quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Andréa Motta (Folhas Soltas ao Vento)


HAICAIS À SERRA DO MAR

Entre uma curva ou outra
correm na serra do mar
rios de água cristalina
*
Bromélias floridas
nos caminhos da Graciosa
Um caso de amor

ESCRITOR

Para ser escritor não basta
vestir-se de palavras
há de despir-se da própria pele.

AREIA

nessa areia branca
desenho meu passado
e busco no vento
arrimo ao futuro

fujo dos ditames
e regulamentos

nessa areia branca
onde o tempo
entre os dedos
escapa
sou tão breve
como breve
é a vida.

NAQUELA CASA DA ESQUINA

Naquela casa da esquina
ao cair das tardes, reunem-se os intelectuais,
as prostitutas e os desocupados do meu bairro.
Chegam aos grupos ou desacompanhados.

Aos poucos ao solo solitário d'um violão
mistura-se um bulício de vozes.
Ao verde das paredes incorpora-se euforia,
talvez nostalgia. A tristeza fica do lado de fora.

Naquela casa da esquina
os quitutes saborosos
juntam-se à poesia e à vadia.
O que era happy hour invade a madrugada.

Até que os olhos fiquem embaçados,
as vozes embargadas
e o violão se cale.

Mas nunca há silêncio
naquela casa da esquina,
ali moram os pássaros do meu bairro.

Mal o dia amanhece
mansamente iniciam nova cantoria.
A alegria reside
naquela casa da esquina.

RESPOSTA AO TEMPO

Silhuetas delineadas a pó de arroz
rasgam o oculto do espelho
não tenho voz

apenas o vento esvoeja no tempo
cerrado pelas minhas mãos vazias.

Nas profundezas do silêncio
o reflexo duma floresta de algas
[avermelhadas]

D'onde emergem sorrateiras verdades
O mar não aniquila nem suga, sustenta.

Não tenho voz, tenho uma força que impele
endorfina da palavra viandante que não disfarça,
oscila, é verdade, feito areia solta pela brisa
[assinalada pelas horas].

Não tenho voz, em resposta ao tempo
há uma força que impele e medra,
exorciza medos como ficção bordada
[na safira dos olhos].

HAIGATOS

Miado forte ecoa.
Um gato maracajá
do caçador foge.

Um gato selvagem
nascido no cativeiro.
Raça preservada.

Noite de inverno,
um vulto acorda a menina.
Gatinha em vigília.

TEMPO

Cada momento ultrapassa
no ensejo da lida
ao som dos impasses
trilhas de despedida
Assumo sou caiçara!

TEMPLO IMPLACÁVEL

voa ao vento
vai
oh tempo
faz da vida
um belo templo
dentro desta canção

se puderes
tempo amigo
me leva contigo
clareia meu destino
mostra-me as pedras
e as regras do caminho

vai
oh tempo
faz da vida
um belo templo
dentro desta canção

Oh tempo implacável
voa nas teias leves
espalha teus ardis
ganha os céus
e suas cores
espanta o gris
desta manhã

se preciso for
deixa teu próprio
tempo
carregar os bons ventos
toda paz
todo amor

VISITA

Recebo-te de braços abertos
para que me possuas sobre
as rochas plantadas sob meus pés.
Vens assim, agitado espumante

verde-azul-branco-verde- branco
muito branco azul azul azul
pigmentas minh'alma e sentes
meu gosto de destino

Vens agora e
me levas às tuas areias profundas
onde minha pele confunde-se com a tua
sem inúteis explicações

Sem timidez
ou resistência
recebo-te nos meus sonhos
vens viver as minhas fantasias

Vens e me beijas
(os pés!)
as mãos
encharcas meus cabelos
ensopas-me, devoras-me

azul-branco-verde-azul
muito azul verde verde verde
envolves-me em tuas águas
festejando o encontro ritmado

Dos braços - toques
das pernas - abraços
da pele dos poros - arrepios
verde azul branco azul azul azul

Vens,
recebo-te em mim
mar mar atlântico!
meu mar..verde azul azul azul.

É PRA TI QUE ESCREVO

Mote: Porque tu deixas em mim tanto de ti
Pedro Abrunhosa

É p'ra ti que escrevo, nesta manhã chuvosa
porque tu deixas em mim tanto de ti
me fazes sentir tua alma no balanço das folhas,
no vôo irrequieto das andorinhas

É p'ra ti que escrevo, no reflexo do espelho
pois é na inversão da imagem que teus dedos sorriem
porque tu deixas em mim tanto de ti
no silêncio das madrugadas.

Porque tu deixas em mim tanto de ti,
é p'ra ti que escrevo, por acreditar que além da mente
o corpo também voa, e cada passo deixa de ser
um sonho cruel no rastro de teus segredos.

Porque tu deixas em mim tanto de ti,
é p'ra ti que escrevo, para te dizer que aprendi
com este misto de saudade e ansiedade impregnada
na ausente presença delineada na janela embaçada.

É p'ra ti que escrevo, na fechadura do instante,
porque tu deixas em mim tanto de ti
na tua voz rebelde de poeta, no desejo apertado
de abraçar o vento e ancorar tua nau inquieta.

Porque tu deixas em mim tanto de ti, é p'ra ti que escrevo
para que saibas que no leito das tuas palavras
eu me deito e encontro sossego, seco meu pranto
e adormeço na saliva que do teu peito brota.

É p'ra ti que escrevo
para desvendar tua teia sagrada
para entender por que tu deixas em mim tanto de ti
porque teces a luz da manhã e preenches meu olhar vazio.

ENIGMA

Quem é esta sereia
que me habita a cada insônia
e com seu canto lamurioso
desvenda meu avesso?

quem é?

Esta mulher oculta
por longas madeixas
que me despe a pele
me deflora sem pânico

em querer ora cúmplice
ora cético
incendeia -me
viscera por viscera.

transformando-me num grande dilúvio
de desejos e medos.
Quem é?

NOITE

Anoitece em tons vibrantes
prenuncio de noite fria
e geada densa.

Sombras azul-róseo -amarelo-lilás
deambulam pelos vértices da anima
estancando o tempo - como se isto
fosse possível - fora dos sonhos...

Seus ponteiros em triangulação indócil
agasalham-se na sintonia afinada
de pernas e braços

encaixe perfeito
aquecendo versos não acabados..

IRREVERÊNCIA

Na boleia do vento
do sul ele veio prematuro.
Inundou o verão
18.02.07

BORDANDO ESSÊNCIAS

Dentro de cada um há um jardim
cravos, rosas e camélias,
há sim.

mão e contramão
silêncios e algazarras
há sim

um jardim dentro de cada um
araucárias, ipês eucaliptos
uma selva povoada por querubins

há sim
segredos de passarinhos
cazuza, metralhadoras
delitos contravenções

in(quieta)ções
tantas imperfeições
há sim

indiferença saudade
intuição atrevimento
pelo sim e pelo não

há um jardim em cada um
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