quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “04”

 

Estante de Livros (Nós: uma antologia de literatura indígena)

T
exto por Laura Brand

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma coletânea de contos de indígenas brasileiros. Com pouco mais de 120 páginas, o livro reúne alguns mitos e contos que sobreviveram a gerações e preserva parte de uma rica história de alguns dos primeiros povos brasileiros.

Estamos acostumados a mergulhar na literatura estrangeira e, quando nos aventuramos na literária nacional, optamos por aquela escrita por brasileiros brancos, de descendência europeia. Ter contato com as narrativas indígenas é algo raríssimo para a maior parte de nós e o livro organizado e ilustrado por Maurício Negro é uma forma de tentar mudar essa realidade, principalmente para jovens leitores.

Nós: uma antologia de literatura indígena é um livro composto por onze contos escritos por descendentes ou nativos de tribos indígenas brasileiras. Além de uma belíssima ilustração abrindo cada capítulo, os contos acompanham um glossário dos termos utilizados, uma mini biografia de cada autor ou atores dos contos e uma breve explicação sobre aquele povo ao qual o conto faz referência ou ao qual a história está inserida. Isso faz com que o livro seja ainda mais enriquecedor, principalmente para os leitores que não estão habituados com determinadas narrativas ou que nunca ouviram falar desses povos. E como os contos são bem curtinhos, o livro se torna uma leitura rápida, divertida e muito rica.

Por meio dos contos escritos por autores de diferentes povos indígenas, Nós: uma antologia de literatura indígena ajuda a exemplificar a rica diversidade existente até hoje no nosso país. O livro é editado e publicado pelo selo Companhia das Letrinhas e isso em si foi um ponto interessante. Isso porque, ao escolher os jovens como foco de um livro de narrativas indígenas, é possível perceber uma preocupação em formar uma nova geração de leitores acostumados a ouvir e buscar outras perspectivas que não apenas estadunidenses e/ou europeias. Foi uma excelente escolha do Grupo Companhia das Letras e abre espaço para novos diálogos e vozes.

Nós: uma antologia de literatura indígena é uma homenagem à verdadeira ancestralidade brasileira. Um livro que reúne memórias e sabedorias milenares de alguns dos povos originários do nosso país e que, por meio da literatura, ainda resistem e expõem sua cultura para o resto do mundo.

Tive pouco contato com esse tipo de narrativa, mas Nós me deixou com um gostinho de quero mais. Não consegui deixar de pensar que o livro poderia ser uma alternativa às ficções europeias que os pais costumam ler para os filhos. Nós é uma forma de conhecermos mais sobre os verdadeiros brasileiros e de abrimos espaço para pensarmos e ouvirmos diferentes vivências e experiências. Mais uma vez a literatura se mostra poderosa.

“Nesta belíssima antologia ilustrada, o leitor vai conhecer dez histórias contadas ou recontadas por escritores de diferentes nações indígenas.

A menina Yacy-May era tão especial que fez com que o sol se apaixonasse por ela, deixando a lua enciumada. O peixe-boi surgiu a partir da união de Guaporé, filho do grande chefe dos peixes, com Panãby’piã, filha do governante dos Maraguá, e sinalizou a paz entre os humanos e os peixes. A velha misteriosa Pelenosamo tem um dia a casa invadida por uma garota curiosa, que resolve investigar o que ela fazia com os galhos secos que sempre levava recolhia e não dividia com ninguém. Essas são algumas prévias das histórias reunidas nesta antologia, contadas ou recontadas por escritores das nações indígenas Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Tratando dos mais diversos temas — dos mitos de origem às histórias de amor impossível —, as narrativas conduzem o leitor por situações e desenlaces muito próprios, sempre acompanhadas por um glossário e um texto informativo sobre o povo indígena de origem de cada autor. Esta é uma chance preciosa para todos aqueles que desejam entrar em contato com as raízes mais profundas de nossa cultura, ainda pouco valorizadas e respeitadas, por puro desconhecimento.”

Fonte:
Site Nostalgia Cinza, de Laura Brand
https://www.nostalgiacinza.com.br/2019/12/resenha-nos.html

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Adega de Versos 112: Jaqueline Machado

 

Aparecido Raimundo de Souza (A tresloucada mania de estourar bolinhas)

POR QUAL MOTIVO as pessoas tem o costume de estourar as bolinhas dos sacos conhecidos como plásticos bolhas que encontram pela frente? Notem que não são só os idosos que se ocupam em fazer uso de tal prática. Em dias atuais, a empreitada se tornou corriqueira. Virou febre. A coisa se propagou oriunda dos nossos avós. Passou, às carreiras, ao convívio dos nossos pais, depois aos nossos filhos e atingiu, em cheio, os adolescentes “mais sem noção de qualquer coisa considerada normal”. Em contrapartida, caiu como luva de pelica, ou como uma nuvem de presságios benignos que tivesse vindo de longe e sobrevoado por sobre as nossas cabeças, sem nenhum tipo de interferência.

Pois bem! Mesmo trilho, é comum, em dias de hoje, ver um velhinho andando pela rua ou sentado na praça, ou mesmo em casa, diante da televisão (que nem de longe lhe chama a atenção), estourando bolinhas, como também uma garotinha simpática entretida com o seu canal de desenhos preferidos tendo às mãos ocupadas em detonar, com esmero e até uma certa exaltação, uma centena de bolinhas de vento. A pergunta que não quer calar: que tara seria essa que faz as pessoas viajarem no desperdício do que restou da sopa, perdão, da maionese?

Que espécie de doideira branda e ao mesmo tempo avassaladora é a dita diversão que invade a cabeça das criaturas a ponto de fazê-las esquecer seus afazeres somente para se aterem ao pipocar do ar saído das suas entranhas e, de contrapeso, do barulho peculiar provocado quando se contraem e arrebentam? As respostas ouvidas numa enquete onde participaram mais de trezentas pessoas, se fizeram as mais variadas possíveis. Algumas sem nexo, porém, todas voltadas para um mesmo ponto de equilíbrio: a mente sã. Vejam as reações colhidas:

— Alivia a tensão;

Seguidas de:
— Relaxa os nervos;
— Qual o quê! Mexe com os músculos;
— Evita o LER;
— Deixa o cara doidão completamente em alfa;
— Faz esquecer um pouco, os problemas;
— Melhor que uma cerveja bem gelada;

Sem falar que criaturas afoitas, rasgaram o verbo:
— Mata a fome como se fosse uma boa marmita de feijão, arroz e carne assada;
— Resgata as coisas boas da vida;
— A gente se desprende do corpo e voa alto.

Alguns chegaram ao cúmulo de levarem a obstinação para o lado médico. Talvez, em face de portentosa cissura, o doutor Drauzio Varella, em seu livro “A Teoria das Janelas Quebradas”, tenha concluído: “funciona como uma terapia ocupacional relaxante que atinge o seu ápice no exato instante em que o ato de apertar se funde com a fratura exposta das bolinhas detonadas como um todo.”

O “tac, tac” repetitivo e reiterado, quando provocado pelos dedos comprimindo o invólucro que as envolvem, desencadeia uma sensação suave de alivio imediato –, relata a escritora Dawn Huebner em seu livro “O que Fazer Quando Você Tem Muitas Manias: um guia para as Crianças superarem o Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC. ” e – conclui, com brilhantismo: “por conta, se converte num remédio prático e eficaz e, o mais importante, se transforma numa receita barata, sem carência, sem as loucuras dos enfrentamentos de filas quilométricas em postos de saúde, como, igualmente, sem necessitar de consultas à médicos especialistas. Resumindo, uma solução meio que mágica. Sintetizando, uma espécie de mandinga, entre aspas, ao alcance de todos.””

“Devemos esclarecer, em contrapartida –, argumenta Olavo de Carvalho em seu livro “O imbecil Coletivo” –, os barulhinhos provocados pelos espocares dos plásticos bolhas, libertam as tensões, acalmam os estresses, espantam os cansaços do dia a dia e fazem com que o organismo volte à sua postura normal. Vale, igualmente, para todos, sem contraindicações. Tornou-se uma espécie meio que irracional de turra ou birra, como a teimosia galopante pelos refrigerantes, aos copos de cerveja, aos cigarros, queimados entre os amigos, as peladas sem uma pelada desvestida nos finais de semana e até o futebol pela televisão””.

A cada dia aumenta consideravelmente o número de escolas espalhadas pelo país, não só da rede pública, como os estabelecimentos particulares (principalmente os colégios das classes altas), que passaram a adotar, em seus currículos, o hábito de “apertar bolinhas” como uma intermediação para “apaziguar os alunos mais inacessíveis e de difícil convivência com os demais colegas dentro e fora das salas de aulas”. Em viagens longas, é comum depararmos com pessoas estrondando bolinhas. E a teima empenhada não ficou só nas esferas menos favorecidas. Nos ônibus interestaduais, nos voos comerciais, criaturas de posses e também aquelas sem os confortos das riquezas, indivíduos entre uma bebida e outra, retiram de suas bagagens de mãos, ou dos fundilhos das calças, discretos saquinho com as preciosas bolinhas para serem enfuriadas, arrebentadas, ou vias idênticas (como dizem os capixabas), “pocadas.”  

Indo direto ao ponto, a teoria dos estouros das bolinhas, ou a liberação do ar aprisionado dentro dos plásticos bolhas, é de excelente alvitre que se deixe claro, vale a pena a todos que carregam essa interessante, engraçada e até divertida mania de sacrificarem tais bolinhas, lerem com bastante atenção e acuidade, o livro “Completamente idiota” do escritor alemão, Tommy Jaud. O autor, pasmem, caros amigos, deixou de ser um imbecil de carteirinha ao descobrir uma maneira simples, fácil e rápida de ganhar dinheiro escrevendo um livro de leitura acessível, onde todo aquele que se acha um idiota ou pretende ser futuramente, deve ter ao alcance da sua mesinha de cabeceira. No final das contas, para o cotidiano da vida, fica a lição de não ser (ou ser, em definitivo) considerado, pelos amigos e familiares, uma pessoa completamente idiota.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 58

 

Contos e Lendas da África (Uma viagem em busca de sal)


(por Robert Hamill Nassau)


PERSONAGENS
Njâbu (civeta*) *conhecido por Gato de Algália.
Mbâmâ (jiboia)
Ngweya (porco-do-mato)
Kudu (jabuti)
Um homem e outros caçadores

PREFÁCIO


Antigamente, as tribos localizadas nas costas africanas ferviam água do mar em panelas de latão, chamadas de netunos. Era assim que obtinham sal, que depois vendiam para as tribos mais distantes.
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Esses quatro animais viviam próximos um do outro em uma mesma aldeia.

Certa noite, aproximadamente uma hora após anoitecer, estavam todos sentados na calçada, conversando. O jabuti Kudu anunciou a todos:

— Ouçam! Tenho algo a dizer! Quero lhes fazer um convite. Vamos fazer uma pequena viagem amanhã. Atravessaremos a floresta até chegar à praia, para comprarmos sal.

— Sim, vamos! — todos concordaram.

E pouco tempo depois foram para suas casas dormir.

Um novo dia nasceu.

Prepararam-se para partir logo cedo.

— Tenho outro pedido. Será o último. Durante o trajeto, ninguém deve criar distrações ou inventar coisas que nos atrasem. Devemos ir direto até a praia.

— Tudo bem, estamos de acordo. — responderam.

E assim começaram sua viagem através da floresta. Seguiram por um bom tempo, pois o plano era percorrer a maior distância possível até pararem para acampar durante a noite. No entanto, ao longo do caminho a civeta Njâbu começou a se queixar:

— Ah, que dor de barriga! Ah, como meu estômago dói!

— Como assim, dor de barriga? — perguntou Kudu.

— Quero dizer que estou apertado! Preciso fazer minhas necessidades!

— Ora, vá! Procure um arbusto aí pelos lados. Esperamos você.

— Não consigo fazer no mato! — resmungou a civeta. — Tenho que voltar para a casa da minha mãe!

— Nem pensar! — esbravejou o jabuti. — O que combinamos antes de sair?

— Nada de atrasos ou distrações. — disseram os outros.

— E você, Njâbu, vai nos atrasar, e atrasos vão nos trazer problemas — acrescentou Kudu.

Mesmo assim, a civeta correu de volta para a cidade e foi ao banheiro de sua casa, enquanto os três a esperavam. Muito tempo depois, já de noite, Njâbu retornou, aliviada.

— Agora me sinto bem melhor. — disse.

No dia seguinte, levantaram-se animados.

— Vamos seguir viagem! — E retomaram o caminho.

Caminharam um bom percurso até que a jiboia Mbâmâ exclamou:

— Ah, que dor de barriga! Ah, como meu estômago dói!

— Como assim, dor de barriga? — perguntou Kudu.

— Quero dizer que estou com fome!

— Não tem problema. Trouxemos comida para a viagem. Venham todos, vamos almoçar. — sugeriu o jabuti.

— Não gosto dessa comida. Vou procurar outro tipo.

— Que outro tipo?

— Vou entrar um pouco na floresta, volto logo. — avisou a jiboia.

Ao entrar na mata ela avistou um antílope vermelho. Mbâmâ então enrolou seu corpo, da maneira que as jiboias fazem quando estão à espreita. O antílope passou saltando e a cobra deu o bote, matando-o. Cobriu-o todo com sua saliva, pois é assim que as jiboias conseguem engolir presas tão grandes. Em seguida arrastou-o até o local onde estavam acampados e preparou-se para devorá-lo.

— Vamos comer todos juntos então. — sugeriu Kudu.

— Se na cidade não dividimos nossa comida, não é aqui que vamos fazer isso. — a jiboia respondeu, antes de engolir o antílope inteiro.

Mbâmâ então chamou seus companheiros e disse:

— Pronto, agora estou satisfeita.

— Certo, então vamos seguir viagem. — disse o jabuti.

— Não! Só consigo continuar depois de digerir tudo.

— Mas ora essa! — exclamou Kudu. — Eu falei na cidade, sem distrações! Njâbu já nos causou atrasos, agora você!

Sem ter o que fazer, todos se sentaram para esperar a jiboia. Aguardaram um mês para que ela fizesse sua digestão.

— Agora podemos partir, — disse ela — mas antes vou ao rio beber água.

E bebeu uma grande quantidade, que a fez expelir os ossos do antílope.

— Estou bem melhor agora. Podemos ir.

Caminharam por muito tempo até encontrarem uma árvore caída, cujo tronco atravessava a estrada e as folhas ainda estavam verdes. O porco-do-mato e a civeta saltaram sobre ela e a jiboia esgueirou-se por baixo. Chamaram o jabuti, que tentava em vão escalar o tronco para chegar ao outro lado.

— Venha! Salte!

— Não consigo! Vocês sabem que minhas pernas são curtas! — disse Kudu, envergonhado. — Só conseguirei atravessar quando este tronco apodrecer e se partir.

— Esta árvore caiu há pouco tempo! Sabe-se lá quantos dias vai demorar para o tronco apodrecer.

— A culpa não é minha! Se vocês não tivessem nos atrasado, Njâbu e Mbâmâ, já teríamos passado por aqui bem antes da árvore cair. Você inventou uma distração, Njâbu, e depois você, Mbâmâ. Agora tratem de me esperar!

Assim fizeram.

Durante essa pausa, os outros três costumavam sair de manhã cedo para uma plantação próxima, onde havia milho, inhame, banana e outros vegetais. A civeta e o porco-do-mato comeram todo o milho e bananas que havia.

Um dia um homem de outra aldeia perambulava pela floresta. Caminhava olhando para todos os lados, à procura de caça, quando encontrou o rastro de animais. Examinou atentamente e exclamou:

— Estas pegadas parecem ser de jabuti! Sim, e aqui há rastros de um porco-do-mato. Ah, e uma civeta também passou por aqui. E também há uma trilha de jiboia! Há muitos animais nesta área. Vou voltar à cidade e chamar outras pessoas para me ajudarem a caçá-los.

Correu de volta para sua cidade e começou a gritar:

— Venham, homens! Vamos à floresta! Encontrei vários animais!

Um dos que atendeu a seu chamado foi o dono da plantação. Outros se juntaram ao grupo, levando armas, facões, lanças e redes, além de cães com guizos na coleira. Partiram sem demora.

Ao se aproximarem dos animais, os cachorros começaram a latir e seus guizos balançaram enquanto corriam. Os homens gritavam para fazer os animais caírem nas redes. O primeiro a ser capturado foi o porco-do-mato, morto com um tiro. Em seguida apanharam a civeta e a atravessaram com uma lança. Encontraram a jiboia dormindo ao lado do tronco e também a mataram. Por fim descobriram o jabuti, que tentava se esconder debaixo das folhas que haviam caído da árvore. Acabou capturado. Foi o único a ser mantido vivo, após ser amarrado.

A caçada havia começado no final da tarde, quando os homens chegaram à cidade, já anoitecia.

— Vamos guardar as caças em uma casa — propôs um deles —, mas deixe o jabuti pendurado em uma viga do teto.

— Amanhã comeremos. — disse outro. — Já está tarde para preparar e cozinhar, vamos dormir.

Perto da meia-noite, após muito esforço, Kudu conseguiu enfim se libertar das cordas. Foi até o canto da sala onde os cadáveres de seus amigos estavam e disse para a civeta:

— Não avisei que não deveríamos inventar desvios em nosso caminho? Agora você está morta.

E virando-se para a jiboia:

— Você também, Mbâmâ. Disse para não nos atrasar. Mataram você também. Se não inventassem tantos assuntos, teríamos feito nossa viagem sem nenhum perigo.

Então escavou um buraco na parede da casa e escapou para a floresta.

Logo amanheceu e os habitantes da cidade disseram uns para os outros:

— Tragam os animais para fora. Vamos cortá-los e prepará-los.

E assim foi feito com os três capturados.

— Traga também o jabuti que está amarrado — pediram a um rapaz.

O jovem logo saiu da casa dizendo:

— Não encontrei nenhum jabuti.

Todos entraram para procurá-lo e, ao verem que não estava lá, disseram:

— Vamos comer o que caçamos. Deixe o jabuti para lá, pois conseguiu fugir.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 2


AMIZADE

Não cesso de agradecer
por ter eu boa amizade;
muito enriquece meu ser
o bem da fidelidade.

Amizade é amor puro
de transparência contida;
por isso, exclamo seguro:
Salve, oh, âncora da vida!

Seria o pior desabrigo
enfrentar luta sofrida.
Sem ter sequer um amigo
na caminhada da vida.

Como é bom ter amizade,
uma existência querida,
mais que solidariedade,
isso é dádiva da vida!
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O DOM DA ESCOLHA

A inteligência contempla,
como que num espelho,
os pendores do livre-arbítrio
— dom da liberdade humana —
que se manifesta como sendo
frente e verso,
direito e avesso,
— Dom da Escolha —
terrível faca de dois gumes...
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VOZ DO POETA

Contemplo,
com alma de poeta,
o nascer da aurora,
o brilho do Sol,
a pureza dos lírios.

Contemplo,
com sentidos de poeta,
o canto dos pássaros,
o colorido das borboletas,
a lira da primavera.

Contemplo,
com sonhos de poeta,
o fim da corrupção,
a honestidade e o progresso,
o amor entre os irmãos.

Contemplo,
com crença de poeta,
a lição das dores,
o perfume das flores,
a força do amor.

Só me resta poetar,
traçando lições de vida,
ao céu, à terra e ao mar...
Que todo vivente, um dia
claramente, em boa meta,
possa repetir feliz:
"Bendita és tu, para sempre,
mística Voz de Poeta"!
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O BOM CONSELHEIRO

Veja bem, meu irmão,
o melhor conselheiro,
sem nenhuma paixão,
e melhor companheiro,
que a você nunca trai,
superior ao travesseiro,
é um herói, é seu pai.
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CANTA CANTA, PASSARINHO

Canta, canta, passarinho,
canções de me comover!
Canta ao luar, e mansinho,
pra ser lindo o alvorecer!

Canta, canta, passarinho,
sem violência nem pavor!
Traze teu canto alegrinho
pra quem sonha em linda cor.

Canta, canta, passarinho,
— suave despertador
de uma criança em seu ninho
que tem suspiros de amor.

Canta, canta, passarinho,
antes de o dia raiar;
vem, para, com seu carinho
um belo anjinho acordar.
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Ainda que um ser social eu seja,
que adore o convívio dos semelhantes,
que, em contato com pessoas,
tenha vivido profissionalmente,
ainda assim, muitas vezes,
eu gosto de estar só.

Quando estou só,
não me sinto em solidão;
Dou asas ao meu pensamento,
tenho sonhos em preto e branco,
sonhos coloridos, lindos,
construo castelos perfeitos,
encontro a princesa mais bela,
faço poemas,
escrevo trovas,
componho silenciosas melodias,
desenvolvo um pensamento filosófico…

Fonte: Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 13: O vinho derramado

Ainda que prestes a fazer um grande sacrifício, Isadora se mantém otimista. A tempestade, em seu peito, antes tão revolta, deu lugar a uma bonança com cheiro de terra molhada e alecrim.

Ela não sabia como, mas repentinamente passou a crer na possível intervenção de um milagre, capaz de colocar sua mãe de pé e assim, jamais casar-se contra a própria vontade.

Depois de conversar com Genuíno, de sentir seu toque e enamorar-se do seu sorriso, um portal de luz se abriu em seu caminho, e a voz da esperança decidiu sussurrar em seus sonhadores tímpanos: “Tudo dará certo”.  

Com a mesa posta por dona Ana, todos acomodados e sem poder adiar a desagradável situação, Isadora sentou-se ao lado do pai. Os pais do noivo, senhor Pafúncio e dona Rebeca, não escondiam o entusiasmo de ver o filho encaminhado, ao lado de uma moça tão bela e prendada.

Senhor Antônio ajeitou a guaiaca* e, de pé, fez um breve pronunciamento:

- O coração desse “véio” campeiro, tá faceiro. Pois nesse momento, passo a mão da minha formosa “fia” a esse guri por quem tenho forte apreço. Fábio, Isadora é meu grande tesouro. Cuida bem dela.

- Será tratada e preservada como a joia rara que é. - disse o rapaz ao abrir uma garrafa de vinho, servir a taça de todos e levantar um brinde.

O coração da prenda disparou. A mão visivelmente trêmula fez com que um pouco da bebida derramasse sobre a tolha branca.

Seria esse um sinal de que a virgindade de sua essência estava prestes a ser maculada?

Isadora não se preocupava apenas com a virgindade do corpo, mas também com a virgindade da alma. Temia ser derrotada pela nova realidade, de mirar-se ao espelho e ver uma mulher triste, amarga, com os sonhos desfeitos em lágrimas.

Depois de aterrorizar-se com as próprias sombras, ela voltou a si e pensou: “Preciso acreditar na voz da esperança. Deus há de me libertar desse compromisso insano”.

Reagindo ao mal súbito, sorriu. E seu pai continuou: - Pena não ter tido tempo para um grande festejo. Mas o casório logo sai. E a festa será grande.

Dona Ana, ao sentir a dor da filha, prendeu uma lágrima no olhar, pois sabia que precisava manter -se calma.

- Com certeza. - disse o quase sogro de Isadora. – Será uma festa de arromba!

Os pais do noivo pareciam simpáticos, sobretudo a esposa, uma senhora elegante, de cabelo grisalho.

- Meu filho é um bom homem. Fará sua filha feliz. - disse.

Nesse fatídico momento, Fábio desembrulhou um delicado estojo, do qual retirou uma aliança cravejada de brilhantes e, com o pedido de licença, levou a joia à mão da mulher que ele escolheu para esposa.

O coração de Isadora voltou a acelerar, e tentou aceitar a ocasião como um pesadelo breve que logo daria lugar a belos sonhos.

- Viva os noivos! - bradou o velho Antônio, erguendo a taça transbordando de vinho.

Ao término do jantar, os pais de Isadora e do noivo continuaram a prosa na sala, e o rapaz convidou a noiva para um passeio.  

- Podem ir, mas não demorem por ai. - disse Antônio.

Eles caminharam até o jardim onde Isadora há poucas horas vivera um dos melhores ou o melhor momento de sua vida, junto daquele que assemelhava-se à sua alma, e que de fato poderia fazê-la realizada.

- Estou muito feliz com o noivado. - disse Fábio.

- Desculpe... Mal nos conhecemos. Não sei bem o que dizer.

- Dá para perceber o teu desconforto. Mas logo isso passa.

Tentando quebrar o gelo, ele falou das fazendas e da quantidade numerosa de empregados que possuía junto ao seu pai. Falou também dos carros e das roupas caras, mostrando pertencer ao universo das coisas materiais, frias e perecíveis a qualquer ruído do tempo.

Em suas palavras não se ouvia nada que dissesse respeito ao amor, amizade, bondade. Isadora ouviu tudo com certo desdém. Ele percebeu o desgosto da moça, mas com o controle da situação em suas mãos, continuou a falar. Certo momento, pausou as palavras e fez menção de beijá-la.

- Não! - disse ela, enfaticamente.

- Por que, não? Agora temos um compromisso. Podemos nos beijar.

- Não estou pronta para isso.

- Que besteira! - exclamou ele a tomando pela cintura.

- Por favor. Não force!

- Está bem.

- Melhor voltarmos. Está tarde. Os lampiões das casas estão se apagando.

- Claro, minha noiva.

Ao entrar em casa, Isadora disse estar cansada, e despediu -se de todos.

De frente para a janela do seu quarto, respirou fundo, agradeceu a Deus por ter conseguido suportar aquela terrível provação sem ceder à tentação de sair correndo. E adormeceu pensando em Genuíno...
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Nota de rodapé

* A guaiaca é um acessório masculino parecido com um cinto, feito de tira de couro larga e fechamento em fivela.

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continua…

Fonte:
Texto enviado pela autora

domingo, 17 de setembro de 2023

Isabel Furini (Poema 49): Rosas

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.


Humberto de Campos (O perfume)

(Sobre uma frase de Alexandre Dumas Filho)


Saída do colégio em dezembro último, Angelita recebeu da sua mamãe a promessa de um vestido de passeio, um verdadeiro vestido de moça, escolhido por ela mesma, assim que regressassem da fazenda, em Barra Mansa, depois do Carnaval. Inocente ainda, foi batendo os dois lírios das mãos que a menina ouviu a noticia. E foi, para ela, para os seus dezesseis anos incompletos, um momento de alegria irreprimível, aquele em que, sentado na sua cama alva, pura como um berço, escolheu, manuseando uma dúzia de revistas de modas, o figurino que mais lhe encantava os olhos.

Feita a encomenda a uma das modistas do bairro, foi esta, dias depois, levar o vestido à última prova. Contente, feliz, pulando pela casa, era com uma jovialidade descomedida que Angelita recebia a costureira. E não foi sem um certo calor na face, e sem um certo tremor nos dedinhos afilados, que desabotoou a sua blusinha leve, patenteando os encantos do seu colo virgem, do seu corpo desabrochante, aos olhos daquela senhora estranha, habituada a ver, certamente, por aí, por exigência do seu próprio ofício, centenas de corpos pecadores.

- Tire o corpinho também, mademoiselle. - ordenou a modista.

A menina enrubesceu mais:

- O corpinho, também?

Minutos depois, trajando o seu lindo vestido novo, Angelita abria de par em par a porta da sua alcova, onde estivera encerrada, sozinha, com a costureira. Estava deslumbrante. Era um maravilhoso figurino de verão, bordado a seda, com um rosário de pequeninas flores à cintura, que lhe punha em destaque, no colo e nos braços, a imaculada frescura da pele. Curvando-se, risonha, numa grande mesura, foi a mocinha perguntando, logo, à D. Adelaide:

- Então, estou linda?

A ilustre senhora, que a esperava na sala de jantar, junto à mesa, abriu os braços, para receber a filha.

- Que tal? - tornou a moça.

D. Adelaide beijou-a nos cabelos castanhos e, com um sorriso de bondade, em que lhe ia toda a sua alma, externou o seu pensamento:

- Está muito bom, muito lindo, mas falta uma coisa.

A menina arregalou os grandes olhos escuros, imobilizando no rosto um sorriso de espanto.

- É aqui! - explicou a senhora, pondo-lhe a mão aberta sobre o colo de neve.

E abraçando a menina:

- As mulheres, minha filha, são uma essência delicada, de que o vestido é um vidro desarrolhado, por onde se evola, insensivelmente, o pudor da mulher...

E lançou, maternalmente, sobre o colo da filha, a macia misericórdia do seu claro lenço de seda.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LX – De Assis até Assis


    GRAÇA DA VIDA!

 
MOTE:
Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem!
 A. A. de Assis
(Maringá/PR)

GLOSA:

TEM MUITO MAIS GRAÇA A VIDA
se um amor nos acompanha,
quando a estrada é bem comprida
e a solidão é tamanha!
 
A felicidade cresce
QUANDO A GENTE TEM COM QUEM
saborear cada benesse
sempre junto do seu bem!
 
Toda a alegria sentida
nós devemos dividir:
REPARTIR BEM REPARTIDA
para não vê-la fugir!
 
E a riqueza deste  mundo,
não vale nem um vintém
se não nos mostrar, no fundo,
A GRAÇA QUE A VIDA TEM!
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   NO MEU OLHAR...
 
MOTE:
No meu olhar já cansado
guardo estrelas, guardo luas,
as mensagens de um passado,
feito de noites só tuas.

Carolina Ramos
(Santos/SP)


GLOSA:
NO MEU OLHAR JÁ CANSADO
resta ainda uma esperança
ao recordar, excitado,
aquela doce lembrança!
 
No meu olhar tão ardente,
GUARDO ESTRELAS, GUARDO LUAS,
guardo os amores da gente,
de mãos dadas pelas ruas...
 
No meu olhar encantado,
leio ao longo do caminho,
AS MENSAGENS DE UM PASSADO,
feito de amor e carinho!
 
No meu olhar delirante,
brilham as imagens nuas,
de um amor embriagante
FEITO DE NOITES SÓ TUAS.
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   MINHA MADRUGADA
 
MOTE:
A madrugada é só minha,
na brisa que ela produz,
e me acalma e me acarinha,
e eu fico cheio de luz.
Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)

GLOSA:

A MADRUGADA É SÓ MINHA,
dela me sinto, senhor,
pois nela, os sonhos que eu tinha
realizo com amor!
 
Sinto aumentar a emoção
NA BRISA QUE ELA PRODUZ,
e feliz meu coração
esquece o peso da cruz!
 
A madrugada é a linha
que me leva ao infinito,
E ME ACALMA E ME ACARINHA,
com esse amor tão bonito!
 
A esse mundo de alegria
docemente me conduz,
me inundo, então, de poesia...
E EU FICO CHEIO DE LUZ.
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    MAIS INFELIZ...
 
MOTE:
Por uma luta perdida,
desesperar-se? Por que?
Há sempre alguém nesta vida
mais infeliz que você!
Jessé Nascimento
(Angra dos Reis/RJ)

GLOSA:
POR UMA LUTA PERDIDA,

não vale a pena chorar...
Esqueça a sua ferida,
e tente é recomeçar!
 
Por que ser assim, tão triste?
DESESPERAR-SE? POR QUE?
Algo de bom sempre existe
no coração que inda crê!
 
Quando a esperança é perdida,
procurá-la, nós devemos.
HÁ SEMPRE ALGUÉM NESTA VIDA
que sofre mais... e não vemos!
 
Você verá no seu dia,
num olhar que tudo vê,
sempre alguém, sem alegria,
MAIS INFELIZ QUE VOCÊ!
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   NUNCA...
 
MOTE:
 Ao nosso espírito ardente,
na avidez do bem sonhado,
nunca o futuro é presente.
Nunca o presente é passado.
Machado de Assis
(Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908)

GLOSA:
AO NOSSO ESPÍRITO  ARDENTE,

tudo é uma indagação...
O que será realmente
a causa de uma emoção?
 
Muitas vezes, nos perdemos
NA AVIDEZ DO BEM SONHADO,
sem limites, sem extremos,
num amor apaixonado!
 
E nesse sonho envolvente,
encantador e bonito,
NUNCA O FUTURO É PRESENTE,
o futuro é o infinito...
 
A vida é eterna utopia
para quem sonha acordado,
cada dia é um novo dia,
NUNCA O PRESENTE É PASSADO!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Setembro de 2003.

Regina Melillo de Souza (O assalto)

A manhã era linda, enfeitada de sol, e um doce prenúncio de primavera pairava no ar, despertando em Ana Maria recordações que ela desejava esquecer...

Fora num dia assim, de límpido céu azul que, em um dos seus habituais passeios, ela se detivera, surpresa e encantada, diante de uma velha mansão do Morumbi, cujos muros exibiam flores de rara beleza.

Amando as plantas e as flores, Ana Maria possuía em sua casa, valiosa coleção de samambaias do Amazonas, vasos enormes de rendilhadas avencas e inúmeras plantas ornamentais.

Nos canteiros bem tratados dos jardins, floresciam tulipas e gerânios, rosas e goivos, lírios e gladíolos de todas as cores... Uma lindeza i

No entanto, com tantas maravilhas em sua casa, Ana Maria não esquecia as flores daquela mansão.

Procurou-as, por muitos lugares: nas floriculturas, em exposições... até que um dia o marido aconselhou:

- Desista desse capricho, querida! Há tanta flor enfeitando o nosso jardim...

Ela concordara. Chegou quase a esquece-las, mas a cada primavera sempre arranjava um jeitinho de passar em frente da mansão... Lá estavam elas, magníficas, a enlaçar o velho muro de pedras, cada vez mais vistosas, cada vez mais belas!

Foi quando uma ideia assaltou seu coração; por que não pediria à alguém da casa, uma mudazinha qualquer? Era só estacionar o carro ali mesmo e quem sabe o problema estaria resolvido...

Ela desceu do carro sentindo-se feliz. Pelo menos, tentaria mais uma vez!...

As janelas da mansão estavam todas fechadas; os pesados portões aferrolhados. Mesmo assim, ela tomou coragem e apertou a campainha. Durante longos minutos esperou, para ouvir, de repente, pelo interfone uma interpelação:

- Quem é?

- Desejaria falar com uma pessoa da casa. Seria possível?

A voz se tornou rude, quase severa...

- Há um carro defronte do portão. É seu?

- É, sim.

- Faça o favor de esperar. Atenderei em breve.

O interfone foi interrompido bruscamente e após alguns instantes, a portinhola do visor se abriu e alguém apareceu, perguntando:

- O que deseja, senhora?

- Eu poderia falar com a dona da casa, por favor?

- Não há ninguém em casa. A família está viajando... O seu nome?...

Meio encabulada, Ana Maria respondeu:

- Bem, na verdade não conheço os moradores daqui... Vim apenas para pedir um gentileza... um favor...

E ela falou bem depressa:

- Seria possível, eu obter uma mudazinha dessas lindas flores que tanto enfeitam os muros de pedra?!...

A resposta foi maravilhosa:

- Com todo prazer, senhora! Faça o favor de entrar.

Radiante, Ana Maria agradeceu e só então encarou o desconhecido.

Era um homem magro, de aparência humilde que disse:

- Vou logo atender o seu pedido, senhora... Não deseja que eu ponha seu carro na garagem? O lugar aqui é perigoso! Tem tido muitos assaltos... Dê-me as chaves, que eu faço o serviço...

Ela agradeceu encantada com a cortesia e ficou admirando o jardim.

Era belíssimo.

Quando o serviçal voltou, Ana Maria falou das flores que a haviam enfeitiçado há tanto tempo; mas ele não pareceu muito interessado nisso...

- Siga-me! disse, com firmeza. Vamos entrar na mansão.

- Eu não quero aborrecer ninguém. Posso esperar aqui fora...

Nesse instante arregalou uns olhos assustados. O homem estava com um revólver nas mãos!

- Não tente gritar!… avisou apontando a arma. A coisa é mais séria do que pensai E passe-me a bolsa, as joias e esse cordão de ouro!…

Aterrorizada, ela entregou tudo, até a aliança de brilhantes e a pulseira relógio que pertencera à  sua bisavó!...

Trêmula, subiu a escada de mármore que a levava ao hall da mansão ouvindo o aviso que o brutamontes vociferou:

- ...E não fale uma palavra com ninguém, nem comente o que se passou aqui.

Empurrada para dentro de uma sala, Ana Maria encontrou duas senhoras guardadas por um homem mascarado. Uma delas, aflita perguntou patética:

- A senhora... também pertence ao bando?!... Será que irão nos matar?

Estremeci diante da afronta, mas não pude responder. Como explicar minha presença naquela casa e dizer que ali viera pedir uma simples muda de planta?

Fiquei paralisada, sem dizer uma única palavra... O pesadelo continuava...

Dois outros homens entraram na sala, vasculhando móveis... revistando gavetas, amontoando aparelhos eletrônicos...

Fomos levadas então para um quarto pequeno, com a recomendação que muito nos assustou:

- Se desejam viver, não chamem a polícia, nem gritem por socorro!... Não brincamos em serviço!

Enquanto as duas senhoras, abraçadas, resmungavam baixinho e me olhavam com evidente desconfiança, eu lastimava comigo mesmo, a pouca sorte que tivera... Chegar justamente na hora de um assalto, àquela mansão do Morumbi, perdendo minhas joias, levando um susto terrível e ficando sem carro!!!

Fonte: Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Marcelo Spalding (Dicas de Redação)

Algumas dicas práticas


A obra "Manual de Redação" da Folha de São Paulo, um dos jornais mais tradicionais do país, teve diversas edições publicadas. O manual é uma ferramenta valiosa para quem escreve e deseja aprimorar suas habilidades. Com ele, é possível tirar dúvidas de forma rápida e eficiente. Destacamos abaixo alguns itens do Manual de Redação da Folha de S. Paulo que podem ser úteis para quem quer padronizar sua escrita de não-ficção ou mesmo de ficção, segundo Marcelo Spalding.

Estrangeirismo

- A palavra estrangeira, na sua forma original, só deverá ser usada quando for absolutamente indispensável. O excesso de termos de outra língua torna o texto pretensioso e pedante. E não se esqueça de explicar sempre, entre parênteses, o significado dos estrangeirismos menos conhecidos.

- Se a palavra ou expressão não tiver correspondente em português, porém, ou se este for pouco usado, recorra então ao termo estrangeiro, que vai no mesmo corpo do texto e não em destaque: stand by, hardware, entourage, apartheid, smoking, zoom, slide, holding, shopping center, marketing, joint venture, outdoor, funk.

- Não empregue no idioma original palavra que já esteja aportuguesada. Assim, uísque e não whisky; conhaque e não cognac; recorde e não record; chique (ou elegante) e não chic; caratê e não karatê; cachê e não cachet; tarô e não tarot; videopôquer e não videopoker, etc.

- Sempre que houver equivalente em português, prefira-o ao estrangeirismo: cardápio e não menu; pré-estréia e não avant-première; adeus e não ciao; escanteio e não corner; cavalheiro e não gentleman; frequentador e não habitué; senhora e não lady ou madame; encontro e não meeting; senhor e não mister; impedimento e não off-side; primeiro-ministro e não premier; assalto e não round; padrão e não standard; fim de semana e não week-end; desempenho e não performance.

- Mesmo que você as julgue muito conhecidas, traduza sempre as citações em língua estrangeira: "Après moi le déluge." ("Depois de mim, o dilúvio.") "Alea jacta est." ("A sorte está lançada.") "To be or not to be: that is the question." ("Ser ou não ser: eis a questão.") Neste caso, use aspas.

- A não ser em textos especiais, e mesmo assim com parcimônia, evite ao máximo o uso de expressões estrangeiras (a exemplo das palavras de outras línguas), limitando-se apenas aos casos mais comuns: in memoriam, sine die, sine qua non, causa mortis, grand monde, tour de force, sui generis, honoris causa. Pense, no entanto, que nem todos os leitores saberão o significado de locuções como: à clef, à outrance, ad hoc, nec plus ultra, urbi et orbi, struggle for life, in partibus, et pour cause, rempli de soi-même, off the records, honni soit qui mal y pense.   (...)


Números

- De um a dez, escreva os números por extenso; a partir de 11, inclusive, em algarismos: dois amigos, seis operadores, 11 jogadores, 18 pessoas. Exceção: cem e mil.

- Proceda da mesma forma com os ordinais: primeira hora, terceiro aniversário, 15.ª vez, 23.º ano consecutivo.

- Não inicie orações com algarismos, mas escreva o número por extenso: Dezoito pessoas feriram-se no acidente. Sempre que possível, porém, mude a redação para não ter de escrever o número por extenso. Exceção: títulos, que podem começar com algarismos.

- Escreva os algarismos, de 1.000 em diante, com ponto: 1.237, 14.562, 124.985, 1.507.432, 12.345.678.543, etc. Exceção. Na indicação de anos não há ponto: 1957,1996, ano 2000.


Título

- Procure sempre usar verbo nos títulos: eles ganham em impacto e expressividade.

- Para dar maior força ao título, recorra normalmente ao presente do indicativo, e não ao pretérito: Israelenses e palestinos assinam (e não assinaram) acordo de paz / Reitor chama (e não chamou) polícia para poder trabalhar.

- O Estado não usa títulos com ponto. Assim, estão vetados exemplos como estes: O Metrô reconhece que errou. E pune seus funcionários / O Brasil joga. Para buscar a classificação .

- Nos textos noticiosos, o título deverá obrigatoriamente ser extraído do lead; se isso não for possível, refaça o lead, porque ele não estará incluindo as informações mais importantes da matéria.

- Use inicial maiúscula apenas na primeira palavra do título e nos nomes próprios: Ministro pode ser indiciado / Pacifistas fazem protesto diante da Casa Branca.

- Não use ponto de interrogação nos títulos. O leitor tem direito a respostas.

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sábado, 16 de setembro de 2023

Tertúlia da Saudade 11: Carlos Guimarães

 

José Feldman (O amanhã nunca morre)

Baitazar Danado Tribofe de Souza estava decidido. Diante do que vinha ocorrendo ultimamente, esta seria a única saída.

Baitazar beirava os 70 anos de idade, era jornalista e escritor, mas ultimamente nada ia bem. Muitas cobranças no jornal, gente com o nariz virado, outros com inveja, vinha provocando atritos por ninharias. Como escritor, parecia que a inspiração fugira dele como o diabo foge da cruz, e a musa... ah! A tal da musa, escafedeu-se nas brumas, e não foi de Avalon, não. Foi lá pros lados de Tocantins mesmo. A família abandonara-o, as filhas nem queriam papo com ele. Quando estava por cima, elas ficavam paparicando-o como abelha em volta do mel, agora que esta má fase vinha-o assolando, olhavam-no como se estivesse com uma moléstia contagiosa, e fugiam espavoridas. "Vade retro, Satanás".

Baitazar dizia que era só uma má fase, um azar momentâneo, mas parecia que era mesmo um baita azar danado. A vida perdera o sentido, seus olhos se perdiam nos milhares de livros que atolavam as estantes de sua casa, sem vontade alguma de ler algum. Oh, desânimo! 

Decidira, após muita reflexão, que o melhor para si e para todos é que tirasse a própria vida.

Fim da tarde, encaminhou-se para a ponte mais próxima, resoluto. Subiu na murada da ponte, e olhou para o horizonte... somente via o vazio, o vazio de sua existência. Seria apenas mais um número na estatística de suicídios no país. 

Alguns transeuntes estacaram ao ver a cena, e ficaram indecisos sobre qual atitude tomar. Até parentes e amigos (?) estavam próximos.

-"Não faz isso, meu chapa. A vida é tão boa. Deus fecha uma porta, mas abre uma janela. Sai daí!"

- "Pula mesmo, seu desgraçado. Nem a pensão você me paga mais. Vá lá, o Capiroto já tá te esperando."

- "Não, meu amigo. Fica firme. Não dê ouvidos a esta mulher desmiolada. Volte aqui para conversarmos". E o sujeito pensando com seus botões: "Volta mesmo, vou te encher de tanta bolacha, que nem com foto vão conseguir te reconstituir". E continuava cinicamente animando-o: - "A vida é bela. Vamos tomar uma loirinha estupidamente gelada".

Baitazar ficou no pula, não pula, uns o xingavam, outros o incentivavam a pular, e outros o animavam para continuar a vida adiante. Num canto, três mulheres discutiam entre si.

- "Tomara que ele pule, assim fico com o carro dele. Ah... a Maserati é minha!!!!

- "Tua uma ova! Eu também sou filha dele. Vamos dividir.

E a outra, mais burra que um jumento: - "Vamos dividir. Pegamos uma serra e vemos quem fica com o motor? Com os bancos? e..."

- "Tu tá chapada? Andou cheirando cola?"

Enquanto elas se estapeavam, uma garota de uns 15 anos, que nem estava aí para o que acontecia, ou nem se tocara, passa segurando uma pizza. 

Ah, aquele cheiro de pizza quentinha saída do forno, o queijo derretendo, e Baitazar sentiu aquilo entrar em suas narinas de sopetão. Convenceu ela a lhe dar um pedaço, seria sua última refeição antes de dar término à sua vida.   

- "Qual é, cara? Vai pular ou não? Pô. A novela começa daqui a pouco, e não posso perder o último capítulo." - uma mulher gritava, desesperada.

- "Pula! Pula!"

E enchia de gente, veio a polícia, os bombeiros, a televisão, só faltou a guarda nacional. O tumulto estava formado. Muitos achavam que ele estava dando discurso, e o apoiavam sem nem mesmo saber o que acontecia.

- "É isso mesmo! Você tem que protestar mesmo. Esta sem-vergonhice tem que acabar."

Tinha até um sujeito com uma viola que começou a cantar aquelas famosas dores de corno. Um vendedor ambulante vendia elixires milagrosos. 

Enfim… a bagunça estava generalizada. 

Baitazar chamou novamente a garota da pizza.

- "De onde é esta pizza? Menina, que delícia!."

 - "Pula. Pula." "Discurso!!!" "Fica." "Vai." "Já ganhou!" "Engravidou a menina, tem que assumir!"

- "Quer saber? Que pizza! Deu uma fome danada. Eu vou é comer mais. Amanhã eu venho e pulo."

Desceu da amurada da ponte, e foi com a garota para a pizzaria. Deixou meio mundo com cara de tacho... outra vez.

Fonte:
Texto escrito por mim. Agora vou comer aquela pizza, com o Baitazar! Deu uma fome!!!

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 18

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.
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Nas ondas dos teus cabelos
quero aprender a nadar;
Desprezo o risco que corro,
não me importa de afogar.
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Tens os dentes tão miúdos
como pedrinhas do sal,
a fala tão temperada
que me chega a fazer mal...
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Boca de cravo da Índia,
dentes de marfim lavrado,
quando meus olhos te viram
meu corpo fez um pecado.
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Tua voz me põe doente...
Teu sorriso é amarração...
Teu andar machuca a gente…
Pobre do meu coração!
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Morena, beiço de rosa,
claros dentes de marfim,
no meio do teu resono,
dá um suspiro por mim.
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Se alguém nos surpreender
não tenhas nenhum desgosto:
Escondo-me, bem quietinho,
nas covinhas do teu rosto.
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Menina, quando morreres,
tapa esta cara com um véu:
Não quero que a terra coma
esta carinha do céu!
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Venha cá, meu botão de ouro,
minha semente de prata,
esse sorriso me alegra,
esse semblante me mata.
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Não tenho medo das ondas,
das ondas bravas do mar...
As ondas deste teu peito
é que me hão de matar.
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Vou-me embora, tenho pressa,
tenho muito que fazer,
tenho que parar rodeio
no peito do bem-querer.
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Manjericão de Lisboa
tem a folha verde escura,
nos braços de uma morena
tenho a minha sepultura.
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Duas coisas neste mundo
são minha grande paixão:
Perna grossa cabeluda,
Peito em pé no cabeção.
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Não tenho medo de ti,
nem da faca mais pontuda;
Tenho medo, quando vejo
perna grossa cabeluda.
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Muita perna tenho visto,
perna fina, perna grossa...
Mas as pernas mais bonitas
são as das moças da roça.
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Queridinha de minh'alma,
tem pena dos teus pezinhos,
não andes assim descalça,
tem pena dos pobrezinhos!
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Menina dos pés pequenos
deixe-os estar, porque tira?
Quanto mais o pé se esconde,
mais a viola suspira...
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Vi o teu rastro na areia
e me pus a considerar
que teu corpo tem tal mimo,
que teu rastro faz chorar...
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Alecrim da beira d'água
de viçoso está tremendo.
As moças de Porto-Alegre
de faceiras estão morrendo.
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Requebra, meu bem, requebra,
machuca este coração...
Quebra este teu requebrado
mais do que mão de pilão!
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Meu amor é pequenino,
do tamanho de um botão;
Assim mesmo é que eu o quero,
para o trazer no coração.
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Menina do oratório,
quero ser seu sacristão...
Para dar a badalada
à beira do coração.
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Se em troca do teu afeto
exiges o afeto meu,
já não tens razão de queixa;
o meu coração é teu!
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0 inferno não me aterra,
nem a morte me apavora;
meu coração só se rende
aos pés daquela que adora.
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Canta o galo, rompe o dia,
cai o sereno no chão.
Eu também quero cair
dentro do teu coração.
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Meu coração de babosa,
baba aqui, baba acolá.
0 meu coração palpita,
Faz lá dentro tá, tá, tá...

Fonte: Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. Disponível em Domínio Público.

A. A. de Assis (Dançar abraçado)

Se você tem mais de 70 anos, decerto se lembra do tempo em que os casais dançavam abraçados – os mais íntimos com os rostos colados. O baile começava às 10 da noite e ia até por volta das 3 da madrugada. As moças com vestidos rodados, os rapazes de terno e gravata. Valsa, bolero, tango, samba-canção, rumba, swing, blues

De chegada, um cuba-libre ou gim-tônica. Para os que tinham “par constante” não havia problema. Já os avulsos tinham que criar coragem e ir à mesa de uma das meninas a fim de “tirá-la” para dançar. Se ela “dava tábua”, era aquele vexame, e se, de imediato, aceitava dançar com outro, podia dar briga feia.

Lá pelas tantas os casais já estavam bem aquecidos e alguns chegavam a ousar beijos na boca, desafiando as geralmente rígidas normas do clube. Nesse momento entrava em cena o “fiscal de salão”, que se aproximava dos pombinhos e lhes recomendava tomar “bons modos” ou interromper a dança. Em alguns casos os atrevidos eram convidados a se retirar da festa.

Nas duas primeiras décadas de Maringá, os casamentos celebrados na cidade eram, em grande número, resultantes de algum namoro iniciado em um baile ou matinê no Aeroclube, no Grêmio dos Comerciários ou no salão amarelo do Grande Hotel.

A animação ficava por conta de uma de nossas orquestras pioneiras – a do Marchini, a do Penha, a do Britinho. Em ocasiões especiais vinham orquestras de fora, como a do Nélson de Tupã, a do Ruy Rey, a Marajoara de Severino Araújo. 

Havia também alguns “bailes de gala”, que exigiam das mulheres vestidos longos e dos homens terno branco ou azul-marinho com gravata-borboleta – o Baile das Debutantes, o Baile da Primavera, o Baile do Rubi. Em junho o traje mudava para a gaiatice, com as alvoroçadas festanças ditas à moda caipira.

Mas sempre com aquele jeito romântico de dançar – os pares abraçados, rostos colados, confissões de amor cochichadas ao pé do ouvido.

Até se dar que de repente, meados dos anos 1950, houve aquela cambalhota completa nos usos e costumes, com forte repercussão especialmente no processo de ascensão da mulher, a começar pela intensificação da busca de igualização profissional, cultural e política dos gêneros. Dentro desse clima de turbulência geral entrou na moda o “rock and roll”, pilotado pelo fenômeno Elvis Presley.

Mas o que foi que teve a ver uma coisa com outra? Teve que ao rock se credita um dos indicativos mais marcantes da emancipação feminina. No baile antigo o homem enlaçava o corpo da mulher e guiava os movimentos dela. Com o novo ritmo, os casais se desgrudaram: ele e ela passaram a dançar soltos, um diante do outro, ninguém conduzindo ninguém.

De qualquer forma, ficou uma pontinha de saudade do “old time dancing”. Converse com seus pais e avós para saber o que eles pensam disso.

Os mais jovens talvez digam que a tendência hoje é o meio termo: um pouco cada-um-pra-si, um pouco agarradinhos. Aí é legal.
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(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo em 29.06.2023)

Fonte: Portal do Rigon. https://angelorigon.com.br/2023/06/29/dancar-abracado/

Eduardo Affonso (Reescrevendo Lobato & cia)

(Publicação de 27 de setembro de 2019)

Tendo caído em domínio público, o livro “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, será reeditado.

Sem Pedrinho.

O garoto de estilingue no bolso foi limado com o argumento de que seria um peso morto na trama.

O Sítio do Pica-Pau amarelo, que já era um matriarcado, assumiu-se, nesta reedição do primeiro clássico da nossa literatura infantil, como Clube da Luluzinha.

Ali agora reinam Narizinho, Emília, Dona Benta e Tia Nastácia. O resto é figuração.

Haver um menino e uma menina num livro infantil permite um diálogo entre os universos masculino e feminino. Um contraponto, assim como há entre a despachada (e mandona) Emília e o conservador (e obediente) Visconde de Sabugosa.

Monteiro Lobato era um visionário – mas não completamente livre da mentalidade da sua época. O menino brinca de caçar passarinho e tem um boneco de espiga de milho; a menina vive num mundo de fantasia, e brinca com uma boneca de pano.

No Sítio não há lugar para beijo gay (só pós alucinógenos e casamento entre espécies…), mas vozes femininas são privilegiadas: Narizinho é muito mais criativa que Pedrinho; Emília, mais divertida que o Visconde; Tio Barnabé nunca foi páreo para Tia Nastácia; de Dona Benta, então, nem se fala.

Muitos meninos talvez não se interessem por ler o novo “Narizinho”, o que será uma pena.

Mas há outro argumento de peso para editar o texto de Monteiro Lobato: as expressões racistas.

“Beiço” quer dizer apenas “lábio”, mas tem conotação pejorativa. Talvez Emília faça beicinho ao ser contrariada ou D. Benta lamba os beiços após uma comilança, mas só Tia Nastácia, por ser preta, é referida como beiçuda.

Daí “A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira” ter sido reescrito como “Tia Nastácia deu uma risada gostosa.”

O beiço não fez falta.
Antes não incomodava.
Hoje incomoda.

Obras literárias (ainda mais as que caem em domínio público) podem ser livremente adaptadas. Roteiristas e diretores fazem isso o tempo todo ao levá-las para o cinema, o teatro, a televisão.

O texto de hoje (27.09.2019), n’O Globo, é um pequeno delírio sobre que outras mudanças poderiam ser feitas na obra de Monteiro Lobato – e de outros autores de livros infantis.

Um exercício de futurologia, só isso. Lembrando que o futuro não é lá longe: o momento em que você lê este parágrafo já é o futuro de quanto leu o parágrafo que abre o texto.

“A vida vem em ondas, como o mar,”. A onda agora é esta. Qual será a próxima, neste “indo e vindo infinito”?

Fonte: Blog do autor: https://tianeysa.wordpress.com/2019/09/27/reescrevendo-lobato-cia/