois, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha (não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.

Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias, prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.

Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos, caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.

Passava assim o melhor do tempo, ali, na tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene da sua reputação de formosíssima.

E era bonita a valer, o diabo da pequena! Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.

O pai venerava-a, pobre operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.

Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso. Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho, por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo era dos outros.

Havia tempo em que o pintor Juvenal, vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda. Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.

Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal, passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.

Preparava-se para uma excursão artística no campo, donde pretendia tirar paisagens d'après nature. Queria que João Vasco lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que fosse possível levá-la a tiracolo.

— Pregue-me aqui assim, assim... Olhe assim, deste jeito...

João Vasco observou que era melhor o contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.

— Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma asneira...

E estava besta, efetivamente, o nosso Juvenal, sentindo Rachadinha a dois passos dele, respirando-a como um aroma bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de continuação.

Depois desta entrada, houve outras visitas do pintor Juvenal.

Depois das duas bolsas da primeira encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...

E ele vinha saber do trabalho e tomava uma banca para admirar a perícia do correeiro...

As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.

— Tento contigo! diziam as murmurações da rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...

Quando o correeiro percebeu o sentido exato da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.

Desde muito lhe ocorrera a ideia de um noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.

Aceitou então o pintor, exultando. Passou a recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates ingênuos.

Passou depressa a facilitar a qualquer hora solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dois calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.

Depois familiarizaram-se. Rachadinha mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochê e novelos para ver o que saía. Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando ensinava o chochê e pousava-lhe os seios nos ombros para mostrar estampas.

Juvenal bebia em êxtase toda aquela simplicidade deliciosa.

Uma noite que ela estava mais calada e mais distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:

— Não acha esquisito?... nós aqui sozinhos!...

Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco, batendo a sola do serão.

Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um fogo novo em toda a natureza.

— Não acho, não, disse em tom de grande calma... Demais, sabe... eu sou pintor...

— Ah, então és pintor?...

Juvenal foi deixando gradualmente a calma.

— Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor: nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo! acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante, adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no quadro para sempre, como uma coisa de se adorar, e a outra, que se veste e parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de artista? É sempre casto: nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...

Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto o pintor falava.

— Que é isto. – exclamou surpresa, sentindo um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.

— Nada de mal!... Eu sou pintor, minha queridinha. – murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de bigode e repetidos beijos.

— Mas espere!... espere um pouco. - pediu ela, relutando.

Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando cáusticos de beijos.

— Eu sou pintor!... Eu sou pintor!...

Era tão sincera a veemência daquela desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era assim pintor, ela foi cedendo...

Juvenal estava fora de si. Um lampião de gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal, assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.

— Eu sou pintor... Eu sou pintor... – balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.

Do corpo da moça desprendia-se aquele cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o encarniçava.

O movimento da luta, o pudor do assalto, o calor da noite na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne morena da vítima. Juvenal estava perdido.

— Eu sou pintor, gaguejava em ofego. Queremos modelo... modelo... modelo...

A moça não lutava mais. Juvenal caiu com ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.

Soube ser pintor o platônico!

Na oficina, o correeiro continuava a martelar o serão.

Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.

Rachadinha sempre a mesma... na sua tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:

— Como ele era pintor...

Somente para o correeiro, ela perdeu um pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

sábado, 9 de julho de 2022

Daniel Maurício (Poética) 34

 

André Kondo (Tapetes)


O tuk tuk é um colorido triciclo adaptado com cobertura e banco para dois passageiros. Muito utilizado como táxi na Índia, suas três rodas simplesmente voam como um tapete mágico, pelo caótico trânsito das cidades indianas. Disputando espaço com vacas e pedestres, seu condutor sempre toma cuidado para não atropelar as vacas sagradas, não se importando tanto assim em relação aos mundanos humanos. Contratei um desses veículos para conhecer a cidade de Varanasi, que é considerada uma das cidades mais antigas e sagradas do mundo.

Pedi ao piloto dessa exótica máquina me levar a Sarnath, onde o Buda pregou pela primeira vez. E lá fomos nós, enfrentando um trânsito de vacas, elefantes e até carros!

Paramos.

– Aqui é Sarnath? – perguntei desconfiado.

– Não, senhor. Aqui é o mercado de tapetes. O senhor não quer aproveitar para comprar um tapete?

– Não, obrigado! – respondi, imaginando como seria carregar um tapete pelo mundo, uma vez que ainda viajaria por alguns meses até voltar para casa.

– Tem certeza? Conheço alguém que faz um preço muito bom para os meus amigos.

Fiquei imaginando se eu já era amigo do condutor de tuk tuk.

– Não, obrigado. Prefiro ir direto para Sarnath.

O piloto balançou a cabeça para os lados. E lá fomos nós.

– Aqui é Sarnath? – perguntei, com a certeza de que não era.

– Não, senhor. Aqui é uma lojinha de outro amigo meu. Tinha me esquecido dele! Ele vende tapetes mais baratos do que o preço de mercado. Não quer comprar um?

– Não, obrigado.

– É baratinho.

Em todo lugar do mundo, o baratinho sempre tem uma comissão. Se o guia de uma excursão visita uma loja, geralmente ele leva uma pequena porcentagem do dinheiro que o turista deixou lá. Mas esse nem era o problema, o problema era que eu não queria comprar tapete algum.

– Não, obrigado.

O piloto balançou o turbante para os lados. E lá fomos nós.

Buda já havia pregado em Sarnath, há dois mil e quinhentos anos, que tudo neste mundo é sofrimento. Comecei a acreditar nisso.

Nem perguntei se era Sarnath.

– Olha, o senhor ainda tem uma chance de comprar um tapete. Aqui…

– Meu amigo, por favor, já disse que não quero comprar tapetes. Tudo o que desejo é apenas ir para Sarnath! E se o senhor me levar para mais uma loja de tapetes, nem sei o que farei, mas sei que não será algo bom.

– Tudo bem, desculpe. Juro que não levo o senhor para outra loja de tapetes…

Era Sarnath.

Visitei os templos. Meditei. Senti uma paz profunda. E também me senti envergonhado por ter perdido a paciência com o condutor de tuk tuk. Pedi desculpas a ele e fomos embora.

Antes de chegarmos ao nosso próximo ponto de peregrinação…

Paramos.

Fiquei com medo de ver outra loja de tapetes.

– Senhor, não se preocupe. Prometi que não o levaria a outra loja de tapetes. Aqui é um museu e acho que o senhor vai gostar…

Senti um pouco de culpa por ter duvidado do condutor de tuk tuk. Caminhei até a entrada do museu. Sim, era um museu, pois na fachada estava escrito: “Museu do Tapete”.

Um sorridente bigodudo saiu para nos receber.

– Bem-vindo ao Museu do Tapete! O senhor tem muita sorte! Somente hoje, e só hoje, todo o nosso acervo está à venda!

Fonte:
André Kondo. Palavras de areia. Ed. In House, 2013.

Luiz Otávio (Jardim de Trovas) III

A dor que mais nos abala,
que fere profundamente,
não é a dor de que se fala,
mas a que apenas se sente.
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A trova recende a rosas
e sabe a favos de mel,
e é tão pequena que cabe
num cantinho de papel...
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A trova tudo nos conta.
De coisas belas nos fala.
Basta alma para fazê-la…
E ouvidos para escutá-la...
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Benditas sois, Caravelas,
que, enfrentando riscos mil,
trouxestes, entre procelas,
a semente do Brasil!
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Da vida, quando eu partir,
findando sonhos e dores,
serei levado, a sorrir,
por quatro anjos trovadores...
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Deixou a Felicidade
Saudade em meu Coração...
Depois a própria Saudade
cansou-se da Solidão...
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Há olhos para a Gramática!
Há olhos para a Razão!
Mas, lendo a trova, é preciso
ter olhos no coração...
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Nasce a trova facilmente
e correndo o mundo vai...
É como a água nascente,
ou como o orvalho que cai...
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Nas desgraças ou venturas,
há sempre, em todas as vidas,
angústias, medos, torturas,
de origens desconhecidas ...
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"Ninguém faz falta no Mundo"
— O povo não tem razão...
Perca um bem grande e profundo,
veja se faz falta ou não!...
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Numa simples despedida,
nunca sabemos, meu Deus,
se ao darmos um "até breve",
estamos dando um "adeus"...
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Oh! quanto nos atormenta,
na vida, que se dilui,
sentir que a saudade aumenta
e a esperança diminui!...
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Ó nuvens — minha alma implora! –
Segredai àquela ingrata
que, se ela não volta agora,
esta Saudade me mata!
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O que fala que é feliz,
está, por certo, enganado.
— Não creia no que ele diz...
vive apenas conformado...
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Os seus olhos sonhadores
me falam de seus desejos:
que os seus lábios tentadores
nasceram para os meus beijos...
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Parte ao encontro do amor
com um sorriso na face,
como se ele fosse um bem
que nunca nos enganasse...
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Pensa bem no que eu te digo:
um conselho sem ressábios
é dado num tom amigo,
com um sorriso nos lábios.
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Pra compensar a maldade
de ser o bem tão fugaz,
Deus inventou a saudade
— a melhor das coisas más...
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"Qualquer um faz uma trova..."
falaram-me com desdém…
Fazer... fazer... todos fazem...
A questão é fazer bem!...
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Que dolorosa ironia!
— Esta paixão derradeira
deu-me Ventura um só dia
e Saudade a vida inteira!...
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Rouba-se tanto, tão alto,
com tal malícia e sussurro,
que a gente, quando é honesto,
ganha diploma de burro...
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Saudade... luz do poente,
que se esconde atrás do mar,
voltando após, docemente,
na ternura do luar…
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Será feliz, com certeza,
o que, entre mágoas, prejuízos,
só vê, do mundo, a beleza,
da humanidade, os sorrisos...
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Tenho tudo nesta vida..,
Às vezes, penso: contudo,
se tu me faltas, querida,
de repente perco tudo!...
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Teus olhos, tua voz quente,
teu sorriso endiabrado,
dão logo impressão, à gente,
de ver o próprio pecado...
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Veio um dia a tempestade,
jogou-me a um canto da vida!
Tinha vinte anos de idade
e a mocidade perdida...
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Vida — mistério profundo!
Quem dirá da nossa Sorte?!
Que haverá depois do mundo?
Que haverá depois, da morte?!

Fonte:
Luiz Otávio. Cantigas dos sonhos perdidos. Coleção Trovas e Trovadores, organizada por Aparício Fernandes e Zalkind Piatigorky. RJ: Livraria Freitas Bastos, 1964.

Aparecido Raimundo de Souza (Imprevistos de bastidores)

O ABIXONDRE, cobrador e vendedor, acompanhado de duas malas pretas cheias de bugigangas entra no beco de Santa Madalena logo que termina de subir a favela do morro do Bode Barbudo. Bate palmas na porta do barraco vinte e um, espelunca que encabeça a ruela estreita de terra batida e poças de lama por todos os lados. Vem atender uma moça nova, ai pela faixa dos trinta. Embora o rosto seja aprazível, a sua figura, como um todo, se torna feia, em face dos cabelos em desalinho e a ausência de todos os dentes na boca. Abixondre cumprimenta a mulher e manda brasa expondo o motivo que o levou até ali:

— Bom dia, dona. Desculpe o incômodo. Como é seu nome?

— Quem quer saber? — devolve a pergunta a infeliz banguela.

— Eu, em carne e osso.

— Estou vendo. Quero que me diga o seu nome e do que se trata?

Abixondre, em poucas palavras, explica:

— Meu nome é Abixondre. Sou vendedor e cobrador. Trabalho para as Lojas “Temos de Tudo”. Meu parceiro, o Elias, coisa de um mês atrás, veio aqui e vendeu umas roupas de cama para seu José Carlos Lindo. Estou à procura dele, para receber a primeira prestação. Vence hoje.

A criatura balança a cabeça sinalizando que não conhece nenhum José Carlos Lindo:

— Não me disse — insiste Abixondre — qual é a sua graça?

— Sanfonina Beliscão. Acho que não terei como lhe ajudar. Moro aqui mais de cinco anos e nunca ouvi falar nesse tal de José Carlos Lindo. Tem certeza que é este o nome?

Abixondre mostra a ficha do tal sujeito:

— Aqui, dona Sanfonina. Veja a senhora mesma. José Carlos Lindo, Favela do Morro do Bode Chifrudo, beco Capivara, casa vinte e um.

Dona Sanfonina se abre num sorriso esquisito e logo em seguida volta à seriedade:

— Nunca ouvi falar em tal nome por aqui. O senhor é o primeiro que aparece à cata dele. E olha que conheço todo mundo. Não me esqueceria, em face do l-i-n-d-o...

Abixondre sorri e insiste:

— Puxe pela mente, dona Sanfonina. É muito importante...

— Sei como é. Meu marido também vive de cobranças e chega em casa estressado e reclamando. O que posso fazer pelo senhor, no momento, é o seguinte: esclarecer que esta viela não é a Capivara. O número da casa bate, mas o beco...

— Este não é o beco Capivara?

— Não, senhor...

— Aqui não é a favela do Morro do Bode Chifrudo?

— Não, senhor... aqui é a favela do morro do Bode Barbudo. O senhor deve ter se enganado de bode.

— Mais essa agora. E por acaso existe aqui pelas redondezas alguma outra favela que leve esse nome?

— Qual deles, senhor? Favela do Morro do Bode Barbudo, ou Favela do Morro do Bode Chifrudo? O único por aqui é o que o prezado está pisando nele. Realmente, seu Abixandro, aqui é a casa vinte e um. O beco é que não confere. O morro, como acabei de dizer, e repito, é o da Favela do Morro do Bode Barbudo e o beco, o de Santa Madalena.

Abixondre se abre num gesto de poucos amigos. Fala:

— Dona Sanfonina, meu nome é Abixondre e não Abixandro.

— Desculpe, moço. Entendi errado.

— Sem problemas.

— Se o senhor tiver com vontade e disposição nas canelas para subir mais um pouco, lá para cima, com essas duas malas pesadas, encontrará uma pracinha. O beco procurado, este Capivara é um dos últimos. Fica duas quadras depois da pracinha. Continue subindo... é uma boa caminhada... a vista da cidade, lá do cume, se torna eletrizante... surreal... compensa o sacrifício...

Abixondre agradece, se despede de dona Sanfonina passa as mãos nas duas malas e segue escalando barranco acima. Anda bem quase um quilômetro, vez que o caminho às vezes segue para o lado direito, outras pende para o esquerdo. A se ver na mencionada pracinha, tira do bolso um lenço e enxuga o suor. A camisa está empapada. Espia em derredor. Crianças acompanhadas de suas respectivas mamães, se divertem num parquinho com brinquedos caindo aos pedaços, enquanto um bando de moleques joga bola. Abixondre se aproxima de um estabelecimento comercial onde uma tabuleta com letras em garranchos vermelhos anunciam o “Empório do Zé Lagarto”. Ao ingressar, topa com um senhor em idade avançada recostado no balcão:

— Bom dia, cavalheiro. Pois não?

— Bom dia, meu amigo. O senhor deve ser o seu Zé Lagarto?

— Sim, sou o Zé Lagarto, às suas ordens...

— Poderia me dizer, por favor, onde fica o Beco da Capivara?

O velhote sai de seu posto, pega o estrangeiro pelo braço. Se achega com ele até a porta e aponta, dedo em riste, para um determinado local:

— Está vendo a quitanda?

— Sim.

— Ao lado, tem uma barbearia. Encostado à ela, está o Beco da Capivara. Por mera curiosidade. Quem o senhor caça por estas bandas?

Abixondre pede um café enquanto exibe a ficha:

— Procuro pelo seu José Carlos Lindo.

— José Carlos Lindo?

— Sim! Conhece?

— Nunca ouvi falar...

— Saberia informar qual o número dele na Capivara?

— Nenhum. No Vinte e um mora um homem, mas não é esse o nome do estrangeiro.

O vendeiro coça a cabeça:

— No vinte e um  deste beco, repito com todas as letras, não tem nenhum José Carlos Lindo.

Abixondre insiste:

— O senhor tem certeza?

— Absoluta. Todo mundo por aqui conhece todo mundo. Sabe o nome da esposa dele?

— Não.

Adentra, nesse momento, um rapazola com um carrinho de mão. É o garoto que faz a entrega das compras nos casebres dos radicados nas proximidades:

— Deixa eu perguntar por um morador aqui do pedaço. É o  Catatau, meu funcionário. Catatau, ali no buraco do seu beco, tem algum Lindo, digo, um José Carlos Lindo?

O tal do Catatau se vira e, antes de responder, cumprimenta os dois homens a sua frente:

— Bons dias. José Carlos Lindo? Não conheço. Sabe o número do barraco dele?

— Vinte e um.

— Seu Luiz, o beco é pequeno. Vai do um ao trinta, mas os números não seguem uma ordem cronológica. Tem o um, o cinco, o dezenove, o trinta... depois cai para o doze, desce para o sete... logo adiante, volta à regredir para o dois, e, em seguida, o dez. Cada morador prega no seu “quadrado” o número que lhe dá na telha...

— E o José Carlos Lindo?

— O que tem ele?

— Nunca ouvi falar. A única pessoa nova no pedaço é o seu Marreta. Se esconde no vinte e um, ou mais precisamente nos fundos da dona Mercedes.

Engalanando o pedaço surge, do nada, a espevitada e gostosa Mercedes Caninana. Mulher de belas pernas, corpo de princesa. De fato, aos vinte e cinco, tudo nos conformes, linda de morrer. Chega, pede um refrigerante e um pastel de carne. Todos se voltam quando ela se acomoda numa das mesas. A pérola anda nos trinques. Se veste como se fosse dama da alta sociedade.

O vendeiro assim que serve o pedido, indaga pelo José Carlos Lindo:

— Senhorita Mercedes, desculpe a indiscrição. Conhece o seu José Carlos Lindo?

— Nunca ouvi falar...

— Aquele senhor que sempre passa por aqui com a senhora. Sabe onde ele mora?

— Sei, claro. O senhor se refere ao Marreta? É meu inquilino! Mora num puxadinho que aluguei para ele, contíguo ao meu cafofo. Um bom sujeito. Não tem Lindo. Posso saber o que o senhor quer com ele?

— Na verdade, senhorita Mercedes, eu nada. O senhor é que está aos calcanhares dele. No que fala, aponta o Abixondre.

Mercedes se levanta da mesa e caminha até onde Abixondre,  em pé, se assemelha a uma estátua:

— E o que o senhor quer com o velho Marreta?

— Senhora, meu parceiro Elias, vendeu para o senhor José Carlos Lindo, umas peças de roupas e eu vim receber. Um vende, o outro recebe... entretanto, acho que o seu Marreta não é quem realmente procuro...

Mercedes se faz de sonsa. Indaga:

— Pelas suas malas, por acaso o senhor vende alguma coisa?

— Acertou na mosca, senhorita.

— Que sorte, a minha. Pretendia descer para comprar uns panos novos. Olhe, tenho interesse em adquirir novidades. Se puder fazer a gentileza de me acompanhar....

— Será um enorme prazer.

Mercedes Caninana, após o rápido lanche, sai acompanhada de Abixondre ajudando, inclusive, o mascate a carregar uma das malas:

— Senhorita, por gentileza, sejamos francos e honestos. Por que me pediu para vir até sua residência?

— Serei bem clara e sucinta. Ninguém aqui no morro da Favela do Bode Barbudo sabe que o Marreta é algo mais que meu locatário...

Põe em prática uma pausa ensaiada. E segue com seu relato:

— Lá no asfalto, onde mora, Marreta ostenta o seu Lindo. É um empresário renomado. Tem mulher, uma penca de filhos e blá-blá-blá... a gente se conheceu... ele me fez um favor e, desde então, passamos a ter um chamego... o senhor sabe como é. Para que pessoas enxeridas não venham lá dos quintos nos perturbar... como o senhor pode ver... a minha Marretada no Lindo do velho senhor Marreta, deu certo. Posso contar com a sua total discrição, no sentido de não revelar para ninguém que o Marreta, é, na verdade, o seu procurado José Carlos Lindo?

— Pelo amor de Deus, senhorita. Vamos mudar o rumo da prosa. Tem a minha palavra. Já esqueci do seu Lindo. Marreta é o nome do cidadão que vim cobrar a prestação vencida...

A beldade mete a chave e empurra a porta de entrada. Os dois somem, aos risos, para dentro da humilde residência.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Varal de Trovas n. 563

 

Stanislaw Ponte Preta (Os sintomas)

Há dias que vinha sentindo uma dorzinha fina na virilha. Rosamundo, com aquela distração que é a sua bandeira de comando, só começou a senti-la provavelmente depois de muito tempo, pois até para dor o Rosa é distraído. Na tarde em que percebeu a dorzinha, pensou: "Devo ter me contundido durante o futebol", sem se lembrar de um detalhe importante, ou seja, nunca jogou futebol.

À noitinha a dor diminuíra. Devia ser íngua. Mas Rosamundo é um sujeito muito impressionável. Para se sugestionar é quase um botafoguense, embora torça pelo Andaraí, time que já saiu da liga, mas ele ainda não percebeu. Dias depois, visitando um amigo, com o qual estava brigado mas não se lembrava, encontrou-o acamado, sob a ameaça de seguir a qualquer momento para uma casa de saúde, onde seria operado, em regime de urgência, de uma hérnia.

Entre gemidos o amigo explicava como aquilo começara. Sentira uma dorzinha na virilha. Logo que começou pensou que era uma íngua e nem deu importância. Já nem se lembrava mais da dorzinha quando ela voltou com uma violência quase insuportável. Sentiu primeiro a impressão de que as calças estavam lhe apertando, mas as calças que vestia eram até folgadinhas. A impressão, no entanto, ficara, até dar naquilo: ali deitado, à espera do médico para entrar na faca.

E o amigo gemia. Foi quando chegou o médico, examinou assim por alto e sentenciou: "Temos de operar imediatamente. É uma hérnia estrangulada". E lá fora o amigo de Rosamundo a caminho do hospital. O Rosa, por sua vez, foi para casa, mas não tirava da cabeça a lembrança da dorzinha que sentira, parecidíssima com a do doente.

Sua suspeita transformou-se em pânico na manhã seguinte. Acordara tarde e atrasado para um encontro. Vestira-se no quarto escuro, para não acordar a mulher, e se mandara. Ainda não chegara ao encontro e todos os sintomas que levaram o outro para a operação de emergência começaram a se manifestar nele. Até aquele detalhe da calça que parecia apertar, mas estava folgada a olhos vistos, ele sentia.

Disparou para casa e foi logo pedindo o médico. Estava com hérnia. Deitou-se vestido mesmo, com medo de piorar, e a mulher apavorada começou a telefonar para o médico. Chamado assim às pressas, veio imediatamente. Entrou no quarto, olhou para a cara impressionantemente pálida de Rosamundo e mandou que ele se despisse para o exame. E foi aí que o Rosa percebeu que, em vez de cueca, vestira de manhã a calcinha da mulher.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Gol de padre. Atica, 1997.

Caldeirão Poético XLIX


 JOSÉ COELHO ALMEIDA COUSIN
Sacramento/MG, 1897 – 1991, Rio de Janeiro/RJ

Tormento Azul

Partiste. A noite é calma e o luar mavioso
dos silêncios da luz. Noite tão pura
como se Deus abrisse a mão na altura,
todo bênçãos de paz ao mundo ansioso.

Crise de nervos quebrantou-me — e o gozo
do meu sofrer acerba-se em tortura:
a noite é como o cálix de amargura,
que um anjo azul me vem trazer, piedoso...

Perdi-te! Nunca mais! — A lua, entanto,
como a entender-me, em desconsolo infindo,
chora nas folhas pérolas de pranto...

E pelos céus, no meu fatal delírio,
vejo as estrelas, quatro a quatro, abrindo
braços de cruzes para o meu martírio!...
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ARISTÊO SEIXAS
Resende/RJ, 1881 – 1965, São Paulo/SP

Velho

Antes da minha trôpega velhice,
por onde a força do meu pulso andasse,
não sei de algema que se não quebrasse,
não sei de pedra que se não partisse.

Vinha-me aos pés o mar, por que eu o ouvisse,
e temia-me o vento que soprasse;
o próprio monte, que eu subir tentasse,
baixava o dorso, para que eu subisse.

E em mim, só resta a neve dos cabelos!
Fora de mim, a morte, com seu luto,
cheia de espectros e de pesadelos.

A árvore mesma, cujo amor assombra,
levanta as ramas e me esconde o fruto,
derruba as folhas e me nega a sombra!
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ARISTHEU BULHÕES
Maceió/CE, 1909 – 2000, Santos/SP

Novo alento

Encontrei-te na estrada do Destino,
e tuas mãos fidalgas me levaram
pelos campos do amor, num desatino
que meus próprios sentidos estranharam.

Novo horizonte, agora, descortino...
As paisagens sombrias se alegraram.
Sou, de novo, feliz, como em menino,
pois meus anseios já se realizaram.

Antes, na vida, conduzido a esmo,
compartindo o pesar comigo mesmo,
via o meu sonho transformar-se em pó.

Hoje, alentado pelo teu carinho,
tenho flores brotando em meu caminho,
e já não sofro e nem sorrio só!
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BELMIRO BRAGA
Vargem Grande/MG, 1872 – 1937, Juiz de Fora/MG

Risália

Se ouvires, a sonhar, uns vãos rumores,
não são as aves festejando o dia:
— São os últimos gritos que te envia
meu triste coração, morto de amores...

Se sentires uns tépidos olores,
não penses que é o rosal que te inebria:
— É minha alma nas ânsias da agonia
que, só por te beijar, se muda em flores...

Se vires balouçar as níveas gazas
do docel de teu leito, não te afoites,
nem te assustes, querida! São meus zelos

que vão, de leve, sacudindo as asas,
carinhosos, beijar, todas as noites,
teus olhos, tua fronte e teus cabelos...
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BERTA CELESTE HOMEM DE MELO
Pindamonhangaba/SP, 1902 – 1999, Jacareí/SP

Ilusão

Ilusão! sonho efêmero e falaz,
que nos seduz e embala o coração!
Sublime, terno enleio que nos traz,
de um bem sonhado, a doce sensação!

Bendita e vã, quimérica e fugaz,
dura, às vezes, tão pouco uma ilusão!
É um bem pueril que nasce e se desfaz,
qual uma frágil bolha de sabão!

Mas, enganosa e vã, fugace embora,
ai de quem segue pela vida afora,
sem que lhe cante na alma uma ilusão!

Uma ilusão que vá por seus caminhos,
piedosa e boa, a disfarçar espinhos,
despetalando flores pelo chão!...

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Estante de Livros (Gol de Padre e outras crônicas, de Stanislaw Ponte Preta)

RESUMO


Gol de Padre e outras crônicas reúne crônicas escritas por Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo utilizado por Sérgio Porto.

Em “Gol de padre”, o narrador observa, da janela de seu trabalho, as crianças no pátio da escola na hora do recreio. Gosta de observar, pois acredita que nunca devemos deixar que “o menino morra completamente dentro da gente”. Vê que um padre, de forma firme e autoritária, organiza a partida de futebol dos meninos. O padre não deixa escapar nenhuma malandragem, faz advertência e expulsa os mais atrevidos. Ao final do recreio, a partida termina, os meninos voltam para as salas e o padre vai recolher a bola. Para a surpresa do narrador que observa, o padre, achando que ninguém mais olhava, joga a bola para o alto, levanta a batina e dribla a caminho do gol, mostrando que ainda conservava o menino dentro de si.

Na crônica “O Milagre”, havia um padre bem feitor em uma pequena cidade. Depois de sua morte, como forma de homenagem, o povo da cidade conservou intacto o quartinho atrás da venda onde o padre vivia. Certo dia, apareceu no quarto uma vela acesa no mesmo horário em que o vigário costumava acender. O milagre se espalhou e começou a aparecer gente ajoelhada na janela do quartinho pedindo graças. Foram muitos os casos de doenças curadas e preces atendidas. Com a fama, romarias se formavam em direção à cidade. Até que, com o tempo, o alvoroço passou. O narrador, ao passar pela venda, resolveu pedir uma cerveja. O dono da venda gritou para um menino: “- Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!” O narrador fica curioso e pergunta o porquê desse nome. O dono da venda explica que era o menino quem acendia vela, no quartinho do padre.

O marido ia pra São Paulo numa viagem a trabalho em “O Homem Que Não Foi a São Paulo”. Já tinha avisado a sua esposa e estava de malas prontas. Só que não estava animado, estava lhe dando uma chateação pensar que iria até São Paulo para resolver algo tão simples. Tentou fazer o que havia de ser feito pelo telefone e conseguiu. Resolve, então, ligar para a esposa, Mercedes, dizendo que viajou, mas fica no Rio. Nesse momento, seu amigo Augusto o convida para um pagode onde estariam os aguardando duas mulheres: o caso de Augusto e uma amiga que procurava companhia. O narrador rasga a passagem para sua esposa não desconfiar de nada e segue para o bar com Augusto. Chegando lá, para a sua surpresa, descobre que era a própria esposa quem o aguardava. Revoltado, parte para cima dela e lhe dá umas bolachas.

No texto “Levantadores de copo”, quatro amigos bebem num bar até tarde. Um começa a cantar um samba, o outro diz que a música não presta e começam a discutir até que os outros apartam. A fala embargada pela bebida só cessa quando passa uma mulher, depois voltam a falar novamente. Certa hora, o garçom vem trazer a conta e eles seguem juntos para suas casas. Todos os quatro eram casados. Ao chegar à porta da casa de um deles, com dificuldade, conseguem tocar a campainha. Atende uma mulher sonolenta que começa a dar uma bronca por conta do estado em que estavam e pelo horário. E um deles responde: “— Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa”.

ANÁLISE

Gol de Padre e outras crônicas é uma coletânea de crônicas de Sérgio Porto. As crônicas apresentam uma linguagem simples e histórias do cotidiano como tema. As histórias são sempre contadas com humor e ironia. De forma irreverente, os escritos de Porto representam o retrato de sua época: o Rio de Janeiro da década de 60.

Neste livro encontramos a caracterização de tipos comuns: o adulto que se permite ter um instante de menino, recordando sua infância; o marido adúltero que acredita estar enganando, mas descobre que também está sendo enganado; o grupo de amigos que fica no bar até tarde e leva bronca quando chega a casa, entre outros. Com histórias do cotidiano o autor constrói um interessante panorama da sociedade em geral.

Os personagens das crônicas de Stanislaw Ponte Preta são caracterizados de forma bastante superficial, muitos não chegam a receber um nome, só sabemos o suficiente para entender as histórias. Por isso, em muita das crônicas, dizemos que o narrador executa as ações, pois seu nome, muitas vezes, não é relevado. Por tratar-se de narrativas muito curtas, o foco das histórias não é a construção dos personagens, mas sim a situação.

 Por trás das histórias cheias de humor, havia uma crítica à política e ao moralismo vigente na sociedade da época. Através de sua narrativa, as situações comuns vividas no dia a dia ganham um olhar peculiar, o que faz o leitor rir e ao mesmo tempo questionar a realidade. Suas críticas são feitas com humor e ironia, o que proporciona uma leitura descontraída, mas que revela muito sobre as questões sociais e psicológicas da cidade do Rio de Janeiro nos 60.

A falta de profunda caracterização dos personagens é comum ao estilo de narrativa breve, como a crônica. Isso se dá porque o foco neste tipo de narrativa está na situação apresentada. Ao final da história, podemos observar uma moral, uma mensagem que o autor deseja transmitir: seja a de não deixar morrer o lado criança que existe em cada adulto, mostrar que aquele que se acha esperto pode se surpreender ou fazer uma crítica ao funcionalismo público.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 8


 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 56

Um daqueles junhos das borrascas no sul. E foi ali no cantinho lindeiro da Canastra que nasci. Um plano alto conhecido como Chapadão, numa casa feita de retalhos-remendos de madeira, próxima do salão de bailes, tertúlias, quermesses, que animavam a comunidade de São João, em Canela-RS.

Mas pouco durou a morada. Logo papai, mamãe e o gurizinho foram de mala e cuia para os Campos de Cima da Serra. Primeiro, Jaquirana, quilômetros longe da cidade, num confim de campo onde no inverno tinha que tirar a neve do telhado de tabuinhas para não ruir. Em seguida, São Chico de Paula, numa fazenda com vastas coxilhas, serraria, pinheiros abundantes. E frio também.

O garotinho cresceu e papai queria que ele estudasse. Internato com oito anos. O abecê, os números, uma caneta, e eles, os livros. Primícias dum leitor. O guri se fez adolescente. Quinze anos.

A primeira assinatura: Seleções do Reader's Digest. A porteira se abriu na variedade das leituras.

Nos rastros dos livros vieram os escreveres - versos, crônicas, redações. E a filosofia deixando pegadas. As sementes, o fermento dos leres, viraram plantação, cultivo, colheita. A lavra acabou em investimento forte de recursos para sempre.

O escrevinhador apaixonado pelas letras e leituras saiu pelo mundo espalhando emoções, sentimentos, pensares a granel em forma de palavras. Romeiro da cultura, anda com a arrecova* recheada de livros, esses depósitos de conhecimentos que alimentam as mentes de todos nós, sendo nortes-instrumentos para que na vida se avance. 
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* Arrecova = bagagem, malas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas LI


De barro se faz o homem,
e de luz principalmente.
O barro, os anos consomem;
a luz eterniza a gente.
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
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Vendo-te os lábios vermelhos,
deles morro enamorado.
Mas, em te vendo os joelhos,
me sinto ressuscitado...
ARLINDO BARBOSA
(Matias Barbosa/MG) São Paulo/SP
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A madame era tão chique
e de tão fina linhagem,
que até para ter chilique
retocava a maquiagem!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG
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Em nossa Constituição
este artigo deve entrar:
— Quem já tiver seu emprego,
não precisa trabalhar...
AUGUSTO LINHARES
Baturité/CE, 1879 – 1963, Rio de Janeiro/RJ
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Com teu doce viço expeles
quatro pétalas de aromas:
régia flor de rubras peles,
és Rosa, e de amor nos tomas!…
ELIAS PESCADOR
São Paulo/SP
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A justiça, rica em falhas,
corrompida por esquemas,
enche de glória e medalhas
mãos que merecem algemas!
GERSON SOUZA
São Mateus do Sul/PR
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Dei-te o melhor dos abraços,
do mais profundo querer...
Mas a força dos meus braços
não conseguiu te prender!
JANSKE NIEMANN SCHLENKER
Curitiba/PR
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Inês, a graça que tens,
a maior dentre as demais,
ninguém a vê quando vens,
sómente a vê quando vais.
JOÃO CARLOS DE VASCONCELOS
Natal/RN, 1893 –  
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Marido que quintal tendo
anda no alheio roçado,
acaba, por certo, vendo
o seu quintal capinado...
JOÃO RODRIGUES
Campos dos Goytacazes, 1911 –
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Bela filha da floresta,
Maringá é uma lição:
nela o trabalho é uma festa
e o progresso é uma canção.
JORGE FREGADOLLI
Maringá/PR
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O nosso destino até
com nomes faz ironia:
Ela é Maria José,
e eu sou José… sem Maria!
JOSÉ COELHO DE BABO
Quinta do Cedro/Portugal, 1910 – 1986, Nova Friburgo/RJ
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Com saias nunca te metas,
se queres viver feliz.
Por isso tenhas cuidado
com mulher, padre e juiz...
JOSÉ RAIMUNDO BANDEIRA
Santos Dumont/MG, 1923 –
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Na corda bamba da vida
o povo sofre, a dançar...
Mas não aprende a escolher
quem saiba a corda esticar!
JOSIAS DE PAIVA PINHEIRO
Jacutinga/MG, 1909 –   , Campinas/SP
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O teu narigão vermelho,
que parece um pimentão,
espanta qualquer espelho
que não sofra da visão!...
JULIMAR VIEIRA
Aracaju/SE
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Rosas vermelhas, paixão…
Com perfume embriagador,
despertam meu coração
para os acordes do amor!…
LUCILIA TRINDADE DE CARLI
Bandeirantes/PR
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"Se é ocê que tá me espreitando,
lá no cantim, iscundido,
bom sabê qui tô aceitando,
só farta fazê o pidido."
MÁRCIA JABER
Juiz de Fora/MG
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Solidão e violão
são irmãos e não se largam:
uma amarga o coração,
outro adoça os que se amargam.
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçu/SP
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O ar da serra eu lhe receito,
— disse o doutor ao Santana.
E este, em casa, satisfeito,
pega um serrote e se abana!
P. DE PETRUS
São Paulo/SP, 1920 – 1999, Rio de Janeiro/RJ
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Na estação do meu anseio,
nos perdemos de nós dois...
– Não foi o trem que não veio,
fui eu que cheguei depois!...
PEDRO MELO
União da Vitória/PR
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Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão…
A fé tecida entre os trapos
remendava a solidão!
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN
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Na língua ele se aprofunda
e, quando algo nos explica,
o faz com tal barafunda
que a gente mais burro fica!
PYLADES GAMA
Muzambinho/MG, 1904 –   ,Rio de Janeiro/RJ
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A bagunça  aconteceu,
a fogueira nos  clareou,
a música emudeceu…
e São João  nos   abençoou!
REGINA RINALDI
Pariquera-Açu/SP
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Ao tocar uma canção
que chora o fim de um amor,
também chora o violão
nos braços do cantador!
RENATA PACOLLA
São Paulo/SP
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Por mais que eu seja fraterno
socorrendo o pobre irmão,
pior que o frio do inverno,
é o frio do coração.
ROMILTON FARIA
Juiz de Fora/MG
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Pelo pensamento alheio,
bem lembrado, eu quero ser.
Que ampara, tal qual esteio,
tendo a força do poder.
SILVIA SVEREDA
Irati/Pr
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Entre tantas belas flores
elas são as mais airosas
e perfumam os amores…
Estou falando das rosas!
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP
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Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia
vai, durante nove meses,
“chorar… de barriga cheia!”
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP
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Se diante de algum tropeço
a minha fé sofre entraves,
perdão, Deus! É que me esqueço
de olhar os lírios e as aves.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR
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As nuvens choraram tanto,
que o sol compensa o escarcéu,
tecendo com doce encanto
mais sete cores no céu!
WANDIRA F. QUEIROZ
Curitiba/PR

Fabiane Braga Lima (O poeta estuda as almas)

Cheguei numa fase da vida que me sinto privilegiada. Sabe, aquela fase, onde desatamos os nós que nos prendia a tantas futilidades. Faço o que gosto, sem pressa e sem precisar agradar ninguém. Porque no fim, sempre acabamos sozinhos(as).

Como é bom acordar bem humorada! Não, com o semblante triste, envergonhado(a) por absolver tanto desprezo, e muitas vezes sermos chamadas de louca, ou vadia. Sinceramente, eu não me importo mais, não sou uma princesa, nem pretendo ser.

Sou apenas uma mulher, na qual quebra tabus, nada santa! Tenho paixão pela escrita de vários gêneros, posso ser pura e impura, depende do dia. Não sou de dar indireta, sou direta sempre e apenas uma vez.

Cresci psicologicamente! Gosto de pessoas com espíritos livres, mas nem sempre fui assim, me prendia muito ao passado. Hoje sou errante, não tenho destino. O vento me guia. Sofri muito no passado! Mas cá entre nós, o que o passado nos reserva!? Nada, pois passado é apenas passado. Exceto que ficam as lembranças boas ainda dói muito. Como dói! Mas a vida segue, somos instantes.

Quantas vezes chorei por amores passageiros. Hoje, restou-me o presente, onde me enxergo uma mulher, com rugas em volta dos olhos, alguns cabelos brancos, um corpão excitado, sonhadora, e ao mesmo tempo realista.

São tempos sombrios de amores líquidos, fuja! Lute, lute muito, tenha sempre expectativa na vida, mas se coloque em primeiro lugar. Se priorize, quebre tabus, e (amor-próprio) sempre.

Converse com o espelho e diga: — Mulher, como você é linda, tão pura e impura! Santa!? Só você pode responder...! Apenas uma mulher.

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. da Costa

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 9

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLV

VELHICE ADOLESCENTE

 
MOTE:
Fim da estrada... e de repente
um colóquio de meiguice,
faz do amor adolescente
a ternura da velhice!
Almerinda Liporage
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:
Fim da estrada... e de repente
certo jovem se aproxima,
é um alguém tão diferente
que minha alma, então, fascina.
 
As palavras vão surgindo...
Um colóquio de meiguice,
cheio de um carinho lindo,
tem ares de garotice!
 
O amor me deixa contente...
apesar da meia idade...
faz do amor adolescente
 a minha realidade!
 
Esse amor, já no meu fim,
mais parece peraltice,
mas faz vibrar dentro em mim,
a ternura da velhice!
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QUE IMPORTA?
 
MOTE:
Que importa a nós dois o mundo
que importa o lugar que vamos...
Nosso amor é tão profundo
que só de nós precisamos!

Amália Max
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014

 GLOSA:
Que importa a nós dois o mundo

se temos o nosso, aparte?
se nos amamos a fundo?
se nós vivemos com arte?
 
Não interessa o caminho...
que importa o lugar que vamos...
se vivemos com carinho,
se nós dois, só, nos bastamos?
 
Fazemos nosso segundo,
durar uma eternidade...
nosso amor é tão profundo
feito de sinceridade!
 
Seguimos juntos... mãos dadas...
temos tudo o que sonhamos:
almas tão enamoradas,
que só de nós precisamos!
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SUPREMA POESIA
 
MOTE:
Nada existe de mais belo,
que ver (suprema poesia)
o sol pintar de amarelo
as portas cinzas do dia!

Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA

GLOSA:

Nada existe de mais belo,
nada com maior beleza,
nada mais rico e singelo,
do que o sol, na natureza!
 
Nada melhor neste mundo,
que ver (suprema poesia)
o sol caindo, profundo
nos mares da fantasia!
 
Não existe paralelo
para essa tela imortal:
O sol pintar de amarelo
esse horizonte sensual!
 
Nesse amarelo dourado
em linda monocromia,
colore, de amor, tomado
as portas cinzas do dia!
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EU SABIA SONHAR...
 
MOTE:
O adeus... O beijo gostoso...
A esperança de voltar...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
em que eu sabia sonhar!

Carolina Ramos
Santos/SP

GLOSA:

O adeus... O beijo gostoso...
nós dois... o hoje... o amanhã...
o nosso sonho ardoroso,
a cada nova manhã!
 
Depois do adeus, a esperança,
a esperança de voltar...
Como é doce essa lembrança!
Como é doce recordar!
 
Nosso colóquio amoroso,
era tão lindo e tão puro...
– Meu Deus, que tempo gostoso,
que ao lembrar me transfiguro!
 
Era um tempo de alegria,
um tempo só para amar...
Um tempo de fantasia
em que eu sabia sonhar!
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MOÇO... VELHO... ESPELHO...
 
MOTE:
O espelho não me enganou,
sem disfarce, esse sou eu:
Um moço que não sonhou,
um velho, que não viveu!

Zaé Júnior
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

GLOSA:

O espelho não me enganou,
me mostrou, sem falsidade,
exatamente o que eu sou:
a minha realidade!
 
Fiquei surpreso, indeciso...
Sem disfarce, esse sou eu:
de coragem eu preciso
pra ver o reflexo meu!
 
Vejo alguém que nunca amou,
que não soube ser feliz...
Um moço que não sonhou,
que nunca fez o que quis!
 
O tempo passou voando,
e a juventude morreu...
Meu espelho vai mostrando,
um velho, que não viveu!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas VII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Maio 2003.

João Ubaldo Ribeiro (O dia em que nós pegamos Papai Noel)


Na nossa turma em Aracaju - uns 15 moleques de 9 a 10 anos de idade, no tempo em que menino era muito mais besta do que hoje - quem sabia de tudo era Neném, cujo verdadeiro nome até hoje desconheço. Neném era chamado a esclarecer todas as dúvidas, inclusive em relação a mulheres, assunto proibidíssimo, que suscitava grandes controvérsias. Ninguém sabia nada a respeito de mulheres e muitos nem sabiam direito o que era uma mulher. As mulheres usavam saias, falavam  fino, tinham direito a chorar e os homens mudavam de assunto ou tom de voz quando uma delas se aproximava - e pouco mais do que isso  constava do nosso cabedal de informações, razão por que Neném assumiu  grande importância no grupo.  

Neném sabia tudo de mulher, contou cada coisa de arrepiar os cabelos. Houve quem não acreditasse naquela sem-vergonhice toda: como  é que era mesmo, seria possível uma desgraceira dessas? Quer dizer que aquela conversa de que achou a gente dentro da melancia, não sei o quê,  aquela conversa... Pois isso e muito mais! - garantia Neném, e aí tome novidade arrepiante em cima de novidade arrepiante. Um menino da turma, o Jackson (em Sergipe há muitos Jacksons, por causa de Jackson de Figueiredo, é a mesma coisa que Ruy na Bahia), ficou tão abalado  com as revelações que foi ser padre.  

Mas, antes de Jackson se assustar mais e entrar para o seminário, chegou o primeiro Natal em que o prestígio de Neném já estava amplamente consolidado e a questão das mulheres - tão criadora de tensões, incertezas e pecados por pensamentos, palavras e obras - foi substituída  por debates em relação a Papai Noel. A ala mais sofisticada lançava amplas  dúvidas quanto à existência de Papai Noel e o ceticismo já se alastrava galopantemente, quando Neném, que tinha andado gripado e ficara uns dias preso em casa para ser supliciado com chás inacreditáveis, como faziam com todos nós, apareceu e, para surpresa geral, manifestou-se pela  existência de Papai Noel. Ele mesmo já estivera pessoalmente com Papai  Noel. Não falara nada porque, se alguém fala assim com Papai Noel na hora do presente, ele toma um susto e não bota o presente no sapato. Apenas abrira um olho cautelosamente, vira Papai Noel, com um sacão maior que um estudebêiquer, tirando os presentes lá de dentro, foi até no ano em que ele ganhara a bicicleta, lembrava-se como se fosse hoje. Então Papai Noel existia, era fato provado.  

Alguns se convenceram imediatamente, mas outros resistiram. Aquele negócio de Papai Noel era tão lorota quanto a história da melancia. Neném se aborreceu, não gostava de ter sua autoridade de fonte fidedigna contestada, propôs um desafio. Quem era macho de esperar  Papai Noel na véspera de Natal? Tinha que ser macho, porque era de noite, era escuro e era mais de meia-noite, Papai Noel só chega altas horas. Alguém era macho ali?  

Ponderou-se que macho ali havia, machidão é o que não falta  em Sergipe, não se fizesse ele de besta de achar que alguém ali não era macho do dedão do pé à raiz do cabelo. Mas era uma questão delicada, como era que se ia fazer para enganar os pais e conseguir escapulir de  casa à noite? E quem tivesse sono? Havia alguns que tomavam um copo de leite às oito horas e caíam no sono 15 minutos depois, era natureza mesmo, que é que se ia fazer? Era muito fácil falar, mas resolver mesmo  era difícil.  

Neném não quis saber. Disse que macho que é macho vai lá e enfrenta esses problemas todos, senão não é macho. Macho era ele, que  só não ia sozinho para o quintal de Zizinho apreciar a chegada de Papai Noel porque, sem companhia, não ia ter graça e infelizmente não havia ali um só macho para ir com ele. Por que ninguém aproveitava que a Feirinha de Natal funciona até tarde e os meninos têm mais liberdade  de circular à noite?  

Claro, a Feirinha de Natal! Todo Natal havia a Feirinha, montada  numa praça, com roda-gigante, carrossel, barracas de jogos e tudo de bom que a gente podia imaginar, iluminada por gambiarras coloridas e enfeitada por todos os cantos. Sim, não era impossível que um bom  macho conseguisse aproveitar a oportunidade gerada pela Feirinha e escapulir para ver Papai Noel no quintal de Zizinho. Só que não podia ser mais perto, por que tinha de ser no quintal de Zizinho? Elementar, na explicação meio entediada de Neném: Zizinho tinha mais de dez  irmãos, era a primeira casa em que Papai Noel passaria, para descarregar logo metade do saco e se aliviar do peso. Além disso, o quintal era grande, cheio de árvores, dava perfeitamente para todo mundo se esconder, cada qual num canto para manter sob vigilância todas as entradas do casarão, menos a frente, é claro, porque Papai Noel nunca entra pela  frente, qualquer um sabe disso.  

Eu fui um dos machos, naturalmente. E, já pelas dez horas, o burburinho da Feirinha chegando de longe com a aragem de uma noite  quieta, estávamos nos dispondo estrategicamente pelo quintal, sob as  instruções de Neném. Alguns ficaram com medo de cobra (macho pode ter medo de cobra, não é contra as normas), outros se queixaram do frio,  outros de sono, mas acabamos assentados em nossas posições.

Acredito que cochilei, porque não me lembro do começo do rebuliço. Alguém tinha visto um vulto esgueirar-se pela janela do quarto  da empregada, que ficava separado da casa, do outro lado do quintal. Era Papai Noel indo dar o presente de Laleca, a empregada, uma cabocla  muito bonita e, segundo Neném, "da pontinha da orelha esquerda". No  duro que era Papai Noel, já havia até descrições do chapéu, da barba, do riso, tudo mesmo. Como os soldados dos filmes de guerra que passavam no cinema do pai de Neném, fomos quase rastejando para debaixo da janela de Laleca. Estava fechada agora, Papai Noel certamente não queria  testemunhas.

Mas como demorava esse Papai Noel! Claro que, nessas horas, o tempo não anda, escorre como uma lesma. Mas, mesmo assim, a demora  estava demais.

- Estou ouvindo uns barulhinhos. - cochichou Neném.

- Eu também.

- Eu também. E foi risada, ainda agora, foi risada?  

- Psiu!  – Silêncio entre nós, novos barulhinhos lá dentro.  

- Quem é macho aí de perguntar se é Papai Noel que está aí? - perguntou Neném.

Eu fui macho outra vez. Estava louco para apurar aquela história  toda, queria saber se Papai Noel tinha trazido o que eu pedira e aí gritei  junto às persianas:

- É Papai Noel que está aí?

Barulhos frenéticos lá dentro, vozes, confusão.  

- É Papai Noel?  

A barulheira aumentou e, antes que eu pudesse repetir a pergunta outra vez, a janela se abriu com estrépito e de dentro pulou um homem esbaforido, segurando uma camisa branca na mão direita, que imediatamente desabalou num carreirão e sumiu no escuro. Lá dentro,  ajeitando o cabelo, Laleca fez uma cara sem graça e perguntou o que a gente estava fazendo ali.

- Era Papai Noel que estava com você?  

- Era, era! - respondeu ela.  

Mas ninguém ficou muito convencido, até porque o homem que pulara tão depressa janela afora lembrava muito o pai de Zizinho,  que por sinal, no dia seguinte, deu cinco mil réis a ele, disse que ficasse caladinho sobre o episódio e explicou ainda que Papai Noel não existia, Papai Noel eram os pais, como ele, pai de Zizinho, que todo Natal ia de quarto em quarto distribuindo presentes. De maneira que até hoje a coisa não está bem esclarecida e nós ficamos sem saber se bem era uma história de Papai Noel ou se bem era uma história de mulher daquelas  de arrepiar os cabelos.

Fonte:
João Ubaldo Ribeiro. Contos e crônicas para ler na escola. RJ: Objetiva, 2010.

domingo, 26 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 12: Força e fé

 

Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 1

CONSTATAÇÃO


Ao artista Deus deu mãos de ferramenta, e o Amor acrescentou vontade e leveza nos toques.
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GRAVIDEZ

No choro da descoberta, o desespero escorreu em lágrimas formato bebê.
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INTRIGA

Borboleta magérrima olhou a lagarta, mediu sua balofice e desdenhou: – fitness, amiga!
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INSÔNIA

No lençol amassado, pelos, cabelos e marcas da noite. Também olheiras por testemunha.
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MANHÃ

Curioso, o sol penetrou pela fresta e a iluminou ainda nua: transpirava restos de amor.
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MESTRA

A vida que nasceu com relho* na mão não alisa; e ai daquele que não aprende.
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NA ESTAÇÃO

O aviso de partida sangrou o ar e tirou, do coração constrito, lágrimas da despedida.
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OBSERVAÇÃO

A vida lhe deixou espinhos, mas o amor ofertou sementes de flores.
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ONTEM E HOJE

Namorados de ontem não se desgrudavam; nem os de hoje, só que agora do celular...
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PERSISTÊNCIA

Impoluta, a rocha nem ligou para a água que batia e quando menos esperava, se lascou...
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SINTONIA

Enquanto riscava a viola, a fumaça da chaminé desenhava ao vento as curvas da clave de sol.
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TERNURA

Os olhos da alma, ao apreciá-la na foto, nem percebiam o amassado do papel.
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UPA!

Entre a freada e a mancha na rua, só a bola continuou brincando.
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VALOR

Soberbo, o sol cuspiu suor no gari que humilde, limpou-se diante    da podriqueira**.
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VAZIO

Cão e lua curtem, cada qual no seu quadrado, a solidão. O que pensam?
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* relho = açoite feito de couro torcido.
** podriqueira = podridão.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Versos Di Versos) 2

A DESPEDIDA


É triste, como dói a despedida,
maltrata nos ferindo incontinente,
nos faz sofrer assim, tão inclemente,
as mágoas todas ânsias da partida.

Sentindo grande angústia, incontida,
que faz o coração bater mais forte,
sem ter um certo alguém que nos conforte,
que estirpe a nossa dor ali vivida.

E triste, sim, o adeus, as ilusões,
que fazem sufocar os corações,
deixando por um tempo os dois distantes.

Porém, em meio a toda insegurança,
com eles, permanece uma esperança,
de um dia se entregarem, como amantes...
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LUA

Tu chegas. prateando a minha vida,
me ornando, com tua luz, com teu clarão,
mas sempre sorrateira, escondida,
enchendo de prazer meu coração.

Clareias, vez por outra, os arvoredos,
onde, eu, mirando a ti, me encontro agora,
conheces, quase todos meus segredos,
és linda, és mulher, lua senhora.

Vaidosa, companheira das noitadas,
mentora das canções, pelas calçadas,
e que, as interpretei, com frenesi.

Mas, quando as cantava, a uma janela,
sequer me dirigia pra ela,
volvia o meu olhar só para ti.
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MAL DE AMOR

À noite, no silêncio do meu quarto,
procuro, em vão, achar recordações
e, logo, as alegrias eu descarto
pois, sinto, dentro em mim, desilusões.

Tão fortes são as minhas emoções,
que esqueço tudo que o coração diz
e, indiferente, às minhas aflições,
eu tenho a sensação que sou feliz.

Mas, eis que se apresenta a realidade,
mostrando que o meu caso é uma saudade,
que faz com que eu amargue tanta dor.

E que, por esse estranho sofrimento,
angústias, essa dor, esse tormento,
há cura! Se voltar meu grande amor.
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O CANTO DOS BEM-TE-VIS

Se achegam, todo dia, ao meu jardim,
revoando e entoando, cantos seus,
enchendo de harmonia, os áudios meus,
em grande sinfonia, para mim.

Foi Deus, quem os criou e os fez, assim,
solenes, majestosos, na amplidão,
seu trino, é um solfejo, uma canção,
que alegra o coração, o meu ser, enfim.

Em seus voos, de liberdade e pujança,
transladam, no seu mundo pequenino,
aos sons, de sonorosos pot-pourris.

Com eles, eu me sinto, uma criança,
pois, recorda o meu tempo de menino,
o canto perenal dos bem-te-vis!
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ZUMBI

Mirando este horizonte à minha frente,
o velho mar, revolto, ao vento alado,
os verdes coqueirais com seu bailado,
eu sinto este universo tão presente.

Escuto, no aconchego, no poente,
o canto prazeroso das graúnas,
que vão ao Punaú, com suas dunas,
em busca de um aninho e água corrente.

É lindo! A natureza se acentua,
fazendo um aparato para a lua,
mostrando o belo que se expõe aqui.

E a lua se acercando, com encanto,
aguça, mais ainda, este recanto,
emoldurando a praia de Zumbi!*
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* Localizada no município do Rio do Fogo, um dos lugares mais lindos do estado potiguar, a Praia do Zumbi herda seu nome de um sítio, uma pequena propriedade rural, que existia na região no século XVIII.

Isto porque Zumbi é uma palavra de origem africana que pode ser traduzida como fantasma e a propriedade em questão estava abandonada, com aspecto escuro dava impressão de ser mal assombrada e acabou sendo chamada assim pelos locais. (site Natal/RN)


Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Miriam Leitão (Imprevistos de bastidores)

Queria ser cronista. Só disso eu tinha certeza nos primeiros dias de jornalismo, iniciados, sem aviso prévio, aos 18 anos, em Vitória. Procurava emprego que me ajudasse a pagar as contas e consegui em uma redação. Foi assim que virei jornalista. Cheguei ao Espírito Santo depois de ler todo livro de Rubem Braga que encontrara, já sabendo que o estado tinha tradição no gênero. Tinha lido crônicas de Machado a Drummond. Era um sonho secreto, atrevido, que não contava para ninguém. Acabei sendo tudo: repórter, editora, colunista, comentarista. Crônica só em alguns raros momentos, quando a faina diária abre um breve intervalo, uma ligeira fresta no noticiário pesado. Ficou, então, esse desejo incompleto que realizo aos sábados neste espaço.

Ouvi dizer que todo cronista tem um momento em que não sabe o que escrever e tem de deixar a mente bem solta para ver se pega alguma inspiração, uma certa associação de ideias, uma lembrança que pouse como um passarinho.

Foi assim que me lembrei da mosca. Ela entrou no estúdio e o programa era ao vivo. Eu avisei, no intervalo, que uma voadora passara rasante sobre mim. Ninguém deu ouvidos. Todos falavam ao mesmo tempo. A televisão é um milagre que se renova a cada dia. Aquela confusão e, de repente, todos no ar, organizados, como se tivessem ensaiado.

Pergunta feita, comecei meu comentário. Aí a mosca voltou. Ela envidou os maiores esforços para chamar a atenção. Deu volta na minha cabeça e parou como uma equilibrista no ar, entre meu rosto e a câmera. Depois veio direto na minha direção, ameaçadora. Então sumiu. Antes do respiro de alívio, retornou num golpe traiçoeiro, por trás, contornou a nuca, zuniu no ouvido e passou rente ao meu rosto. O comentário era sobre uma notícia séria. Não dava para brincar com o inusitado da presença de uma espectadora alada. E dançante. Que mosca, aquela! Ela dava piruetas no ar e voltava a fincar sua atenção em mim. Gostava de economia, aparentemente. O estúdio inteiro petrificado. E eu fazendo exercícios mentais para ignorar a intrusa e continuar concentrada na difícil notícia que devia analisar. Comentário longo, mosca insistente, e eu tendo de dedicar um superávit de atenção ao tema. Consegui chegar ao ponto-final. Respirei. Ao fim do programa dei caça implacável à mosca. Tão misteriosamente quanto apareceu, ela sumiu.

Houve também o problema do salto. Oito é o máximo que consigo. Meu sapato cinza tem salto oito. Eu caminhava, resoluta, para o estúdio quando senti uma certa maciez estranha e desequilibrante sob os pés. Olhei e o salto do pé direito tinha virado. Parei, tentei consertar e ele saiu na minha mão. Estava na porta do estúdio, quase na hora de entrar no cenário. Precisaria caminhar até os apresentadores explicando a volátil conjuntura econômica, mas, naqueles instantes prévios da entrada em cena, eu adernava sobre um sapato com salto e outro sem. Entrei no estúdio e disse, nos bastidores, ao Caju, do áudio:

— Socorro!

Entreguei a ele o sapato e o salto separados e a minha aflição. Caju saiu rapidamente do estúdio e eu só ouvi um barulho assim: Tuuuummmm! Em seguida, ele voltou triunfante com salto e sapato reconciliados. Acabava de calçar e já ouvia a ordem para entrar em cena. Andei sem saber o grau de resiliência do meu sapato cinza de salto oito. Mas ele aguentou, heroico, até o fim do comentário.

Foi falar do sapato e me lembrar da bota. Um dos cameramen é alto e forte. É ele que maneja o mais pesado dos equipamentos, uma câmera que corre em trilhos e dá a imagem em movimento. Simpático, o colega. Delicado nos gestos e nas palavras, apesar daquele tamanhão todo. Ele usa botas pesadas, como se precisasse da grossura da sola para se sustentar no chão. Naquele dia me avisaram para entrar. Fiz o primeiro movimento para contornar as câmaras por trás e ir para o centro do cenário. Meu colega grandão, de costas para mim, puxou seu superequipamento e deu marcha a ré levantando seu enorme pé calçado com as grossas botas. Movimentei meu pé 36, em uma delicada sandália que pouco protegia, no exato instante em que ele descia sua bota 44 impiedosamente sobre o dorso do meu pé. Dor indescritível. Eu gritaria se possível fosse, porém ouvi a ordem insistente do diretor no meu ouvido:

— Entra, Míriam.

Meu pé não queria ir, o grito parado no ar, e eu tive de desfilar diante das câmeras explicando a situação econômica. O pé latejava. Um filete de sangue escorreu, mas ninguém viu, porque não estava em quadro, só meu delicado colega olhava, desolado. E eu explicava o choque externo que atingira a economia brasileira, em voz pausada, sentindo o pé aos gritos. A marca desse encontro desigual perdurou por dois meses em um hematoma. Até hoje não fico mais atrás desse meu colega, e ele sempre se certifica de onde estou antes de recuar.

O telespectador, em casa, nada soube da mosca, do salto quebrado nem da mais esmagadora pisada que sofri na vida.

Sou comentarista. Dizem que ser cronista é um risco, porque há um momento em que nada vem à mente. Há imprevistos maiores nesta vida.

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.