domingo, 14 de maio de 2023

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXIV


A fonte, com seus arranjos,
regendo a orquestra das matas,
transmite o coro dos anjos
nos bandolins das cascatas!
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A mãe tece os sapatinhos
na janela debruçada,
ao sentir os dois pesinhos
da vida de outra alvorada!
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Ao pôr do Sol, que ironia!
Uma nuvem soluçava,
com dó da melancolia,
que ao lado dela, chorava!
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A ruga, aos poucos prepara,
furtivamente, sem voz,
o tempo mostrando a cara
no rosto de todos nós!
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As folhas secas sem dono,
pisoteadas pelo chão,
lembram que o rosto do outono,
tem cara de solidão!
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De nada, o tempo reclama,
apaga tudo que alcança;
ah, se ele poupasse a chama
da luz de minha esperança!
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De te esperar não se cansa,
minha alma sofrida e boa.
Alma que tem esperança,
tem coração que perdoa!
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Dizem que a justiça é cega;
não creio nessa premissa,
quando a verdade se nega
na voz da própria justiça!
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É quando o amor desaquece
e diz adeus, sem razão,
que o coração permanece
preso à mesma solidão!
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É triste ver que o perjuro
santifica a tirania.
Se acerta os passos no escuro,
tropeça na luz do dia!
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Minha fé não se desfaz.
E, enquanto a sorte não vem,
segue o meu barco da paz,
dando paz a quem não tem!
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Na igrejinha abandonada,
por mais que a vida não veja,
quanta fé desmoronada,
entre os entulhos da igreja!?...
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Não desistas do teu sonho,
que a sonhar, tudo se alcança;
vê, que em tudo que componho,
ponho sonhos de esperança!
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Não sou capaz de explicar,
quem o adeus mais apavora:
Se é quem parte sem chorar,
ou se é quem fica e não chora!
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Não sou tecedor de sonhos,
nem sei tecer madrigais;
deixo os dias mais risonhos,
pondo remendo em meus ais!
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Não te pervertas na vida;
que essa honradez de aparência,
é existência pervertida,
nesta e, na eterna existência!
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Na vida, há muitas surpresas;
mesmo depois da queimada,
pode haver brasas acesas
por sob a cinza apagada!
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O amor, jamais se revolta;
e onde esse amor se agasalha,
quebra os grilhões e se solta
e em todo canto se espalha!
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O amor, na sua mudez,
tem um poder tão profundo,
que pode banir de vez,
todas as mágoas do mundo!
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O tempo firme em seu posto,
severo, não me deu fuga,
até que eu visse em meu rosto
os pés da primeira ruga!
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Perdido em meio a distância,
de volta ao meu velho ninho,
no templo de minha infância,
chorei no mesmo cantinho!
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Quando a trova, é bem urdida,
a todo instante me acalma.
Tem metro e não tem medida,
é bem maior que minha alma!
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Sozinho, na tarde fria,
minha alma, versos compõe;
tece um verso à nostalgia,
do olhar do Sol que se põe!
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Suplico esmolas de luz
diante da cruz do Senhor,
e em silêncio, aos pés da cruz,
sinto a eterna luz do amor!
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Vem, ó trova, vem agora,
eu sem ti, não me concentro;
se és pequenina por fora
és gigantesca por dentro!
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Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça XXXII

Nota do blog: As Carapuças (capítulos) estão sendo publicadas aqui de modo aleatório. Caso tenha interesse em todo o livro (75 carapuças), está disponível no Wikisource, no link: https://pt.wikisource.org/wiki/O_Piolho_Viajante
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Esta pobre moça tinha de passar uma vida bem desgraçada. Acabava de viver com um homem que não lhe deixava a mínima ação livre e veio para este, que todas lhe deixava e não lhe importava nada o que ela fazia. O outro, aborrecia-o por amor de mais. Este mortificava-a por amor de menos. E nem mais nem menos eram as circunstâncias em que se via esta formosura que não encontrava um homem à sua satisfação. Só se mandasse fazer de barro, ou de cera. Eu gostava sumamente dele pela pachorra. Não lhe importava a mulher. Que ela estivesse à janela, que saísse fora, que conversasse com o vizinho, que não lhe aparecesse todo o dia, para ele era o mesmo. Não conhecia o ciúme, nem pela palavra. Era mesmo da terra, gênio e costume dos que falou Camões quando disse:

Ditosa condição, ditosa gente,
Que não são dos ciúmes ofendidos.

A mulher enraivecia-se com isto o mais que podia e dizia a si mesma: — Não serei eu aos olhos deste homem, formosa, não serei discreta, não serei bem-feita? Ele não gosta de mim. Ele não me ama. Ingrato! Morrerei desesperada. Esta indiferença é mais que morte.

Dizia eu cá com os meus botões: — Ah, que se eu fosse homem, assim como sou piolho, havia de fazer comer terra a estas minhas Senhoras, visto saber-lhes a balda (mania). Um pouco caso, um desprezo a tempo, uma meiguice momentânea, uma indiferença com cautela, que não parecesse desprezo, uma confiança certa no seu juízo e virtude! Eu lhe protesto que havia de trazê-la ligada ao amor e à obrigação, que não havia de olhar para ninguém ainda que lhe fizesse festa o Grão-Mogol. Mas alguns homens são uns tolinhos! Estão-lhes ensinando com os seus ciúmes o que elas hão de fazer, duvidam da sua probidade. Ora isto é verdade. Se todos me hão de julgar e chamar ladrão sem eu o ser, neste caso é melhor furtar.

Assim passavam a vida todos três: ele não lhe importando nada; ela dando-se-lhe de tudo e eu na chuchadeira e na observação. Até que ela disse-lhe um dia:

— Meu marido, eu não posso viver assim.

— Pois vive de outra forma. Quem te pega? - respondeu ele. 

— Isso não é resposta que se me dê - tornava ela.

— Pois vê? Que resposta queres? - tornava ele. – Dize-me que eu te darei ao pé da letra.

— Tu não me amas?

— Tu não me amas? Estás satisfeita?

— Não meu marido, não é isso que eu quero de ti. O que eu digo é que tu não gostas de mim, que não me estimas, que te é indiferente não me veres e, enfim, que ainda não te causei um só ciúme.

— Olha, mulher, eu tenho preguiça de responder a tanta coisa. Mas por te dar gosto, por esta vez sem exemplo te responderei a tudo por parcelas e então tu somarás a conta como bem te parecer, contanto, porém, que não me tornes a tomar estas contas. A respeito de eu não gostar de ti, é falso. Se eu não gostasse, não casava. Que não te estimo, é mentira, porque eu dou-te de comer. Que não faço caso de te ver a miúdo, é pela esperança e vontade que tenho de que vivas muito tempo, e como estou com tenção (propósito) de que vivamos muitos anos, temos muitos anos para nos vermos. A respeito de ciúmes, não tenho de que me queixar, pois tu já não podes casar com outro, senão quando eu morrer. Em eu morrendo, não me importa que tu cases e se gostas de alguém que te faça muito bom proveito. Se alguém gosta de ti, que muito bom proveito lhe faça. O homem, quando casa, não é para aborrecer o resto das mulheres, nem a mulher para aborrecer o resto dos homens. É para ter aquele homem por seu, para lhe guardar fé, para o ajudar nos seus trabalhos e ter parte nos seus prazeres. Mas isto não tem nada para viver com o resto do mundo em boa harmonia. Não, mulher, eu não confio mais em ti que tu mesma. Descansa, vive sossegada que eu não caso com outra enquanto tu fores viva. Olha, demais a mais, tu também já não estás muito para cobiçar, vais-te fazendo feia.

Oh, diabo, que tal disseste! Foi o demo em casa do alfacinha (habitante de Lisboa). Gritou, arrepelou-se, bateu com a cabeça pelas paredes, jurou que havia de fazer e de acontecer, botou todo o fato à rua, esbofeteou-se e não acalmou a tormenta senão com uma chuva. Pôs-se a chorar como uma Madalena, mas não arrependida do que tinha dito, porque de quando em quando tornava à mesma e o maganão (sem escrúpulos) do marido pedia-lhe com todo o amor que chorasse para desabafar, que aquilo era tudo melancolia.

Ele era um preguiçoso célebre. Podia-se ser piolho ou pulga em seu poder. Mordesse o que lhe mordesse, não se coçava só para não levantar o braço. Tinha dois funis por onde comia e bebia. Sempre estava deitado. À hora de comer, vinha o criado com o funil largo, metia-lhe na boca e lhe ia botando os bocados. Para beber água vinha o funil estreito. Nunca lavava a cara. Quando vinha o barbeiro fazer-lhe a barba, pedia-lhe que lhe desse uma demão de água pelos olhos e quando chovia punha as mãos de fora da janela e deixava-as ficar até fazer sol, que lhe as enxugasse. Tudo quanto sentia molhado no corpo enxugava ao sol e assim, nem perdia tempo, nem lenha. Se a mulher alguma noite, de raivosa, não dormia com ele, levantava-se mais tarde no outro dia, quero dizer, erguia-se para lhe fazerem a cama. Se a mulher lhe perguntava a razão disto, respondia-lhe que tinha dormido tão consolado por ter estado só, que lhe continuasse o mesmo favor por algumas noites.

Cuidava muito pouco nos seus negócios, nunca saía para fora. E se lhe diziam que por aquele modo não podia ganhar de comer, dizia a isso:

— Quanto menos trabalho, menos como. E demais, como ele me chega para ir vivendo neste prazer de preguiça, e eu não pretendo comer depois de morto, para que é ajuntar dinheiro para mais do que preciso? Isso é tirá-lo aos que precisarem. Para o meu enterro, deixo essa incumbência ao senhorio das casas, se as quiser despejadas. Quando não, que faça o que quiser que eu não hei de ser defunto de cerimônias, quando em vida é coisa que nunca tive. A respeito de minha mulher, pode comer dobrado depois de eu morrer, porque lhe fica uma boca de menos. Com os meus credores, que façam o mesmo quando morrerem. Com os amigos não tenho nada, porque trabalhar para amigos deste tempo é o mesmo que suster água numa peneira. Um amigo de agora o mais que faz, - se o amigo deixa alguém que represente ou dinheiro para representar - é ir ao enterro, pegar no caixão com o lenço no nariz e a cara para a banda. E se não tem nada disto, nem lá vai, dando por desculpa que era muito seu amigo, que não se acha com ânimo de ir àquele ato; e isto quando um destes era capaz de o matar se lhe rendesse um copo de neve. Com que tenho assentado que o trabalhar muito não serve de nada para o que trabalha; é sempre para um que não trabalha nada. Meu pai trabalhou muito, deixou-me que comer. Eu não trabalho nada. Aquele que eu deixar, não lhe ficando nada, trabalhará para comer. Não senhor, o que faz a desordem de uns terem muito trabalho e outros nenhum, é não serem obrigados todos a trabalhar para comer. Estão, muitas vezes, dez ou doze a trabalhar toda a sua vida de pé descalço para um andar em sege (carruagem), quando ele nasceu também para andar descalço. Mas estes abortos duram pouco tempo. Vem muitas vezes um de lá donde nosso Senhor é servido, anda a mourejar, passa por acesso a usurário, deixa um filho carregado com oitenta mil cruzados, este anda de sege, gasta o dinheiro, morre e deixa também um filho que torna a andar descalço como seu Avô. Enfim, somos terra e em terra nos tornamos.

Este era o modo de pensar do meu preguiçoso e ninguém o descia da burra. Vinha muitas vezes um amigo, teimava com ele que fosse tratar de tal ou tal negócio, respondia-lhe ele muito descansado:

— E tratando eu pessoalmente deste negócio, quanto tempo me levará? 

Respondia-lhe o amigo: – Oito dias.

— Suponha você que eu morro amanhã. De que serve ter principiado o tal negócio?

— Mas podes viver! - retrucava-lhe o amigo.

— Então também posso viver seis meses e o Procurador lá cuidará nisso.

— Mas, homem, o Procurador além de demorar, furta. Deixa-o furtar. São os pingos do seu ofício e eu não quero tirar a propina ao Andador.

Numa palavra, nunca o puderam tirar do seu modo de viver. Todas as diligências eram baldadas e eu gostava daquele modo de pensar.

A rapariga estava costumada a ver todos os semestres caras novas. Entrou-se ali a introduzir, em ar de vizinhança, um cavalheiro enfronhado em fidalguia, tolo de todos os quatro costados e ignorante por linha reta. Estas coisas todas deram no gosto à moça. Ele falou-lhe em amor, ela disse que sim. Ele lembrou-lhe que seria bom fugir. Ela não lhe disse que não. Concluídos os ajustes, trataram de os pôr em execução e, numa madrugada, Bolaverunt de Galhetas.

O preguiçoso acordou, não achou a mulher, mas não lhe deu isso cuidado. Não perguntou por ela. Chegou o jantar, o mesmo. A ceia, o mesmo. Até que lhe disse uma criada:

— Senhor, a Senhora fugiu.

— Pois deixe-a fugir. Não invejo a felicidade de quem foi com ela. 

— Foi aqui com o vizinho Morgado.

— Deixá-lo ser. Tomara eu saber onde eles estão para lhe dar o abraço de despedida.

— Diz o moço que sabe onde eles param.

— Oh, isso agora é outra coisa. Só isso me faria vestir.

E, com efeito, assim o fez. Pôs-se a caminho com o criado e foi dar com o melro que ficou de cara amarela, visto não ter bico. Mas o preguiçoso entrou a animá-lo e a dizer-lhe:

— Não esmoreça! Vá avante! Eu não venho incomodá-lo, venho despedir-me e dar-lhe um adeus para sempre e beijar-lhe as mãos por tanto favor. Pode ir com todo o seu vagar. Dê cá esse abraço, dê outro à senhora por mim e façam muito boa viagem.

Ora confesso que desesperei vendo tanta pachorra e ao dar do abraço passei para a cabeça do cavalheiro ignorante, e em abraços passei para estas duas cabeças e nestas verão a minha Carapuça XXXIII.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

VII Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo: 31 de agosto)


Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

Tema: 
Nacional/Estadual /Internacional 

Veteranos  e Novos trovadores: 

(Lírica/Filosófica) – LIVRO

Máximo 1 trova

Remessa pelo e-mail: tudoepossivelw7@gmail.com 

A festa de entrega de prêmios ocorrerá em data e local a serem designados pela entidade. 

Haverão 5 trovas Vencedoras, 5 Menções Honrosas e 5 Menções Especiais aos trovadores. 

Juntamente do concurso de trovas, neste ano, a UBT, Seção Cachoeira do Sul, está lançando um concurso paralelo com temática livre, poemas em versos livres, crônicas e contos. Os poemas devem conter no máximo 25 versos. As crônicas, até uma página e meia com fonte 12, e os contos, até 3 páginas.

Os poetas podem participar em uma ou mais categorias. Haverão 5 premiações aos vencedores em prosas e versos livres. 

O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Jaqueline Machado - Presidente da UBT, Seção Cachoeira do Sul. – RS

Fonte:
enviado por Jaqueline

sábado, 13 de maio de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 6)

 

A. A. de Assis (Lira dos novent’anos)

Dia desses aconteceu comigo um fato meio impactante: completei noventa anos. Isso mesmo: noventa anos. Na dúvida, fui conferir na certidão de nascimento: noventa sim, irreversivelmente.     

Antigamente eu brincava dizendo que só os velhos chegavam a tão esticada idade. Agora penso diferente: penso que somente quem já fez noventa pode ser chamado de velho. E aí o choque: acabo de ser promovido a velho. Preciso então me encaixar nesse novo status.

Dá certa angústia imaginar alguém se referindo a mim como ancião, vetusto, antigo, provecto, longevo, gasto, anacrônico, obsoleto, arcaico, usado. Também me encabula um pouco ser carimbado como idoso. Mas me chamarem de velho não me incomoda não. De velhinho, melhor ainda: acho simpático – uma forma de carinho. Logo acabarei me enquadrando: vista cansada, ouvido preguiçoso, dorzinha aqui, dorzinha ali, bengala na mão, essas coisas típicas. 

Manuel Bandeira, quando completou meio século, fez um livro de poemas chamado “Lira dos cinquent’anos”. Como não tenho mais fôlego para fazer um novo livro, faço esta croniquinha chamada “Lira dos novent’anos”. Só pra registrar o evento. 

Afinal, noventar é hoje algo bastante comum. Está acontecendo com muita gente da minha geração. Gente que conheci de calças curtas. Gente que foi da minha turma no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, no Ginásio Fidelense, no Liceu de Campos, no curso de Letras da UEM. Gente das primeiras safras de pioneiros e pioneiras de Maringá. 

Há vantagens em já ter feito noventa voltas em torno do Sol. A primeira é ter bisnetos; a segunda é ter muita história pra contar a eles e a quem mais eventualmente se interessar.       

Posso dizer, por exemplo, que viajei de carro de boi, de trem maria-fumaça, de Ford 29 (pé-de-bode), de avião teco-teco e DC-3; falei por telefone de manivela; ouvi gramofone e vitrola; rezei em latim nas missas; me emocionei ouvindo Francisco Alves, Sílvio Caldas, Carlos Galhardo,  Nélson Gonçalves, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Ângela Maria; vi filmes do Carlitos e do Gordo e o Magro em preto e branco; vi na TV o primeiro pouso do homem na Lua; tive constipado, coqueluche, catapora; tomei biotônico Fontoura, emulsão de Scott, guaraína... 

Acompanhei pelo rádio as notícias da Segunda Guerra Mundial; chorei quando o Brasil perdeu para o Uruguai a Copa de 1950; conheci Getúlio Vargas, Gaspar Dutra, Juscelino, Jânio Quadros; conheci também o primeiro prefeito de Maringá, Inocente Villava Júnior; entrevistei Dom Jaime uma semana após sua chegada à nossa diocese; dancei bolero no Aero Clube e no Grêmio dos Comerciários; tomei sorvete na Oriental e bebi cuba-libre no Bar Colúmbia do prefeito Américo; assisti à posse do primeiro reitor da UEM, Cal Garcia; escrevi para os primeiros jornais e revistas da cidade: A Hora, A Tribuna, O Jornal, Folha do Norte, Maringá Ilustrada, NP...  

Xiiiiii... vou parar por aqui, antes que me perguntem se joguei bola de gude com Olavo Bilac.

Muitísssimo obrigado à minha querida família, aos queridos amigos e amigas, a todas as pessoas que me ajudaram a chegar até aqui. Com especial carinho, beijo-lhes as mãos. 
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 13-4-2023)

Fonte:
Texto obtido no facebook do autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIV


MARCA NOSTALGIA...
 
MOTE:
Tudo se foi da lembrança...
e do nosso antigo enredo
nem mais a marca da aliança
se acha gravada em meu dedo.
Humberto Del Maestro
Serra/ES

GLOSA:
Tudo se foi da lembrança...
Nosso amor chegou ao fim,
não restou nem a esperança
que eu tinha dentro de mim!
 
Do nosso amor com carinho,
e do nosso antigo enredo
nada restou no caminho
além da mágoa e do medo!
 
Sigo só, em  minha andança,
sem nada a me acompanhar,
nem mais a marca da aliança
quis comigo continuar!
 
Eu vivo sem alegria,
sofrendo, sempre, em segredo...
A marca da nostalgia
se acha gravada em meu dedo.
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MINHA FORTUNA
 
MOTE:
Eu tenho mais que ninguém,
fortuna de bens diversos:
– No bolso nenhum vintém...
– No sonho, milhões de versos...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Eu tenho mais que ninguém,
as minhas preciosidades
e o interior delas contém,
muito de amor e saudades!
 
Acumulo nesta vida
fortuna de bens diversos:
o beijo da despedida
e estrelas dos universos!
 
Sou rico e feliz, porém
de riqueza diferente:
- No bolso nenhum vintém,
mas o coração contente!
 
Costumo viver meu dia
lembrando amores dispersos,
e guardo, com alegria,
no sonho, milhões de versos!
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SOU TEU  MOMENTO...
 
MOTE:
Meu maior contentamento
é quando amorosa dizes,
que eu sou o melhor momento
dos teus momentos felizes!
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
Meu maior contentamento
é quando escuto tua voz
num eterno juramento,
que fazes amor...por nós!...
 
Esse momento sublime
é quando amorosa dizes
que o meu amor te redime,
que ameniza  tuas crises.
 
É doce o encantamento,
quando falas com fervor
que eu sou o melhor momento
dos teus instantes de amor!
 
Eu gosto de ser amado!
Gosto de plantar raízes
e ser o rei, no reinado
dos teus momentos felizes!
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SEM HUMILHAR...
 
MOTE:
Nas lutas do seu viver
guarde o troféu merecido...
Virtude é saber vencer
sem humilhar o vencido!
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP

GLOSA:
Nas lutas do seu viver
problemas não faltarão,
mas você precisa ver,
com os olhos do coração!
 
Sempre que for vencedor,
guarde o troféu merecido...
guarde-o com ternura e amor,
que jamais será esquecido!
 
Sempre há um novo renascer,
quando termina uma luta.
Virtude é saber vencer
com honra, qualquer disputa!
 
Mais valor tem a vitória,
e ficará comovido,
se usufruir sua glória
sem humilhar o vencido!
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CAMINHOS...
 
MOTE: (Quadra)
Partir, ó alma, que dizes?
colher as horas, em suma...
mas os caminhos do outono
vão dar em parte nenhuma!
Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

GLOSA:
Partir, ó alma, que dizes?
Sigamos rumo às estrelas,
não é bom criar raízes,
pois nos impedem de vê-las!
 
Não basta, eis a verdade,
colher as horas, em suma...
para ter felicidade,
desfrutemos uma a uma!
 
O tempo traz abandono,
deixa cinza o nosso dia
mas os caminhos do outono
trazem ainda alegria!
 
Sofremos ao ver chegar
o inverno cheio de bruma,
pois seus caminhos vão dar...
vão dar em parte nenhuma!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

George Abrão (Reminiscências)

Hoje eu me peguei a recordar dos bons momentos da minha vida, porque dos maus já me olvidei, já os enterrei bem fundo nos recônditos da minha memória.

As primeiras lembranças que me vieram foram as da convivência com os meus pais e com os meus irmãos. Como fomos felizes em nossa modesta vida, como nos divertíamos com o pouco que tínhamos. Hoje, nossos filhos e netos têm de um tudo, só não têm a liberdade que tivemos: nadar no rio, colher frutas no campo do Cerrado, jogar futebol no campinho de terra, subir nas árvores, pescar nos riachos, brincar na rua, andar descalços, bater os pés no cinema, enfim, viver de verdade!

O cheiro dos pães que minha mãe fazia, quando a assar no forno de tijolos; os doces de frutas e as bolachinhas caseiras; o milho-verde assado no brasido do fogão de lenha; o bolo de fubá feito na chapa, em panela de ferro; a comida especial aos domingos e dias festivos; os doces das festinhas de aniversários (ah! o cajuzinho!); o doce de gila que minha avó fazia (eu o chamava de doce de vidro); as balas de ovos e as cocadinhas de mel que eu comprava na loja do Sr. Otto Hoffmann; os sorvetes do Bar Maracanã ou do Bar do Mansur; as frutas que comíamos nos pés, sem agrotóxicos; a água do Chafariz, salobra, mas refrescante; as laranjas gigantes, produzidas na Chácara do Saraiva, nas quais fazíamos uma cavidade, preenchíamos com açúcar e púnhamos sobre a chapa do fogão para assar e formar um delicioso doce; o perfume das uvaias do mato que se sentia a grande distância; e tantas coisas mais que eram privilégios da época.

E quando parece que tudo se perdeu nas brumas da memória, eis que, nos meus sonhos ou nos meus devaneios, para a minha felicidade, tudo volta e como se fosse agora, sinto os aromas, os sabores, as sensações, as alegrias do meu tempo de criança e sinto-me criança, como se esse tempo não houvesse passado.

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) 01

 

Guerra Junqueiro (Um nome inscrito no céu)

Era uma vez um pobre mendigo, que bateu à porta de uma humilde cabana a pedir esmola, para poder continuar a sua viagem. Mas não vendo, nem ouvindo ninguém, abriu a porta de mansinho e entrou no casebre; viu então uma pobre velhinha muito doente, que lhe disse:

- Ai! Não te posso dar nada, porque nada tenho.

E foi-se embora o mendigo, voltando dali a instantes, a bater à mesma porta.

- Pelo amor de Deus! – gritou a velhinha - já te disse que não tenho nada que te dar.

- Foi por isso que eu voltei. – disse em voz baixa o mendigo.

E, aproximando-se da velha carinhosamente, tirou do bolso, pondo-os em cima da mesa, muitos bocados de pão e algumas moedas de dez réis, que lhe tinham dado depois de ter estado com a velha a primeira vez.

- Aqui te fica isto, santinha - disse-lhe ele afetuosamente, indo-se embora sem que a pobre mulher tivesse tempo de lhe agradecer.

Não sabemos qual era o nome do mendigo; mas os anjos escrevê-lo-ão no Paraíso, e mais tarde nós o viremos a saber

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Guerra Junqueiro. Contos para a Infância. Publicado originalmente em 1877.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LIV

QUANDO JÁ NADA NOS RESTA 
 
Quando já nada nos resta
É que o mudo sol é bom. 
O silêncio da floresta
É de muitos sons sem som.

Basta a brisa pra sorriso.
Entardecer é quem esquece. 
Dá nas folhas o impreciso, 
E mais que o ramo estremece. 

Ter tido esperança fala
Como quem conta a cantar. 
Quando a floresta se cala 
Fica a floresta a falar.
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Que suave é o ar! Como parece
Que tudo é bom na vida que há!
Assim meu coração pudesse
Sentir essa certeza já.

Mas não; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma é literatura
E tudo acaba em nada e verso
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Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora
Inclina-se na haste; e depois volta.
Que bem a fantasia se me solta!
Com que vestígios me descobre agora!

Tédio dos interstícios, onde mora
A fazer de lagarto. - O muro escolta
A minha eterna angústia de revolta
E esse muro sou eu e o que em mim chora.

Não digas mais, pois te ignorei cativo...
Teus olhos lembram o que querem ser,
Murmúrio de águas sobre a praia, e o esquivo
Langor do poente que me faz esquecer.

Que real que és! Mas eu, que vejo e vivo,
Perco-te, e o som do mar faz-te perder.
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RELÓGIO, MORRE
  
Quem vende a verdade, e a que esquina? 
Quem dá a hortelã com que temperá-la? 
Quem traz para casa a menina 
E arruma as jarras da sala? 

Quem interroga os baluartes 
E conhece o nome dos navios? 
Dividi o meu estudo inteiro em partes 
E os títulos dos capítulos são vazios... 

Meu pobre conhecimento ligeiro, 
Andas buscando o estandarte eloquente 
Da filarmônica de um Barreiro 
Para que não há barco nem gente. 

Tapeçarias de parte nenhuma 
Quadros virados contra a parede ... 
Ninguém conhece, ninguém arruma 
Ninguém dá nem pede. 

Ó coração epitélico e macio, 
Colcha de crochê do anseio morto, 
Grande prolixidade do navio 
Que existe só para nunca chegar ao porto.
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Renego, lápis partido,
Tudo quanto desejei.
E nem sonhei ser servido
Para onde nunca irei.

Pajem metido em farrapos
Da glória que outros tiveram,
Poderei amar os trapos
Por ser tudo que me deram.

E irei, príncipe mendigo,
Colher, com a boa gente,
Entre o ondular do trigo
A papoula inteligente.
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Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.
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Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.
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Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,

Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,

Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
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Se eu pudesse não ter o ser que tenho
Seria feliz aqui...
Que grande sonho
Ser quem não sabe quem é e sorri!

Mas eu sou estranho
Se em sonho me vi
Tal qual no tamanho
O que nunca vi...

Fonte:
Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Tempos muito difíceis)

 Ora, eis o que quero: fatos. Ensinem a esses meninos e meninas apenas os fatos. Nada além dos fatos. Da vida, precisamos somente dos fatos. Não plantam nada mais. Erradique todo resto. As mentes dos animais racionais só podem ser formadas com base nos fatos. 

É assim, com essa repetição da palavra “fatos” que se inicia "Tempos difíceis",  um livro satírico publicado no período da revolução industrial, por Charles Dickens. Trata-se de uma crítica à filosofia utilitarista, baseada em fatos, capitalismo e positivismo, defendida pelos britânicos Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Filosofia essa adotada pela Inglaterra, que era, nesse período, o maior império do mundo, e através de sua influência, exportava essa ideia a outros países. 

A história se passa na cidade fictícia de Coketown.

Um dos personagens centrais é o senhor Thomas Gradgrind, dono de uma escola que aplica essa ideia utilitarista nas aulas. Ele era pai de cinco filhos, mas na história só aparecem os dois mais velhos: a Luiza e o Tom. Tanto seus filhos quanto os demais alunos só aprendiam as disciplinas consideradas úteis, lógicas e necessárias para que, futuramente, se tornassem trabalhadores lucrativos e racionais, podendo assim contribuir com a felicidade do maior número de pessoas. Pois o lema do utilitarismo era "a máxima felicidade para o maior número de pessoas". O que importava era a maioria, mesmo que isso custasse o sacrifício da minoria. Toda solução era dada de forma racional, fria e numérica. Se um precisasse morrer para dois viverem melhor, então assim era feito. 

Nessa escola, as brincadeiras, a contação de histórias e a fantasia, eram consideradas desnecessárias e perigosas na formação de crianças. Tanto, que Cecília, uma menina abandonada por pais circenses é adotada pelo senhor Thomas, e tem por ele a sua educação reiniciada segundo a sua filosofia de vida.

O tempo passou, os filhos cresceram. O senhor Gradgrid tornou-se um sujeito mais flexível em seus ideais. Já a filha Luiza, torna-se uma mulher rígida, mantendo em si, a visão de mundo segundo o que aprendeu quando criança. Tomas, digamos assim... Não tinha muita firmeza de caráter. 

Cecília não perdeu seus sonhos de infância. Mas apesar de tudo, ao seu modo, eles tentavam se entender em seus próprios desentendimentos.

O clássico, "Tempos difíceis" mantém sua atualidade. Em meio à crise capitalista que assola parte do mundo com números crescentes de desempregados e cortes de gastos dos Estados - e, consequentemente, de empobrecimento da população. 

O narrador é muito satírico ao descrever as personagens, pois parece considerar que pessoas não são como máquinas capazes de viver somente de cálculos, fazendo tudo de modo lucrativo. A razão unicamente baseada em fatos desumaniza, já que para estar vivo, é preciso sentir, e para uma nação evoluir é preciso, às vezes, errar os cálculos matemáticos do que parece ser o certo. Ou seja, o utilitarismo impede que pessoas sejam, de fato, pessoas. Portanto, o desejo de proporcionar felicidade à base de uma racionalidade fleumática, sugerido pelos filósofos  Jeremy Bentham e John Stuart Mill, não existe. E é favorável apenas a um seleto número de irracionais perdidos de si. 

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça X

Também não era das piores esta cabecinha. Este tal dono da loja já tinha sido caixeiro de três. Era examinado na ordem e ricaço. Ninguém sabe o que é comprar água nos barris e vendê-la aos copos: é um maná. Este meu amigo então pegava em tudo o que era ganhuça (
ganho), já se sabe, licitamente, e sabia bem do negócio. Açúcar, nunca o comprou senão àqueles que o furtavam, bem entendido, mais em conta. Valha-me Deus, a gente não há de ser tola! Fazia café de alfarroba torrada que ninguém o conhecia. Antes era gabado pelo coberto, sem fazerem a descoberta. Tinha uma casa na qual lhe vendia uma criada velha o chá já fervido, mas ainda muito capaz. E não lhe tirava o suco (como diz certo Autor) sete vezes. O mais que chegava era a cinco, e ainda o vendia depois para tirar nódoas.

Fazia cevadinha e misturava-lhe farinha de favas que fazia muito boa união, além de lhe dar o gosto. O chocolate era a melhor coisa que ele tinha. Botava-lhe graxa de forma que era gordo e substancial. Tinha uma receita de fazer pão-de-ló sem ovos. Que muita gente que jejuava, (desta pouco escrupulosa), tomava a sua xícara de chocolate e o seu pão-de-ló e ficava jejuando.

Fazia um licorzinho de amora que era uma suspensão! Então e jeito para acarinhar fregueses! A isso ninguém lhe chegava. Vendia logo pela manhã os seus dois tantos de aguardente. Daí entravam os almoços que era um nunca acabar. Havia muitos que nunca almoçavam em casa. Era-lhes mais fácil, quando tinham só um tostão, deixarem toda a família em jejum, que assaz com um tostão de pão matariam a fome, só por virem para o botequim conversar e tomar o seu café com a sua torrada. O que é o costume! O ponche, à noite, era o chafariz d'El-Rei com todas as suas bicas. Não havia mãos a medir. E então que gritaria! Ah, senhor Manuel, mais forte! Outro acolá. Menos aguardente. Outro dali. Bote-lhe capilé. Venham bolos. Venha licor. Oh rapaz, paga-te... Era um temporal desfeito e uma parte iam sem pagar, outros mandavam assentar. E o malditinho do negócio era tão seguro que sempre se ganhava. Então que histórias se não contavam ali! Que novidades! Que mentiras! Que desaforos! Era um gosto.

Ia ali um que tinha namorado todas as moças daquele bairro. Sabia-lhes os nomes, as idades, os teres, os pais, as faltas, os acréscimos. Que guapo rapaz para fazer um mapa da Índia! E andava por ali perdido! Também havia outro que era muito esperto. Não lhe escapava lenço. já por fim dava vontade de rir ver todo o mundo a queixar-se e a assoar-se à mão porque havia alguns que em lhe furtando o primeiro ficavam logo nesse estado. E outro que inculcava onde havia partidas com Senhoras que davam o seu chá, cantavam modinhas e faziam as suas rifas! E outro que secava a gente para lhe assinarem uma obra que ele queria imprimir, intitulada Arte de sacar dinheiro. Que julgo seria obra muito perfeita porque ele tinha muito jeito. Ainda pilhou alguns. Mandou-a imprimir em Salamanca, por ser mais barata a impressão e estava-lhe tirando as chapas um Albardeiro. Há de ser bonita obra depois de acabada. Queira Deus que fique bem encadernada. Também ia lá um que ensinava a dançar e tinha botado grandes discípulos. Um macaco que dançava na corda, ele é que o tinha aperfeiçoado. Fazia décimas com os pés e andava compondo a segunda parte da fofa por pontos (já tinha três na cara de uma navalhada que lhe deu um discípulo que era muito seu amigo e uma boa alma) e tudo com os pés. O dono da casa aprendia a fazer peloticas  (bolinhas de prestidigitação) e já estava muito adiantado. Raras vezes perdia quando jogava e sabia fazer tombar os dados para onde queria, sem os chumbar. Eu digo o modo, que pode ser que sirva para algum miserável não cair. Quando queria que mostrassem menores metia os maiores debaixo de água, isto é, só metade do dado. E quando queria que servissem, tirava-os, limpando-os muito bem. E enquanto o osso conservava a umidade, que sempre era a sua meia hora, tombavam para ali. E ainda que os queixosos os partissem, nada achavam. Sabia fazer muitas coisas destas. Tinha um anel com seu espelho em lugar de retrato, virava-o para a palma da mão e com um baralhinho de cartas a jogar a lasca, vendo todas as que estavam por baixo, nem um cavalo de cortesias o fazia melhor numa praça. Mas, enfim, tudo isto lhe tinha custado dinheiro para o saber e todos devem ter prendas em que se fiar se lhes suceder uma desgraça. Era verdadeiramente um refinado brejeiro sem mistura alguma. Ali não havia joio nem ervilhaça, era trigo de Prioste. Tinha começado por garoto, era garoto e havia de acabar em garoto. Com bem o digamos. Também não era escrupuloso. Se lhe levassem uma lâmpada a vender, sendo barata, não perguntava de que Igreja era. Tinha trinta anos, tinha-se confessado vinte vezes e vinte vezes tinha estado no segredo por bagatelas. Mas Padre e Ministro nunca tinham ouvido da sua boca senão um não senhor. Podem supor que tal era a bestinha! Pobre não entrava na sua loja que não levasse esmola, nem também rico que não saísse pobre.

Ali havia toda a qualidade de isca e de anzol, de forma que ultimamente já era homem de bem, já tinha dinheiro, e ninguém perguntava como ele o tinha adquirido. E nisto acho eu razão. Cada um adquire-o como pode ou lhe deixam, uns com mais, outros com menos trabalho. Já tinha quatro botes seus e estava para pôr uma taberna. Aos Domingos pedia para a caridade e fazia-a muita gente. Também tinha duas seges de aluguel e quando eu me retirei da sua cabeça, andava para pôr uma loja de barbeiro para vender barbas pelo grosso, isto é, fazenda atacada.

À loja ia ali um Procurador de causas, homem já velho, de cabelo seu espigado. Tratava-lhe de uma demanda de interesse. Levava horas e horas a conversar com ele. Eram tão amigos. Um dia de anos foi o tal lá jantar. Já se sabe, muito comer, muito beber. Depois de jantar foram ambos para a cama, dormir a sesta. Logo reconheci o tal Procurador, que era o mesmo em cuja cabeça minha mãe me tinha parido. Os mesmos animais têm amor à Pátria. Eu não me pude vencer. O gosto de tornar aos lares onde tinha visto a primeira luz e chuchado o primeiro sangue, me meteu cobiça de passar àquela cabeça a que servirá a Carapuça XI.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.