quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 21

Vanice é de Curitiba/PR
 

Lauro Grein Filho (A xícara de azeite)

Convencido e presumido de um bom cabedal médico, respaldado por um  curso laureado e uma especialização no "Miguel Couto", do Rio, animado e motivado por todas as ilusões que envaidecem os anos da mocidade, iniciava em Castro os primeiros passos da jornada.

Não tinha mais que uma semana na cidade, que tanto me desconhecia quanto eu desejava conquistá-la, quando recebi o chamado lá pelas onze da noite. Vinha com o táxi, cabendo ao motorista o encargo único de me conduzir, nada sabendo sobre o doente, o caso, a ocorrência. Apenas o nome e o endereço do cidadão, pessoa ilustre e conhecida na praça. Chegando à residência, nela ingressei firme e forte, dono da verdade, da ciência e de tudo. No quarto e na cama do casal, um menino de quatro anos choramingava suas dores para a plateia de sete adultos e três menores. É proverbial a solidariedade dos sírios, nos infortúnios da saúde. Não faltavam, pois, parentes e amigos, todo um clã, irmanado na mesma preocupação, unidos no mesmo lamento, sofrido no mesmo pranto.

À minha presença, o guri aumentou o choro no timbre e na intensidade. Esclareceram-me, então, que havia caído da mesa e machucado o braço. Após algum empenho consegui por fim acalmá-lo, pondo-o dócil e amigo em minhas mãos. O exame cuidadoso não revelou, nos sinais específicos, qualquer indício de fratura ou luxação. Tratei, pois, de serenar o ambiente, explicando a benignidade de uma simples contusão, sem gravidade e sem importância, coisa banal, de recuperação espontânea em poucas horas. A confirmar minhas palavras, o moleque, já refeito do médico e do susto, ensaiava alguns sorrisos para o auditório a esta altura tranquilizado.

Aprontava-me em instantes para sair, certo da missão encerrada e bem cumprida, quando uma voz retumbou autoritária pelos quatro cantos da sala: - "Mas então, doutor, o Sr. não vai fazer nada?". Era uma senhora gorda, idosa e bem disposta, avó materna do moleque.

- Minha Senhora, como eu disse...

- Olha, doutor, bom para isso é esfregação de azeite quente. Vamos acudir a criança.

E enquanto me aturdia na surpresa e na indecisão, a devotada criatura dirigiu-se resolutamente à cozinha, de lá trazendo, rápida e triunfante, uma detestável xícara de azeite morno.

Para não me alterar na inconveniência e na descortesia, mergulhei corajosamente os dedos no unguento repulsivo, passando a lambuzar com ele o braço do garoto.

A cena durou uns cinco minutos, o mínimo necessário para o contentamento de todos e a aprovação geral da casa. Preço caro em troca da imagem preservada, a simpatia conquistada, a lição apreendida.

Lavei as mãos para me livrar da gordura incômoda, ouvindo do pai agradecido a firase irrecorrível que haveria de me acompanhar trabalhos afora: “Por enquanto muito obrigado, depois nós acertamos". Amavelmente fui me despedindo, um por um, entrevendo na clareza dos semblantes as evidências de que deixava o campo são e salvo.

Da esclarecida senhora mereci um confortável abraço, que beijo não se dava a esmo no passado. As aparências, resguardei-as como devia. A verdade, entretanto, é que, naquela casa e naquela noite, deixava no braço inocente daquele guri moreno uma parte das minhas ilusões, outro tanto do meu orgulho, das minhas convicções e um pedaço de mim mesmo. Muitas e muitas vezes depois, ao longo da clínica interiorana, a experiência me levaria ao melhor convívio com tais maneiras, admitindo-as em nome de uma cultura autenticamente nossa, criada e embalada no mundo simplório de nossos avós.

Mas o primeiro confronto foi por demais impiedoso para que dele facilmente me esquecesse.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao Entardecer) – 3


A carícia do Nordeste
às lindas praias morenas
é magia que reveste
as suas noites serenas.
= = = = = = = = = 

Acorda a nossa consciência
o drama da moto-serra
que mesmo em sua inocência,
sela o destino da Terra.
= = = = = = = = = 

Após trabalho incessante,
num pipilo, o passarinho
anuncia, triunfante,
a festa de um novo ninho.
= = = = = = = = = 

A rosa, o lírio, a violeta
dão o tom com seus olores,
e o jardim abre a retreta
em sinfonia de cores.
= = = = = = = = = 

A roseira solferina
num cantinho do jardim,
guarda os sonhos da menina
que o tempo mudou, em mim.
= = = = = = = = = 

Até por gênios deixada,
a floresta a vida encerra,
e deserta, devastada,
sela o destino da Terra.
= = = = = = = = = 

Dizemos que o tempo voa,
e enquanto filosofamos,
ele vive aí... à toa...
e somos nós que voamos.
= = = = = = = = = 

Envolto em nívea camada,
sonha, em repouso, o jardim.
Vem o sol, derrete a geada…
Negro, o sonho chega ao fim.
= = = = = = = = = 

Fala a gota que se esconde
no cálice de uma flor;
fala o mar, tudo responde,
quando fala o Criador,
= = = = = = = = = 

Garoto à fome minguando,
na calçada sentadinho,
e o vendedor apregoando;
"Olha gente, o pão quentinho!"
= = = = = = = = =

Na capelinha da aldeia,
os contornos esfumados
brilham à luz da candeio
da fé dos seus devotados.
= = = = = = = = = 

Na praça, neste banquinho,
passou correndo a amizade;
sentou o amor, só um pouquinho,
ficou pra sempre a saudade.
= = = = = = = = = 

Nas águas de um turvo horrível
espelha-se um céu cinéreo,
onde a ganância, insensível,
já pôs também seu império.
= = = = = = = = = 

  Nem sonhos maus acontecem
nas noites mais tormentosas.
Se teus abraços me aquecem,
durmo num leito de rosas.
= = = = = = = = =

No mar a lua se espelha,
mas o gigante, enciumado,
reduz a cocos de telha
o lindo disco prateado.!
= = = = = = = = = 

Num estranho automatismo,
lá do fundo, os meus gemidos
voltam ò tona do abismo,
procurando os teus ouvidos,
= = = = = = = = = 

Parecemos - tu chorando
e eu num discreto lamento -
dois violinos ensaiando
a charanga atroz do vento.
= = = = = = = = = 

Se enfrento a agressão do frio,
do gelo pelos caminhos,
é porque me refugio
sob o sol dos teus carinhos.
= = = = = = = = = 

Se me abrigo no teu braço
das noites na travessia,
até da insónia, o cansaço
torna doce a companhia.
= = = = = = = = = 

Sem motivo, sem palavra,
no adeus insinuado em calma,
deste o golpe que escalavra
os pilares de minha alma.
= = = = = = = = = 

  Sinto, e é quase transparente
que estás a te divertir,
mas falta ao meu ser carente
coragem pra conferir.
= = = = = = = = =

Talvez um simples "Bom dia"
dito em casual diapasão,
seja a nota de alegria
que faltava ao teu irmão.
= = = = = = = = = 

Toda enfeitada, a capela
faceira põe-se a esperar
de algum artista a chancela
que a venha imortalizar.
= = = = = = = = = 

Uma certeza me encanta
e traz minha alma aquecida:
Se o orvalho reanima a planta,
a fé é o orvalho da vida.
= = = = = = = = = 

Você, absurda e volúvel,
que ora quer, ora recusa,
é, o grande enigma insolúvel
em minha vida confusa.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora.

Silmar Böhrer (Vem chegando a invernia)

Vento gelado na pradaria, 
vem chegando a invernia, 

sombra invade e serrania, 
vem chegando a invernia, 

na friagem bate a correria, 
vem chegando a invernia. 

Noite, névoa e ventania, 
vem chegando a invernia, 

geada branqueou a ramaria, 
vem chegando a invernia, 

a inverneira sempre arredia, 
vem chegando a invernia. 

Vem chegando a invernia 
com seus nacos de poesia, 

vem chegando a invernia, 
pinhão na chapa, vinhos, alegria, 

vem chegando a invernia, 
lenha no fogo, dona Maria. 

Fonte:
Enviado pelo autor.

Machado de Assis (Singular ocorrência)

Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na Igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

— De preto?

— Justamente! Lá vai entrando. Entrou.

— Não ponha mais na carta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há de ser de muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz .

 — Deve ter quarenta e seis anos.

 — Ah! Conservada. Vamos lá! Deixe de olhar para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?

— Não.

— Bem, o marido ainda vive. É velho?

— Não é casada.

— Solteira?

— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará. Morava na Rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje, modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido afogado, escorrido, sem espavento (de modo pomposo), arrastava a muitos, ainda assim.

— Por exemplo, ao senhor.

— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na Bahia, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e resignada. Quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.

— Apesar disso, a Marocas...?

— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem pressa, conto-lhe uma coisa interessante.

— Diga.

— A primeira vez que ele a encontrou, foi à porta da loja Paula Brito, no Rocio. Estava ali, viu à distância uma mulher bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo, estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número ali escrito. Andrade disse-lhe que do outro lado do Rocio, e ensinou-lhe a altura provável da casa. Ela cortejou com muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta.

— Como eu estou.

— Nada mais simples: Marocas não sabia ler. Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a atravessar o Rocio, que ainda não tinha estátua nem jardim, e ir à casa que buscava, ainda assim perguntando em outras. De noite foi ao Ginásio; dava-se a Dama das Camélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma criança. Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.

— Como a Dama das Camélias.

— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. “Estou mestre-escola”, disse-me ele um dia; e foi então que me contou a anedota do Rocio. Marocas aprendeu depressa. Compreende-se; o vexame de não saber, o desejo de conhecer os romances em que ele lhe falava, e finalmente o gosto de obedecer a um desejo dele, de lhe ser agradável... Não me escondeu nada; contou-me tudo com um riso de gratidão nos olhos, que o senhor não imagina. Eu tinha a confiança de ambos. Jantávamos às vezes os três juntos; e... não sei por que negá-lo, — algumas vezes os quatro. Não cuide que eram jantares de gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas gostava da linguagem afogada, como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se intimidade entre nós; ela interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher, da filha, dos hábitos dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se tivera outros, se era capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio de o perder, que mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, numa festa de S. João, o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um jantar e um baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio — “Janto com minha mãe” — e disse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João, ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o delicadamente com a mão.

 — Gosto desse gesto.

— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para a Gávea. De caminho disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas, contou-me as últimas frioleiras (frivolidades) de ambos, falou-me do projeto que tinha de comprar-lhe uma casa em algum arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro; e, de passagem, elogiou a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do que o estritamente necessário. “Há mais do que isso”, disse-lhe eu, e contei-lhe uma coisa que sabia, isto é, que cerca de três semanas antes, a Marocas empenhara algumas joias para pagar uma conta da costureira. Esta notícia abalou-o muito; não juro, mas creio que ficou com os olhos molhados. Em todo caso, depois de cogitar algum tempo, disse-me que definitivamente ia arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da Marocas, até que as festas acabaram, e nós voltamos. O Andrade deixou a família em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar alguns papéis urgentes. Pouco depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro, ex-agente de certo advogado a pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil réis. Era um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três mil réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores. Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.

— Olhe! Lá vem ela saindo. Não é ela?

— Ela mesma: afastemo-nos da esquina.

— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem um ar de duquesa.

— Não olhou para cá, não olha nunca para os lados. Vai subir pela Rua do Ouvidor...

— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.

— Vamos ao caso. O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara, ou antes única, uma coisa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um pobre-diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que, na véspera, perto das dez horas da noite, encontrara no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo, e muito embrulhada num xale grande. A dama vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rente com ele, fitou-lhe muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre-diabo imaginou que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples, viu logo que não era coisa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse... "Olhe, acrescentou ele, para V. Sa é que era um bom arranjo". Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço (indivíduo amancebado). Mas o Leandro teimou; era na Rua do Sacramento, número tantos...

— Não me diga isso!

— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez, nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou, nem o que sentiu. Afinal, teve força para perguntar se era verdade o que estava contando; mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe segredo, dizendo que ele, pela sua parte, era discreto. Parece que ia sair; Andrade deteve-o, e propôs-lhe um negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil réis.  —"Pronto!" — "Dou-lhe vinte mil réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma".

— Oh!

— Não defendo o Andrade; a coisa não era bonita; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens. Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma tal vingança.

 — O outro aceitou?

— Hesitou um pouco, meio que por medo, não por dignidade, mas vinte mil-réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos... Marocas estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta, na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o Leandro; Marocas empalideceu. — "É esta senhora?" perguntou ele. — "Sim, senhor", murmurou o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil réis e deu-a; e, com a mesma afetação, ordenou-lhe que se retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e, naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela não confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de lhe dizer as coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela arrojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu.

 — Na verdade, um sujeito reles, apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela?

— Não.

— Não?

— Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o Andrade veio à minha casa, e esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes. Fiquei estupefato, mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova até à evidência? Não lhe conto o que ouvi, os planos de vingança, as exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas crises. Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir à realidade; mas a realidade vinha, — a palidez de Marocas, a alegria sincera do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!

— Há uma frase de teatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: "a nostalgia da lama".

— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas apareceu-nos em casa uma criada de Marocas, uma aia preta, muito amiga da ama. Andava aflita em procura do Andrade, porque a Marocas, depois de chorar muito, trancada no quarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive o Andrade, cujo primeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo, que fôssemos descobrir a ama. "Não é costume dela sair?" perguntou o Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que não era costume. "Está ouvindo?" bradou ele para mim. Era a esperança que de novo empolgara o coração do pobre-diabo. "E ontem?..." disse eu. A preta respondeu que na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão do Andrade, cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo. Saímos em busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível encontrá-la; fomos à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De manhã voltamos à polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era amigo do Andrade, que lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a ligação do Andrade e da Marocas era conhecida de todos os seus amigos. 

Pesquisou-se tudo; nenhum desastre se dera durante a noite; as barcas da Praia Grande não viram cair ao mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os seus recursos, e nada. Não lhe digo o estado de aflição em que o pobre Andrade viveu durante essas longas horas, porque todo o dia se passou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença de um possível desastre, que parecia justificar a moça. Ele perguntava-me, a cada passo se não era natural fazer o que fez, no delírio da indignação, se eu não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na véspera tentara provar que era falsa; o que ele queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.

— Mas, enfim, descobriram a Marocas?

— Estávamos comendo alguma coisa, em um hotel, eram perto de oito horas, quando recebemos notícia de um vestígio: — um cocheiro que levara na véspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela entrou em uma hospedaria, e ficou. Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro ao Jardim Botânico. O dono da hospedaria confirmou a versão; acrescentando que a pessoa se recolhera a um quarto, não comera nada desde que chegou na véspera; apenas pediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos para o quarto, o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca, e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.

— Tudo se explicou?

— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão do governo, a afeição era ainda a mesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já a mesma intensidade. Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia aniversário. Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto?

— Realmente, há ocorrências bem singulares, se o senhor não abusou da minha ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...

— Não inventei nada; é a realidade pura.

— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgia da lama.

— Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.

— Então por que desceria naquela noite?

— Era um homem que ela supunha separado, por um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo. . . Enfim, coisas!

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884.
Disponível em Domínio Público

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Jota Feldman (Analecto de Trivões n. 12)

 

George Abrão (A casa da Felisberta)

Nada havia e bonito, de estilo arquitetônico, nem de especial na casa situada numa das esquinas da Rua Almeida Salim. Era uma velha casa de madeira sem pintura e já quase em ruínas. O que me impressionavam eram as histórias que eu ouvia sobre a sua antiga proprietária: dona Felisberta, que era uma proxeneta negra, sendo a sua casa um bordel.

Apesar das suas funções e da destinação da casa, ela sempre exigia respeito e ordem no eu lupanar. Ai de quem desacatasse as normas, fosse uma das suas meninas ou um dos frequentadores, ela tomava as devidas providências. Exigia sempre respeito à vizinhança e aos transeuntes.

Higiene também era primordial. Para tanto, as meninas, além do ofício a que se propunham, também recebiam instruções sobre cuidados pessoais e limpeza doméstica, Recebiam também ensinamentos sobre culinária (Felisberta era uma excelente cozinheira).

Pelo exposto, Felisberta recebia tratamento respeitoso por parte da sociedade jaguariaivense, tanto que, em determinados dias do ano, seu bordel era fechado e ela mandava as meninas passear (com exceção de algumas delas, que ficavam para auxiliá-la).

Então preparava um banquete composto de saborosas iguarias e bebidas finas que era servido em uma enorme mesa, sobre toalhas de linho, porcelana inglesa, pratarias, e cristais.

Os convidados eram os senhores mais importantes da cidade, os mesmos que frequentavam o seu bordel, acompanhados pelas suas esposas.

Os convites para tais festas eram muito disputados.

Dona Felisberta, símbolo da liberdade em uma época austera com a moral e os bons costumes.

Fonte:
Enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Avessos da invenção)

PIRIBÊNCIO RODRIGUES FAISÃO chegou apressado na recepção do consultório dentário onde havia marcado uma sessão com a sua dentista. Estava meia hora atrasado. Depois de se dirigir à moça da recepção, dar uma desculpa esfarrapada, recebeu uma senha. Tinha gente na frente. Iria ser atendido, mas demoraria um pouco. Que fazer? O jeito, esperar. Afinal de contas, o dente doía e latejava e isso o estava tirando do sério. 

Decidiu sentar numa cadeira vaga e folhear um jornal, que dobrado amargava a solidão do desprezo numa cestinha adequada para revistas e livros. Foi quando deparou com uma dessas máquinas de café num canto da sala, ao lado da janela. Na vez anterior em que ali estivera, coisa de um mês atrás, não havia visto aquele modelo express, pelo menos que se lembrasse. Sinal de que a sua odontóloga fazia progressos na profissão. Enquanto aguardava a vez de ser atendido, resolveu preparar uma bebida. 

Caminhou até o aparelho e antes de apertar um dos doze botões procurou ler atentamente as instruções. A geringonça oferecia uma serie de opções: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro e chá”. Decidiu pelo café com leite. Adorava café com leite. De graça, até injeção no olho esquerdo ou ovo podre, cru e cozido, com bastante sal, certamente caia de bom grado. 

Apertou o botão correspondente. O copinho plástico descartável pousou suave na bandeja. Partiu para o segundo passo: “muito açúcar, pouco açúcar, médio ou amargo”. Médio. Doce demais, não descia. Amargo, bastava a vida. O açúcar caiu na medida escolhida e milimetricamente calculada. Ação seguinte: pressionar a tecla de cor azul que indicava “CAFÉ COM LEITE” e partir para o abraço.  Ao comprimir, contudo o botão que despejaria a bebida, a coisa entrou em pane. 

Assim, sem aviso, sem dar o menor sinal. Simplesmente a operação enguiçou. Num repente, o dispositivo engoliu o copo, e, como se não bastasse, com o açúcar dentro. Piribêncio achou estranho, mas se conformou. Olhou ao redor. A moça da recepção falava com alguém ao telefone. Pelo sorriso, papeava com o namoradinho. Dos quatro pacientes que esperavam vez, dois eram mulheres e ambas folheavam umas revistas de moda do tempo do onça. Um senhor de boné vermelho, parecia cochilar e o sujeito, ao lado, quebrava a cabeça fazendo palavras cruzadas. 

Ninguém com a atenção voltada para ele. Portanto, os presentes não chegaram a perceber a sacanagem pela qual passara.  Voltou a ler as instruções no pequeno visor: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. O dedinho indicador ávido e certeiro investiu no que mais gostava. Repetiria a dose. “CAFÉ COM LEITE”. Reiterou as fases anteriores. Afinal das contas, porém, o mesmo problema atonou teimoso. Tornou a perscrutar em derredor. O quadro não mudara, com exceção do velho que cruzara as pernas. Tentou a terceira investida agora com mais vagareza, ponto por ponto, sem afobação. 

Quem sabe, na ânsia ávida de ingerir o bendito “quentinho”, atrelado à dor que não treguava, tivesse digitado um dos protocolos erroneamente. Sem contar com o fato das letras serem pequenas e os comandos minúsculos. Qual o quê! A mesma historia de antes ascendeu, apatetado e ímprobo. Ficou vermelho de raiva. Bufou enfezado enquanto coçava o lóbulo da orelha. Pensou em incomodar a secretária. Droga! Para lhe servir um simples cafezinho? Desistiu da ideia.  

A propósito, a jovem continuava a falar ao telefone. Desviou o fone por um segundo apenas para anunciar o nome do próximo que ocuparia a cadeira da dentista. Uma senhora com uma criança acabava de sair. Foi à vez do velho de boné vermelho que cochilava. E então? Não era suficientemente inteligente e esperto para preparar uma simples infusão? Ainda mais num equipamento ultramoderno em que não precisava fazer nada, a não ser ler cuidadosamente as indicações de utilização correta e, por fim, mecanografar meia dúzia de redondinhos de cores variadas. 

Não! Não desistiria, jamais. Partiu para a quarta vez. Tirou os óculos e leu tudo de novo, tintim por tintim: “café curto, café longo, café simples, café com leite, café forte, café fraco, pingado, cappuccino, mocaccino, chocolate, chocolate com leite, leite puro, chá”. Registrou a sua concentração obstinada no “CAFÉ COM LEITE”. Sacanagem ou não, a engenhoca piripaqueou de novo. Desta feita, mais decisiva e abusada. Engoliu o copo e jogou o açúcar no chão. Inconformado, Piribêncio aloprou. Perdeu a paciência, enrubesceu as maçãs do rosto. Não tivesse ninguém ali, mandava um belo de um chute bem dado naquela droga. Muita gente em volta. Câmeras monitorando. Conteve os ânimos. Respirou. Partiria para a derradeira. 

Saísse o café agora, tudo azul, com bolinhas da mesma cor. Caso contrário, acomodaria o traseiro ao lado dos demais, comportado e conformado, e aguardaria “na sua”, até ser chamado. Assim foi. Entretanto, no instante final resolveu mudar o botão do favoritismo. Talvez a droga fosse uma espécie rara de empacação com a sua eleição pelo coffee with cream. Optou, à contragosto, pelo CAPPUCCINO. Reproduziu, pois, passo a passo todas as etapas. Até aquele estágio, tudo as mil, muito legal e prático. Copo no lugar certo, açúcar, dosagem correta da água... entretanto na hora de sustentacular o amarelinho indicador do preparado finalizado, again, em repetência, pá pum, a porcaria travou e degringolou tresloucada. 
Nessa pancada, sugou o copo, e esparramou o açúcar. Piribêncio saiu da tranquilidade aparente para a tragédia anunciada. Perdeu o chão. Irritado, encolerizado, espumando ódio pelas ventas, e de lambuja, num acinte de enfezo, apertou desordenadamente os manetes livres de uma só vez: operou a sua desdita empombada (altercação) uma, duas, três, dez vezes... 

Nesse fluxo desigual, um copinho apareceu na bandeja, o açúcar saiu na dosagem certa. O Cappuccino, porém, ao invés de vazar no local destinado, subitamente esguichou à frente, espirrando de maneira frontal, o líquido quente diretamente em seu rosto. Pego, assim de surpresa, Piribêncio levou as mãos aos olhos, emitiu um grito horrível, lancinante, ao tempo em que empreendia um espetacular palavrão, saltando de banda, como um gato assustado. Às cegas, tropeçou numa mesinha, perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão junto com um vaso de plantas em meio a um monte de cacos que se espalhou fragmentado pelos ladrilhos. O troço seguiu desmoderado, não parou aí. 

Aliás, não parou mais. Continuou dando vazão às operações numa contraversão de ciclos por conta e risco, descontroladamente desgovernada. Nessa fuzarca, liberava ora copinhos um atrás do outro e açúcar, água fervendo e café, ora derramando e espalhando as variadas opções das indicações do cardápio. Acabou, nessa enxurrada, exausta, vencida, pegando fogo em meio a uma poça enorme de chocolate, chá e café. Com a galera e a secretária aos berros, a dentista veio lá de dentro, apavorada, deixando o paciente que começara a atender boquiabertamente escancarado. 

Ela própria, ao se afrontar com a cena inusitada, arreganhou as orelhas à sua cavidade de entrada do tubo digestivo e se viu socorrida pelos bombeiros que os albergados das salas vizinhas chamaram às pressas. Piribêncio, de roldão, seguiu atrás, braços dados com dois paramédicos. Caso passado, os envolvidos socorridos, a esfuziante estilista que colocava sorrisos em gengivas cariadas, mandou jogar a máquina no lixo. Literalmente. 

Fonte:
Enviado pelo autor, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro 

Caldeirão Poético LXVI


Benjamim Silva
Cachoeiro de Itapemirim/ES, 1886 – 1954, Rio de Janeiro/RJ

ESCADA DA VIDA

Julguei da vida haver galgado a escada,
essa escada de mármore polido,
que nos conduz à estância desejada
de um grande bem, raríssimo atingido.

Hoje vejo, porém, que quase nada
consegui, afinal, haver subido:
— ficou-me longe o termo da jornada
em que eu, exausto, me quedei vencido.

Pelos desvãos da escada mal me erguendo,
já sem noção e sem a fé que anima,
nem sei se vou subindo ou vou descendo...

Por isso, os seus extremos jamais acho:
vejo degraus olhando para cima,
vejo degraus olhando para baixo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Carmen Cinira
Rio de Janeiro/RJ, 1902 – 1933

SER MULHER

Ser mulher não é ter nas formas de escultura,
no traço do perfil, no corpo fascinante,
a beleza que, um dia, o tempo transfigura
e um olhar deslumbrado atrai a cada instante.

Ser mulher não é só ter a graça empolgante,
o feitiço absorvente, a lascívia e a ternura;
ser mulher não é ter na carne provocante
a volúpia infernal que arrasta e desfigura...

Ser mulher é ter na alma essa imortal beleza
de quem sabe pensar com toda a sutileza
e no próprio ideal rara virtude alcança...

É ter, simples e pura, os sentimentos francos,
E, ainda no fulgor dos seus cabelos brancos,
sonhar como mulher, sentir como criança!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Celso Vieira
Recife/PE, 1878 – 1954

MENDIGOS

Quantas vezes trilhamos, desgraçados,
da vida humana os ásperos caminhos:
vós, em busca de esmolas, fatigados,
eu, fatigado, em busca de carinhos!

Aos que tiveram sedas e brocados,
invejais a riqueza, ó, pobrezinhos!
E eu mais invejo ainda os namorados,
— aves que dormem no frouxel dos ninhos.

Como — de porta em porta —  sem abrigo,
Noite e dia seguis, aflito eu sigo,
de coração em coração, assim...

E assim, lastimo as esperanças mortas,
Pois, como para vós, fecham-se as portas,
Os corações se fecham para mim!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Ciro Vieira da Cunha 
(pseudônimo João da Ilha)
São Paulo, 1897 – 1976, Rio de Janeiro

CARNAVAL DE UM PIERRÔ

Carnaval! Carnaval! A turba louca
passa gritando pela rua em fora...
Nos "bars" e cabarés champanhe espoca
e a gente bebe até que venha a aurora...

Canta na rua um ébrio de voz rouca
versos canalhas que a ralé adora...
É quase madrugada... Em minha boca
amarga o sonho que meu peito chora...

Espero Colombina, alva de cal,
de olheiras de carvão e de olhos baços
que vem trazer-me ao quarto o Carnaval...

O doce Carnaval do meu desejo:
— As brancas serpentinas de seus braços
e o confete vermelho de seu beijo...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Cláudio de Cápua
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

MOCIDADE

Lindo tempo o do sonho e da vontade!
Sem palavra, sequer, que bem o exprima,
o pensamento a erguer-se bem acima
da montanha da vida em claridade!

Tempo feliz da nossa mocidade
que a luz do amor e da ilusão sublima,
quando tudo nos prende e nos anima
ao fio e à teia da felicidade!

Não há quem não conheça, e, conhecendo,
não dê tudo de si para que nunca
deste tempo de paz vá se esquecendo.

Mágoas? Feliz de quem puder vencê-las,
e ver que a mão de alguém seus passos junca
de pérolas, de rosas e de estrelas!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Júlia Lopes de Almeida (Arte culinária)

Para saber comer, é preciso não ter fome. Quem tem fome não saboreia, engole. Ora, desde que o enfarruscador ofício de temperar panelas se enfeitou com o nome de arte culinária, temos uma certa obrigação de cortesia para com ele. E concordemos que é uma arte pródiga e fértil. Cada dia surge um pratinho novo com mil composições extravagantes, que espantam as menagères (
donas de casa) pobres e deleitam os cozinheiros da raça! Dão-se nomes literários, designações delicadas, procuradas com esforço, para condizer com a raridade do acepipe. Os temperos banais, das velhas cozinhas burguesas, vão-se perdendo na sombra dos tempos. Falar em alhos, salsa, vinagre, cebola verde, hortelã ou coentro, arrepia a cabeluda epiderme dos mestres dos fogões atuais. Agora em todas as despensas devem brilhar rótulos estrangeiros de conservas assassinas, e alcaparras, trutas, manteiga dinamarquesa (o toucinho passou a ser ignominioso), vinho Madeira para adubo do filet, enfim tudo o que houver de mais apurado, cheiroso e... Caro!

As exigências crescem, ameaçam-nos e, sem paradoxo, somos comidos pelo que comemos. Isto vem à propósito de uma exposição de arte culinária que se fez, há pouco tempo, em Paris. Imaginem como aquilo deve ser encantador e apetitoso!

Quem já viu as vitrines das charcuteries (
delicatessens), das crémeries, das confeitarias, etc., e que sabe com quanto mimo e elegância são expostos os queijos, os paios e os pastéis, entre buquês de lilases e fofos caixões de papéis de seda bem combinados, crespos e leves como plumas, imagina que de novidades graciosas se juntarão no Palácio da Indústria.

Naturalmente, cada expositor é um arquiteto e um artista na combinação das cores. Fazem-se castelos de biscoitos, torres engenhosas de chocolate, de creme, de morangos, onde tremulem, em cristalizações policromas, as gelatinas de frutas ou de aves, refletindo luzes entre lacinhos de fita e flores frescas, porque o francês tem a preocupação gentilíssima de deleitar sempre os olhos alheios.

Abençoada mania!

O que eu invejo não são as trutas, nem os champignons, nem o seu foiegras, porque tudo isso temos nós aqui e mais muitas coisas que eles lá desconhecem. O que eu invejo é aquela facilidade, aquela graça das exposições que se sucedem e se multiplicam e que não podem deixar de ser úteis, porque abrem a curiosidade e ensinam muito.

A cozinha francesa tem-se intrometido em toda a parte.

A Inglaterra opõe-lhe forte resistência com as suas batatas cozidas e presunto cru; mas a nossa, por exemplo, está muito modificada por ela. Entretanto, temos pratos característicos, só nossos e que eu teimo em achar gostosos.

Infelizmente falta-lhes o chique, o lado onde se possa atar a tal fitinha ou colocar o buquê de violetas do inverno ou do muco da primavera. O feijão preto com o respectivo e lutuoso acompanhamento não se presta por certo para a coquetterie de um adorno mimoso, mas nem por isso deixa de ser da primeira linha. Depois temos os pratos baianos, o afamado vatapá e outros, quentes e lúbricos, e o churrasco do Rio Grande, e o cuscuz de S. Paulo, e tantos que eu ignoro e que descobrem, demonstram, por assim dizer, as tendências, o temperamento do povo.

Um país como o Brasil tão vasto e variado não teria proporções mais curiosas para realizar uma exposição neste gênero? Só de frutas, que, tratando-se da mesa, tem todo o lugar, e de doces... Imaginem: faríamos um figurão! Geralmente caluniam-se as frutas brasileiras e parece-me tempo de lhes irmos dando a merecida importância. Não há nenhum brasileiro que conheça todas as frutas do seu país. O europeu desdenha-nos nesse sentido; esquece-se de que em muitos lugares do Paraná, Minas e Rio Grande, desenvolvem-se peras magníficas, damascos, cerejas, nozes, etc. E as frutas e as hortaliças indígenas? Inumeráveis! O que falta à nossa gourmandise (gula) é poder agrupá-las, poder escolher, na mesma terra, estas ou aquelas, e isso só se poderá fazer se houver aqui, algum dia, como agora em Paris, quem dê importância à mesa, e procure, por meio de exposições, facilitar esse ramo de comércio, educar o povo, e dar-lhe um elemento novo de prazer e de saúde.

A exposição parisiense tem ainda um fito, e é a sua principal recomendação e a mais elevada, — é o de ensinar, por meio do exemplo, a cozinhar bem. Um dos seus cantos é ocupado por M. Charles Driessens, que segundo leio, luta há dez anos com desesperada energia para fazer entrar o ensino da cozinha no programa do Estado. Este tal M. Driessens tem várias escolas de cozinha, e ali trabalham umas cinquenta discípulas, mostrando a toda a gente como se deve fazer um creme, estender uma massa, temperar uma salada, grelhar um bife ou enfeitar uns pezinhos de carneiro com papelotes e rosetas.

As senhoras não nasceram para falar em camarões, carne ou palmito, em público; mas, senhores românticos, lembrai-vos de que nem sempre nos bastam o brilho das estrelas nem o murmulho das ondas para conversar com as amigas!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: UNAMED. Publicada originalmente em 1906.
Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 33: Nostalgia


 

Carolina Ramos (Meus Gatos) parte 2

E ao voltar da música, para focar os felinos, faço-o de forma gradativa. - Lembro-me do "Diálogo dos gatos", aquela interessante peça de Rossini, deliciosamente cantada com humor por diferentes duplas e corais. Música que ameniza a saudade dos meus bichaninhos. Música que ainda gosto de ouvir, sempre que, de longe em longe, retorna num vídeo enviado por algum amigo internauta e que me faz lembrar aqueles diálogos noturnos dos gatos malandros de dorso arqueado, que, empoleirados nos muros, quebram o aconchego da vizinhança, a intercalar agressividade e sedução, à serenidade das noites, com aquelas exacerbações repentinas que, por vezes, chegam a  estremecer os que as ouvem sob as cobertas.

Quantos gatinhos passaram por mim, deixando saudades, tais como aquele mimado gatão preto que, por conta de um acidente, tivera as patas traseiras inutilizadas e mal se podia mover, sendo alimentado com muito carinho, sempre a me receber com miados carinhosos, modulados pela gratidão.

Como terá ele chegado a mim? Não sei. Lembro-me apenas do dia em que o apresentei a outro gato, talvez como ele aparecido à minha porta, quando, com desagradável surpresa, recebi um violento e sonoro "chega pra lá"!

- Enciumada, aquela miniatura de pantera conseguira forças para mostrar o poder de suas garras - o que me fez recuar de um salto!

Entendi logo não ser nada fácil lidar com ciúmes, em qualquer caso! Menos ainda, com ciúmes felinos, municiados de garras ligeiras bastante afiadas!

Com o mesmo problema de atropelamento, adotei uma gatinha meiga, de pelo rajado. Tratada com muito carinho, chegou a recuperar-se, levando vida normal.

Não me recordo de lhe ter dado um nome, porém, lembro-me bem do alerta de um veterinário, que, após detalhado exame, prevenira que aquela gatinha jamais poderia enfrentar uma gravidez - o que, por azar, inevitavelmente, acabou por acontecer.

Naquele tempo, não se falava em castração, coisa corriqueira em nossos dias, embora ainda me custe aceitar a ideia. No caso da tal gatinha, entretanto, teria sido a sua salvação.

Chegada a hora crítica, o mesmo veterinário, amigo de meu pai, chamado às pressas, solicitou minha ajuda para conter aquela "mãezinha" atormentada, que se mostrava demasiado agressiva, em virtude das dores que enfrentava. Eu teria cerca de dezesseis anos, ou pouco mais, e, apesar dos cuidados, não escapei de levar dolorosa mordida numa das mãos. Porém, o mais triste foi saber que a pobre gatinha, depois de sofrer tanto, teria que ser sacrificada. Não havia outra qualquer solução!

Abandonei o campo de ação e chorei pranto sentido, não pela dor da mordida, mas por saber da inutilidade do sofrimento daquela infeliz mãezinha sem esperanças.

Minha emoção impressionou o jovem veterinário, que chegou a afirmar não ter conhecido ninguém com tanto sentimento a ponto de derramar sentidas lágrimas, ante a impossibilidade de salvar um pobre animalzinho condenado.

Bem mais tarde, minha mãe revelaria as pretensões matrimoniais daquele rapaz, que, emocionado pelas circunstâncias, pensara ter encontrado par ideai, sendo descartado por um pai zeloso, sem que a ingenuidade de quem fora pivô da história, sequer sonhasse com o que acontecia nos bastidores.

- Mais dois gatos merecem citação: - Tuca - andar macio, alvinegra, focinho metade preta, outra metade branca, o que lhe dava um ar gaiato de eterna mascarada. Apareceu... foi bem acolhida... e como chegou, desapareceu... Sem deixar rastro.

Lembro-me também daquele gatinho simpático, rajado de amarelo, por isso mesmo chamado de Douradinho e algumas vezes de Gold, sempre na pontinha dos pés, a esfregar a cabeça nas pernas de todos... Sempre a pedir e a esbanjar carinho.

Nunca o vi arquear o dorso, arreganhar-se, bufar, ou estapear alguém. Era um gatinho meigo por natureza! Se houver um céu especial para bichinhos de boa índole, Gold lá estará, com certeza, a dourar tudo ao seu redor. 

E muitos outros bichanos, chegados e bem recebidos, partiram sem marcar presença.

Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.