terça-feira, 10 de outubro de 2023

O Livro em Trovas


Deste espaço que, na vida,
preenchemos com tempo certo,
daremos conta devida,
da Vida no Livro aberto!
Alberto Fernando Bastos
Rio de Janeiro/RJ, 1921 –

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“Livro é presente de amigo”
– é o que se diz fartamente.
E eu acrescento comigo:
“Livro é um amigo presente”.
Anatole Ramos
Ervália/MG, 1924 – 1994, Goiânia/GO

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Dar um livro de presente
este remédio me enseja:
quem o dá é inteligente
e espera que o outro o seja...
Aparício Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Livros há cuja estrutura
lembra a do arado, na essência:
– rasgam sulcos de cultura
no campo da inteligência.
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

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Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto...
Fechado é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
Cyro Armando Catta Preta
São Paulo/SP, 1922 – 2010, Orlândia/SP

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Semeador de esperanças,
Lobato foi mais além:
dando livros às crianças,
semeou sonhos também!
David de Araújo
Santos/SP

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O livro é o maior dos bens,
sem ele crescem teus males...
Dize-me os livros que tens
e eu te direi quanto vales.
Durval Mendonça
Rio de Janeiro, 1906 – 2001

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Se queres ter um Amigo
que não fala, pois é mudo,
o Livro é luz que bendigo,
que calado, fala tudo.
Filemon F. Martins
São Paulo/SP

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Livro bom, lido com calma,
traz emoção e alegria...
Por isso dói tanto n’alma
ver uma estante vazia!
Hermoclydes Siqueira Franco
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ

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Nada mais belo, decerto,
no cenário da esperança,
que a imagem de um livro aberto
sob o olhar de uma criança!
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

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Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz…
Grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
Lucília A. Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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É celulose modesta,
mas seu destino, fecundo,
pois – da sombria floresta –
o livro ilumina o mundo.
Maria Thereza Cavalheiro
São Paulo/SP , 1929 – 2018

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O livro, triste mar morto,
na estante, limpo, fechado.
Luzeiro, molde, conforto,
livro velhinho, ensebado.
Nair Starling
Santa Luzia do Rio das Velhas/MG, 1909 -

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Quando passo alguns minutos
no pomar, a um livro atento,
eu penso em colher bons frutos...
Os frutos do pensamento.
Nereu Humberto Frickmann
Niterói/RJ

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De livros encham-se as casas,
eis um conselho excelente,
pois o livro, aberto em asas,
põe asas n’alma da gente.
Orlando Brito
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

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Bendito aquele que lança
um livro sério, profundo,
e faz voltar a esperança
que vai fugindo do mundo.
Paulo Emílio Pinto
Conselheiro Lafaiete, 1906 – ????, Belo Horizonte/MG

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Dai bons livros à criança
e um ensino permanente:
o livro é verde esperança,
que abre os caminhos da mente.
P. de Petrus
São Paulo/SP, 1920-1999

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Sempre em silêncio profundo,
entre dores e alegrias,
no livro se encerra um mundo
de eternas sabedorias.
Reinaldo de Aguiar
Natal/RN, 1921 – 2010

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Não me tenhas por ausente;
se não vai carta, não zangue.
O livro é o melhor presente,
feito com suor e sangue.
Renato Baez +
São Paulo/SP

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Mais sábio na vida é quem
possui a sabedoria
daqueles que sempre têm
bons livros por companhia.
Sebas Sundfeld
Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP

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Aberto em asas de paz,
na escola, no lar, na igreja,
por todo o bem que nos faz,
o livro bendito seja!
Vera Vargas
Curitiba/PR, 1922 - 2000

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Um livro, um filho, uma planta,
pela estrada percorrida...
Quem consegue glória tanta,
plantou sementes na vida.
Wilson Dantas
Ceará-Mirim/RN, 1920 – 1998, Natal/RN

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Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook.

Machado de Assis (Vinte Anos! Vinte Anos!)

Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa.

Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.

O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu.

Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria.

Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.

— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.

E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.

— Não, patife! não me pregas outra.

Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele.

— Gonçalves! Gonçalves!

Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro.

— Onde vais?

— Já volto...

— Vem cá primeiro.

E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.

— Que Brito? perguntou o Gonçalves.

— Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?

Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas.

— Mais café, disse Gonçalves.

— Não quer conhaque?

— Traga... não... está bom, traga.

Vieram ambas as coisas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro.

— E o Gonçalves genro do ministro!

— Deixa de graças, redarguiu rindo o Gonçalves.

— Que tinha?

— Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...

— Sim, mas os radicais também se casam, observou um.

— Com as radicais, emendou outro.

— Justo. Com as radicais...

— Mas você não sabe se ela é radical.

— Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?

— Não.

— Nem eu.

— Deve ser um bom autor.

— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?

E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.

— Cinco horas! exclamaram dois ou três.

— No meu estômago são sete, ponderou um dos outros.

— Onde jantam vocês?

Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S. Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bondes de S. Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bonde em que ela fosse; os outros ouviram rindo.

Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas (tolices); muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos!

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Estação, de 15/7/1884.
Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (“Uns braços”, de Machado de Assis)

O conto está em

https://singrandohorizontes.blogspot.com/2011/01/machado-de-assis-uns-bracos.html


A desconstrução do discurso romântico em Uns Braços, de Machado de Assis,

pelo Prof. Edir Alonso
 
O presente escrito tem como propósito analisar criticamente o conto Uns braços, de Machado de Assis, buscando identificar nesse microcosmo da narrativa machadiana elementos que evidenciem uma perspectiva Realista. Dentre esses elementos, enfatizaremos a análise psicológica das personagens e a desconstrução do discurso romântico.

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 05/11/1885, já na maturidade do escritor, e, posteriormente em 1893, no volume de contos intitulado Várias Histórias, o conto em análise se constitui em uma urdidura engenhosa, que envolve o leitor, conduzindo-o a uma atmosfera de romance, que, ao término da trama se dissolve, evidenciando a oposição entre a fantasia e a realidade, e a consequente prevalência da moral socialmente estabelecida e das instituições sobre os sonhos e as pulsões humanas.

Tratemos de forma resumida, sob o risco evidente de simplificação, do enredo de Uns braços. Inácio, rapaz de 15 anos, filho de um barbeiro, é colocado pelo pai como estagiário de Borges. Este vive maritalmente com D.Severina, e abriga Inácio em sua casa, irritando-se constantemente com as distrações do moço. A verdade é que Inácio se apaixona por D. Severina; se encanta especialmente com os braços da jovem senhora. Quando percebe os olhares de Inácio, a mulher passa ao conflito: ele ainda é muito jovem, ela é uma mulher comprometida. Mas são apenas olhares. Em um domingo Borges sai de casa, e D. Severina observa que Inácio dorme suavemente na rede. O rapaz está a sonhar com ela e, neste instante se dá uma incrível coincidência: ao sonhar com o beijo de D. Severina, Inácio é realmente beijado pela mulher. Depois do ato impulsivo, D. Severina passa a se reprimir pelo que fizera e passa a tratar o rapaz secamente e a cobrir os braços com um xale. Inácio, ainda mais distraído da realidade com seus sonhos, não percebe a mudança da senhora. Após uma semana, Borges irá dispensá-lo sem nenhum sinal de rudez, embora não permita que Inácio se despeça de Severina, alegando que ela estaria com muita dor de cabeça. Os anos se passam e Inácio nunca teve sensação igual à daquele beijo, que para ele não passara de um sonho.

Dentro da tradição Realista, o conto privilegia o cenário doméstico da família burguesa, na segunda metade do século XIX: “Passava- se isto na Rua da Lapa, em 1870.”. O episódio em questão suscita a temática do adultério feminino, ainda que de forma extremamente sutil, se comparado àqueles relatados em Madame Bovary (1857) ou em O Primo Basílio (1878). A herança de Flaubert também se evidencia no tema da leitura e do devaneio romântico. Assim como Emma Bovary, o personagem Inácio alimenta uma visão de mundo romântica a partir da leitura de folhetins:

“Inácio passava-os [os domingos] todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. [...]Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham.”

Essa cena da leitura culmina com o sono e com o sonho de Inácio, que se concretizará sem que ele perceba. Curiosamente, ao contrário das narrativas fundadoras da escola realista, em Uns Braços não é a mulher quem se desprende da realidade a partir da imersão em um universo romântico, mas o rapaz.

Desse modo, à superficialidade de Inácio contrapõe-se a profundidade da personagem feminina. A análise psicológica, como traço Realista, se evidencia na exploração do conflito de D. Severina. A descrição física da personagem é o ponto de partida para revelar o caráter ambíguo típico da mulher machadiana:

Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.”

O fato de não se poder defini-la como sendo bonita ou feia, os cabelos presos, o lenço escuro e a ausência de adornos apontam para a sexualidade reprimida de mulher casada, condição sintetizada pelo paradoxo dos “vinte e sete anos floridos e sólidos”. A sensualidade e a feminilidade mascaradas pela solidez do papel social atribuído à mulher da época.

Esse equilíbrio aparente é rompido quando D. Severina percebe os olhares de Inácio:

"Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada (grifo nosso). E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim."

O monólogo interior revela que a protagonista vai, gradualmente, admitindo a ideia de estar sendo admirada pelo rapaz, passando, inclusive a comprazer-se pelo fato de ser desejada (ou desejável). Nesse sentido, não temos em D. Severina a constituição linear das heroínas românticas, dada a sua volubilidade. Ademais, não está ela apaixonada pelo jovem, o qual, longe de qualquer idealização, sequer é visto como homem. De certo modo, a protagonista apaixona-se por si própria ao descobrir sua feminilidade.

Por outro lado, Inácio caracteriza-se como uma perfeita representação do Romantismo. Suas constantes distrações, motivadas pela paixão que nutre por D. Severina, levam-no a distanciar-se totalmente da realidade. O mundo de sonhos construído pelo rapaz se cristaliza no discurso:

“[...] retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor.”

De forma magistral, o narrador machadiano passa à perspectiva do personagem, construindo uma poética tipicamente romântica, associando as emoções da personagem às imagens da natureza. Dessa forma, se estabelece no conto a tensão dialógica entre Realismo e Romantismo, tomando-se como referência o conceito bakhtiniano de dialogismo:

“Com base no que foi dito, pode-se afirmar que na composição de quase todo enunciado do homem socialdesde a curta réplica do diálogo familiar até as grandes obras verbal-ideológicas (literárias, científicas e outras) existe, numa forma aberta ou velada, uma parte considerável de palavras significativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo. No campo de quase todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo (...)”(Bakhtin, 1988:153)


Essa tensão evolui num crescendo, até chegarmos ao clímax da narrativa:

"Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. [...]"


O beijo, sonhado por Inácio, de fato ocorre, sem que ele perceba. Aqui fica evidente a distância intransponível entre os universos representados pelos protagonistas, pois o que se afigura real para D. Severina é apenas um sonho para o jovem. A atmosfera de romance é abruptamente rompida pelo senso de realidade da personagem feminina:

"A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o (grifo nosso). Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio."

O gesto impulsivo é imediatamente reprimido. A culpa desencadeia na personagem um mecanismo defensivo, em que passa a buscar justificativas para o que acabara de fazer. Neste momento, vem à tona outra problemática interessante do conto. D. Severina e Borges “viviam maritalmente há anos”, sem filhos, pelo que se pode presumir. A complexidade do conflito interno da protagonista ainda pode fazer com que ela projete no rapaz não apenas os instintos sexuais recalcados, mas também o filho desejado. Daí a imagem ambígua do rapaz:

"Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.
- Uma criança!"


Essa ambiguidade pode ser reforçada pela seguinte passagem:

"D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe (grifo nosso), que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão."

O próprio Inácio sente-se confuso em relação à D. Severina, em parte pelas atitudes dúbias da mulher, em parte pelo próprio complexo edipiano. O rapaz, inserido na casa de Borges, vê-se afastado de seu contexto familiar: “Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs [...]”. Borges passa a cumprir o papel de pai, a lei, a autoridade, a castração. D. Severina passa a ser a figura feminina presente em sua vida, a representação da mãe.

A profundidade da narrativa machadiana nos permite um amplo leque de leituras, em especial no que diz respeito à análise psicológica das personagens. No presente estudo, como já havíamos exposto anteriormente, tal enfoque reforça a percepção do conto Uns Braços como discurso permeado por elementos da tradição Realista.

Nesse sentido, passaremos a considerar alguns artifícios na construção da trama que apontam para a desconstrução do discurso romântico.

Uma leitura ingênua do conto pode levar à impressão de que o tema central é o triângulo amoroso. Inicialmente, teríamos diversos elementos que consubstanciam uma expectativa romântica, que, mais tarde, será frustrada. Além da diferença de idade, há um desnível social entre Inácio, filho de um barbeiro e D. Severina. A esses impedimentos soma-se o fato de a protagonista estar presa ao papel de mulher de Borges. São os “liames sociais” a que se refere o narrador.

É sabido que a tônica da maior parte das narrativas românticas é o amor proibido, o que suscita a oposição entre o indivíduo e a sociedade, sendo a transgressão, a superação dos liames sociais, a condição para a realização do herói.

A atmosfera vai se construindo nos devaneios de Inácio e nas divagações de D. Severina, envolvendo o leitor em uma teia, fazendo-o acreditar no surgimento de um romance. Nesse sentido, o narrador lança, como uma isca, uma reveladora antecipação: “Afinal, porém, [Inácio] teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.” Neste instante imagina-se que algo aconteceu entre a mulher e o rapaz. Especula-se, inevitavelmente, que Borges possa ter descoberto o suposto enlace amoroso e, consequentemente, expulsado o moço de sua casa.

As próximas cenas serão carregadas de uma tensão crescente, como se evidencia em passagens como:

“A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se.”

“Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo [...]”;

“[D. Severina] estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca [...] Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada.”

“D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou”

 
Assim, o próprio leitor poderá sentir seu coração a bater com veemência até o clímax: a cena do beijo.

D. Severina passará então à autocensura, o que se evidencia quando ela passa a cobrir os braços com um xale, e tratará o rapaz secamente. Por fim, passados alguns dias, Borges irá dispensar o moço, sem maiores explicações. Ora, não veríamos “como e porque” Inácio teria de sair? Assim, não apenas frustram-se as expectativas românticas estimuladas no leitor, mas a também se desconstitui a possibilidade de encerrar-se a história com um entendimento definitivo do que acontecera.

Teria Borges descoberto o beijo ou desconfiado de algo? Nesse sentido, observe-se o curto diálogo final entre ele e Inácio:

“- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...
- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.”


Borges o teria impedido de falar com D. Severina. Mas, nesse caso, porque não agira de forma agressiva? Quanto a essa suposta agressividade, destacamos uma passagem que trata das ameaças de Borges.

"E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau."

Por outro lado, Inácio era constantemente repreendido por suas distrações, mostrando-se inapto para o trabalho. Desse modo, Borges teria todos os motivos para mandá-lo embora, mesmo desconhecendo a situação entre o rapaz e D. Severina.

Por fim, há uma terceira e provável hipótese, em que D. Severina, como típica mulher machadiana, teria manipulado Borges, induzindo-o a demitir o rapaz sem que ele suspeitasse de nada.

Assim, é possível que o leitor sinta o desconforto oriundo do fato de não lhe ser oferecido um desfecho conclusivo para a história. À perspectiva linear e a consequente previsibilidade inerentes ao pacto narrativo do Romantismo contrapõe-se a omissão do narrador. A sensação de que nada acontecera ou de que ignoramos os acontecimentos vem acompanhada da frustração da expectativa de um final feliz ou melodramático, comuns às narrativas sentimentalistas da primeira metade do século XIX.

Nesse sentido, é interessante observar que a trama se encerra com a ignorância de Inácio a respeito de tudo o que acontecera:

"Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:
- E foi um sonho! um simples sonho!"


A perspectiva romântica do rapaz faz com que sua condição de “sonhador” siga inalterada ao longo de toda a história. Assim se dá a vinculação do romantismo, personificado por Inácio, à ignorância, à incapacidade de compreender a realidade.

É dessa forma que Uns Braços se constitui como uma narrativa surpreendente, complexa e passível de diversas leituras. Em um plano mais particular, é possível sondar aspectos da psicologia das personagens na oposição entre a moral e as pulsões do indivíduo, como observamos no conto a exploração dos desejos recalcados e o conflito edípico. Atingindo a universalidade, o texto ainda pode ser percebido em uma perspectiva metaliterária: a relação dialógica entre o Realismo, vinculado às atitudes de D. Severina, e o Romantismo, associado aos devaneios de Inácio termina por evidenciar a falência do idealismo romântico.

Fonte:
Literatura – Edir
http://literatura-edir/analise-do-conto-uns-bracos-de-machado.html. 18 março 2009

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Adega de Versos 113: Francisco Neves de Macedo

 

Mensagem na Garrafa – 4 –


José Feldman

(Maringá/PR)

MEU ADEUS


Quando minha vida extinguir,
não importa como morri,
pois se alguém te inquirir,
conte apenas como eu vivi.

Conte dos amores que tive,
dos amigos que deixei,
do pranto que não contive
e do tanto quanto penei.

Conte o abraço incontido,
da felicidade em viver,
de meu mundo colorido
e do meu reerguer.

Conte os sonhos que eu sonhava
e o tanto que por eles batalhei,
do desânimo que me derrubava
e como dele me levantei.

Conte sobre nossos momentos juntos,
e o tanto de filmes que assistimos,
da enorme quantidade de assuntos
que nunca nós reprimimos.

Conte sobre minhas palhaçadas
e o quanto que nós gargalhamos,
tornando nossas vidas animadas,
e o quanto nos deleitamos.

Conte sobre os gatos que amava,
cuja saudade nunca extinguiu,
do tanto que eu os idolatrava
e do carinho que por eles persistiu.

Conte como eu os tratava,
como minha vida por eles dediquei,
cada um que eu abraçava,
cada um que eu amei.

Conte sobre as cadelas de minha vida,
e o tanto de amor que sempre lhes ofereci,
de como minha alma lhes era agradecida
e quando de suas partidas, o quanto morri.

Mas acima de tudo…

Conte que eu era meio tosco,
mas que tinha um grande amor
por todos que viveram conosco
e todos que vivi cada momento de dor.

Conte que eu não era perfeito,
nem rico nem doutor.
Conte que apesar de todo defeito
eu sempre acreditei no amor.

Humberto de Campos (O tropeiro)

O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em S. Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava apenas oito dias. Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não havia notícia de outra na redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:

- João, você vai amanhã à capital. Daqui lá são quarenta léguas das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche em cima o jogo de malas e, chegando à cidade, receba na casa da modista para quem vai esta carta o vestido da noiva.

E olhando o tropeiro, significativamente: – Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!

O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro e partiu. Chegando em Fortaleza, recebeu a encomenda, e para estar em S. Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.

O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era francamente curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um choro manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.

De repente, surgiu na margem da estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:

- Ôi, de casa!

- Ôi, de fora!

E apareceu na porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".

O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou interessado, se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe experiente um remédio:

- Homem, você quer um conselho?

E ensinou:

- Olhe, ali atrás da casa tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!

O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.

Passou e despediu-se.

Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou de malas às costas numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho a fora.

Seguro na ponta do cabresto, o caboclo, a principio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu num supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou num movimento rápido o cinturão de couro, e fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra, largou-se também pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!

No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a burra em disparada as últimas ruas de São Bernardo das Russas.

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Baú de Trovas LXIX


Eu tenho fé nas pessoas,
em todas, sem exceção,
que todas elas são boas,
quando lhes damos a mão.
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Sempre que a felicidade
passa no meu coração,
é como sobre um presidio
a sombra de um avião!
Adelmar Tavares +
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ
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Encerra muitos encantos
um conceito de verdade;
uns morrem livres e quantos
morrem pela liberdade.
Alcides Vasques +
Pindamonhangaba/SP
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Cultivar ressentimentos!
Atividade infeliz!
É querer que o ferimento
dure mais que a cicatriz!
Altair F.de Carvalho
Pindamonhangaba/SP
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Conheço alguns imbecis,
todos cheios de "Excelência",
que devíamos saudar:
— Como está Vossa Jumência?
Amândio Naia
Lisboa/Portugal
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Todos corações no mundo
na solidão e nos medos,
perdidos, levam, no fundo,
guardados, os seus segredos...
Ana Maria Jório Marcondes
Pindamonhangaba/SP
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Fora meu anjo da guarda,
pois cada um tem o seu,
- dona do meu coração:
é mais um que Deus me deu!
Antonio Spanemberg
Cruz Alta/RS
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Na saleta bem escura
trata-se o pobre noivado.
— Fundo respeito à feiúra
da noiva e do namorado.
Arlindo Barbosa
Matias Barbosa/MG
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Em política, de ordinário,
sem encontrar outro leito,
fica o sujeito sujeito
a muito tipo precário...
Augusto Linhares +
Rio de Janeiro/RJ
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Todos os sonhos quebrados
no seu passado carente
poderão ser completados
nas ações do seu presente.
Aurora Mendes +
Pindamonhangaba/SP
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Eu vi minha mãe rezando
Aos pés da Virgem Maria,
Era uma Santa escutando
O que a outra Santa dizia...
Barreto Coutinho +
Limoeiro/PE, 1893 – 1975, Curitiba/PR
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Fui moço, cheio de viço,
amei, ri, pintei o sete!
Hoje estou mais fora disso
do que umbigo de vedete...
Calixto de Magalhães +
Barra do Piraí/RJ
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De despedidas, apenas,
compõe-se, afinal, a vida:
— mil despedidas pequenas
e uma Grande Despedida!
Carlos Guimarães +
Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997
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Mulher, ser deusa ou megera,
só um ponto de vista;
alguém ama, alguém tolera,
mas, não há quem lhe resista...
Carmen S. M. Galvão +
Pindamonhangaba/SP
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Quantas vezes, sem maldade,
dizemos que estamos sós...
E é quando Deus, na verdade,
está mais perto de nós!
Carolina Azevedo de Castro +
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR
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Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
Colbert Rangel Coelho +
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ
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Eu saúdo a natureza,
eu saúdo o novo dia.
Nunca vi tanta beleza
quando o dia principia!
Dalvina Fagundes Ebling +
Cruz Alta/RS
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Janela, a bem da verdade,
teu ranger, este chiado.
são gemidos da saudade
na voz rouca do passado,
Ernesto Tavares de Souza +
Pindamonhangaba/SP
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A Bondade é tão formosa
que, para dar-lhe um brasão,
eu pintaria uma rosa
pousada num coração.
Fernando Burlamaqui +
Recife/PE, 1898 – ????
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Natureza! Amanhecer!
Não há cenário mais lindo!
Eu me sinto renascer,
nessa luz que vem surgindo!
Gislaine Canales +
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS
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No tribunal da consciência
quando o debate seduz
as trevas pedem clemência
ante a vitória da luz.
Gonçalo Toledo +
Pindamonhangaba/SP
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No fim da vida a esperança
é uma rua tão comprida,
mas tão comprida que alcança
o lado oposto da vida!
Hegel Pontes +
Juiz de Fora/MG, 1932 – 2012
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Todos os anjos que cantam
da natureza, a beleza,
são trovadores que plantam
sementes de realeza!
Ivan Soares Schettert
Cruz Alta/RS
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João de Barro, o construtor
usa a terra com nobreza;
o que faz, faz por amor,
não agride a natureza.
José Guarany Rodrigues
Pindamonhangaba/SP
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Se o altar cruza, displicente,
sem a mínima atenção,
caso não seja um descrente,
é, por certo, o sacristão.
José Augusto Rittes +
São Vicente/SP
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Quando vejo uma criança
brincando ao léu, algo faz
que um sorriso de esperança
me mostre a face da paz.
José Morgado +
Pindamonhangaba/SP
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Duas culpas, um pecado
e um remorso a nos doer:
você - que escolheu errado
eu - que não pude escolher!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP
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Devido à minha fraqueza
vi meu sonho se esfumar
na espuma da correnteza
que eu não pude represar.
José Raul Vinci +
Pindamonhangaba/SP
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Partiu, deixando seu traço
no meu caminho dos sós...
- A saudade é esse espaço
que sempre existe entre nós...
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP
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Desde o Amazonas ao Prata
- num pensamento, a certeza:
Defender a nossa mata
e salvar a natureza!
José Westphalen Corrêa
Cruz Alta/RS
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Por mais pobre e pequenina,
toda casa é nobre e rica,
sempre que o amor a ilumina
e a virtude a santifica.
Lilinha Fernandes +
Rio de Janeiro/RJ, 1891 – 1981
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Não faça mal a ninguém,
mesmo sendo seu rival.
Está na força do bem
toda fraqueza do mal.
Luiz Carlos C. Júnior
Pindamonhangaba/SP
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A discórdia é dor que afeta
sem dó e sem compaixão;
é veneno de uma seta
que atravessa o coração.
Maria Aparecida S. Vasques  +
Pindamonhangaba/SP
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Se não existisse a treva
eu jamais perceberia
a beleza que me enleva
ao nascer de um novo dia!
Maria de Lourdes Ouverney
Pindamonhangaba/SP
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Quem sabe, neste natal,
os homens possam sentir
aquele amor fraternal
que não sabem dividir!
Maria Norma Marcondes +
Pindamonhangaba/SP
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Vi sorriso na vitória,
vi nas lágrimas a dor,
vi lembranças na memória
e vi nos pais muito amor!
Maria Theresa Soares Schettert
Cruz Alta/RS
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Sigo em frente, enfrento as dores
que me afrontam costumeiras...
Só quem vence os dissabores
é capaz de abrir fronteiras!
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP
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Toda lembrança que eu trago
da distante mocidade
é, para mim, como afago
que o tempo faz na saudade
Nélio Bessant
Pindamonhangaba/SP
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A tranquila natureza
sussurrante nesta mata
entrega toda a beleza
para aquele que desmata.
Olga Corssetti
Cruz Alta/RS
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É marido de talento,
que conhece o seu mister,
quem se faz de ciumento
para enganar a mulher...
Orlando Brito +
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA
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Há mulheres que dão tudo
e, entretanto, nada pedem.
Mas só Deus sabe, contudo,
quanto custa o que concedem...
Othon Costa +
Rio de Janeiro/RJ
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Se Deus ao rogo profundo
atendesse toda asneira,
não havia neste mundo
nenhuma mulher solteira.
Paluma Filho +
São Gonçalo/RJ
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Serras... Torres de granito
rompendo o celeste véu...
-São escadas do infinito,
degraus da porta do Céu!
Paulo Tarcísio da S. Marcondes
Pindamonhangaba/SP
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"Meu bem, se foste enganado,
que Deus me cegue sem dó.
— E ele, agora, está casado
com mulher de um olho só!
P. de Petrus +
São Paulo/SP, 1920-1999
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Visitas, meu camarada,
sempre dão prazer à vida:
não sendo quando à chegada,
será, por certo, à saída..,
Pedro Uzzo +
Santos/SP
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A ventura é uma quimera
que estranhos caprichos tem,
pois vem quando não se espera,
quando se espera não vem...
Petrarca Maranhão
Manaus/AM, 1913 – 1985, Petrópolis/RJ
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Curso da reserva armada
terminou o rapagão.
— Já tenho visto às de espada,
mas burro de espada, não!
Pylades Gama +
Rio de Janeiro/RJ
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Se a água tivesse vida,
imagine a minha mágoa!
Você, no banho, despida,
entregue ao sabor da água!...
Renato Caldas +
Assú/RN
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Parece tanto comigo
aquele ser inocente,
que, por Deus, eu não consigo
olhar a mãe frente a frente...
Renato Goulart da Silveira +
Magé/RJ
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Depois da festa acabada,
um consolo ainda nos resta
é a esperança de que nada
nos fará. dar outra festa...
Roberto Damasceno +
Rio de Janeiro/RJ
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Disse-lhe, em tom amorável,
ardendo como um vulcão:
— Se tu fores razoável,
eu vou perder a razão!
Roberto Francisco
Petrópolis/RJ
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Natureza! Verde puro,
tantas árvores frondosas!
Cuidemos com mais apuro
dessas dádivas preciosas!
Sophia Irene Canalles +
Cruz Alta/RS
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Um sorriso de criança
mostra um momento profundo,
onde vigora a esperança
de ressurgir novo mundo!
Taciana Canales da Trindade
Cruz Alta/RS
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Num velório prolongado,
houve grande confusão,
quando o defunto, chateado,
levantou-se do caixão!
Walderedo Pereira de Oliveira
São Paulo/SP
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Dizes ter cravo em teu rosto,
mas que mentira maldosa;
onde se viu cravo exposto
sobre a face de uma rosa?
Walter Leme
Pindamonhangaba/SP
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Os netos são esperança,
são momentos de alegria,
lembrando sempre a criança
que já fomos algum dia!
Zuleika T. Ribeiro Edler
Cruz Alta/RS

A. A. de Assis (Artes de meninos)

Todos fazem suas artes, eu também já fiz as minhas. Porém primeiro preciso falar do Seu Lino, o olhador, vigiador, cuidador dos meninos arteiros de São Fidélis lá pelos anos 1940. Para começar, ele só aparecia em público vestido de terno e gravata, em respeito ao cargo que exercia. “Nobless oblige” (a nobreza da função exige indumentária adequada), ele explicava, enfatizando a lição que lhe ensinara o professor Expedito.

Um homem doce de coração, contudo rigoroso no cumprimento das suas responsabilidades. Recebia um salário para tomar conta da meninada durante oito horas por dia, mas quem disse que ele olhava para o relógio? Lá estava cedinho na porta das escolas. Lá estava de noite na porta do cinema ou do circo. Onde pudesse haver crianças, lá estava Seu Lino de terno e gravata, zelosamente cuidante para que não cometessem nenhuma travessura grave.

Vai daí que numa certa manhã um passarinho dedo-duro lhe indicou a direção da beira-rio. Lá foi ele. Atrás do Grupo Escolar havia um arvoredo, atrás do qual o rio formava uma enseada. Seu Lino caminhou passo a passo no meio das árvores, chegou bem pertinho e deu a ordem: “Fiquem todos onde estão”.

Estávamos nadando, meia dúzia de garotos, na maior farra, eu no meio deles. E o mais dramático: pelados, nuzinhos-nuzinhos. Tínhamos gazeado as aulas para curtir o banho de rio. Seu Lino, provavelmente rindo por dentro, catou nossos uniformes escolares deixados na grama e levou ao gabinete da diretora do Grupo.

Ela de imediato mandou chamar os pais. Só nos devolveria a roupa depois de passar um bom sermão na presença dos responsáveis. E a gente lá dentro d’água, sem poder sair devido à peladez.  

Por sorte meu pai não estava em casa na hora, então meu irmão Gomes, dez anos mais velho que eu, foi encarregado de ir me buscar e garantir que eu receberia uma reprimenda à altura e não voltaria a praticar traquinagens de tal monta.

No caminho meu irmão foi me passando uma lição de moral, alertando para a necessidade de criar juízo e coisa e tal. Em casa contou a história pra mãe, porém combinaram de não comentar nada com o pai, receando que ele pudesse exagerar no castigo. A mãe, após o discurso de praxe, proferiu a sentença, aliás bem maneira, considerando a importância da arte: uma semana sem ler gibi e sem jogar futebol de botão.

Aceitei a pena com humildade, todavia quis saber por que estavam levando tão a sério o fato de alguns meninos estarem tomando banho de rio pelados.

“E quem foi que falou de banho pelado?” – disse a mãe, concluindo: “Claro que isso também não é um bom costume, e você já tem idade suficiente para entender que as pessoas não podem ficar por aí exibindo suas intimidades. Mas no caso em foco o pecado não está na nudez; está no ato de matar aulas, ainda mais em vésperas de provas. Entendeu, Pafúncio?

(Crônica publicada em 28 de setembro de 2023, no Jornal do Povo)

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Tertúlia da Saudade 12: Apollo Taborda França

 

Mensagem na Garrafa - 3 -


 
Elisabete Aguiar
(Mangualde/ Portugal)

SABES?

Se estás perdido na bruma,
em nevoeiro e solidão,
sabe que tudo é espuma,
nada passa de ilusão.

Se te afundas na agonia
de uma sombria ansiedade,
sabe que a luz, mesmo esguia,
vem derramar claridade.

Se vacilas no torpor
da dúvida e da incerteza,
sabe que os braços do Amor
te guiam para a Beleza.

Se entontecido mergulhas
em ruidosa e louca orgia,
sabe que rudes agulhas
dilaceram a Alegria.

Se vais ao sabor do vento,
nas velas de uma miragem,
sabe que em cada momento
se recomeça a Viagem.

Se te revoltas na dor
e te alegras no prazer,
sabe que por teu labor
conquistas seu renascer.

Se nas trevas da amargura
anseias por todo o Bem,
sabe que em tua doçura
Ele já morada tem.

Se em teu medonho caminho,
por espinhos encrespado,
sofres na alma em desalinho
e segues dilacerado…

Se essa saudade magoada,
do sonho que mal sonhaste,
estimula a Caminhada
que ainda agora começaste…

Sabe que há sempre uma luz
a estrelar a noite escura,
e o pensamento traduz
para a manhã a brancura.

A Esperança é passaporte
para o reino do amanhã;
sabe que serás mais forte!
Sabe que Ela é tua irmã!

Fonte: enviado pela autora.

Contos do Paraná ("O amor na Fazenda Fortaleza", de Ivo Nalce)


No começo do século passado, José Felix da Silva instala a Fazenda Fortaleza, nos Campos Gerais, perto de onde hoje é Tibagi, então um povoado parado. A região era habitada pelos índios Coroados que atacavam os brancos. José Felix transforma sua fazenda numa verdadeira fortaleza, com muralhas e alguns homens passam a atacar    os índios,  massacrando-os e trazendo os sobreviventes para trabalhar como escravos na fazenda. O governo dá-lhe a patente de coronel e, além dos índios, passa a atacar os garimpeiros clandestinos que faiscavam no Rio Tibagi. As lutas contra os índios prosseguem, mas a segurança da Fazenda Fortaleza atrai agricultores que se instalam na região.

José Felix tinha fama de ser dos homens mais ricos da Província de São Paulo, a que o Paraná pertencia. E também de ser avarento e muito cruel. Quando o sábio francês Auguste de Saint-Hilaire passa pela Fazenda Fortaleza, em 1820, conta que as provisões eram fechadas a sete chaves e, por ser José Felix odiado por seus escravos, somente seu neto de oito anos era que o barbeava. Não tinha confiança de entregar a navalha na mão de ninguém mais.

José Felix se casa com uma moça muito pobre e, dizem muito bela e aí começa um dos casos de amor mais loucos que o Paraná já conheceu. Mulher jovem e bela com marido velho, avarento e ruim não pode dar boa coisa. A mulher contrata dois homens para matarem o marido, Na emboscada, José Felix fica gravemente ferido, mas consegue liquidar com os dois bandidos.

Como todo mundo sabia que fora a mulher quem mandara matar José Felix, ela foi presa na cadeia em Castro, cidade que, segundo Saint-Hilaire, era então habitada por três ou quatro comerciantes, prostitutas e alguns artesãos. Com seu dinheiro, ou poder, José Felix consegue liberar a mulher, o que ela aceita. Traz ela de volta para a Fazenda Fortaleza e tranca-a no quarto do casal, para isso manda gradear as janelas e a única porta. Os escravos passam a comida através das grades. Ninguém entrava na cela.

Ninguém? Todas as noites, José Felix tirava a chave que trazia amarrada no pescoço, abria a cela e ia dormir com ela no seu leito nupcial para cumprir as obrigações matrimoniais de praxe. Como eram as noites de amor do casal, só Deus sabe. Ou, então, Nelson Rodrigues, que também sabe de alguma coisinha da vida como ele é.

Talvez, como as personagens de Nelson Rodrigues, a mulher gostasse de apanhar. Mas de todo jeito parece que não muito, porque um belo dia, ou uma bela noite, consegue despejar goela abaixo de José Felix, um delicioso copo de vinho francês temperado com esses venenos que só os índios da região sabiam preparar. Mas enfim, apesar de morrer com a dose, José Felix, mesmo desconfiado como era, devia estar acostumado e gostar de receber das mãos da mulher um copinho de vinho francês antes de deitarem no leito nupcial para mais uma noite de amor, ou talvez de ódio. Isso, só mesmo o bom Deus sabe.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) LX


A espuma, artesã do mar,
à noite, chega e semeia
versos, à luz do luar,
nas vestes brancas da areia!
= = = = = = = = =

Ao ver que o teu pranto existe
e, o teu consolo é chorar,
meu canto ficou mais triste
que o pranto do teu olhar!
= = = = = = = = =

Ao ver teu rosto uma vez,
vi, pelo olhar indeciso...
Que com tanta timidez,
tu tens um lindo sorriso!
= = = = = = = = =

As filhas são meus tesouros,
meus netinhos são meus guias,
Tornando mais duradouros
os feitiços dos meus dias!
= = = = = = = = =

As mariposas pousando,
nas flores das violetas,
parecem anjos rezando
com asas de borboletas!
= = = = = = = = =

Às vezes, sinto os teus passos,
mesmo em momentos dispersos,
compondo bem, os espaços
que há, nos passos dos meus versos!
= = = = = = = = =

A vida com seus enganos
e os homens com seus engodos,
vão pondo mais desenganos
no mundo de quase todos!
= = = = = = = = =

Em dolentes badaladas,
notas curtas, versos longos,
o sino, em notas cifradas
decifra velhos ditongos!
= = = = = = = = =

Eu trago do meu Nordeste,
nos dedos de cada mão...
As marcas do solo agreste
dos pés secos do sertão!
= = = = = = = = =

Mesmo que o amor se desfaça,
entre alguns desajustados...
Que nunca se acabe a graça
do dia dos namorados!
= = = = = = = = =

Meus olhos te dizem tanto,
que ao vê-los, nos olhos teus...
Se cai gota do teu pranto
cai pranto dos olhos meus!
= = = = = = = = =

Meus versinhos são retalhos
de antigas luzes pagãs,
presas aos versos grisalhos
dos sóis de minhas manhãs!
= = = = = = = = =

Meu verso é fogo sagrado
com chamas de amor e paz!...
Mesmo depois de apagado,
sopra a cinza e se refaz!
= = = = = = = = =

Morre uma estrela tão bela,
da noite, um lindo troféu;
no espaço, essa ausência dela,
vira um fantasma no céu!
= = = = = = = = =

No meu ranchinho de palha,
nada me assusta, meu Deus!...
Nele, é que o amor se agasalha
nas conchas dos braços teus!
= = = = = = = = =

Num pico, sobre as colinas,
há um velho mosteiro, ao longe,
onde as canções mais divinas,
são preces de um velho monge!
= = = = = = = = =

O orgulhoso, é na verdade,
um cego sem ter visão,
que não percebe a humildade
da luz do sol pelo chão!
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O tempo com seus enganos,
cego em silêncio e sem voz,
de repente, muda os planos
dos planos de todos nós!
= = = = = = = = =

Por mais, que se tente a fuga,
ninguém foge do desgosto
de ver que, o tempo sem ruga,
nos deixa rugas no rosto!
= = = = = = = = =

Quando a musa nos alcança,
a infância, não tem fronteira;
o poeta, nasce criança
e é criança a vida inteira!
= = = = = = = = =

Quando o teu olhar me enlaça,
mesmo se amargo, ele fosse,
minha alma, rindo me abraça
e, a vida fica mais doce!...
= = = = = = = = =

Saudade é um trem carregado,
de mágoa, de pranto e dor,
que às vezes, traz do passado
velhas lembranças de amor!...
= = = = = = = = =

Toda vez que uma esperança,
diz adeus e, não se explica,
nunca apaga da lembrança
a dor que na mente fica!
= = = = = = = = =

Tuas mãos, ah... tuas mãos,
que ofertam lírios e cravos,
perfumam meus sonhos vãos
e as mãos dos sonhos escravos!
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Um canto que ainda persiste
na memória de nós dois...
Vem da voz do canto triste
de um velho carro de bois!

Fonte: Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.  Enviado pelo trovador.

Aparecido Raimundo de Souza (E o amor se fez saboroso, como pizza de muçarela*, com coca cola)

BASTOU OLHAR para a jovem que parou ao seu lado e João Ninguém se encantou dela. Não só dela, igualmente do seu sorriso, da sua voz macia, da pele cheirando a alfazema. No conjunto da obra, também do rosto, do charme, da simplicidade, da sua altivez. A figura possuía um semblante diferente. Ele jamais havia visto um igual. O sorriso, então, o deixou, de pronto, em estado de êxtase total.  Se tivesse aquela fofura em seus braços... se tivesse aquela deusa ao alcance dos seus carinhos e afagos, certamente seria o homem mais feliz na face da terra. João Ninguém se imaginou, por breves momentos, de braços dados com ela, trocando carícias e afagos. Sonhou acordado, estar andando pelas ruas, indo à missa na igrejinha local, passeando na praça, de mãos dadas, ou ao cinema, para assistir a um filme romântico.

Seus amigos ficariam com uma pontinha de inveja. Uma pontinha, não. A galera entraria em colapso. Todos se veriam à volta num deslumbramento difícil de ser descrito. Talvez até impossível de resumir em palavras. A beldade, do nada, simplesmente parou e sorriu. Se abriu num gracejo destilado de insinuações abertas a fazer com que, de pronto, seu coração conjecturasse devaneios construídos pelo calor de uma emoção que transbordava rebuliços inquietos e "zaragatados". Ele, ao vê-la assim, ao vivo e a cores, saiu do sério. Em contrapartida, ela não deixou margens a dúvidas. Seguiu se centuplicando ainda mais faceira, num inteiro amplificado que subia dos pés à raiz dos cabelos. Tudo assim, num relance inexplicável se recrudesceu exacerbado e envolto numa festa multicolorida de provocações pecaminosas.

João Ninguém, nesse momento, se viu arrancado do chão, como se flutuasse nas nuvens num infinito imarcescível. Se flagrou livre, leve e solto, colhendo estrelas em pleno sol à pino. Como um tresloucado transgressor, bebeu um gole de esperança num cálice imaginário. Um trago apenas bastou para salvar a imensidão da sua euforia adormecida. O bastante, contudo, para se embriagar dos encantos indescritíveis que fluíam como água de nascente de dentro dela, tipo um rio de leito bonançoso, inundando seus sonhos mais eloquentes. Ele, obviamente, não queria apressar seu coração. Não dessa vez. Em face de amores antigos vividos à trancos e barrancos, atrelados a paixões que não vingaram. Ele, num ímpeto forçado, tentou se abster de se enveredar por mais uma aventura.

Apesar dos casos “outrorais” que por uma série de jetaturas (azares) não deram em coisa alguma, o Cupido, a contrário senso, mais uma vez, lhe flechara. E os dardos acertavam seu âmago a ponto de, no minuto seguinte acabar novamente corroído por uma solidão sem fim. Uma solidão dorida, furiosa, sequiosa para maltratar seus pontos mais fracos e, logicamente, no mesmo rol, perturbar de modo assustador, a sua paz interior. João Ninguém tinha a impressão que os batimentos vindos de dentro de seu peito, saiam atropelando o relógio e os ponteiros de sua biografia. Nesse esmagar de emoções borbulhantes, e, em adequação aos encantos daquela deusa, algo inexplicável correu a bel prazer de um deslumbramento completamente fora de controle. Ele, bem sabia, não tinha autoridade diante de seus comandos.

Por assim, num instante inexplicável e indescritível, vinculado a um esgar nervoso e de sensações jamais experimentadas, se perdeu nos próprios passos. Bateu de frente tropeçando com um desconhecido até então nunca aquilatado, ou melhor, saboreado. O amor. O amor, de novo, se via ressurgindo de um simples olhar, de uma simples espiadela. Desse trocar de gestos suaves, desse fitar contemplativo, seu universo se fez mais exuberante e ele sorriu. Se insuflou doidamente como um menino bobo diante de uma coisa que ele não sabia o que era. Apesar de não saber do que se tratava, tinha escondido, dentro de si uma bússola que o norteava a dar de frente com uma convicção perene. Uma certeza robusta e perdurável. Uma estabilidade que faria a sua alma, assim do nada, de repente, não mais que num estalo impulsivo deixasse claro e consequentemente mostrasse às suas dubiedades e descrenças; seus almejos e ansiedades sem manchas.

Finalmente, algo lhe segredava. Encontrara o rosto, o semblante do seu meado faltoso. O núcleo paralelo e irreprimível, que o faria ser o cidadão mais feliz no fértil da terra e de um mundo que ele, até então, desconhecia completamente. Deixando o medo de lado, as dúvidas, retribuiu o alvissareiro do sorriso recebido. A moça batizada Ana Claudia, não esperou segunda ordem. Como se movida por uma força estonteante, se achegou e sem mais delongas se enleou num abraço. Foi um amplexo infantil, mas demorado, acalorado, inesperado. João Ninguém, a envolveu carinhosamente. Ternamente. Daí em diante, o milagre se fez sempiterno. Jubiloso, João Ninguém se abriu aos resplendores do amor. Se fez, exuberante e florescente. Convidou a moça para morar com ele. Assim, numa boa. Do nada. No atropelo. Ana Claudia, de pronto, aceitou. Deu certo. Vingou. Ano seguinte, uma filha engalanou a união de ambos. Por derradeiro, nascia e se perpetuava, por inteiro e sem resquícios, um novo JOÃO. Desta feita, um senhor JOÃO ALGUÉM.
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*Nota de rodapé do autor
A forma “mussarela”, sem dúvida, é a mais usada e já aparece registrada em alguns dicionários, contudo, contraria o nosso sistema ortográfico vigente e não está registrada no “Vocabulário Ortográfico da ABL.”  Assim sendo, oficialmente, devemos grifar a palavra dessa  forma:  MUÇARELA. Lado idêntico, nas palavras estrangeiras (muçarela tem origem italiana, e vem oriunda de mozzarella) que sofreu processo de aportuguesamento. O mesmo se aplica à açaí, paçoca, açúcar e praça.


Fonte:
Texto e nota enviados pelo autor

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 16: Isadora e Madame?

 Mesmo presa a uma situação indesejável, Isadora, sentia-se livre, enamorada. Sua alma, sua mente e seu coração tinham a máxima certeza de que a previsão da Vó Gorda sobre o amor que estava chegando em sua vida, estava certa. Queria dizer isso à querida benzedeira e comemorar a felicidade que estava a sentir junto da amiga. Estava a pé e apressou o passo rumo a Boitatá.

Enila estava a colher jasmins no jardim, para enfeitar a sala, enquanto Vó Gorda apanhava temperos em sua horta para o jantar de logo mais. As duas estavam a metros de distância, mas simultaneamente viram Isadora chegar sorridente e de braços abertos. Primeiro abraçou a amiga, e logo foi ao encontro da cozinheira.

- Vó...

- Não precisa dizer nada em palavras. Seus olhos me contam tudo. O amor aconteceu...

- Sim. A senhora estava certa. Por um lado estou muito feliz, por outro, não sei o que fazer. Estou noiva de um homem estranho ao meu modo de ver e sentir o mundo. Quando o vejo, sinto vontade de fugir para algum lugar qualquer, desde que bem distante daqui. Se meu destino está preso a esta pessoa, por que conheci Genuíno?

- Ah, guria, não pode entender tudo de uma vez só.

- Mas preciso entender. Caso contrário, como poderei encontrar a porta de saída desse inferno?

- “Fia”, queria te entregar essa chave em mãos, mas a missão de encontrar a chave e a porta de saída é tua. Se eu fizer isso por ti, o rumo da tua vida pode seguir por caminhos diferentes. Confia na vida. tenha fé. Agora a “véia” vai pra cozinha lavar esses temperos, preparar um prato bem gostoso. Se quiser, fica pra comer com a gente. Enila vai gostar.  

- O que estão cochichando? Não confia mais teus segredos a mim? – perguntou Enila em tom de brincadeira.

- Não se trata de segredos, quer dizer, sim, mas vocês podem saber.

Na sala, Enila ajeita as flores no vaso da mesa de centro e com atenção, ouve as confidências da amiga. Depois da explanação detalhada sobre a aventura amorosa, Isadora recordou algo sobre um tal livro, cujo conteúdo indecente levou o autor a prestar contas com a justiça francesa.

- É um livro que minha mãe e minha tia leram escondidas na biblioteca dos meus avós. Trata-se da história de uma mulher chamada Emma que traía o marido. Algo considerado imperdoável, indecente. Estou noiva e, em vez de beijar o noivo, beijei outro homem. Se o povo descobrir, por certo serei apedrejada, como deve ter sido a personagem.

- Querida, tu não és uma mulher casada. E esquece o que pode ter nesse livro e o que houve com o autor. Não fica impressionada. Agiste pelo impulso do amor. Foste corajosa, não indecente.

- Também penso assim, mas as consequências desse amor são imprevisíveis. Como será depois que eu estiver casada com o Fábio?

- Saberás o que fazer. E, independente da decisão que tomares, eu estarei ao teu lado. No que depender de mim, nunca estarás sozinha.

Entre sorrisos e lágrimas, Isadora e Enila trocaram um longo e apertado abraço.

- A amizade é uma flor divina que nasce dentro de quem tem o coração puro. Desabrocha por meio de sorrisos e alegra, perfuma a vida de quem tem a lealdade como primeira regra da vida – disse baixinho Vó Gorda ao entrar na sala segurando uma bandeja com chás, cafés, bolos, docinhos e biscoitos.  

Após se fartar com os quitutes, Isadora voltou para casa, indagou da mãe onde encontrar o tal livro indecente que ela havia lido quando menina. Dona Ana disse que o livro estava escondido junto de outras obras na dispensa da cozinha.

Que absurdo: livros escondidos na dispensa. Pensou Isadora, um tanto irritada.

Ao pegá-lo, observou a capa e o título: Madame Bovary.

- Muito prazer! - disse ela com um sorrisinho de canto nos lábios.

Debruçada sobre o travesseiro, com o lampião aceso à beira da cama sobre o criado mudo, abriu o livro aleatoriamente e se deparou com o seguinte trecho:
 
"...encontrava-se numa dessas crises em que a alma inteira mostra indistintamente o que encerra como o oceano que, nas tempestades, entreabre-se das algas das praia até a areia dos abismos.“

Depois, foi às primeiras páginas e imergiu na leitura até o raiar do dia.

“É... eu e essa Madame temos nossas diferenças.” pensa, antes de adormecer.
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 31

 

Mensagem na Garrafa - 2 -


Há Momentos
autor desconhecido

Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar,
porque um belo dia se morre.