sábado, 26 de agosto de 2023

Gerson Luís Borges de Macedo (Acredite se quiser)


Já vai longe o tempo em que uma corrida de cavalos era um divertimento restrito a meia dúzia de espectadores, sendo que dentre eles alguns especiais, os donos dos animais, geralmente os "Coronéis" da época. O local era quase sempre uma raia improvisada em qualquer canto desse nosso país, e os cavalinhos nem de longe lembrariam os puro-sangues que galopam profissionalmente hoje em dia, pelos hipódromos de todo o mundo.

O povo paranaense pode se orgulhar do turfe de nosso Estado, considerado entre os quatro melhores do Brasil, ao lado de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Possuímos um centro de criação dos melhores e um belíssimo hipódromo    totalmente normatizado, que realiza corridas todos os finais de semana, se constituindo numa ótima opção de dizer ao povo curitibano, além, é claro, o fato de que ninguém resiste à tentação de fazer uma "fézinha" e torcer pelo seu preferido.

As corridas do Hipódromo do Tarumã em Curitiba ganharam o Brasil e uma vez por mês são transmitidas via satélite para todo o país, onde agências de apostas fazem o elo de ligação entre o sonho da fortuna e as patas dos animais, que correm sem saber que movimentam um mundo de emoções, muito trabalho, tristeza e alegrias.

Apesar de toda modernidade e tecnologia que invadiu o turfe, o inacreditável também acontece nas pistas de corridas. A história que vamos relatar aconteceu no Hipódromo de Uvaranas, cidade de Ponta Grossa, hoje infelizmente desativada, há mais ou menos 12 anos atrás. Devo esclarecer que não há registro fotográfico ou vídeo do fato ocorrido. Garanto, porém, a veracidade da história, e testemunhas com certeza aparecerão às dezenas após a publicação destas linhas.

Por mais leigo que seja o leitor em matéria de corridas de cavalos, todos certamente sabem o que é um cavalo e o que é um jóquei, e que em toda corrida cada animal tem o seu respectivo e único condutor. Pois é, em Ponta Grossa aconteceu a exceção. Em um determinado páreo, um cavalo iniciou uma corrida com um jóquei e terminou-a com outro. Sucedeu que no início da reta final houve uma "rodada", que na gíria turfística significa um acidente ou queda, envolvendo dois cavalos e respectivos jóqueis. Um dos jóqueis se estatelou no chão, mas o segundo jóquei foi cair exatamente em cima do cavalo que não o seu, e o mesmo continuou a correr. O assustado ginete na tentativa de evitar mal maior para si próprio, agarrou-se como pôde no também assustado animal e os dois continuaram a correr, sem saber que estavam protagonizando uma cena digna da "Sessão Pastelão" e um fato inédito no mundo do turfe. Para a cena ficar perfeita, só faltou que os dois tivessem ganho a corrida.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) As múltiplas faces de Iansã


Oyá ou Iansã, é Orixá de fama. Senhora das tempestades. E traz consigo uma espada: ela é a mais brava de todas as guerreiras. E ao mesmo tempo, misteriosa e meiga...  Ela é complexa, ora, é raio, é ventania. Ora é brisa de verão. Gentil poesia... Forte como um búfalo, delicada e paciente feito a borboleta.

Iansã é esposa de Xangô. Eles costumam trabalhar juntos.

Xangô é o senhor da justiça, e ela, rainha do clima. Oyá, é conhecida como a senhora do entardecer.  

Seu nome, segundo a tradição Iorubá, significa: Mãe de nove filhos. E por esses filhos ela tudo faz. Se um deles estiver correndo perigo, ela arma sua tempestade, tira tudo de lugar, faz o impossível para impedir que seu protegido caia nas ciladas da vida.

É livre, empoderada, destemida, ciumenta, sincera e justa. Por vezes, parece fria, mas tem um coração imenso, coração de mãe. Dentro de seu peito, há sempre espaço para quem nela confia.

Em resumo, a personalidade de Iansã é um equilíbrio entre a força bruta da pedra e a delicadeza de uma flor. Um de seus pontos mais cantados em terreiros diz assim: “Ela é mais que temporal, muito mais que ventania, uma força sem igual, um poder que arrepia! A bravura de mil homens, tudo em uma só mulher, e por nós ela guerreia, venha o mal de onde vier."

Iansã é tantas coisas ao mesmo tempo, que é difícil de descrevê-la. Sua energia nos impede de fazer uma análise uniforme, completa. Ela é vento, e vento não se prende. Vento foge, e ao tentar descrever sua apaixonante essência, a escrita sai assim, com adjetivos espalhados em todas as direções, tudo parece exagerado. Isso acontece porque ela é o temporal, e temporal é caos que deixa tudo fora de lugar. E, depois, do nada, traz a bonança, nos enche de carinhos, nos faz lembrar o quanto é bom sonhar... Iansã é assim... a Deusa que morde e sem demora, assopra...

Cântico poético à Iansã 
– composição Jaqueline Machado -

Sou filha de sete ventos,
Sou a filha do puro amor.
Iansã é dona dos meus sentimentos.
E me conduz por onde eu for.
É... Tentaram me enganar,
Tentaram me matar,
Mas a guerreira veio me proteger.
Sou filha do raio e do vento.
Por isso a nada temo.
Nasci para vencer!
Eparrêi bela Oiá,
Eparrêi nobre Iansã,
Debaixo de teu céu rosado,
A guerra se desfaz
Para o amor florescer…


Fonte:
Texto enviado pela autora

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Daniel Maurício (Poética) 57

 

Leandro Bertoldo Silva (O preço da modernidade)

Descobri mais uma função da literatura além de nos salvar de nós mesmos: nos salvar da modernidade! Pelo menos a se tratar de uma aqui, outra ali, ou seja, de todas. Misericórdia! Assim fui eu a mais uma história de ônibus! Já estou a pensar no tamanho dessa coleção. Vamos lá!

Ao me aproximar da rodoviária de Padre Paraíso com destino a Teófilo Otoni, vejo, de longe, uma grande aglomeração. Gestos, falas, algumas mais exaltadas, gritos de absurdo e muita, muita gente sem saber o que fazer. Pela quantidade de pessoas, algo não muito normal para a cidade, ainda mais naquele horário de 15h, tive certeza: tem coisa aí. Não demorou a ver dois viajantes sem direito a embarcar e depois mais um, mais outro e outro mais, inclusive eu, igualmente posto na mesma situação.

— Mas, moço, eu nem tenho passagem ainda!

— Não tem e nem vai ter. — disse para mim o atendente com a maior cara de enfado por quem já repetiu o motivo dezenas de vezes: “Não há sinal de internet e sem internet não é possível emitir o ticket de passagem”.

— Como é que é?

Eu tenho que viajar, não posso perder o ônibus, tem gente me esperando, minha mulher vai me matar… Começou a enumerar o atendente todas as objeções ouvidas e ainda repetidas pelas pessoas em minha volta.

— Mas isso é um absurdo!

— Essa é a campeã. Estão me dizendo isso desde ao meio dia.

— Meio dia? Está sem internet desde meio dia?

— Para o senhor ver como estão os meus ouvidos.

— E dentro do ônibus? Não é possível comprar a passagem dentro do ônibus?

— O senhor tem dinheiro?

— Ora, mas é claro! Como o senhor acha que eu compraria a passagem? Com dinheiro!

— De papel? É, porque dentro do ônibus só com dinheiro de papel, porque no cartão não tem conexão…

Foi quando reparei toda aquela gente esbaforida a lançar impropérios com seus cartões na mão. Como é possível? “Cadê o dinheiro que estava aqui”? Não era assim a brincadeira do toucinho com o gato quando éramos crianças? Seja como for, não mais falei nada e fiquei a admirar toda aquela confusão ao constatar o preço da modernidade. Além do toucinho, onde andaria o kichute a fazer às vezes da chuteira nas peladas no campinho de terra? Os álbuns de fotografias, a latinha de quitute com a chavinha para abrir, o radinho de pilhas recarregadas no congelador, o copo sanfonado de plástico fácil de ser transportado e tantas outras coisas sempre a nos atender muito bem? Cogitei seguir viagem de carro. Mas isso também já não era possível! Eu não tenho carro, e seria preciso pegar um táxi, porém os motoristas só viajam pela manhã.

Sem dinheiro de papel, sem carro, sem nada das minhas lembranças e agora também sem celular, pois, ao pegá-lo para avisar às pessoas, sim, a minha esposa também, o acontecido, a bateria acabou…

Aí não teve jeito. O pensamento veio forte! Fosse no tempo das cartas e as passagens emitidas à mão ou até em maquininhas, mas sem internet, nada disso teria acontecido. E ainda há aqueles a dizerem que o mundo de hoje é muito melhor ao do passado! Ah, quanta saudade dos orelhões e dos telefones de discar…

Fonte:
Árvore das Letras, site do escritor.
https://arvoredasletras.com.br/2023/08/06/o-preco-da-modernidade/

Goulart Gomes (Poemas Avulsos) – 3 -

ANDA LUZ

Adorar alguém
é andar à toa
é viver às tontas
acordar assim
a ver navios
amarguradamente apaixonado

Amar, ainda
é fazer do A
a letra por excelência
a letra da decadência
prima letra, letra A
Aonde anda Anda Luz
a luz que anda?
Anda, ainda
e ilumina
não fingindo ser menina
não querendo ser mulher

Anda, luz
que eu já te alcanço
e deitado no balanço
ao embalar do teu colo
embolo-me em tua balada
e te faço minha deusa
minha musa
minha fada
Anda, luz
luz que anda
clareia, sorri, desanda
acorda... e ama
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ARRÍMICO

Você representou para mim
tanto de bom, tanto de ruim
que nem sei dizer
se sinto falta de você
se saudade é assim

Seu sorriso me acalmava nas horas difíceis
seu olhar despertava coisas impossíveis
e ver seu corpo, simplesmente
fazia-me louco, adolescente
sentindo desejos, amores risíveis

Com você aprendi a não ser poeta
aprendi que a vida é bem indireta
a não ser sincero
ser apenas um mero
cínico, hipócrita, falso profeta

Com você morreu um menino
e seguiu seu destino
um homem, um mar
que aprendeu a acertar
e a acreditar
que o amor não é mais
que uma doce ilusão dos sentidos
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CARTA À SAUDADE

Quero saber
se o que você sente
é o que eu sinto
Quero saber
se é um carinho, se é um querer
uma admiração
um amor... o que?

Não diga que não
não diga que são
coisas à toa
Não brinque com o amor
se você não sentiu a dor
dessa coisa tão boa

Sinto vontade
de sempre lhe ver
ter por perto você
contemplar o seu corpo
olhar em seus olhos
poder lhe entender

Desejo rasgar
a sequência do tempo
e sem contratempo
lhe abraçar com loucura
lhe beijar com ternura
e depois acordar
pra voltar...
nunca mais

Sabe, ser Poeta
é amar o Universo
viver apaixonado
num eterno sonhar
É amar e amar
o que é incomum
utópico, irreal
o que é diferente
sem ser banal

A vida é um jogo
e no jogo da vida
não se tem saída
o jeito é viver

Sabe, saudade
isto são fatos
inobjetivas verdades
que acontecem à toa
sem cumplicidades

Sabe, saudade
é bom lhe sentir
ter você por perto
não ter que mentir
e apesar da distância
ter você
aqui
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O FUTURO QUE NÃO QUEREMOS*
- Tristes lembranças do século 20 -

Quem procurou saber
dos porquês?
Quem procurou ouvir
os o quês?

Como é fácil estar surdo!

Quem levantou uma bandeira verde
ou mesmo branca, amarelecida pela falta de uso
pela Natureza?

Ninguém assumiu seu lado ecologista.
Egoístas!
E ser soldado do Green Peace
era tolice.

E o que você fazia
quando matavam as baleias
quando queimavam as florestas
quando poluíam os rios
e enchiam as nossas terras de lixo atômico
e nossos céus daquela fumaça cinzenta?

Sentávamos às nossas mesas
redondas
e dizíamos
“- Temos que fazer alguma coisa”
E só.

E hoje, à nossa volta, só há a destruição
e no meio de tudo
o que restou do que um dia foi
o Homem
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*5º. Lugar no Concurso de Criatividade PETROBRAS/RPBA/CIPA/DINOR, 1986
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O PEREGRINO

quem sabe por quantos sítios já andei
e quantas pedras já pisei
quem poderá dizer?

quantas chuvas já encharcaram minhas roupas,
quantas lágrimas já lavaram o meu rosto
quantas gotas de suor já percorreram
as linhas do meu corpo,
quem poderá saber?

todos os caminhos
todas as árvores
todos os céus
todos os deuses
podem contar minha estória
mas minhas histórias
só eu saberei contar

e quando me perguntarem
o que há
por lá
por onde andei
simplesmente direi
que não sei
que não vi
pois o que senti
não saberei descrever,
além do que é preciso ver
viver
para crer

andar é preciso
impreciso é correr
ou rastejar
e no nosso caminhar-solidão
é bonito ver
que temos as nuvens e as cercas
como onipresentes companheiras

Fonte:
Goulart Gomes. Conserto para prego e martelo. Poesias Reunidas 1984-1994. Salvador/BA: Pórtico, 2011.

Hans Christian Andersen (Há coisas que o coração não esquece)

Velho era o morgado, e lamacento o fosso que o cercava; e a ponte levadiça raras vezes era baixada, pois nem todas as visitas são gente de distinção. Lá estavam, abaixo das goteiras, os balestreiros, por onde se podia despejar água fervendo, e até chumbo derretido sobre o inimigo, caso se aproximasse demais.

   Lá dentro as salas eram muito altas, o que tinha sua utilidade, porque uma espessa fumaça se erguia da lareira, onde se consumia lentamente os grandes nós de madeira úmida. Das paredes pendiam os retratos de homens revestidos de armadura, e de mulheres soberbas, trajando ricos vestido. Mas a mais bela de todas andava por ali, em carne e osso; era a dona do morgado, e chamava-se Mete Mogens.

   À noite chegaram alguns salteadores; degolaram três dos homens do castelo, e mais o cão de guarda. Feito isso, prenderam a dona da casa no canil, amarrando-a com a corrente do cachorro, e foram pavonear-se pelas salas, tomando o vinho e a cerveja que acharam na adega.

    E enquanto isso a dama, acorrentada no canil, nem se quer podia ladrar!

   Mas nisso aproximou-se cautelosamente o escudeiro de um dos bandidos. Cautelosamente, sim: se fosse descoberto, seria trucidado, E disse à dona da casa.

   - Sra, Mete Mogens, lembra-se a senhora de meu pai? Lembra-se que foi obrigado a montar o cavalo de pau, ainda em vida de seu marido?  A senhora pediu por ele, mas não foi atendida. Queriam que ficasse assim montado, até que as pernas se despegassem do corpo. Foi então que a senhora desceu e foi, devagarinho, como eu fiz agora, e colocou-lhe uma pedra debaixo de cada pé, para que eles tivessem um apoio. Ninguém a viu; e, se alguém viu, fingiu não ver - porque a senhora era jovem dona da casa. Meu pai contou-me essa história, que guardei na memória; não a esqueci, não. E agora vou libertá- la, Sra. Mete Mogens.

   Tiraram os cavalos de estrebaria e saíram, arrostando a chuva e a tempestade, até encontrar amigos que lhes prestaram auxílio.

  - De modo que aquele pequeno serviço que prestei outrora ao velho, veio a ser-me amplamente retribuído - disse Mete Mogens.

   - Sim: há coisas que o coração nunca esquece - disse o rapaz.

  Os salteadores morreram na forca.
   
Há por aquelas bandas outro velho morgado. Não é o mesmo da Mete Mogens: pertence a outra família aristocrática.

    Este caso é dos dias que correm.

   O sol ilumina a flecha dourada da torre. Pousam na água, como ramalhetes, ilhotas cobertas de mato; e em volta delas nadam os cisnes. O jardim está cheio de roseiras floridas. Mas a dona da casa é na verdade a mais delicada pétala de rosa, radiante de alegria, da alegria que vem das boas ações. É um brilho que não esplende pelo mundo afora, mas que fica no mais íntimo do coração; e o que ali esta guardado não ficará esquecido.

  Neste momento ela sai do castelo e dirige-se à choupana de um camponês, no campo. Mora ali uma menina paralítica. A janela do quarto dá para o lado onde não penetra o sol. A menina só pode ver um pedacinho de campo, fechado por alta cerca. Mas hoje é um dia de sol: o quente sol, o sol maravilhoso de Deus Nosso Senhor entrou no quartinho. Entrou pela janela nova, rasgada onde outrora só se via a parede nua.

   A paralítica fica sentada. à luz quente do sol, olhando para o mato e para o lago. O mundo tornou-se tão grande, tão lindo...e tudo veio de uma única palavra da caridosa dona de morgado.

     - A palavra era tão fácil - disse ela, - e a ação tão pequenina...E a alegria que elas me proporcionaram é imensa, e cheia de bençãos.

   É porque ela pratica tantas ações meritórias, e pensa sempre naqueles que vivem nas casas pobres e nas moradas suntuosas - onde também há gente aflita.

   Tudo isso está oculto e guardado, Mas há coisas que o coração nunca esquece.

   Na grande cidade, de tráfego animado, havia uma casa muito velha, cheia de salas e quartos. Não entraremos nela: vamos ficar na cozinha, cheia de luz e calor, e onde tudo está asseado e alegre. As panelas de cobre reluzem. A mesa parece encerada, de tão lustrosa. A pia é tão polida como um espelho. E tudo isso é obra de uma única criada, que ainda achou tempo para se vestir e arranjar como se fosse para a igreja.

   Traz uma laçada na touca, uma laçada preta, que indica luto. Contudo não tem ninguém por quem usar luto: nem, pai, nem mãe, nem parentes, nem bem-amados. É uma mocinha pobre. Dantes teve um noivo. Contraíra casamento com um moço também pobre, e amavam-se muito. Mas um dia ele lhe disse:

  - Nós nada possuímos; e a rica viúva, dona daquela adega, disse-me palavras de amor. Ela me oferece a prosperidade. Contudo, és tu quem vive no meu coração. Que me aconselhas?

    - Que faças o que te parece que te dará a felicidade. Sê bondoso e carinhoso com ela; mas te previno: desde o momento em que nos separarmos, não devemos tornar a ver-nos.

  Passaram-se anos. Um dia ela encontrou na rua o antigo noivo. Pareceu-lhe tão doente, e envelhecido, que ela não pode deixar de lhe perguntar:

  - Como vais?

   - Sou rico, e tudo me vai bem, em todos os sentidos. Minha mulher é boa; mas tu continuas a viver no meu coração. Travei uma grande luta dentro de mim, mas está quase terminada agora. Só nos tornaremos a ver diante de Deus.

   Passou-se mais uma semana. Hoje de manhã ela leu  no jornal a notícia da sua morte. E é por isso que veste luto. Morreu ele, deixando a esposa e três enteados, diz o jornal.

   Essas palavra soam como uma pancada no metal fendido, e contudo, absolutamente puro.

  A laçada preta indica luto; o rosto da moça revela-o ainda mais claramente. Ele está guardando no seu coração, e jamais será esquecido.   

  Há coisas que o coração nunca esquece.

  Ora aí está! Contei três histórias, três folhas em uma só haste.

  Queres ainda mais folhas de trevo? No pequenino livro do coração existem muitas, muitas!

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837.

Estante de Livros (A casa sem fim, de Fernando Vugman)

(resenha por Maria Marta Furlanetto*).


“... se você está esperando uma história ágil e repleta de emoções, aconselho a desistir por aqui mesmo.”

É assim que Vugman investe em seu leitor-modelo. Esse autor não se incomoda em contar histórias que não tenham final luminoso – ainda que ele seja o personagem, ou porque ele é o personagem.

Nos vinte contos de A casa sem fim, escritos de 1978 a 2009, há uma longa e desconcertante construção de vida, de lembranças e de morte. A construção e a desconstrução das casas – seu mote – figuram o perpétuo caminhar do andarilho, ora perdido, ora se encontrando, ora indo, ora retornando. Sempre haverá uma casa, familiar e estrangeira ao mesmo tempo, representando seus próprios passos no presente e tudo o mais que ficou para trás sem morrer. O fantasma que perambula solitário, acompanhando o personagem, são os fragmentos do passado sendo olhados pelo prisma do sonho. O personagem caminha sem rumo, perde-se na distância, assusta-se, mas reencontra sempre o vento, as areias macias de uma praia, as alturas de um céu incrivelmente luminoso e azul, e os fantasmas vívidos de almas agora distantes.

Não é de surpreender que os contos de Fernando sejam autobiográficos (há uns mais que outros, na literatura): dissimulando ou não, não há como fugir da linha de um ir e vir, mesmo que contemos a história do “outro”, ou dos objetos, dos símbolos, das lembranças. Aqui, o desdobramento do autor não precisa de rótulo. Ele aí põe a máscara do “eu”, do “ele”, do gavião, do poeta, do que estiver sentindo. E sempre encontra uma casa, sombria ou iluminada, solitária ou plena de vozes e sombras antigas. Há portas surpreendentes, com maçanetas concretas e simbólicas que ele sofregamente agarra, querendo encontrar algo. Pensa mesmo em fazer perguntas aos objetos, pistas para sua leitura do que tinha sido.

Apesar da atmosfera de sonho e de um silêncio triste, Vugman é surpreendente e poeticamente preciso em sua evocação de detalhes na paisagem e no corpo: aqui, “orquídeas bizarras pendiam dos troncos cobertos de musgo e fungos”; ali, o sol traz “um calor manso e luminoso”; acolá, jovens “levam consigo a manhã”. Aqui, “aquele débil serzinho verde gemia e seu gemido flutuava em nosso nada”; ali, “Das nuvens carregadas ecoaram os trovões como tambores de batalha.”; acolá, “elevações que mal tocavam o firmamento árido, aquelas montanhas escuras e escarpadas”.

“Ao mar” lembra um conto de Edgar Allan Poe: “Descida no Maelstrom”, em que um pescador descreve para um visitante os efeitos de uma tempestade sobre um barco apanhado por um redemoinho na distante Escandinávia, sendo ele mesmo participante daquele horror.

No longo passeio dentro de si mesmo, como passageiro e outro, agora visitante, Vugman desfila a solidão das casas, que são seu próprio reflexo: em seu abandono, elas trazem a poeira do tempo, do descaso, mas há algo mais, imponderável: as pistas que os olhos não veem, mas que a alma apanha delicadamente e põe de volta nos antigos lugares – para surpreender com gesto silencioso o sentido das coisas que se agarraram nas entranhas, e continuam lá. O retorno, a cada vez, é tanto mais impressivo quanto persiste a possibilidade de os objetos olharem, de seu abandono, o personagem que retorna, insistindo em sua permanência magoada, que traz familiaridade e susto.

É assim que, como leitores, passeamos por um diário que nos apresenta casas, objetos, portões, quintais, córregos, montanhas e espaços áridos, figuras delicadas quase sem nome que serpenteiam pelas histórias com pés macios e depois somem, na luz do sol ou nas sombras da noite.

Vugman fala da permanência da casa. E exatamente nesse conto (A permanência da casa) o personagem acorda e vê que em torno não há “nada”. Vê-se numa planície iluminada e põe-se a andar, oprimido pela “liberdade de amarras”. Caminha sempre retornando para o mesmo lugar, mas no contínuo jogo de luz e sombra acaba se dando conta de que se transformava, e nem pensava mais em voltar: queria seguir adiante, abrindo trilhas – até sentir-se “incomodado” e descobrir que retornava ao ponto de partida: a casa permanecia lá.

Este passeio pelas fiéis casas de Vugman me leva a um horizonte bem distante no tempo e no espaço: conta-se que o conquistador Gêngis Khan, ao tomar conhecimento das casas de pedra construídas nas cidades pelos chineses (dinastia Jin), ficou muito espantado, desejando saber como eles as carregavam de um lado para o outro. Apesar da mobilidade de suas tendas, também eles, como guerreiros, iam e vinham, e elas acumulavam lembranças da mesma forma.

Ao nos contar sua viagem, Vugman roça a fímbria do indizível – talvez por isso seja conciso –, de modo que nos cabe, como leitores, o esforço de esvaziar a mente para preenchê-la em seguida com cores e sabores, estranhos ou familiares, para usufruir desse acontecimento com as marcas do mais além... FIM – essa tática inútil de cercar o que nos escapa (como diria Vugman).
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* Maria Marta Furlanetto - Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem e do curso de Letras da Unisul; Dra. em Linguística Aplicada. Pesquisadora na linha “Texto e discurso”.

Fonte:
http://www.escritoresdosul/a_casa_sem_fim,_de_fernando_vugman.html.
Acesso em 17.10.2011.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Isabel Furini (Poema 49): Rosas


Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook. 

Monsenhor Orivaldo Robles (Nossas origens)

Em todas as edições o vestibular traz à nossa cidade um bando de jovens num colosso de ônibus de várias procedências. Alguns (ônibus, não estudantes) tornaram-se fregueses de nossas ruas e avenidas. A cada vestibular aparecem de novo. Sinto um prazer infantil em admirá-los. Sua elegante beleza é um convite a viajar para lugares desconhecidos. Lembram meu tempo de criança. Eu nem sonhava com outra forma de viajar que não de ônibus. Naquele tempo eles eram diferentes. No interior em que vivíamos, ônibus era uma gaiola comprida na qual se enfiavam quantos infelizes coubessem. Às vezes, até mais do que cabiam. Levados por centenas de quilômetros, o tempo parecia não ter fim. Conforto, nenhum. Espremidos no meio de sacos de mantimentos, de pacotes, quando não de frango ou de leitãozinho peado, os passageiros suavam como tampa de chaleira. Mães com nenê sofriam o que não sonhavam haver de sofrimento. O ambiente recendia a vestiário de futebol em tarde de dezembro. Só a necessidade fazia embarcar em tal carroção motorizado.

Agora, tudo é diferente. A vida mudou para melhor. Essa molecada que se diverte – com tablets, smartphones e mais quantas novas bugigangas eletrônicas o comércio lança, todo mês – não dá conta de calcular a moleza que é viajar nos dias de hoje. Mesmo de ônibus. Os atuais são ultramodernos, espaçosos, dotados de tantos itens de conforto que nem em casa conseguimos colocar. Conforme a ocasião, oferecem viagem mais agradável ou rápida que as modernas aeronaves que cortam os ares.

Alguns ônibus destinados ao vestibular de nossas universidades procedem do interior paulista. De cidades como Birigui, Penápolis, Votorantim… Imagino-os locados por cursinhos da região. De tê-los visto tantas vezes, já os tenho como amigos. Dois em especial me cativam a atenção acima dos demais. Descobri-os no ano passado. Voltaram para o vestibular desta semana. Sem receio de me enganar, garanto que são mais bonitos e mais novos que todos os outros. Nas laterais, em grandes e graciosas letras manuscritas, o nome da empresa, que é também o da cidade: Poloni Turismo. Ninguém faz ideia do que isso quer dizer. Mas para mim é importante. Eles são da minha cidade. Minha e de mais quatro maringaenses. Podem achar tolice, mas não sabem vocês o custo que é explicar meu local de nascimento, toda vez que me pedem a informação. Explico que se trata de uma pequena cidade da Araraquarense (5.500 habitantes), próxima de São José do Rio Preto. Que o nome foi dado pelo fundador, Cândido Poloni, de ascendência italiana, que, em 03 de maio de 1926, fundou uma vila no meio dos cafezais da região. Para os céticos os ônibus estão aí provando que ela existe.

A maior parte da infância, vivi no sítio. Morei só em duas cidades. Bem pequenas, e por pouquíssimo tempo. Ambas levam o nome do seu criador. A outra é Jales, iniciada por um engenheiro de nome Euphly Jales, em 1940. Conheci ambos os fundadores. Que, evidentemente, nem se deram conta de minha insignificante existência. Mais de meio século depois, divulgo as cidades que fundaram. Obscuros povoados, que me ajudaram a ser o adulto que hoje sou.

Alguns renegam sua origem modesta. Mas valor, se temos algum, nós o levamos dentro de nós. E ele começou a ser construído na cidadezinha humilde, que jamais deixa de ser nossa.

Fonte:
Portal do Rigon.
https://angelorigon.com.br/2012/07/14/nossas-origens/

Silviah Carvalho (Poesias avulsas)


ADEUS!

Agora que a noite já se foi e o dia certamente não chegará
Depois de haver depositado tanto sacrifício no altar da liberdade
vejo que, o amor só descansa morto, vivo é um 'ser" em conflito
venho me despedir de tudo isso aqui, entregar meu espírito

Aurora, amiga que, precede o sol, não permita que eu o veja
a luz traz a tona aquilo que divide meu querer, deixa-me aqui
que, o vento espalhe meu sentimento. E minhas lágrimas
sejam misturadas ao orvalho e assim aniquile  este sofrimento

Cada ramo molhado que tocar seus pés lembrara-se de mim
verás eles molhados de minhas lágrimas, enquanto prostrada
lutava e, dava minha vida por ti, não tenho braços que
me acolham ao pé desta montanha, ficarei aqui...

Até que seja dissipada esta luz que insiste em me manter viva
chamando-me de volta, dizendo que vale a pena sair do esconderijo
que este vento leve esta ilusão e, me ofereça um eterno abrigo

Minha voz calou-se, sou uma ave caída num canto qualquer
venho hoje, outra vez, absorver nestes últimos instantes
o cheiro do vento... Perdi a motivação e agora a fé

Não pergunte por mim, não me procures, deixe-me seguir,
Não sei para onde vou, não tenho você, nada mais importa
Quando leres saiba, esta é da sua despedida a minha resposta
Adeus!
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DEVANEIOS… MEUS!

Tecendo palavras, na presunção de meus devaneios
Numa estação onde folhas cobrem o chão, demonstrando
Solidão... Um jardim (?) silencioso, misterioso atraiu
Os olhos meus, no lado esquerdo uma árvore,
Mostrando seus galhos, pois, suas folhas
Caídas dão esperança de um renascer, ou uma nova vida.
No fim uma casa onde habita meus pensamentos...
Escondida, entrelaçadas pelas árvores...
Como é bendita sua harmonia com os rumores meus!
Divagando nesta madrugada, em suas palavras...
Pude ver e sentir o frescor do sorriso teu.
...Mas, é apenas um desejo meu…
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NEVOEIRO

Faz-me saber do teu querer, pois o meu
É estar com você é te cobrir de amor
Minha alma pede que te tenha com zelo que,
Te faça descansar em meus braços primeiro.

... Para só depois trazê-lo de novo ao meu
Corpo e deixar que seja puro; santo ou
Louco, que seja você, assim como és
Sempre querendo mais um pouco

E fazer com que tudo tenha seu cheiro
Para quando você sumir no nevoeiro
Eu te tenha na cama, nos lençóis
No travesseiro. Não morreria eu jamais
De tristeza se um dia pudesse tê-lo

O amor não é exaustivo ou desesperador
O amor traz conforto e não dor
É seguro de tudo que quer e faz
E nos seus braços eu também teria paz
O amor é o descanso de nossas almas
...  Nada mais
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SEU AMOR É TUDO

Antes que seja aprisionada pelo seu sorriso,
E sinta que a vida não fará mais sentido sem você
Antes que tenha certeza que você é tudo que preciso
Antes que eu perca a razão e no amor volte a crer

Antes que sua solidão misture com minha carência
E suas mãos toquem novamente as minhas
Antes que eu seja vencida por minha impaciência
E passe a crer que perto de você eu não esteja sozinha

Eu voarei rumo aos pinheiros, perto da tristeza
Onde as noites são frias, os dias são longos
Eu estarei a meditar na sua simplicidade e pureza

Na paz que emana de você, na sua doçura e nobreza
Eu irei pensar no silêncio da minha incompreensão
Não diga nada, talvez eu não resista à dor de um sincero não

Eu cheguei no tempo que é para ti a alto-reconstrução
Em que preferes a solidão latente no seu meigo olhar
Eu irei antes que, seja dominada pelo desejo de ficar

E quando este papel envelhecer,
Saiba que esta poetisa que hoje te escreve apesar
De nada ser, desejou ter tudo, e este tudo é você.  
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SOU ALGUÉM QUE TE AMA…

Sou alguém que te ama
Que não sabe mais viver sem você
Que te guarda num lugar especial
Na imensidão do amor
Que supre todo meu querer.

Sou alguém que te ama
E sabe que, minha liberdade
Estará em te esquecer
Te esquecer! Como se fosse possível
Eu faria qualquer coisa por você.

Eu sou alguém que te ama
Que sonha com você, com um toque,
Uma palavra de carinho,
Um alimento, um gesto
Que abrandasse este sofrer.

Sou alguém que te ama
Além do suportável
E de sua presença sou insaciável
Alguém que não te vê na vulgaridade
Alguém que te admira na simplicidade.

Eu sou alguém que te ama
E rouba do tempo às horas
Pra ficar assim, em silencio
Deixando que finde o tempo
E te leve da minha memória.

E esqueça eu que não vivi
Um minuto sequer
Desta nossa historia…
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Fonte:
Um coração que ama
https://umcoracaoqueama.blogspot.com/

Contos e Lendas da África (Os gaviões e os corvos)


(por George W. Bateman)

Koongoo′roo, sultão dos corvos, enviou certo dia uma carta a Mway′way, sultão dos gaviões, dizendo:

“Quero que seu povo seja meu exército.”

A resposta de Mway′way para essa breve mensagem foi também curta:

“Declinamos sua oferta.”

Para amedrontar o gavião, Koongoo′roo mandou então a seguinte ameaça:

“Caso se recuse, iniciaremos uma guerra.”

A réplica do sultão dos gaviões foi à altura:

“Ótimo. Vamos ao combate. Se você nos vencer, seremos seu exército. Mas se formos vitoriosos, vocês serão nossos escravos.”

Reuniram suas tropas e deram início a uma grande batalha. Em pouco tempo ficou claro que os corvos sofreriam uma derrota incontestável. Se algo não fosse feito rapidamente, os corvos seriam dizimados. Um deles, chamado Jeeoo′see, sugeriu então que todos voassem para longe. 

Dito e feito. Os corvos deixaram suas casas e se estabeleceram em uma cidade longe dali. Quando os gaviões finalmente invadiram sua aldeia, não encontraram ninguém e acabaram fixando residência na Cidade dos Corvos.

Um dia, quando os corvos estavam reunidos em conselho, Koongoo′roo disse:

— Meu povo, sigam minhas ordens e tudo ficará bem. Arranquem algumas de minhas penas e me joguem na cidade dos gaviões. Então voltem para cá e aguardem notícias minhas.

Os corvos obedeceram aos comandos de seu sultão sem questionar.

Pouco tempo após ser deixado na rua, alguns gaviões que passavam por ali viram o sultão e o interpelaram:

— O que faz em nossa cidade?

— Meus compatriotas me espancaram e me expulsaram da cidade, — gemeu Koongoo′roo — porque tentei convencê-los a seguir Mway′way, sultão dos gaviões.

Ao ouvir tal justificativa, pegaram-no e levaram-no até o sultão.

— Encontramos este sujeito jogado na rua. Segundo ele, sua presença involuntária em nossa cidade se deve a circunstâncias tão insólitas que achamos por bem trazê-lo para que se explique pessoalmente.

Koongoo′roo repetiu sua história, acrescentando que havia sofrido muito por defender sua opinião de que Mway′way era o sultão por direito.

Obviamente sua farsa causou uma ótima impressão, e o sultão dos gaviões disse:

— Você tem mais juízo do que todos da sua tribo. Acredito que possa ficar aqui e viver conosco.

Após expressar sua gratidão, Koongoo′roo resignou-se, ou assim fez parecer, a passar o resto de sua vida com os gaviões.

Certo dia seus vizinhos o convidaram para acompanhá-los à igreja. Ao retornarem, perguntaram-lhe:

— Quem tem a melhor religião, os gaviões ou os corvos?

— Ah, os gaviões, sem dúvida! — respondeu com entusiasmo o traiçoeiro
corvo.

A resposta agradou muito aos gaviões, e Koongoo′roo passou a ser visto como uma ave de notável discernimento.

Passada quase uma semana, o corvo conseguiu escapulir no meio da noite e voltou à sua cidade. Lá chegando, reuniu seus súditos.

— Amanhã é o grande feriado religioso dos gaviões. Todos irão à igreja de manhã. Vão, recolham lenha, façam fogo e esperem nos arredores da cidade. Quando eu der o sinal, invadam a igreja rapidamente e queimem tudo.

E então voou de volta à cidade de Mway′way.

Os corvos trabalharam muito durante a noite. Ao amanhecer, tinham já uma grande quantidade de lenha queimando, e estavam prontos para o ataque. Colocaram-se então em alerta, próximos à cidade de seus inimigos. Quando a manhã chegou, todos os corvos se dirigiram à igreja. Não ficou um só em casa, exceto o velhaco Koongoo′roo.

Seus vizinhos foram chamá-lo e encontraram-no deitado.

— Ora essa! — exclamaram, surpresos. — Então não vai à igreja hoje?

— Ah, como eu queria! — gemeu o corvo. — Mas estou com tanta dor de barriga que nem posso me mexer.

— Que pena. É melhor ficar na cama mesmo. — E deixaram-no sozinho.

Assim que todos saíram, Koongoo′roo voou rapidamente para onde estavam seus soldados e deu a ordem:

— Vamos! Estão todos na igreja!

Em pouco tempo, os corvos cercaram silenciosamente o templo. Alguns empilharam lenha junto à porta e outros atearam fogo.

A madeira começou a queimar quase instantaneamente e, antes que os gaviões se dessem conta do perigo, o fogo já ia alto. Quando a fumaça preencheu a igreja e as chamas começaram a invadir as frestas das paredes, os gaviões tentaram escapar pelas janelas. A maior parte morreu sufocada; outros, entre eles Mway′way, não conseguiram voar por conta das queimaduras em suas asas e foram carbonizados. E assim Koongoo′roo e seu exército retomaram a sua cidade.

Desde esse dia os gaviões fogem ao ver os corvos.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Tertúlia da Saudade 10: Bastos Tigre

 

Newton Sampaio (Bomba de Santo Antônio)

(contos do sertão paranaense)

O vilarejo sem história, apertado em todos os ângulos pelas sentinelas inflexíveis das serras, libertava-se pouco a pouco da serena dormida sob um céu enfeitado de estrelas. A alvorada, sem clarins nem tambores, ia espantando, bem pra lá dos grotões e dos picos as grandes sombras inúteis. Para que os telados das casas sem simetria começassem a fuzilar como as águas do rio. Do rio largo que vinha de muito longe caprichando arabescos nos vazios deselegantes das cordilheiras. Que vinha de longe e arrastava, não sei para que mistérios, as vibrações daquele povoado distante. Daquele povoado perdido no fundo do sertão paranaense.

Na última esquina um sírio gorducho abre a casa de armarinhos. O sírio varre o assoalho cuspinhado, diz um palavrão impossível por causa do vira-lata sem vergonha que queria se coçar nas portas do respeitável estabelecimento. Diz o palavrão no momento exato em que o vizinho da frente, sentando na beira do catre, amaldiçoa a botina ringideira. A mulher chega e ajuda. Benedito Olivério exibe, na risada de bem-aventurado, uma dúzia de maus dentes. E Nida volta à cozinha, onde as crianças esfregam os olhos ainda cheios de sono e de remela, e reclamam choramingando um naco de batata assada.

O Tonico, filho mais velho, parado na porta que dá para o quintal, espia o longínquo e azulado Pico Agudo. De repente diz:

— Mãe. Hoje eu queria comer pão.

— Cala a boca, feição de enorme. Já se viu esse luxo?

— Mas hoje é o meu dia...

Intervém Benedito Olivério:

— Patroa. Faça a vontade do menino. Pelo menos no dia de Santo Antônio.

Nida resmunga seu protesto de todas as horas. E fecha a cara quando o marido, ajeitando a cinta, procura um níquel de duzentos réis.

De tardinha, só o Tonico não comparece à novena. Fica no quintal da casa encasmurrado, longe dos busca-pés, das bombas de parede. Longe da garotada que aplaude o balão subindo, o balão inchado como fêmea pandorga.

Depois da novena, os irmãozinhos de mãos vazias, mas num assanhamento sem conta, vão peruar a festa das outras crianças.

O Tonico se chega ao pai.

— Eu queria rebentar uma bomba, hoje. Só uma.

Nida interrompe violentamente.

— Diabo de guri pedinchão! Pensa que a gente plantou dinheiro na horta?

— Não se amofine, mulher. É comigo que ele está falando. – E para o filho: “pega lá, rapaz.”

Nida não se conforma.

— É um esbanjamento nesta casa... Tomara que essa bomba rebente nas fuças de vocês.

Tonico sai em silêncio. Com vontade, com uma bruta vontade de comprar uma bomba do tamanho do mundo e jogá-la de encontro à lua, no crescente.

— Seu Indalécio. Qual é a maior bomba que o senhor tem aí?

— A maior é esta que veio como brinde. Mas esta eu não vendo.

— Venda seu Indalécio. Lhe dou quatrocentão por ela.

O velho sente uma força diferente no olhar do guri. E lhe dá de presente a maior bomba daquele comércio, recomendando:

— Cuidado menino. O estouro desse não é estouro de traque, não. 

Na esquina a gurizada se aglomera, inquieta. E o filho de Benedito Olivério grita:

— Pessoal. Espia só o estouro desta.

Aperta na mão direita o famoso embrulho. Precisa tomar impulso, arreda um passo, arreda dois, descreve meia curva com o braço distendido, projeta a bomba que volta intacta da parede da casa.

Sai da experiência ainda mais acabrunhado. Quisera, como nunca, uma pelota do tamanho do mundo para atirá-la de encontro à lua no crescente. Por isso caminha de cabeça baixa sozinho para o lado do Rio das Cinzas. Do rio que banhava aquele vilarejo distante. Do rio que vinha muito de longe, caprichando arabescos nos claros deselegantes das cordilheiras, fazendo redemoinhos em fundos grotões cheios de história…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIX


AMA! SÊ BOM!
 
MOTE:
 Ama, sê bom, e terás
horas tranquilas e calmas…
O amor é um sol que desfaz
a neblina que há nas almas!...
José Maria Machado de Araújo  
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Ama, sê bom, e terás
o teu coração contente,
e assim, também, tu farás
mais feliz, muito mais  gente!
 
O amor traz ao coração
horas tranquilas e calmas...
E as mãos doces da emoção,
unem-se batendo palmas!
 
Na bondade sempre há paz,
é a morada da alegria!
O amor é um sol que desfaz
a tristeza que angustia!
 
Vem, aquece a humanidade,
pois com teu calor acalmas
e terminas de verdade
a neblina que há nas almas!…
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RELER MENTIRAS...
 
MOTE:
Não deixe as cartas que eu mando
sem resposta, por favor,
porque é bom de vez em quando
reler mentiras de amor.
Maria Nascimento Santos Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA: 
Não deixe as cartas que eu mando
guardadas, sem  as abrir,
pois fico ansiosa esperando...
Quero de novo sorrir!
 
Não deixe nunca, eu lhe peço,
sem resposta, por favor,
minhas cartas, e eu confesso,
sem elas é grande a dor!
 
Eu fico feliz, sonhando,
em verdadeira utopia,
porque é bom de vez em quando
sentir em nós, a alegria!
 
No universo da ilusão
o meu mundo é encantador,
faz bem ao meu coração
reler mentiras de amor.
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A TROVA
 
MOTE:
A trova emite um conceito,
com tal engenho e primor,
que deixa o autor satisfeito,
e muito mais o leitor.
Miguel Russowsky  
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

GLOSA:
A trova emite um conceito,
e uma mensagem bonita,
que cativa com seu jeito...
Nada no mundo a limita!
 
Com roupagem sempre nova,
com tal engenho e primor,
ao nascer mais uma trova,
nasce sempre um novo amor!
 
É um amor que estoura o peito
trazendo paz e alegria,
que deixa o autor satisfeito,
ao ver a sua poesia!
 
A trova é semente pura
agradando o seu feitor,
enobrecendo a cultura
e muito mais o leitor.
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PERTO DO MAR...
 
MOTE:
Na tarde suave e bonita,
sento-me perto do mar,
pela amplidão infinita
deixo minha alma vagar!
Reinaldo Aguiar
Natal/RN, 1921 – 2010

GLOSA:
Na tarde suave e bonita,
olhos fitos no horizonte,
a felicidade grita
e o eco forma uma ponte!
 
Feliz, cheia de alegria,
sento-me perto do mar
e vivo, em mim, a poesia
que terna vem me abraçar!
 
A onda mansa se agita
num carinho encantador...
pela amplidão infinita
eu viajo com ardor!
 
Na onda espumante e linda,
que vem os meus pés beijar,
sentindo ternura infinda
deixo minha alma vagar!
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NOSSAS MENSAGENS
 
MOTE:
As mensagens de esperança
que trocamos, tu e eu,
são hoje apenas lembrança
da esperança que morreu!
Silvina Antunes Leal
Santos/SP
 
GLOSA:
As mensagens de esperança
entre nós dois, eram lindas,
falavam da nossa andança
e de ternuras infindas!
 
Lembro, ainda, dos carinhos
que trocamos, tu e eu,
foi luz em nossos caminhos,
diminuindo o triste breu!
 
Mas a bem-aventurança
dessas  mensagens de amor,
são hoje apenas lembrança,
que nos causa angústia e dor!
 
E essa dor, em nós, tão triste,
e que nenhum esqueceu,
comprova que nada existe,
da esperança que morreu!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.