segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

André Giusti (O Mais Novo Grande Senhor do Tempo)


Por que resolvera, de repente, a caminho dos 40 anos, usar relógio, era para ele mesmo um mistério daqueles encruados nas cavernas das razões desconhecidas. Em toda a vida tivera um único relógio. Em algum natal bem remoto, talvez no princípio da adolescência, o pai dera-lhe um bem vistoso, a pulseira cromada, o fundo azul perolado, os minutos e os ponteiros amarelos que brilhavam com a luz apagada para que fosse possível olhar as horas até mesmo no escuro. Usou um, dois meses se tanto. Um dia foi jogar futebol no intervalo rápido do recreio na escola, uma pelada daquelas bem improvisadas com bola feita de papelão amassado e grudado com durex. Tomou um toco de um moleque maior e o pulso em que estava o relógio foi beijar a fria dureza do chão de cimento. Sobraram apenas os estilhaços do vidro. O ponteiro das horas pulou longe, jamais foi encontrado.

Nunca mais, nunca mais te dou outro, o pai sentenciou sem raiva, embora não disfarçasse a pequena mágoa pelo descaso com o presente. Se aquilo foi trauma de infância, acabou virando peculiaridade bem resolvida de adulto: cresceu com os pulsos livres, vazios daquele peso, aprendendo a calcular as horas pelo sol, feito um índio urbano. Nos dias de chuva, perguntava as horas aos apressados que perseguiam o tempo. As vitrines das joalherias nunca roubaram seus olhos. Com o passar dos anos, não usar relógio afigurou-se como um ato reservado de rebeldia. Enquanto amigos erguiam modelos caros e robustos a prova d’água, a prova de choque, a prova de tudo, ele levantava o braço, deslizava as mãos pelo cabelo, indicava com o dedo um ponto distante, enfim, fazia qualquer movimento que permitisse aos curiosos reparar em seu pulso vazio. De vez em quando pendurava ali um elástico desses de embrulho. Fazia isso para debochar não sabia exatamente do quê. Quando um primo da namorada, sujeito com quem ele não ia muito, apareceu ostentando um modelo dourado desses que valem um carro semi-novo, comprou uma fita do Senhor do Bonfim e usou-a até que praticamente virasse pó.

Portanto, qual não foi o impacto de ver e sentir aquele peso sobre o pulso que julgava fino, que em tempo algum combinou com uma pulseira ateada a uma forma esférica de metal e vidro. Por um instante teve a impressão de que não era dele o próprio braço, e sim que o membro de outra pessoa fora-lhe enxertado às pressas, trazendo de brinde o elegante modelo suíço de pulseira de couro marrom e algarismos romanos. Presente da mulher, que pousava nele uns olhos amorosos, e que no fundo eram também os olhos doces do pai, concedendo-lhe uma segunda chance. Enquanto a esposa risonha estendendia-lhe a mão para que saíssem da joalheria, o ponteiro veloz dos segundos deixava cada vez mais longe o rapaz que gastava o dinheiro apenas em livros de sebo e discos de rock. Ficara sozinho - cismado em um mundo triste e apressado - o adulto que adquirira a mania de chegar na hora, encurralado pelo horário de entrar no trabalho e deixar o filho na escola.

Quarenta, cinqüenta minutos andaram pelas galerias do shopping. Ele sentindo-se um comunista aceitando idéias liberais, um ateu que tenha recebido provas da existência de Deus. Ia a passos lentos e medrosos ao lado da esposa. Disfarçadamente, sem que ela percebesse, tirou o relógio do pulso esquerdo e colocou no direito para que mesmo dentro do enquadramento social pudesse ainda existir um resto de transgressão. Estranho objeto o relógio, que para ser contrário ao padrão comum precisa estar na direita.

O senhor pode me dizer que horas são? Uma gorduchinha de seus vinte e poucos anos perguntou quando encostaram em um balcão para tomar café. Olhou-a e a princípio pensou que havia engano. Deu-se conta, afinal, e disse as horas sem muita certeza do que via nos ponteiros. Quando saíram dali, ele conferiu as horas, mais calmo, reparando melhor no mostrador, no brilho dos metais e do vidro, e caminhou um pouco mais depressa como um perfeito e grande senhor do tempo.

Fonte:
http://www.andregiusti.com.br/
Colaboração de Andrey do Amaral

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