quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Marcelo Spalding (Exercícios de concentração para escrever)


A escrita é uma atividade intelectual que exige uma série de habilidades, como criatividade, foco, imaginação, observação, memória, síntese, organização, entre muitas outras. Porém, para ativar tudo isso na hora de escrever, o autor precisa se concentrar para iniciar e seguir no processo até o último ponto final.

Estamos acostumados a ouvir entrevistas com cantores famosos falando sobre seus exercícios para aquecer a voz. Mas, quando se trata dos escritores, que geralmente escrevem completamente sozinhos e não costumam dar tantas entrevistas, ficamos sem saber sobre seus exercícios de concentração para escrever.

Será que são relevantes no processo da escrita? Será que existe uma regra sobre o assunto ou cada autor faz do seu jeito? Confira algumas respostas e reflexões neste artigo.

Antes de tudo, precisamos dizer que exercícios de concentração para escrever não são a mesma coisa do que exercícios para escrever, pois os objetivos são diferentes. Por exemplo, para se concentrar, o autor não precisa ser criativo, mas sim, se desligar das distrações e focar no tema que deseja escrever. Lembrando que esse exemplo pode ser o caso de alguns escritores, mas não necessariamente de todos, já que alguns podem gostar de barulho para se concentrar, por mais estranho que possa parecer.

Para abordar este tema, trouxemos exemplos de alguns autores conhecidos como Cíntia Moscovich, Stephen King, Ernest Hemingway e Maya Angelou.

Cíntia Moscovich, antes de se sentar e escrever o que se propõe, costuma ouvir música, desenhar ou ler. Segundo ela, os exercícios de concentração para escrever atuam como uma afinação do cérebro e ajudam a desfocar do mundo externo. Além disso, a autora evita contato interpessoal enquanto se concentra e também enquanto escreve.

Quanto a ouvir música, você pode aproveitar as facilidades da tecnologia para aumentar as possibilidades. Uma dica é criar uma playlist para este momento de concentração ou ainda para cada texto ou livro que for criar.

Outro exercício de concentração é reler o texto no qual você está trabalhando antes de começar a escrever. Este vale tanto para se concentrar quanto para escrever melhor, já que ajuda o autor a continuar o texto sem perder o ritmo e sem desviar do tema. Esse exercício é ou foi praticado pela maioria dos grandes escritores, como Stephen King e Ernest Hemingway, entre outros. Hemingway, em seu artigo para a revista Esquire, deu o seguinte conselho: "Nunca pense sobre uma história em que você esteja trabalhando antes de voltar a ela no dia seguinte. Desta forma, seu inconsciente vai trabalhar nela o tempo todo".

O próximo exemplo pode ser encarado como um exercício de concentração ou como uma condição para escrever. Escolher um local neutro, que não seja nem a casa nem o escritório, para se dedicar à escrita é o que a americana Maya Angelou fazia. A poetisa, escritora, ativista de direitos civis, historiadora, atriz, cantora (e muitas outras atuações), falecida em 2014, saía de casa todos os dias às 06h da manhã e ficava em um pequeno quarto de hotel escrevendo até às 14h. Se distanciar das pessoas e dos locais "confortáveis" pode ajudar o autor a se concentrar melhor na sua escrita.

Se a obra na qual estiver trabalhando requer pesquisa prévia, destinar algum tempo antes de começar a escrever para pesquisar e organizar os dados coletados é uma estratégia que vale a pena testar. Dessa forma, o autor consegue se concentrar melhor na escrita durante o tempo que tem para ela. Cuide, porém, para que você não se canse demais durante a pesquisa para não prejudicar a qualidade do seu texto.

Eliminar as distrações antes de escrever e enquanto se escreve pode parecer uma dica básica, mas, hoje, com whatsapp e redes sociais nos chamando a todo minuto, é um desafio daqueles. Stephen King foi claro quando disse: "Não deve haver telefone no seu local de escrita, certamente não deve haver TV ou videogame pra você se distrair. Se tiver uma janela, feche as cortinas".

Consumir outras artes também é uma forma de se concentrar para escrever e de ter ideias. Ficar observando ou até mesmo criar obras de arte, quadros, esculturas, pinturas, fotografias e outras é uma dica para se concentrar para escrever. Clarice Lispector costumava apreciar obras de arte e isso com certeza a inspirava para escrever daquele jeito tão único.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 20: Enlevo

 

Paulo Leminski (Versos Diversos) 19



ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
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ais ou menos

(oração pela descrença)

Senhor,
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.
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como pode?

Soa estranho, esta manhã,
tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,
os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?

Como pode que esta palavra,
que já vi mil vezes e mil vezes disse,
não signifique mais nada,
a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo não é nada disso?

Pode que eu já não seja mais o mesmo.
Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.
Só não pode ser tanto.
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Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
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para que leda me leia
precisa papel de seda
precisa pedra e areia
para que leia me leda

precisa lenda e certeza
precisa ser e sereia
para que apenas me veja

pena que seja leda
quem quer você que me leia
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pareça e desapareça

Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
Mas vice-versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
Com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.
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três metades

Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.
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voláteis

Anos andando no mato,
nunca vi um passarinho morto,
como vi um passarinho nato.

Onde acabam esses voos?
Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?
São solúveis em água ou em vinho?

Quem sabe, uma doença dos olhos.
Ou serão eternos os passarinhos?

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.
Livro cedido gentilmente pelo poeta.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 05

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 65


Sexta-feira em Santa vilegiatura.

Caminhos verdes, ceus azuizinhos, veredas ensolaradas.  O silêncio dá ouvidos às folhas do outono caindo serenamente.  Alguém colhendo macela nos barrancos. Tradição secular. Logo os chás alicientes.

Caminhos e caminhares em busca de sabores para os olhos e a mente. Porque a vida sempre foi de buscares, de enxergares, de quereres.  Acúmulo de vivências.

Andanças nos dão horizonte, vamos mais longe, surgem os detalhes, a curiosidade chega pertinho.  Talvez este seja o melhor da existência, recolher o que pudermos, amealhar as essências, peneirar o máximo do mínimo.

E o genebrino Jean-Jacques Rousseau parece pontual:  " Caminhar com bom tempo, numa terra bonita, sem pressa, e ter pela caminhada um objetivo agradável  -  eis, de todas as maneiras de viver a que mais me agrada ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Samuel da Costa (Cristina)


Ivanoé, não suportava mais ver aquilo, a neta impaciente dividia o olhar, entre a janela da frente da casa e o telefone, instalado, na mesa no centro da sala de estar. Era um olhar difuso, um misto de desespero, de ansiedade, de expectativa e de dor.

– Márcia, minha filha, o que foi? O que tens, minha filha? – Disse impaciente Ivanoé, o delegado aposentado, ao interromper a leitura do Jornal da tarde, ele estava sentado confortavelmente, na poltrona de leitura. Ivanoé, estava aposentado somente há alguns meses da polícia civil, e desde que o seu único filho lhe faltou, deixando a neta, ainda um bebê de colo, como seu bem mais precioso na vida, nada mais importava de fato na vida do velho policial. Uma vez que a esposa de Ivanoé não era mais nada que uma mera sombra do passado, depois que ela faleceu, há tempos atrás. Era um passado que Ivanoé fazia questão de esquecer por completo.

Agora Ivan, como gostava de ser chamado na intimidade, estava aposentado do serviço público e agora não tinha mais que dividir seu tempo entre as duas coisas que mais amava na vida. Nada mais importava de fato, senão Márcia, sua neta. Uma vez que uma das suas duas paixões, a polícia civil, já não fazia mais parte da vida cotidiana de Ivan. Mas, ele não lamentava o fato, a vida é assim mesmo, tudo passa nesse mundo, menos a família, pois o sangue sempre prevalece. Pelo menos, era assim que o velho policial civil encarava como a vida deveria ser.

– Márcia, minha filha, o que é isso aí no teu braço?

– Ainda é uma tatoo meu pai, e foi mês passado, quando o senhor me fez a mesma pergunta. E hoje ainda é uma tatoo e será amanhã também uma tatoo. Ela vai ficar bem aqui, no meu braço por muito tempo! Vai ficar bem aqui e para sempre na minha vida.

Ivan gostou de ouvir a neta o chamar de pai. Mas, passou a não gostar do linguajar desrespeitoso da neta de tempos para cá, nem estava gostando das roupas que ela vinha usando, eram trajes diáfanos e negros como a noite. Márcia tão rebelde e revoltada com tudo e todos, como era parecida com Aldo nesse aspecto, pensou Ivan:  ‘’Meu Deus, como Márcia é parecida com o Aldo em tudo!’’ – falou Ivan bem baixo.

E, olhando a neta parada diante dele, de repente Ivan foi tomado por velhas recordações, dos tempos da infância e da adolescência quando Ivan e Aldo eram praticamente inseparáveis. Eram insolúveis e indissociáveis, onde estava um, o outro também estava, onde um ia o outro também ia. E, como os caminhos tortuosos da vida adulta, fizeram os dois irmãos estarem em lados opostos. Ivan ingressou na policial civil e Aldo foi se engajar na luta armada. Eram os conturbados anos de chumbo, anos negros da ditadura civil militar.

Aldo desaparecera por completo, por algum tempo, da vida de Ivan, Aldo sumira em meio ao caos que o país estava mergulhado naquele momento sombrio. Ivan só ficou sabendo onde estava o irmão por vias tortas. E Ivan teve que ajudar o querido irmão a voltar para casa, e como foi difícil aquilo para Ivanoé, ver o irmão no cárcere, preso como um marginal qualquer.

– Filha, a tua amiga não te ligou mais e nem veio mais te visitar? Que coisa estranha? Não é mesmo minha filha? – A voz de Ivan era pastosa e cheia de ternura, muito diferente do tom forte e autoritário de poucos minutos atrás. Mas Márcia não respondeu a pergunta feita por Ivan, e como aquele silêncio incomodava Ivan profundamente.

Tinha aquela súbita união das duas moças, e de repente as duas eram tão inseparáveis. Era o cinema, a praia, espetáculos, as peças de teatro e os mais variados programas e até mesmo futebol as duas andaram assistindo juntas. E como aquilo deixava Ivan muito preocupado em demasia. Para Márcia, parecia que não existia mais ninguém no mundo, a não ser a amiga Cristina.

E agora esse sumiço repentino de Cristina, uma moça tão meiga e doce, tão diferente da neta. Cristina era diferente em tudo, nos estudos, nas roupas e tudo mais. Se Cristina era o frescor de uma manhã primaveril, Márcia era soturna e intensa como uma noite de tempestade e frio no inverno. A princípio, aquela estranha amizade não incomodava em nada o velho policial, ele até achava bom ver a neta, sempre solitária, na companhia de alguém. Mas, agora olhando por outro prisma, Ivan começou a pensar o oposto, aquela dependência de Márcia pela companhia da amiga, não deixava que Márcia vivesse a própria vida, trilhasse seu próprio caminho. Cristina monopolizava a vida de Márcia, de um tal jeito, que vinha assustando Ivan. Na visão do velho policial, a neta parecia querer viver a vida da outra. Era esse o confuso quadro formado na cabeça de Ivanoé.

– Aldo, meu irmão...

– O que foi, pai, tás falando comigo?

– Nada, minha filha, só estava pensando no teu tio, que ainda está morando no estrangeiro, saudades dele, só isso, minha filha. Márcia, o que é isso no teu nariz, minha filha?

– É um piercing...

– Já sei... já sei... ainda é um piercing, e foi mês passado quando o teu velho pai...

– Pai, o amor é mesmo uma coisa tão estranha, não é mesmo? Pega a gente de tal jeito, e não larga mais, e dói tanto!

Só agora olhando com mais atenção, Ivan notou na tatuagem em forma de coração, estava escrito Cris dentro da tatuagem.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jerson Brito (Sonetos Escolhidos) 2


FERIDAS FECHADAS


Bendigo as cicatrizes que hoje ostento
porque comprovam lutas superadas,
feridas dolorosas, mas fechadas
à custa de esperança e sofrimento.

Não nego que existiu abatimento
frente aos reveses destas caminhadas,
perante o medo e nas encruzilhadas
surgidas no percurso pardacento.

Os tombos me ensinaram que a derrota
faz parte do processo necessário
à formação das mentes vencedoras.

Quando menos se espera a força brota
no ventre de um prolífero calvário
para conter as outras, opressoras.
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LÁGRIMAS AO VENTO

À sombra do carrasco o pó se espalha
nos dentes de seu tétrico brinquedo
e escreve outro capítulo a batalha
sem novo vencedor, sem novo enredo.

Um golpe, um tombo, a ríspida navalha
assustam logo todo o passaredo:
as folhas se transformam em mortalha
no derradeiro embate do arvoredo.

O vento leva as lágrimas vertidas
por muitas anciãs desprotegidas
Enquanto desvanece, nua, a terra.

O ronco cessa, a rude mão descansa
e vaga na clareira a vista mansa
do jovem que conduz a motosserra.
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Menção Honrosa no 9º Concurso Literário da AML – Academia Madureirense de Letras – Prêmio "Austregésilo de Athayde" 2020.
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O MENINO

Atrás de um garotinho que corria
na rua de cascalho, em vão, também
corri o quanto pude, mas ninguém
acompanhar-lhe o passo poderia.

De igual maneira, as cores da alegria
em meu olhar lançavam seu desdém,
fugiam dos apelos de um refém
daquele resplendor que fenecia.

Brinquedos eu perdi, precipitados
no abismo onde definha a formosura
dos dias pelos ventos devorados.

O asfalto que recobre a sepultura
dos tempos outra vez rememorados
desfaz um sonho cheio de doçura…
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PORCELANAS

Vivemos nosso conto ao arrepio
de convenções antigas, puritanas,
levados pelas fábulas mundanas
às garras do faminto desvario.

Desesperadas bocas têm, ciganas,
os pratos de um banquete fugidio
e engolem, neste falso senhorio,
manjares, deslizando em porcelanas.

Olhamos ao redor as rachaduras
crescerem nas paredes destes mundos
erguidos sobre bases quebradiças.

Mais uma vez seguimos, às escuras,
roteiros diferentes mas fecundos
em solidão, carências e cobiças.
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RIOS DE FOGO

Faceiros, partilhamos balbucios,
ardendo entre blandícias, completude:
declarações repletas de inquietude
ouvidos tomam, nutrem arrepios.

A ebulição dos lábios erradios
consente que o desejo se desnude;
dos corpos toma posse a lassitude,
sem fôlego, de lavas somos rios...

À mesa dos prazeres, cobiçosos,
servidos de banquetes majestosos,
aproveitamos tudo, imoderados.

Olhares e sorrisos dardejantes
são marcas desenhadas nos semblantes
pelo arrebatamento transformados.

Fonte:
Recanto das Letras do poeta
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?pag=9&id=50832&categoria=Z

Contos e Lendas do Paraná - 14 (Cerro Azul – Paranaguá)


Município de Cerro Azul

HERMÓGENES


Talvez o personagem mais conhecido do imaginário popular cerroazulense seja o “coronel” Hermógenes de Araújo, que viveu nos idos do século XIX, em tempos de coronelismo e voto de cabresto. Hermógenes era figura muito conhecida na região, sua casa era a melhor e mais rica e ele tinha muita influência junto ao Governo do Estado, representado por Vicente Machado. Bastante conhecido pela sua dureza e crueldade, era o mandatário da região, vivendo cercado de jagunços encarregados de fazer o “serviço sujo”.

O episódio mais famoso envolvendo seu nome está relatado no livro “A Cruz do Alemão”, de Cid Destefani: é o assassinato, à tocaia, de um imigrante alemão chamado Henning. Henning foi executado por um bandido chamado Diomiro Furquim e capangas, a mando de Hermógenes, por razões políticas que envolviam nomes importantes do cenário paranaense da época, como Vicente Machado, Padre Alberto, Pároco de Curitiba e o Barão do Serro Azul.

Por ser uma figura tão peculiar, são controversas as muitas histórias a respeito dele. Conta-se que teria morrido de uma febre misteriosa que tomou seu corpo. Antes de morrer, agonizou durante vários dias e seus empregados se revezavam noite e dia, abanando o seu corpo na tentativa de aplacar o calor. Muitos diziam que era o fogo do inferno, castigando-o por seus pecados.

Conta-se, também, que depois da morte, seu túmulo vivia rachando, porque a alma não encontrava descanso. Para resolver o problema, o túmulo recebeu grossas correntes a sua volta. Mais tarde, estas correntes foram levadas para o antigo pátio da Prefeitura Municipal e conta-se que enquanto elas ali permaneceram, nada naquele local prosperou.
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Município de Paranaguá

A LENDA DA CAVEIRINHA

Um escravo muito tagarela vinha da Fonte Velha, trazendo um pote d’água à cabeça. Ao atravessar o “Campo Grande”, viu, encostado a uma velha figueira, um esqueleto humano. Meio assustado, porém, por brincadeira e com vontade de falar, arriscou-se a dizer ao esqueleto:

– Caveirinha, quem te matô?

– Foi a “língua”; ouviu o esqueleto responder.

Achando graça, tornou a perguntar:

– Caveirinha, quem te matô?

E a resposta não se fez esperar:

– Foi a “língua”...

Fez o negro a pergunta pela terceira vez; a mesma resposta ouviu:

- Caveirinha, quem te matô?

– Foi a “língua”.

O escravo, então, apressou o passo, não por medo, mas para chegar mais cedo à casa do amo; pois estava doidinho para soltar a língua, como sempre fazia, mentindo descaradamente. Tão logo deixou o pote com água na cozinha, foi, lépido, até a senzala nos fundos do quintal, para contar o caso aos companheiros de cativeiro, que havia falado com uma caveira.

Alguns começaram a rir, gozando o escravo linguarudo. Outros, nem deram atenção; pois já conheciam as manhas e mentiras dele. Mas um deles, muito crédulo, aventurou-se a contar ao amo a façanha do negro marombado, como diziam todos. O patrão, cansado de saber das invencionices do escravo, mandou-o chamar. Ele veio todo lampeiro. O patrão então perguntou.

– Que história é essa do esqueleto falar, seu negro sem vergonha?

– Meu amo, eu juro que oví a caveira falá.

– Você não perde o costume de soltar a língua. Não se emenda mesmo.

– Mas eu vi a caveira e oví ela falá. Eu juro que não tô mentindo. Ela tá lá.

– Você é um descarado. Não sabe que um esqueleto não tem vida? Como então poderia ele falar?

– Falô, sim sinhô, meu amo. Eu tô dizendo a verdade. Mecê pode aquerditá. Desta veis eu não tô mentindo.

– Jura em nome de Deus?

– Juro, por nosso sinhô!

– Pois bem. Nós iremos ao Campo Grande. Queremos ver esse esqueleto, se ainda lá está, e também ouvi-lo falar com você. Mas fique certo do seguinte; se o esqueleto ainda lá estiver e não responder à sua pergunta, eu mandarei amarrá-lo ao tronco da figueira, junto ao esqueleto, para receber 100 chicotadas, a fim de nunca mais mentir.

E lá se foram todos, patrão, empregados e escravos; onde, de fato, encontraram um esqueleto encostado a uma figueira, no tal Campo Grande.

– Agora, disse o patrão: fale, negro sem vergonha; fale com ela.

– E o negro, já meio amedrontado; caveirinha, quem te matô? Nada; o esqueleto não respondia. Tornou a perguntar: caveirinha, meu bem, quem te matô? Nem uma palavra. O negro, temendo já o castigo que ia receber e que por certo não aguentaria, começou a implorar: Caveirinha, minha boa amiguinha, diga, por favô, quem te matô. Diga, senão eu vô apanhá muito. O silêncio continuava.

– Pessoal, falou o patrão, amarrem esse marombado ao tronco da figueira e executem as minhas ordens. E foi-se com os demais escravos. O pobre escravo não aguentou o suplício e morreu. Já era noite quando isso aconteceu.

Depois que os empregados foram embora, deixando o negro amarrado ao tronco da árvore. Ouviu-se uma voz, a voz do esqueleto: “eu não te disse que quem me matou foi a língua?”

Isso aconteceu no tempo da escravidão. Contavam os negros em suas senzalas, à noite.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

domingo, 23 de outubro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 16

 

George Abrão (Balaio de galinhas)


Era uma festa a compra de galinhas. Minha mãe, de antemão, já sabia o dia e o local da venda.

As galinhas vinham do Sertão de Cima. Galinhas caipiras: carijós, pévas, índias, de pescoço-pelado, pretas. Havia quem gostasse de galo, também tinha. Muitas vezes traziam algum pato, leitão ou cabrito.

O transporte era feito em grandes balaios de taquara sobre o lombo dos cavalos, um em cada flanco à guisa de cangalhas. Os sertanejos vinham em comboio e o barulho juntado à conversa dos condutores (ele riam muito) logo denunciava sua aproximação.

Minha mãe me apressava:

- Vamos filho, senão quando chegarmos as galinhas melhores já não estarão mais lá!

No local da venda as donas de casa iam se reunindo. Quando os vendedores chegavam: “- Bão dia, meu povo, se aprocheguem”, o toma lá, dá cá começava.

Os precos eram regateados e o produto sempre enaltecido:

- Está muito caro, seu Silvino.

- Num tá, dona. Dá trabaio jogá mio tudo dia e adispois corrê atrais prá pegá.

- Quero uma galinha bem gorda, vou ali no balaio do Gumercindo.

- Ihhhh! Dona, as dele ta tudo cum peste.

E ria muito pelo chiste. A camaradagem era grande entre todos.

Minha mãe tinha um jeito peculiar de avaliar e escolher o produto, pegando a galinha pelas pernas, de cabeça para baixo, descia e levantava várias vezes. Nunca entendi o porquê.

Traziam também saborosos ovos caipiras bem frescos e embalados um a um em palha de milho; mandioca; batata-doce; mandioca-salsa; milho-verde (quando era época); amendoim; feijão; rapadura, etc. Era uma verdadeira feira ambulante.

Bons tempos nos quais os alimentos eram criados e cultivados naturalmente sem hormônios nem agrotóxicos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 9


SURREALIRISMO


Muitas  vezes, ela sai... mas, sonolenta.
Espreguiça-se e, trôpega, devaneia
pela página, no fundo o que ela anseia,
é mostrar-se a quem a leia... ela é ciumenta.

Não escolhe a temática, titubeia,
entretanto deixa rastros ou... sementes
revoltadas, fatigadas, inocentes,
é veemente: apaga o fogo ou... incendeia.

Cativante, insinuante ou... grosseira,
leva o sonho e a verdade na bagagem,  
seleciona o erudito ou diz bobagem...
afinal, que tal o humor ? Viva a besteira !

Não copia nem sequer  parafraseia,
é avessa aos arrotos lagostinos...
ou nojentos caviares tão... cretinos
...pensa e sonha... e, assim, se delineia.

Neológica na essência, vocaliza
silenciosa como lágrima ou serpente.
Capitu ou monalísica o que sente,
grassa livre quando, lírica,  desliza.

E sorri, é debochada, imagina  
cada cara incorrigível que a desdenha -
e ao autor que a produz -  entrega a senha
a quem a lê com a  emoção mais cristalina.

A exemplo de outras tantas caminhadas
rabiscadas em qualquer mais rota agenda,
ou em folhas sujas, velhas, amassadas,
este texto é um retalho de fazenda.

Ka ! Ka ! Ka ! ... você a leu, fiquei feliz
pois, a custo, conseguiu interpretá-la,
Gratidão !!! ... é o que ela diz... a sua fala
é apenas arco-íris...  do que eu fiz.
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TRANSATIVIDADE VERBAL

- Você me ama, perguntei. - Amo - seu tolo!
... mas o seu verbo, que era tão... intransitivo...
ganhou ação e complemento... o seu consolo
passou a ser um pronome... reflexivo.

Revendo as regras,  expliquei que o verbo amar
é ideal, quando a  ação é transitiva,
e que o pronome essencial que a completar
tem que ser "te"... de forma  mais objetiva.

Ela me olhou - confesso, aquele olhar doeu -
e sussurrou: - Meu verbo é bem mais natural...
e o sujeito... meu amor... hoje sou "eu",
só sei, de cor, colocação... pronominal.

Se numa próclise, um romance se inicia,
uma mesóclise é a forma mais completa,
pois na conjugação a dois, amar-se-ia
na plenitude que a sintaxe  projeta.

Tornou-se enclítica nas suas exigências,
porém me disse, num tom bem coloquial:
"O seu pronome supre bem minhas carências...
mas cada verbo que conjugo é... passional.

Juro, optei pelos meus vícios...de linguagem,
e no calor da nossa  Nova Ortografia,
os pleonasmos ganharam nova roupagem
e... hiperbolamos... nossas fisiologias.
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UM SETE UM

Talvez por ingenuidade ou quando é conveniente,
Alguém pega o que é da gente sem ver a assinatura
E chora, ri, gesticula, num êxtase particular
Declama, canta, sei lá... Até chora,  a criatura !

E digita o que a gente...  criou, sem nos perguntar
Se podia publicar... e o pior, sem autoria !
A gente quer se matar ou matar o desgraçado
Que parece um retardado que nem escreve poesia !

Ah... brincadeira tem hora ! A adrenalina cresce,
A gente se enfurece e xinga quem publicou:
Safado, ladrão, cretino, hipócrita, um sete um !
Porque o que rouba um, na certa uns dois já roubou !

E cadê a autoria ? Que fim levou o meu nome ?
É assim ? ... o nome some e ninguém reclama nada ?
É mentira, isto é piada ! É estelionato, é rapina !
E a pessoa, cretina... Além de tudo é folgada !

Se mostra logo ofendido, na maior cara-de-pau
Corre logo pro jornal e até dá entrevista !
Que safado ! É um artista na arte do surrupio,
O sem-vergonha, vadio vai dando uma de sofista

E diz: esse texto lindo, que pena... sem autoria,
É meu... Que patifaria ! Tem dono agora o meu texto ?
O tal inventa um pretexto inaceitável, mesquinho,
E trata até com carinho o desfecho do contexto.

Ah... me larga ! Eu viro bicho !
Pensa que achei no lixo a minha inspiração ?
Se eu pego esse sacripanta
Eu corto sua garganta ! ... E arranco seu coração !

...que nada... eu sou poeta e poeta é de uma casta
Sublime... Por hoje basta... registre, amigo, sua obra
Tem gente que é como cobra sorrateira e mentirosa
Que rouba um poema ou  prosa com a astúcia... de certas sogras.

Leandro Bertoldo Silva (O colorir de uma flor)


(Dedicada à Fabiene Lemos)


Levantou cedo. Enquanto a água fervia para o café, se arrumou e verificou se estava tudo certo com o material da escola. Era o seu primeiro dia de aula e não tinha a menor ideia do que encontraria, principalmente após a recomendação da diretora dias antes: “Não vá puxar muito dos alunos, professor. Eles não estão acostumados. Além dos mais, estamos no interior…”.

O fato de ter vindo da capital nunca fora para Isidoro preceito de ser diferente. E daí estar no interior? Muito estranho. Mas lá foi Isidoro com uma diferença, sim, ao menos estrutural. Ele não tinha uma pasta ou bolsa, como os outros professores; ao contrário, ele tinha uma mala repleta de livros e carregava às costas um violão. E foi assim que adentrou pela primeira vez aquele portão escuro como o novo professor de Português.

Embora e escola estivesse toda pintada e com panos esticados em formato de grandes triângulos em tons diferentes, a falta de cor era evidente, não uma cor física, mas uma cor de alma, de falta de sorrisos reforçada pelo cinza do piso o qual gritava aos seus olhos. Sempre pensou: “As escolas nunca deveriam ser cinza, nem mesmo onde pisamos.” No entanto, estava ele ali em meio a uma a esperar pacientemente o seu momento de conhecer os alunos.

Feitas as apresentações, os alunos foram para as suas salas desanimados e desbotados, enquanto os professores, em desmaio de cores a reclamarem do fim das férias, foram pegar os seus pincéis. Isidoro não precisava deles, a não ser para pintar o chão, onde um rolo seria mais adequado.

Nem pincéis e nem rolo. Adivinhou-se na entrada de cada turma o que Isidoro trazia de novidade. No lugar do “bom-dia, vamos sentar nos seus lugares”, o novato professor sentava-se em cima das carteiras junto aos alunos, ou no chão os convidando a fazerem o mesmo, sacando o violão e contando-lhes histórias.

Os dias foram passando e o professor seguiu a sua tentativa de colorir a escola. Entendia agora o porquê em tempos meninos, ainda no jardim da infância, quando seus pais perguntavam o que ele havia feito, ele respondia: “Eu só coloro”. Essa sempre foi a sua missão, ainda mais do que ensinar as próprias letras.

Porém, o empreendimento era árduo. Não contava com os outros professores e muitos alunos não compreendiam nem o vermelho, nem o azul ou qualquer outra cor de suas palavras. Sentia-se na superfície, não haviam profundidades. Lembrou-se da sentença da diretora ao recomendá-lo cautelas. Estaria ela com a razão?

Isidoro foi para casa. Pensativo. Queria tanto colorir se não a escola, ao menos o coração daquelas crianças e jovens! Em sua biblioteca buscava nos livros a cor perfeita a salvar do desbotamento contagiante aqueles que se acinzentavam.  De repente seus olhos pousaram em um pequeno livro de capa preta, sem atrativos e muito sem graça em meio a tantos outros volumosos. No título lia-se: “O coração escuta pela boca”, de Silvana de Menezes. Tratava-se da biografia romanceada de Freud. Será?… Nunca acreditou em julgar um livro pela capa. Pegou-o e o guardou em sua mala. No dia seguinte o apresentaria para os alunos na berma de um pensamento: “as pessoas são como os livros; algumas serão tocadas, lidas e descobertas enquanto outras permanecerão fechadas”.

Tal pensamento se refletiu na realidade quando, em meio a vários alunos e alunas, Isidoro viu brilhar um amarelo diferente, um ponto de luz nos olhos de uma menina. Nenhum livro havia conseguido tal feito. E fora justamente aquele de capa preta a ganhar variedades de belezas como um caleidoscópio a fazer nascer alguns anos mais tarde uma profissão.

A menina, miúda ainda de idade, cresceu com o passar dos anos, os mesmos anos que fizeram Isidoro não estar mais naquela escola, pois o tempo não havia colorido os seus despropósitos.

Sentado junto à janela a olhar uma flor prestes a abrir em seu jardim, ouve um toque de mensagem em seu telefone:

“Oi, professor, tudo bem? Hoje é o lançamento do meu trabalho, do meu projeto como psicóloga e eu postei um vídeo explicando o motivo de ter escolhido a psicologia. Obviamente você fez parte disso, fez parte lá das raízes até as folhas e as flores dessa árvore linda que eu construí. E não tem como falar desse projeto sem me lembrar de você. Foi por causa do livro que você passou, “O coração escuta pela boca”, que esse amor nasceu em meu coração. Estou te mandando essa mensagem para te agradecer. Essa vitória não é só minha, essa vitória é nossa. Muito obrigada mesmo por ter feito parte disso”.

Ao escutar a mensagem e com os olhos marejados, viu que a flor, em um colorido intenso e cintilante, acabara de se abrir.

sábado, 22 de outubro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 7: Fonte em Azul Cerúleo



Poema obtido em:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Livro enviado pela poetisa.


Cecy Barbosa Campos (A chuva)


Chovia torrencialmente. Os relâmpagos riscavam a escuridão com linhas ziguezagueantes, que vinham do céu, antecipando os trovões que rugiam ameaçadores. Os veículos estavam parados na via pública, impedidos de continuar o seu trajeto, ou pela altura das águas ou pelo tráfego congestionado, que obstruía as ruas inundadas.

Apreensivos, os passageiros olhavam pela janela do ônibus, vendo os automóveis que o circundavam e que iam sendo abandonados pouco a pouco. Seus motoristas, em um certo momento, preferiam se aventurar a pé, tentando alcançar algum porto seguro, do que ficarem aprisionados sem conseguir dominar aquele frágil barco, que balançava ao sabor de ondas tempestuosas.

Analisando o duplo perigo que se lhes apresentava, os passageiros hesitavam entre sair e enfrentar a água, que talvez pudesse alcançar-lhes a cintura, conforme a estatura do indivíduo, ou permanecer dentro do ônibus, o que lhes transmitia alguma sensação de segurança. Entretanto, em pouco tempo, esta segurança se manifestou enganosa.

Os bueiros entupidos não conseguiam dar vazão à água da chuva e lançavam jorros de imundície e detritos aos borbotões. A inundação fétida começava a subir os degraus do ônibus, pois a chuva continuava, incessante.

Apavorada, Zildinha pensava em como desejava chegar ao seu modesto quarto, alugado numa casa do subúrbio. Nem se lembrou das vezes em que, voltando do trabalho, não tinha vontade de chegar, pois odiava aquele quartinho. Sonhava com o dia em que pudesse morar num apartamento onde usaria a cozinha e o banheiro à vontade e receberia os amigos. Naquele momento, seu quarto parecia um palácio inatingível e não ansiava por nada melhor.

Enquanto se imaginava protegida por aquelas paredes, imersa em si mesma, não chegou a perceber que a chuva fizera uma estiagem. Foi surpreendida por seus companheiros de viagem que davam vivas e batiam palmas, entusiasmados com uma réstia de sol da tarde que penetrara no ônibus.

Decorridos alguns minutos, o motorista avisou que a água estava baixando e que logo que o trânsito começasse a fluir, retomariam o seu caminho.

Ao chegar, Zildinha foi recebida com carinhosa alegria pela dona da casa em que morava e, fragilizada pela aflitiva experiência pela qual passara, não pôde conter as lágrimas de emoção sentindo-se amparada por aquela senhora que lhe parecia tão distante.

A chuva estabelecera elos de comunicação entre as duas, suavizando problemas de isolamento que tanto afetam as pessoas no mundo moderno.

A partir daquele instante, Zildinha começaria a encarar as dificuldades da vida com um novo olhar. Estaria alerta para a chegada de uma réstia de sol, que poderia surgir a qualquer momento em meio à tempestade, fosse na forma de um sorriso, um carinho ou um estender de mãos.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Manoel Monteiro (Canteiro de Trovas)


Adoro a Virgem Maria;
Maria ensinou-me a ler;
outra roubou-me a alegria
e tu me fazes morrer.
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Ao vê-la, em vistoso templo,
fazendo o pelo-sinal,
fui imitar-lhe o exemplo,
ficou me querendo mal.
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Aprendi, cheio de ardor,
pensando no paraíso,
o A B C de meu amor
na carta de teu sorriso.
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Costuma-te a ser jocundo,
coração, não desesperes:
Hás de viver neste mundo
sem entender as mulheres.
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De ternas flores mimosas
terno leito vou fazer,
embora possa entre as rosas
teu corpinho se esconder.
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Filhinha, toma cuidado!.,.
não largues mais tua cruz,
que o demônio anda trajado
nas roupagens de Jesus.
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Fiz inveja a muita gente
no dia em que andei contigo...
Até um lírio inocente
mostrou-se meu inimigo.
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Fui confessar-me e na grade
contei meus crimes e o teu,
se é bonita... disse o frade,
e rindo me absolveu.
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Maio surgiu entre flores.
Tudo ri no mês de maio.
Só eu, senhora, desmaio*
pelo caminho das dores,
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Meu peito sofre calado,
nunca chorou nem gemeu,
pois se o fizer, desgraçado,
sua fortuna perdeu.
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Milagres - terra de Olinda
quando o sol no azul desmaia,
é corpo de moça linda
deitado à beira da praia.
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No dia em que tu fizeste
a primeira comunhão,
a hóstia do amor me deste,
guardei-a em meu coração.
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Nos olhos não tenho pranto,
Lucília o pranto levou.
Pela morta chorei tanto
que a pobre fonte secou.
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Os dobres causam-me espanto!
Antes de morto previno:
se houver dobres me levanto
e quebro as cordas do sino.
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Pois da vida nos escombros
minha esperança me diz:
há de cair de teus ombros
este manto de infeliz.
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Seguindo junto ao teu seio,
vendo teu rosto sem véu,
julguei-me um santo em passeio
pelas estradas do céu.
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Somos cinco retirantes
pelas estradas reais!
Pobres dos nossos descantes,
descantes pobres de mais! ...
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Suporto negro ciclício,
mas não conto meu desgosto
que, pelos traços do rosto,*
todos lerão meu suplício
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Todo moço que for pobre,
faça o que eu faço também
para quem mágoas descobre
só desprezo o mundo tem.
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Um só desejo na vida
eu sinto-me perseguir:
é nos teus braços, querida...
pousar a fronte e dormir.
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Vem aos meus braços abertos,
desce do teu quinto andar,
que os anjos do céu, espertos,
procuram te namorar.
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Vivo ausente de Palmares,
feliz terra onde nasci.
Eu lá não senti pesares,
vim padecer foi aqui.
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* Na época não era obrigatório rimar o 1. com o 3. verso, somente foi normalizada esta obrigatoriedade com a fundação da União Brasileira de Trovadores, em 1966.
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Fonte:
Adelmar Tavares et al. Descantes. Recife/PE: Tipografia da Imprensa Oficial. 1a. edição publicada em 1907.

Raymundo de Salles Brasil (Uma Pensão Fumaça)


Todo estudante tem histórias para contar. Quem passou por essa fase da vida, quase sempre recheada de deveres, pouquíssimos direitos, e para compensar muita irresponsabilidade, sabe que é utopia imaginar que seus filhos não aprontaram. Histórias, as mais diversas aconteceram e acontecem hoje, das dramáticas às hilariantes, mas todas elas, contadas depois de que tudo se passou, muito engraçadas. As que eu sei dariam, certamente, alguns belíssimos contos, caídas na pena hábil de um contista de verdade. Na sua falta, arvorar-me-ei de sê-lo, para contar-lhes uma, que até hoje me enche de pejo.

Todos na quadra dos vinte anos, todos buscando um lugar ao sol, mas, aqui e acolá, ainda fazendo coisas absurdas, que só o jovem pode fazer e ainda, passadas algumas décadas, se dar ao direito de contá-las sem que lhe tire hoje a condição de homem sério, probo e digno de toda respeitabilidade, em fim, coisas do passado, vistas como coisas da juventude.

Uma pensão de estudantes: Rua Direita da Saúde – uma rua torta, como são todas as ruas direitas que eu conheço – n. 2, um velho bicentenário casarão no bairro de Nazaré, na capital da Bahia. Pela sua idade e pelo seu porte deve ter uma história, e deve ter sido palco de muitas outras. Eu participei de uma, vou contá-la: Não se suscetibilizem os meus comparsas se não era de seus pensamentos que fosse revelada uma história já apagada pelo tempo.

Dona Simplícia era a dona da pensão, uma mulher de poucas letras, mas de um tino comercial invejável e de uma capacidade de trabalho que deixava o seu marido, seu Deraldo, frustrado, pois ele mal tinha ânimo para pegar as malas dos hóspedes, quando bem instigado a fazê-lo pela sua consorte; o que ele gostava mesmo era de fumar o seu charuto pacífica e tranquilamente, sem ser incomodado e sem incomodar. O casal tinha um filho, foi o máximo de esforço que seu Deraldo pôde fazer, mas o fez bem, porque Edvard era um rapaz bem afeiçoado, de compleição saudável, um bom estudante, e inteligente. Era nosso companheiro de todas as horas, menos no que ferisse os interesses da pensão, obviamente, de que era extremamente zeloso.

Dona Simplicia viera de Santo Amaro para estabelecer-se em Salvador visando abrigar uma leva de estudantes que saia do antigo Ginásio Santo-Amarense para fazer o curso colegial e outros que já entravam nas universidades, certa de que eram rapazes de família, de boa educação, (e eram sem dúvidas) mas sem imaginar que dentro de cada um deles dormia um menino travesso, pronto para acordar a qualquer momento.

Era uma festa a nossa convivência; todos nós trabalhávamos ou estudávamos ou as duas coisas, mas, nas horas vagas nos reuníamos para desfrutar de uma mocidade sadia, inteligente, viva; fazíamos festas, serenatas, namorávamos, conversávamos, divertíamo-nos; foi uma quadra inesquecível na minha mocidade. Todos, ou quase todos, caboclos da mesma aldeia.

A maioria saldava religiosamente os seus compromissos com o caixa da pensão, outros por contingências que não me convém aqui citar, atrasavam seus pagamentos, o que dificultava a boa administração da empresa, levando a sua direção (Dona Simplicia e Edvard), como medida compensatória, a tomar a decisão drástica de diminuir o “rango” dos esfomeados jovens estudantes.

Houve um protesto dos bons pagadores que estariam, como justos, pagando pelos pecadores; mas ao fim todos se acumpliciaram no sentido de ir à represália. Aproximavam-se os festejos de São João, nos céus da Rua Direita da Saúde já se ouviam, aqui e acolá, os estampidos de alguns foguetes e lágrimas de fogos de artifício, que, de vez em quando, se confundiam com as estrelas cadentes, enquanto as bombas pipocavam nas calçadas lançadas pelas mãos traquinas dos adolescentes que inspiraram tanto as nossas mentes maquiavélicas.

A ideia não foi minha, poderia ter sido, mas me confesso tão culpado quanto. Entre as tais bombas tocadas inocentemente pelos adolescentes, havia uma, a maior de todas, que sozinha causava um estampido ensurdecedor. Esta foi a escolhida para o nosso plano hitleriano.

O velho sobrado tinha duas entradas, uma delas, a mais utilizada pelos hóspedes, era lateral – um portão de ferro dava acesso ao pátio que ia ao longo do prédio até um alpendre contíguo, de um lado, à cozinha e do outro à sala de refeições. Nós morávamos no andar superior e para esse pátio abriam-se as janelas de todos os quartos, as dos hóspedes incautos e as dos maquiavélicos.

Descrito o cenário vamos ao plano diabólico e à cena dantesca:

Inacreditável que jovens tão bem educados pudessem urdir semelhante absurdo. Mas estudante é assim, nunca foi diferente, tirando aqueles que excepcionalmente são bem comportados, todos aprontam. O que importa é que não foi por mal, foi uma brincadeira que fizemos sem que atinássemos para as consequências. Nós éramos 16 estudantes que se transformaram todos, sem exceção, em homens de bem, de conduta ilibada, vejamos:

Num dos quartos moravam os quatro irmãos Araujo: Otávio, já falecido (economista), Francisco Otávio (advogado), Jaime Otávio (geólogo) e Hamilton Otávio (médico veterinário); Noutro moravam os dois irmãos Bastos: Walter e Mário (contadores); Noutro os Valladares: Mário e Flávio (advogado e médico respectivamente); noutro Geraldo Castro (médico); noutro Romil e Carlos Rosa (um advogado, o outro professor); no outro Edmundo Caroso (fiscal da receita federal e virtuose do cavaquinho) e por fim num outro quarto morávamos, eu, meu irmão Rodrigo, já falecido e meu primo Afonso, aposentado da Petrobrás. Quem diria!

O plano era o seguinte: cada um compraria uma daquelas bombas monstruosas a que já me referi, e levaria para o seu quarto guardando todo o segredo da arma do crime; às 10 horas da noite todos apagariam as suas luzes como se fossem dormir o sono dos anjos; todos os relógios previamente acertados; às 12 horas (meia noite) em ponto, quando todos os hóspedes já deveriam estar dormindo, Jaime Otávio acenderia um fósforo como sinal e aí, sim, todos, de uma só vez, acenderíamos as nossas 15 bombas e joga-las-íamos ao longo do pátio no meio do silêncio daquela famigerada noite de junho de 1953.

Dito e feito: buuummmmmmmmmmmm!

Desculpe-nos, Edvard, não foi por mal.

Dona Simplícia! Que Deus a tenha.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Varal de Trovas n. 570

 

Artur de Azevedo (Útil inda brincando)


A Urbano Duarte


I

Uma noite o Leopoldo das Neves encontrou no Passeio Público o Viriatinho da Estrada de Ferro, um bom camarada que há muito tempo não via. E, como os dois amigos se encaminhassem para o terraço, o Viriatinho chamou a atenção do outro para uma bonita mulher que descia a escada em companhia de um sujeito gordo.

— Oh! diabo! é a Clotilde! exclamou o Leopoldo das Neves.

E, levando o amigo pelo braço, embarafustou com ele pela sombria alameda que contorna o lago.

— Que é isso? Foges daquela mulher?

— Como o diabo da cruz.

— Por que?

— Porque me amola; se me visse, eu seria amanhã obrigado a explicar-lhe o que vim fazer ao Passeio Público!

— Amola-te? Ora essa! Eis ali o caso de dizer que dá Deus nozes...

— Perdão, tenho muito bons dentes!

— Nesse, és difícil!

— A Clotilde não é o meu tipo.

— Pois é bonita como seiscentos diabos!

— Não nego! mas o meu ideal é outro. Quisera que a minha amante fosse alta, magra, loura, alva, de olhos azuis, e tivesse vinte e quatro anos, quando muito. Quisera também que fosse viúva, conhecesse um pouco a Europa, e, sem ser literata nem artista, gostasse das letras e das artes.

— Quiseras muitas coisas juntas!

— A Clotilde é o contrário de tudo isso: é mais baixa que alta, é mais gorda que magra, é morena, tem olhos castanhos, e já completou a idade exigida para a senatoria...

— Do Império?

— Não; da República.  É a digna esposa daquele negociante anafado e suarento que viste passar; adormece no Lírico ouvindo o Otelo; dá o cavaquinho pelos cromos de Guimarães Ferdinando, e delicia-se com a leitura de Xavier de Montepin, — traduzido, note-se, porque nem ao menos sabe francês!...

— E as tuas relações com ela têm tido caráter platônico... ou... positivo?

— Ah, meu amigo, eu dei-lhe, infelizmente, amplo direito de perseguir-me...

— Maganão!

— Quem principiou fui eu. Que queres?... a curiosidade... o vício... a poesia do adultério... Como isso foi? Não sei. Um encontro numa soirée familiar... um aperto de mão mais forte... uma valsa... durante a valsa uma troca de lenços... no lenço dela um perfume capitoso e enervante... uma carta minha que ficou sem resposta... outra... outra ainda...outra, que foi respondida afinal... uma entrevista concedida depois de uma luta homérica entre duas fomes de beijos...

— Bonito!

— Uma entrevista em casa de uma cartomante da rua da Assembleia... Duas horas de prazer, e quatro anos de cativeiro e arrependimento!

— Quatro anos?

— Sim, meu Viriatinho, há quatro anos que isto dura; há quatro anos hipotequei a minha liberdade, o meu sossego, e o meu bom humor; há quatro anos vivo aguilhoado a essa mulher, que se encontra comigo de oito em oito, de quinze em quinze dias, furtivamente, às pressas, mas que me escreve todos os dias, e me atormenta com protestos, exigências, lamúrias, ameaças!...

E Leopoldo das Neves interrompeu a lista das impertinências de Clotilde, batendo violentamente com a bengala na relva:

— Quatro anos! Há quatro anos — calcula! — tenho o coração nas mãos, receoso de que de um momento para o outro o marido descubra tudo, ponha-a na rua a pontapés, e eu seja obrigado a ficar com aquela trouxa às costas!...

— Vejo que já não a amas.

— Nem nunca a amei. Foi um capricho... Quinze dias depois da nossa primeira entrevista em casa da cartomante, já eu me sentia farto e aborrecido!

Os dois amigos encaminharam-se para o terraço.

A noite estava esplêndida. Não havia luar, mas os astros brilhavam intensamente na profunda escuridão do céu. As ondas, derramando-se na praia, pareciam alvíssimas rendas franjando uma enorme colcha azul.

— Queres um conselho, Viriato? Foge das ligações dessa espécie.

— Ah! de que me serve o teu conselho?

— Por que?

— Aqui onde me vês, estou ralado de inveja!

— De inveja?

— Sim, confesso-te que guardo dentro esse sentimento ignóbil. Invejo a perseguição de que te dizes vítima e, — palavra! — tenho ciúmes, ciúmes incoerentes, dessa mulher que não é minha, que não conheço, apenas entrevi... Eu dava dez anos de vida — vê tu lá! — pelo prazer de entrar com ela furtivamente em casa de uma cartomante misteriosa e hospitaleira!

Leopoldo das Neves encarou fixamente o outro, e, depois de uma grande pausa, perguntou-lhe, segurando-o por um botão do casaco:

— Viriatinho, és meu amigo?

— Certamente.

— Queres prestar-me um grande serviço?

— Qual?

— Um serviço que não te será desagradável.

— Que ordenas tu?

O amante de Clotilde recuou uns passos, apontou para o lado da rua, e declamou o verso de D. Salustio: De plaire à cette femme et d’être son amant! (
Para agradar esta mulher e ser seu amante!)
 
O Viriatinho soltou uma gargalhada tão cristalina e vibrante que chamou a atenção das pessoas que passavam.

— Não te rias! estou falando sério!...

— Mas isso é lá possível! Tirar-te do lance, eu!... E ela tão apaixonada por ti!...

— Conheço-a como as palmas das minhas mãos; dar-te-ei as instruções necessárias... Desde que estejas munido de todos os recursos estratégicos, desde que saibas como atacar a praça, a vitória não será difícil.

— Olha que sou um péssimo general!

— Deixa-te de modéstias! Vamo-nos embora... Pelo caminho irei te desenvolvendo o plano do ataque.

— Vamos lá!

Os dois amigos tomaram a direção da escada.

— Não calculas como vais ser útil! disse Leopoldo das Neves, descendo.

— “Útil inda brincando”, acrescentou Viriatinho, descendo também, e apontando para o desgracioso Cupido que desde 1783 dá de beber aos fluminenses.

II

Mês e meio depois desse encontro no Passeio Público, Leopoldo das Neves estava sozinho em casa, e sentia um aborrecimento de morte. Era uma noite chuvosa e fria. Tentou escrever, e não conseguiu alinhar quatro palavras; quis ler um livro interessante, que ainda não conhecia, e fechou o volume logo depois da segunda página; sentou-se ao piano, e sentiu as mãos pesadas como se fossem de chumbo. Acendeu um charuto, e deitou-se na cama a fio comprido, contemplando os bicos dos pés.

Tinham-se já passado quarenta dias depois que ele apresentara Viriatinho a Clotilde, numa soirée, em casa de um tal comendador Freixo. Leopoldo tratara Clotilde com muita indiferença, passando a noite a jogar o voltarete com o marido dela, um major de engenheiros e um médico. De vez em quando o Viriatinho lhe aparecia na sala de jogo, e, por gestos, o informava de que tudo corria às mil maravilhas.

Terminada a soirée, os dois amigos saíram juntos e, na rua deram cinquenta passos ao lado um do outro sem falar.

Leopoldo quebrou o silêncio:

— Então, César? Chegaste, viste e venceste?

Por única resposta o Viriatinho tirou da algibeira um pequenino lenço e apresentou-o a Leopoldo, dizendo:

— Vê se conheces este perfume.

— Bravo!... as coisas chegaram à cerimônia, meio maometana, da troca dos lenços?

— Tal qual como contigo. Primeiro que tudo, e modéstia à parte, não há dúvida que lhe fiz certa impressão. É que naturalmente me achou parecido com algum herói de Xavier de Montépin. O resto já tu sabes: uns olhares ardentes e expressivos... uns apertos de mão durante a primeira quadrilha... logo em seguida uma valsa, e a troca dos lenços... Depois de amanhã lhe escreverei uma carta...

Os dois amigos separaram-se, e, desde essa ocasião, Leopoldo não mais esteve com o Viriato. A correspondência de Clotilde cessou completamente.

Durante os primeiros dias ele sentiu-se feliz, aliviado — uf! — daquela pesada algema que durante quatro anos penosamente arrastara. Depois vieram-lhe... como direi?... remorsos. Recordava-se do passado; saudosas cenas se renovavam no seu cérebro inquieto.

Clotilde aparecia-lhe agora com toda a sua meiguice, como todo o seu ardor de mulher que fecha os olhos e se entrega resolutamente a um homem, como se mergulhasse no oceano. Depois, ele passou todas noites consecutivas a sonhar com ela: via-a muito alta, muito magra, muito loura, de olhos azuis, a tocar harpa, dizendo-lhe: — Aqui me tens! Agora, sim, agora sou o teu ideal!...

Naquela noite chuvosa e úmida, Leopoldo sentia-se mais do que nunca envergonhado do seu procedimento. Por fim de contas,. Clotilde era uma bonita mulher, e uma boa rapariga, que só tivera um defeito: amá-lo exageradamente. E que fez ele? Uma canalhice: entregou-a ao Viriatinho, ao Viriatinho da Estrada de Ferro, um pulha, uma besta que com certeza não saberia apreciá-la.

O ingrato monologava esta interrogação terrível: — Já teriam indo à rua da Assembleia? — quando ouviu bater à porta.

Foi abrir. Era o Viriatinho, que entrou alegre e radiante.

— Está chovendo: tinha certeza de encontrar-te em casa. Venho trazer-te notícias da minha conquista... Fomos hoje à cartomante!...

Leopoldo estremeceu, teve um sorriso contrafeito, e agarrou-se a um móvel para não cair.

— Arre! Custou! Escrevi nada menos que de seis cartas! As três primeiras ficaram sem resposta. Afinal foi ela própria quem me indicou o bom retiro da rua da Assembleia... Talvez o mesmo quarto, hein?

— Talvez...

— Olha: sobem-se duas escadas... abre-se uma grade de pau... entra-se num corredor… primeira alcova à direita... com uma janela que dá para uma área... Embaixo uma casa de fumos... É isso?...

As palavras de Viriatinho penetravam no coração de Leopoldo das Neves como outras tantas punhaladas. O pobre diabo teve ímpetos de agarrar uma bengala, e por pela porta a fora, a pauladas, o seu substituto; mas — que diabo! — o culpado de tudo não tinha sido ele próprio?... ele próprio não lhe indicara os meios de seduzir Clotilde?... não era esse o resultado fatal de uma combinação infame, proposta espontaneamente por ele?...

O Viriatinho observou:

— Mas... valha-me Deus! acho-te assim a modo de contrariado... Estás arrependido?

— Eu?... que ideia!... murmurou Leopoldo sufocado; que ideia!...

— Olha, se queres que te diga, acho que tinhas muita razão... A Clotilde é bonita, isso é, mas que mulher vulgar, que espírito acanhado!... Não tem por onde se lhe pegue!...

— Não te dizia? acudiu vivamente Leopoldo, regozijado por essa opinião; a Clotilde não vale nada!

— Sabes? não estou disposto a aguentar aquilo quatro anos, como tu... Nada! na primeira ocasião desfaço-me dela! Quis apenas prestar-te um serviço, e folgo de ter sido “útil inda brincando”.

Alguns minutos depois, o Viriatinho saiu, e Leopoldo das Neves ficou aniquilado pelo desgosto.

Foi para o seu quarto de dormir, abriu um armário, e tirou um vidro de perfumaria, o extrato predileto de Clotilde, há três anos esquecido no fundo daquele móvel. Ensopou o lenço, aspirou longamente aquele perfume “capitoso e enervante” como se quisesse anestesiar-se; depois, atirou-se à cama, enterrou a cabeça no travesseiro, e numa crise de nervos, começou a chorar desesperadamente, soluçando o nome dela.

Passou assim toda a noite.

III


Ela enviuvou há um ano. Eles casaram-se há seis meses.

Quando se encontram com o Viriatinho da Estrada de Ferro, fingem que o não conhecem.

Fonte:
Artur de Azevedo. Contos Fora da Moda. Publicado originalmente em 1894,

George Abrão (Poemas Avulsos) 1


A CRIANÇA QUE EU FUI


A criança alegre e travessa que eu fui,
que usava calça curta com suspensório,
camisa de morim branco, boné de pano de saco,
sempre de pés descalços ou de come-quietos;
que se encantava com flores, pássaros e borboletas,
que dava nome às nuvens pelos seus formatos,
a criança que nunca andava, sempre corria,
parecendo querer alcançar o tempo;
o menino levado que sempre estava aprontando:
fazendo guerra de mamona com os outros amigos,
ou descendo as ladeiras de carrinho de rolimã,
rasgando as roupas ou ralando joelhos e cotovelos;
que caçava as aranhas-segredo com cera em um fio,
que com um estilingue espantava os pássaros,
ou então procurava os seus ninhos entre os arbustos,
que caçava as belas borboletas multicores;
o menino que jogava bola no campinho improvisado,
que se banhava ou pescava nos riachos e nos rios,
que escalava as árvores em busca de seus frutos,
que empinava pipas no ventoso mês de agosto;
o menino que brincava nas ruas de terra
de pula-sela, paradinho, ou de esconde-esconde,
que incursionava nas matas procurando tesouros.
Essa criança que eu fui, ao invés de deixá-la
à margem da longa estrada da minha vida,
eu a trouxe sempre comigo por todo o tempo,
e embora, com certas limitações, está viva e feliz.
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EU QUERIA MUDAR O MUNDO

Eu sempre pensei em mudar o mundo,
não totalmente, mas de alguma forma.
Como o faria na minha pequenez,
com a minha humildade, com o que sabia?
E pensando assim passei a escrever,
a escrever palavras que me vinham à mente,
e as agrupando formando frases,
e dando sentido a elas de forma contínua,
até que gerei o meu primeiro poema.
Se eu gostei dele? Sim, era minha cria,
e como mãe coruja, li, reli, o adornei,
e como mãe coruja aconcheguei-o a mim,
e com muito medo que rissem dele,
que achassem feio o filho que gerei,
o guardei num lugar recôndito.
Mas continuei com a minha missão,
a usar o talento que Deus me deu,
até que um dia criei coragem
e mostrei a minha prole aos amigos.
Notei em alguns certos desdéns,
bem disfarçados para não ofender;
mas vi os olhos de outros brilharem,
e seus sorridos aflorarem às bocas.
Foi então que criei coragem
e com muita alegria os publiquei
sem pretensões, sem esperança,
pois se só um leitor gostasse,
eu estaria realizado.
Faça assim também e crie sua obra!
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FÊNIX REDIVIVA

Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia procuro renovar-me,
sobrepujando as minhas agruras,
vencendo os meus temores,
esquecendo as minhas decepções,
perdoando todas as ofensas,
ignorando os mexericos,
suplantando as adversidades.
Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia procuro voar mais alto,
observando os detalhes de tudo,
admirando o que julgava insignificante,
encontrando graça nas pequenas coisas,
tendo esperança de que tudo melhore,
desejando a paz e a felicidade de todos,
amando sempre e a cada vez mais.
Como a fênix rediviva das suas cinzas,
a cada dia tenho a certeza de que
posso ressurgir quando quiser,
posso me redimir dos meus erros,
e procurar mudar minhas convicções,
ajudando a vida a ser melhor.
E como a fênix rediviva das cinzas,
posso a cada dia ser mais feliz!
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MARIA-FUMAÇA

Chegando, partindo,
trazendo, levando,
chegando, trazendo,
partindo, levando!
Soltando fumaça,
o apito soando,
queimando a lenha
formando o vapor;
trazendo alegria,
saudade deixando;
maria-fumaça,
Maria de outrora,
da infância distante
na terra natal;
maria-fumaça,
Maria de um tempo
de sonho e inocência,
que como fumaça
levada ao vento
o tempo levou!

Fonte:
Facebook do poeta.

Malba Tahan (8ª Narrativa das Mil Histórias sem Fim)


No país de Astrabad vivia outrora um rei perverso e mau chamado Balchuf. Não tendo filhos, era seu herdeiro um sobrinho — o príncipe Kabadiã —, moço desajuizado e turbulento que vivia a cometer toda sorte de loucuras e leviandades. Raro era o dia em que o futuro rei não praticava uma proeza qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhe a índole arrebatada e travessa, distraía-se com suas extravagâncias e ria-se quando ouvia contar alguma nova tropelia daquele a quem já chamavam o “Príncipe Louco”.

O povo de Astrabad antevia bem triste os dias que o aguardavam. Entregue a um monarca impiedoso e sanguinário, o país entraria fatalmente em completa decadência. Os estrangeiros já fugiam de Astrabad com receio das perseguições, e o comércio arrastava-se onerado e sem ânimo, coberto de impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendo que aquele estado de coisas levaria todos à ruína, resolveu conspirar contra o rei, proclamar a República e entregar ao mais digno a direção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas um miserável delator que se apressou em levar ao conhecimento do rei o plano deliberado pelos conspiradores. Enfureceu-se o soberano ao ter notícias de que alguns ricos súditos pretendiam subverter a ordem legal do país, e resolveu castigar implacavelmente os chefes daquele movimento republicano. Mandou degolar alguns, eliminando os mais influentes, desterrou outros, prendeu os suspeitos e confiscou os bens de todos os adeptos da revolução.

Esta vitória não lhe restituiu, porém, a tranquilidade que perdera. O fantasma da revolta continuava a povoar-lhe a mente, como um sonho mau.

“Uma tentativa destas”, pensava, “deixa terríveis germes nos corações dos descontentes e dos vencidos. Se eu não tomar uma providência enérgica, cedo terei de dominar outra rebelião. E encontrarei, porventura, quem me avise a tempo?”

Preocupado com tais pensamentos, resolveu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que ele não era tão ruim como os seus adversários faziam crer.

“Para isto”, refletiu maldoso, “vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meu sobrinho no trono. Tais loucuras há de ele praticar, tão frequentes serão os seus atos de tirania que quando eu voltar o povo respirará menos oprimido e verá em mim um soberano ponderado e justo.”

Ora, o rei Balchuf fora informado de que o Príncipe Louco dissera várias vezes a seus amigos e companheiros que quando subisse ao poder praticaria, de início, três façanhas espantosas: uma represa das águas do rio Gurgã; a construção de um castelo subterrâneo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligia ao país inteiro, esfregava as mãos de contente:

“O primeiro ato de meu tresloucado sobrinho levará o país às portas da miséria; o segundo à ruína completa; e o terceiro à revolução religiosa e à guerra civil!” E resolvido a por em execução, sem mais delongas, o plano diabólico, o rei Balchuf assinou um decreto em virtude do qual seu sobrinho Kabadiã o substituiria no governo pelo espaço de um ano. Ele — o rei — iria, durante esse tempo, fazer uma visita ao seu velho amigo Iezide II, sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo de Astrabad recebeu a nova da viagem do rei e a consequente ocupação temporária do trono pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressar dentro do prazo marcado. Preso, entretanto, por uma grave e prolongada enfermidade no longínquo país de Hajar, não pôde voltar senão quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longa ausência, notou que os seus domínios haviam progredido extraordinariamente. Um vizir que por ordem do governo veio esperá-lo na fronteira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

— Penso que Vossa Majestade não deve tentar reassumir o trono, pois o povo poderia revoltar-se e massacrá-lo.

— Como assim? — exclamou o rei. — Será possível que meus súditos prefiram ser governados pelo Príncipe Louco a ter-me no trono?

— Peço humildemente perdão a Vossa Majestade — recalcitrou o vizir. — Devo asseverar, porém, que Vossa Majestade está completamente equivocado. O príncipe Kabadiã está governando admiravelmente o país. Até hoje, não havíamos encontrado um chefe de Estado de mais ampla visão e sabedoria!

— É incrível! — protestou o rei. — E a represa do rio Gurgã? E o palácio subterrâneo? E a célebre abolição do véu feminino? Não teria o príncipe praticado nenhuma dessas tão prometidas loucuras.

O vizir explicou, então, ao rei Balchuf que tudo isso e muito mais havia feito o príncipe. A represa do rio Gurgã fora de consequências magníficas, pois as águas espalharam-se pelas terras vizinhas, fertilizando-as e tornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura, que logo se desenvolveu; o palácio subterrâneo, depois de construído, tornou-se grande atrativo, e milhares de forasteiros visitaram a capital unicamente para admirar essa nova maravilha, o que para o comércio de Astrabad fora manancial de grandes lucros, e para o país fonte de gerais prosperidades. A abolição do véu feminino fora outra medida de alcance admirável. As raparigas passaram a andar com o rosto descoberto: abandonaram a ociosidade dos haréns e puderam trabalhar livremente não só nos bazares como nas pequenas indústrias. Uma vez condenado o véu, teve o príncipe ocasião de observar que suas jovens patrícias eram belíssimas e resolveu casar-se. Escolheu para esposa uma menina, formosa e inteligente, filha de um grande sábio.

A nova princesa exerceu tão boa influência sobre o gênio de seu jovem esposo que o transformou radicalmente. Aconselhado pela fiel e dedicada companheira, o príncipe escolheu bons ministros, esforçados auxiliares, e, bem guiado e melhor secundado, soube modificar bastante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Até então não assinara uma única sentença de morte, nem mandara confiscar os bens de nenhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o rei Balchuf ficou pasmado e percebeu que havia perdido para sempre o direito ao trono; jamais poderia ele contar com o apoio de suas tropas ou com a antiga submissão de seu povo.

— Insensato fui eu — confessou ele ao vizir. — Insensato, pois não soube governar o meu povo como ele merecia! Insensato em escolher maus ministros e péssimos conselheiros! Louco era eu quando premiava os vis delatores e perseguia os bons patriotas!

— Agora é tarde para arrependimentos, ó rei — retorquiu com impaciência o vizir. — Volte Vossa Majestade para o país de Hajar e procure acabar lá sossegado os seus dias, que o povo de minha terra não poderá suportá-lo mais!

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras, o vizir afastou-se com a sua aparatosa comitiva, deixando o infeliz rei abandonado na estrada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para reconquistar o trono de seus avós, sentou-se o rei Balchuf, tomado de indizível tristeza, numa pedra à margem da estrada, e pôs-se a meditar nos espantosos erros de seu passado e na dolorosa expectativa que lhe oferecia o futuro.

— A morte — exclamou — é para o vencido o caminho mais seguro da reabilitação e do descanso. Devo, pois, morrer!

Um xeque desconhecido que passava no momento pela estrada, acompanhado de seus servos, ao ouvir as palavras de desespero do rei Balchuf, parou o camelo em que ia e assim falou:

— Ó desajuizado viandante! Por que te pões, para aí, como um louco, a falar em morrer quando, graças a Deus, há na vida remédio para todos os males? Vem comigo, pois estou certo de que acharei solução para o teu caso!

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puro
Das coisas que circundam este mundo,
Deixando à margem, voluntariamente,
Ideias más que vivem no inconsciente
Como rainhas nefastas do escuro. (1)


— Continua, meu amigo, a tua jornada — redarguiu secamente o rei. — O abismo que se acha diante de mim é intransponível! O problema do meu destino é inexplicável; os versos não me trazem alívio; os conselhos e advertências são, agora, para mim inúteis; os auxílios materiais nada poderão adiantar. Só a morte será capaz de tirar-me da negra situação em que me encontro.

— Estás enganado — contraveio o desconhecido. — Não sei ainda qual é a angústia que pesa sobre teus ombros; ignoro quais são os males que afligem a tua existência. Asseguro-te, porém, que já estive em situação muito pior do que a tua e que logrei salvação precisamente no momento em que decidira morrer. É preciso que a esperança exista sempre em nosso coração. Bem disse o poeta:

Esperança, ventura da desgraça, trecho puro do céu sorrindo às almas, na floresta de angústias e incertezas. (2)
 
“E por que não crês, ó irmão dos árabes!, na esperança? Serve a esperança de lenitivo para as dores mais torturantes e de bálsamo para as tristezas.”

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada:
nem é mais a existência resumida,
que uma grande esperança malograda! (3)


O xeque do deserto, vendo que o rei continuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

— Ouve a história de minha vida e verás se eu tenho ou não razão para confiar no futuro e exaltar a esperança.
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NOTAS
1 Versos do livro “Angústia dos Séculos”, de Adroaldo Barbosa Lima.
2 Versos de Aníbal Teófilo.
3 Do soneto “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho.


continua…

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.