domingo, 14 de fevereiro de 2010

José Tavares de Lima (Juiz de Fora em Trovas)

Estação Ferroviária de Juiz de Fora antes de 1955

Não merece glória tanta
quem só vence... O mais valente
é quem perde e se levanta
para lutar novamente.

Quem por ser pobre reclama,
precisa entender, também,
que a flor nascida na lama
não perde a essência que tem...

Crê na voz sábia e madura,
porque na vida, em essência
erra menos quem procura
ouvir mais a experiência

Conserva do amor a chama
dentro do peito, acendida,
porque quem vive e não ama
não vive a essência da vida!

Quando alguém não tem desculpa
para a sua insensatez,
o destino paga a culpa
por coisa que nunca fez!...

Amo-a muito, porem preso
ao meu destino severo,
me obrigo a fingir desprezo
pela mulher que mais quero...

Esquece a luta perdida
porque, mais que insensatez,
lembrar fracassos na vida é
fracassar outra vez!

Sem ter carícias tuas,
nas longas noites, sem sono,
sou boêmio pelas ruas
cantando o meu abandono.

Espero-a... A noite está fria,
mas não desisto... Ouço passos...
E o prêmio da teimosia
vem se acolher nos meus braços!...

Raimunda trabalha em venda,
mas agora não se cansa
de dizer que aumenta a renda
movimentando a "poupança"...

Não foi musa de um momento...
Desde que a vi, deslumbrado,
alugou meu pensamento
por tempo indeterminado!

Se em meus poemas dispersos
falo sempre de fracassos,
é que a musa dos meus versos
vive ausente dos meus braços!

Sozinho, não desespero,
pois no verso encontro alento...
Não tenho a musa que eu quero,
mas tenho a musa que invento!

Musa, depois que partiste,
sem teu carinho, perdido,
o meu verso de tão triste
parece mais um gemido.

Sem ter ninguém, pela rua
eu faço a minha seresta,
cantando versos à lua:
a musa que ainda me resta!...

Na praia, alguém grita: gente,
dois carecas se afogando !
- Outro diz: calma, é somente
um nudista mergulhando...

Nortista careca é triste
e é justo que se entristeça,
porque nem peruca existe
que caiba em sua cabeça

Por quem não me quer, carrego,
no peito um DESEJO infindo
desejo que, de tão cego,
nem vê que estou me iludindo...

Tenho ambições, mas ciente
de que tudo tem limite,
DESEJO aquilo somente
que o meu alcance permite

Outros desejos profundos
não superam meu DESEJO
de transformar em segundos
as horas que não te vejo

Pelo teu sonho peleja,
sem desistência ou cansaços
Ninguém colhe o que deseja
apenas cruzando os braços

Ser feliz sem tua estima
nem tento que não tem jeito...
Felicidade não rima
com DESEJO insatisfeito

Deu trambique sim senhor!
Não negue que estou sabendo...
-- Responde o Salim: "Doutor,
eu nunca dei nada... Eu vendo!"

Pequei. Fiz a insensatez
de amar a quem não devia...
Mas, por amor, outra vez,
sem remorso eu pecaria!

Sei que o remorso é pungente"
não ter remorso, porém,
se consegue facilmente.
Basta só fazer o bem!

Parti cego a seus acenos...
Hoje, o remorso me diz
que por motivos pequenos
eu sou um grande infeliz!

Porque a deixei, hoje, triste,
a viver só me sujeito...
E o remorso, dedo em riste,
me condena e diz: bem feito!

Quem magoa um sernelhante
não vê, na sua cegueira,
que a ofensa dura um instante,
e o remorso... a vida inteira!

Por preguiça, o sêo Ramalho
fecha um olho ao se deitar,
para não ter o trabalho
de abrir dois quando acordar!

Volta... põe no rumo certo
minha vida sem comando...
Terás um portão aberto
e dois braços te esperando!

Se quer vencer, lute então
Com todo o empenho que possa;
Deus nos aponta o portão...
Abri-lo é tarefa nossa!

No teu adeus, com desgosto
do portão eu te acenava...
Havia um riso em meu rosto,
porém meu peito chorava.

O vício, ilusão malvada
que arruina qualquer vida,
tem largo portão na entrada,
porém, estreita saída!...

Meu peito, embora magoado
porque partiste, confesso:
é portão escancarado
aguardando o teu regresso!

Colonizou-te o suíço.,
Mas, Friburgo hospitaleira,
Tua raça, teu feitiço,
Têm, a marca brasileira!

Escolha a pessoa certa
para entregar-se, querida.
- Mamãe, quando a fome aperta,
não dá pra escolher comida!...

Tô num aperto tremendo!...
É por falta de dinheiro?
E o amigo se contorcendo:
É por falta de banheiro!...

Chorando os seus desacertos,
a solteirona assanhada
diz que precisa de "apertos"
e não de vida apertada!

Tanto ele aperta a pequena
que o guarda, voz pouco amiga,
pergunta, assistindo à cena:
isto é namoro ou é briga!

O Zé que vive apertado,
mas sonha um viver tranquilo,
de tanto "esperar sentado"
já criou calo "naquilo"!

Meu coração não resiste
e adora não resistir
a essa magia que existe
no teu jeito de sorrir!...

O amor que é paixão, que é febre,
põe, com a sua magia,
na nobreza de um casebre
a riqueza da alegria!

Tem ela poderes tantos
de sedução, de magia,
que, escravo dos seus encantos,
nem me lembro de alforria!

Da viagem, dos cansaços,
depois eu falo à vontade;
primeiro deixa em teus braços
que eu mate a minha saudade!

Sabe quem perde e não para
de lutar, sempre otimista,
que a derrota nos prepara
para a futura conquista ...

Não falar de coisa triste
com muito agrado eu queria...
Porém, depois que partiste,
como falar de alegria?...

Só peço a Deus uma graça:
que nunca uma despedida
destrua este nó que enlaça
minha vida à tua vida!

Não falar de coisa triste
com muito agrado eu queria...
Porém, depois que partiste,
como falar de alegria?...

Não fales mal de quem trilha
um venturoso caminho...
Se a tua estrela não brilha,
não tem culpa a do vizinho.

"Sua estrela brilha forte;
o que eu vejo não me engana..."
- Coitada, ao ler minha sorte,
nunca errou tanto a cigana!

Nosso motel não tem cama,
mas tem rede ... Vão topar?
E o jovem casal exclama:
- Nós não viemos pescar...

Planta, a cada frustração,
outro sonho em tua estrada...
Antes crer numa ilusão
do que não crer mais em nada!...

Luta, e com mão destemida
traça teu rumo e conduta,
antes que sejas na vida
um derrotado sem luta!...

Viva a vida; mas, cuidado!
Precavido, não se esqueça
de construir seu telhado
antes que a chuva aconteça!..

Tarda a chuva; e, por Deus chama
o nordestino apreensivo,
vendo a seca armar seu drama
com cenas de fome ao vivo!

Não fales com toda gente
dos teus tormentos e anseios...
Pois há quem fique contente
ouvindo os dramas alheios!

Sangue azul não tenho, sei;
de um plebeu sei que não passo,
mas sou feliz como um rei
no momento em que te abraço!

Ofensa dói, reconheço;
mas a tua indiferença
ao amor que eu te ofereço...
Dói muito mais que uma ofensa!

Não queiras, na desavença,
ofender quem te ofendeu,
pois quem revida uma ofensa
merece a que recebeu!

Para ver-te, de tão louco
nem meço a distância imensa...
A viagem cansa um pouco,
mas o prêmio, recompensa!

O inverno que acinza os dias,
insiste em mostrar, sem dó,
que em noites longas e frias
sofre mais quem vive só!...

Pode ventar ou chover...
eu, nos teus braços agora,
nem perco tempo em saber
se tem inverno lá fora!

Da mulher muito carente
seu Brochado anda arredio:
no verão, porque está quente
no inverno porque está frio!

Quando me abraças e dizes:
"-Vivo do amor que te dou..."
O mais feliz dos felizes
não é feliz como eu sou!

Dói-me não estar contigo
e ter que abafar meus ais;
mas, deste amor que eu não digo,
guardar segredo dói mais!

Na dor, não lamente a sina...
Quem no peito a fé conduz,
por entre a densa neblina
descobre raios de luz !

Depois que te foste embora,
eu vejo, ante o amor desfeito,
que o sol resplende lá fora...
Mas há neblina em meu peito!

Meu coração que sofria,
finalmente hoje se solta
das amarras da agonia
feliz com a tua volta!

Muitos sonhos de venturas
são cascatas de ilusão:
encantam, lá das alturas,
mas se desfazem, no chão...

Em cascatas de poesias
eu transformo, comovido,
o rio de águas sombrias
que a minha vida tem sido...

Quando a Graça na lambada
requebra seu corpo jovem,
a turma fica assanhada,
vendo as "graças" que se movem.

Partir grilhões eu não quis ...
Com teu amor, todavia,
sou um escravo feliz
que não reclama alforria! ...

A beleza que estonteia
não é tudo, mas eu digo:
- cafuné de mulher feia
não é carinho... é castigo!

Esquece o triste passado
que te deixa descontente...
Se o teu "ontem" foi nublado,
põe um sol no teu "presente"!
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José Tavares de Lima



O poeta e trovador JOSÉ TAVARES DE LIMA nasceu na cidade de Pilar, estado da Paraíba. Filho de militar e obrigado a mudar constantemente de cidade, fez seu primário e ginásio em diversos colégios de seu Estado e estudou Agronomia na Escola Vidal de Negreiros, em Bananeiras - PB.

Chegou ao Rio de Janeiro com 18 anos e lá viveu morando e trabalhando durante 33 anos, principalmente em vendas, nunca tendo exercido a agronomia na qual se diplomou. Aposentou-se e veio morar em Juiz de Fora - MG.

Ingressou na UBT Iocal em 1987 e começou a escrever trovas, chegando a Magnífico Trovador em ambas as categorias (lírica-filosófica e humorística) nos Jogos Florais de Nova Friburgo - RJ.

Já como magnífico, concorreu nessa categoria e de novo veio a se destacar, sendo bi-campeão em lírica/filosófica nos anos de 1997 sob o tema "REMORSO" e em 1998 sob o tema "PORTÃO" e este ano de 1999 em humorismo sob o tema "APERTO".

É casado e tem um filho que reside no Rio de Janeiro. JOSÉ TAVARES DE LIMA tem hábitos simples e não gosta de aparecer. Somente por instância de amigos e de sua esposa resolveu publicar o livro de trovas e sonetos "VOZES DO CORAÇÃO", existente na biblioteca da UBT-JF e um verdadeiro repositório de pérolas poéticas em forma de trovas e sonetos.

É membro da Academia Mineira de Trovas, Cadeira 29 - Patrono Célio Grunewald.

Fonte:
UBT/ Juiz de Fora

Moacyr Scliar (Letra de médico)



Na farmácia, presencio uma cena curiosa, mas não rara: balconista e cliente tentam, inutilmente, decifrar o nome de um medicamento na receita médica. Depois de várias hipóteses acabam desistindo. O resignado senhor que porta a receita diz que vai telefonar ao seu médico e voltará mais tarde. “Letra de doutor”, suspira o balconista, com compreensível resignação. Letra de médico já se tornou sinônimo de hieróglifo, de coisa indecifrável. Um fato tanto mais intrigante quando se considera que os médicos, afinal, passaram pelas mesmas escolas que outros profissionais liberais. Exercício da caligrafia é uma coisa que saiu de moda, mas todo aluno sabe que precisa escrever legivelmente, quando mais não seja, para conquistar a boa vontade dos professores. A letra dos médicos, portanto, é produto de uma evolução, de uma transformação. Mas que fatores estariam em jogo atrás dessa transformação?

Que eu saiba, o assunto ainda não foi objeto de uma tese de doutorado, mas podemos tentar algumas explicações. A primeira, mais óbvia (e mais ressentida), atribui os garranchos médicos a um mecanismo de poder. Doutor não precisa se fazer entender: são os outros, os seres humanos comuns, que precisam se familiarizar com a caligrafia médica. Quando os doutores se tornarem mais humildes, sua letra ficará mais legível.

Pode ser isso, mas acho que não é só isso. Há outros componentes: a urgência, por exemplo. Um doutor que atende dezenas de pacientes num movimentado ambulatório de hospital não pode mesmo caprichar na letra. Receita é uma coisa que ele precisa fornecer — nenhum paciente se considerará atendido se não levar uma receita. A receita satisfaz a voracidade de nossa cultura pelo remédio, e está envolta numa aura mística: é como se o doutor, através dela, acompanhasse o paciente. Mágica ou não, a receita é, muitas vezes, fornecida às pressas; daí a ilegibilidade.

Há um terceiro aspecto, mais obscuro e delicado. É a relação ambivalente do médico com aquilo que ele receita — a sua dúvida quanto à eficácia (para o paciente, indiscutível) dos medicamentos. Uma dúvida que cresce com o tempo, mas que é sinal de sabedoria. Os velhos doutores sabem que a luta contra a doença não se apóia em certezas, mas sim em tentativas: “dans la médicine comme dans l’amour, ni jamais, ni toujours”, diziam os respeitados clínicos franceses: na medicina e no amor, “sempre” e “nunca” são palavras proibidas. Daí a dúvida, daí a ansiedade da dúvida, da qual o doutor se livra pela escrita rápida. E pouco legível.

Os grafólogos, essas pessoas que decifram (ou tentam decifrar) personalidades pela letra teriam, com os médicos, muito trabalho. Mas é provável que os mistérios da grafologia médica não sobrevivam no futuro. Raros doutores datilografam as receitas, mas provavelmente o computador se imporá também nesta atividade.

Os pacientes talvez não se sintam inteiramente felizes com isso. A pessoa que olha o médico escrevendo sua receita não está apenas testemunhando um exercício de má caligrafia: está vendo uma mão poderosa, ainda que falível, traçando uma parte de seu destino. Sempre ilegível — como a letra dos médicos.

Fonte:
Scliar, Moacyr. A face oculta — inusitadas e reveladoras histórias da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001

Tatiana Belinki (Cristais Poéticos)


Inho, Não!

"Inho", "inha", "ito", "ita"
São pra ele humilhação,
O diminutivo o irrita:
O "Andrezim" prefere um "ão"!

Chama "gala" a galinha,
Não aceita correção;
"Escrivana", a escrivaninha,
E o vizinho é "vizão".

Chama "coza" a cozinha,
O toucinho é "toução",
É "campana" a campainha -
E ele próprio é o "Dezão"...

Andrezinho tem três anos
E já se acha bem grandão,
É por isso que não gosta
De diminutivo, então.

Não suporta que lhe digam:
"Dá a mãozinha" (em vez de mão),
Ou que mandem: "A boquinha
Abre e come, coração!"
=======================

O Grande Cão-Curso

Perante o Juiz, Senhor Dom Urso,
Reunidos para o maior Cão-curso,
Apresentaram-se - sem seus patrões -
Cachorros, cachorrinhos, cachorrões,
De muitas raças, tipos e modelos -
De pêlos lisos, crespos e outros pêlos -
Pra concorrer ao prêmio - um tesouro
Por todos cobiçado: o "Osso de Ouro".

(...)

O Juiz, preocupado,
Já bastante atrapalhado,
Olha em volta - e de repente
Vê, não longe, à sua frente
Um cachorro desleixado,
Pêlo todo arrepiado,
Cor de um tom indefinido,
De rabinho encolhido,
O desfile a observar,
Bem quietinho em seu lugar.
- Vem cá, diz o Juiz Urso, -
Participe do Cão-curso,
Apresente-se também,
Mostre o que é que você tem!

(...)

Sou um pobre vagabundo,
Sem família e só no mundo!
Mas se encontro um bom senhor
Dou-lhe todo o meu amor:
Na alegria ou no perigo,
Serei sempre o seu amigo!
É só isto. E disse o Urso,
- Quem ganhou este Cão-curso,
Foi você, meu bom, valente,
Viralata, inteligente
Mas modesto. O Troféu
"Osso de Ouro" é todo seu!

(...)

Juiz, com toda a humildade,
Peço um osso... de verdade!
==========================
[Os "limerick" são poeminhas]

Os "limerick" são poeminhas
Que sempre só têm cinco linhas,
Contando, rimados,
Uns "causos" gozados:
Estórias bem piradinhas.
------------
Fontes:
http://contoscantoseencantos.blogspot.com/2009/03/dica-de-leitura-especial-tatiana.html
http://lendoesonhando.blogger.com.br/2004_10_01_archive.html

Tatiana Belinky (1919)


"Sou antiga, mas não sou velha, porque dentro de mim continua vivinha a criança que fui e isto me permite estar em sintonia com crianças e jovens, com quem procuro repartir minhas curtições de ontem e de hoje. Meu prêmio maior é saber que meus livros irão para as mãos das crianças, e se elas sorrirem, ou se emocionarem, ou ficarem pensativas, eu ficarei feliz".

Tatiana Belinky (São Petersburgo, 18 de março de 1919) é uma das mais importantes escritoras infanto-juvenis contemporâneas. Embora russa, está radicada no Brasil há quase oitenta anos.

Nasceu em São Petersburgo (Rússia) no dia 18 de março de 1919, mudando-se para Riga aos dois anos de idade. Seu pai, Aron, era comerciante e a mãe, Rosa, cirurgiã-dentista. A menina Tatiana aprendeu a ler no idioma materno, o russo. Aos dez anos de idade, fugindo das guerras civis que assolavam a então União Soviética, Tatiana já falava russo, alemão e letão. Devido à perseguição aos judeus na Rússia Soviética, a família Belinky, que era judia, resolveu se mudar para o Brasil, chegando a São Paulo em 1929.

Aos dezoito anos, após concluir um curso preparatório, começou a trabalhar como secretária-correspondente bilíngüe, nos idiomas português e inglês. Aos vinte (1939) ingressou no curso de Filosofia da Faculdade São Bento, mas abandonou-o em 1940, quando casou-se com o médico e educador Júlio Gouveia.

De 1948 a 1951, criou com o marido várias adaptações de histórias infantis para teatro. Nessas encenações, Tatiana fazia o roteiro e o marido, a direção. As peças eram encenadas em teatros da Prefeitura de São Paulo, com recursos da prefeitura.

Em 1952, o casal encenou sua bem-sucedida adaptação “Os três ursos” na extinta TV Tupi. Com o sucesso da encenação na televisão, a Tupi convidou o casal a elaborar o programa “Fábulas Animadas”, preenchendo uma lacuna da programação da época para o público infanto-juvenil.

A primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, estreou em 10 de janeiro de 1952, e a direção coube a Tatiana Belinky e Júlio Gouveia. Foram 300 episódios, mas infelizmente não ficou nada registrado pois o programa era feito ao vivo.

A primeira adaptação ocorreu no Teatro Escola de São Paulo - TESP - um teleteatro dirigido ao público infantil, criado em 1948 por Tatiana e Júlio Gouveia. "A Pílula Falante", um dos capítulos do livro "Reinações de Narizinho", foi a história escolhida para ser exibida ao vivo na Tupi. O sucesso alcançado por esta única apresentação levou a emissora a produzir a primeira série de televisão do "Sítio do Picapau Amarelo".

O primeiro programa estreou em 3 de junho de 1952 (às quintas-feiras, 19h30), com a reprise do episódio "A Pílula Falante", ficando no ar por 11 anos. Paralelamente à exibição ao vivo em São Paulo, a TV Tupi do Rio de Janeiro exibiu, por dois meses no ano de 1955, uma versão da série com direção de Maurício Sherman e produção de Lúcia Lambertini, que também interpretava a Emília ao lado de Daniel Filho (o Visconde) e Zeni Pereira (Tia Nastácia).

Seguiram-se outros programas de sucesso, sempre na linha de adaptações para o público infanto-juvenil, que estiveram no ar por um total de 13 anos, até 1966. Esses programas tinham sempre o propósito explícito de estimular a leitura entre os jovens, criando nestes a curiosidade de ler os originais das adaptações.

Torna-se presidente da CET (Comissão Estadual de Teatro de São Paulo).

Paralelamente à atividade como roteirista de teatro e televisão, Tatiana Belinky deu início, em 1952, à atividade como tradutora literária, iniciada com suas adaptações de peças de teatro infantis e contos russos. Traduziu mais de 80 livros do russo, alemão, inglês e francês. Entre os textos que traduziu e adaptou estão obras de autores como Dostoiévski, Tolstói, Gorki, Gogol, Turgueniev, Goethe, Brecht, Irmãos Grimm e Lewis Carroll. Sua especialidade sempre foi a literatura infantil russa, ajudando a divulgar a cultura russa entre crianças e adolescentes.

Também atuou, a partir de 1972, como crítica de literatura infanto-juvenil e de teatro, como colaboradora dos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde e da TV Cultura.

Finalmente, em 1985, Tatiana Belinky desponta como escritora de livros, colaborando em uma série infanto-juvenil.

Seu primeiro livro de poesia infantil, "Limeriques das Coisas Boas", foi publicado em 1987. Os poemas do livro, que brincam com cacófatos e exploram a riqueza verbal da língua portuguesa, inspiram-se nos "limerick", poemas de origem irlandesa de apenas cinco versos, cuja característica é o non-sense e o bom-humor.

A partir desta publicação, Tatiana passa a trabalhar fervorosamente sobre novas criações, chegando a escrever mais de cem obras. Suas publicações são acompanhadas por vários prêmios literários, entre eles o célebre Prêmio Jabuti, recebido em 1989.

Tatiana Belinky é autora premiada em literatura e teatro. Recebeu o Prêmio Mérito Educacional em 1979, e o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano em 1989, entre outras premiações.

Na área de tradução, recebeu o Prêmio Monteiro Lobato de Tradução em 1988 e 1990. Em 1994, deixou de atuar como tradutora, mas não abandonou, entretanto, sua atuação como escritora.

De sua vasta obra, destacam-se "Coral dos Bichos", "Limeriques", "O Grande Rabanete", "Di-versos russos", "Limerique das Coisas Boas", entre outros.

Nestes últimos anos, Tatiana Belinky tem também publicado livros de crônicas e memórias.

Tatiana explica o que significa limerique:
O limerique é um estilo de verso inspirado numa cidade da Irlanda, Limerick, e desenvolvido pelo poeta Edward Lear. São cinco linhas, três versos rimando, o primeiro, o segundo e o quinto; o terceiro e o quarto, mais curtos, rimam entre si. Isso dá ritmo, é ótimo para fazer algumas brincadeiras. Aprendi na Playboy americana. Claro que o autor lá se valia do limerique de uma forma maliciosa. Mas aí eu pensei: posso brincar com isso de outra maneira. A idéia é ressaltar uma coisa que é o contrário do que penso, e a criança, que não é nada boba, vai entender direitinho. Olha este exemplo aqui:

Quem pensa que eu sou uma ogra
No seu pensamento malogra.
Língua bifurcada?
Só quando enfezada.
Porque eu sou mesmo é sogra."

Fontes:
wikipedia
Fidus Interpress
http://fidusinterpres.com/?p=523
http://contoscantoseencantos.blogspot.com/2009/03/dica-de-leitura-especial-tatiana.html
http://lendoesonhando.blogger.com.br/2004_10_01_archive.html

Cassiana Lima Cardoso (Cultura e Sociedade pelo viés Poético de Mário de Andrade)

Mario de Andrade (Caricatura de Di Cavalcanti)

Uma análise de poesia que busca através de sua leitura esboçar o panorama político e social de um tempo é, sem dúvida, uma iniciativa pretensiosa. No caso de Mário de Andrade, poeta complexo, profundo e extremamente pessoal, em que a procura da identidade não se faz sem tensões com o real, tal propósito deve se organizar de forma extremamente cuidadosa a partir de um atento olhar ao desenvolvimento de sua atividade poética, na qual a preocupação em ligar o texto a uma genealogia sempre mediou o modo com o qual Mário de Andrade construiu seu projeto estético e ideológico. Sem desvincular-se da aventura do homem Mário de Andrade, o seu fazer poético busca matizar sua concepção de mundo, do homem e do objeto próprio da poesia:

Por isso, a obra de Mário é simultaneamente uma procura da identidade do individuo e procura da identidade do grupo (que ele esforçou-se para identificar toda cultura brasileira); e por isso Manuel Bandeira, em “Variações sobre Mário de Andrade”, pode aproxima-los assim: “Brasil/Como será o Brasil/MÁRIO DE ANDRADE. (LAFETÁ ,1986, p.311)

Seguindo o esquema elaborado por João Luis Lafetá que procura delinear a poesia de Mário de Andrade a partir das várias máscaras que incorpora, veremos o modo como se realizam as contradições e as fraturas da classe burguesa no conjunto das Poesias Completas; perfeito espelho do desenvolvimento das grandes linhas-de-força do Modernismo e, portanto, da história da cultura brasileira no período compreendido entre 1922 e 1945.

A primeira máscara corresponde à fase vanguardista ,a do trovador arlequinal, do poeta sentimental e zombeteiro que encarna o espírito da modernidade e de suas contradições. A preocupação com o conhecimento exato do país e suas potencialidades é a pesquisa de identidade do poeta e de sua Paulicéia cosmopolita. É a partir da vivência de suas ruas e multidões que surgem os poemas de Paulicéia Desvairada:

“Sentimentos em mim do asperamente”.
dos homens das primeiras eras...
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
(...)
Sou tupi tangendo um alaúde!”“.
(ANDRADE, 1979, p.33).

O eu-lírico é aquele que olha, observa, mistura-se á paisagem e entrega-se continuamente ás suas modificações, sem abandonar, porém, sua veia poética que o induz a cantar seu tempo na descrição da cidade moderna, lugar de movimento e agitação. Os “sentimentos” se entranham “asperamente”, isto é, o poeta não se submete prontamente ás emoções que lhe vem de fora; ou apenas na medida em que sua humildade diante das coisas representa uma fase preparatória, necessária para identificação do objeto-mas á qual sucede outra atividade definitiva – a ação consciente sobre o material poético, sobretudo a consciência da multiplicidade de feições que os contornos da cidade adquirem ante o eu-lírico provocando em a sua alma arlequinal profunda angústia quando este se enxerga como um “estranho” em um jogo de espelhos e contrastes que o confunde á própria paisagem:

Tristura

Profundo.Imundo meu coração...
Olho o edifício: Matadouros da Continental.
Os s vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a Avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu não em guizos nos meus interiores arlequinais...
(ANDRADE,1979,p.39)

A versatilidade arlequinal o faz, ao confundir-se com o ambiente sentir-se constituído e constituinte da crueza e da rudeza do ambiente caótico que se apresenta na formação da nova cidade de São Paulo. No novo mundo que se anuncia, sente ao afundar-se em sua superfície, “imundo”.Ao mesmo tempo em que nega a realidade que o cerca, constata-se personagem imerso á frieza e á corrupção do jogo de aparências que corrói o ambiente e as relações sociais. Como observa Lafetá:

A impressão que se tem ao ler esses versos é contraditória: ao cheiro do novo, que eles ainda têm junta-se o sentimento de coisa desarrumada, caótica, quase informe. As reticências, as grandes exclamações, os neologismos e os preciosos (retórica e amaneiramento que o poeta nunca abandonou de todo) são responsáveis por sensação penosa de artificialismo e falsidade(LAFETÁ, 1986, p.316).

Não é só a poesia que parece ruim, mas ainda sua matéria nutridora, a cidade que a inspira e mesmo o eu-lírico ressente-se consigo ao perceber “imundo o coração”; “vícios que viciaram-no na bajulação sem sacrifícios”. É a inadaptação ao mundo e a si mesmo que faz com que Mário de Andrade resista em reconhecer-se no ser que aponta na sua poética.

Há um labirinto na grande São Paulo em que vários “eus” se perdem e se encontram em uma perigosa Odisséia:

Os Cortejos
(...)
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia – a grande boca de mil dentes;
(...)
Estes homens de São Paulo
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos,uns macacos. (ANDRADE ,1979,p.33)

As imagens apontam sentimentos ambíguos: tecem duplamente um fio de horror que corresponde ao reconhecimento de formas degeneradas e decadentes – expressas pela ausência de singularidade na reificação humana, ao incorporar os desígnios da moda como “uns macacos” – e pelo fio do encantamento tecido pelos olhos “ricos” do poeta, que fazem um apelo ao retorno da poesia, da compreensão, da identidade.

Entretanto, a postura de terror e estranhamento irá se amenizar em Losango Cáqui, pois apesar de manter-se a máscara arlequinal, a pesquisa do “eu” avança e encontra algo que se enquadra melhor ao corpo rítmico do poema.A cidade de pedra e concreto renasce, ao ver-se integrada a um elemento natural, o Sol, que atua como um catalisador para que o eu-lírico marioandradiano volte a atribuir sentindo á sua morada, São Paulo. A linguagem se harmoniza, ao sentir-se de novo o poeta solidarizado com seu mundo, seu eu e seus concidadãos:

XVII
[...]
A vista renasce na manhã bonita
Paulicéia lá em baixo epiderme áspera
Ambarizada pelo sol vigoroso,
Com o sangue do trabalho correndo
[nas veias das ruas]...

Fumaça bandeirinha
Torres
Cheiros
Barulhos
E fábricas...

Naquela casa mora,
Mora, ponhamos : Guaraciaba...
A dos cabelos fogaréu!....
Os bondes meus amigos íntimos
Que diariamente me acompanham pro trabalho...

Minha casa...
Tudo caiado de novo!
É tão grande a manhã!
E tão bom respirar!
E tão gostoso gostar da vida!
A própria dor é uma felicidade!

(ANDRADE ,1979,p.82)

O Sol revigora a paisagem, reacendendo o ânimo do poeta. Ele se enternece ao pensar em todos aqueles que impulsionam a engrenagem da cidade de São Paulo, e o movimento de seu olhar inverte a ordem do clichê futurista: ao louvar as fábricas, retrocede e volta á casa da trabalhadora que veio do interior. Personifica os bondes e bendiz a manhã (procedimento análogo ao do poema Louvação Matinal, de Remate dos Males). Celebra o momento no qual se movimenta e possibilidade que o trabalho lhe traz de, mesmo que dolorosamente, constituir uma de suas facetas, uma de suas máscaras:

Com certeza a mudança de tom perde alguma coisa, o impulso da violência da cidade grande, que é como cicatriz doída nos poemas da Paulicéia e agora aparece muito pouco.Mas na correção de rumos, do “cosmopolitismo” ao “localismo”, Losango Cáqui sai ganhando,pois não abandona as técnicas da vanguarda e mesmo assim aproxima-se melhor da realidade que deseja cantar. Um pequeno ajuste que é a grande vitória da forma:a conquista definitiva da poesia para a linguagem coloquial. (Lafetá, 1986, p.322)

No entanto, o sentimento “pau –brasil” mencionado por Mário de Andrade na “Advertência”, de Losango Cáqui irá se manifestar somente um pouco mais tarde, em Clã do Jaboti. A máscara de trovador arlequinal será substituída pela figura do poeta aplicado, o estudioso que pesquisa, em manifestações culturais do país todo, o descobrimento e a interpretação da realidade brasileira.Os poemas dessa época propõem-se a incorporar o folclore, as manifestações da cultura popular á nossa prática poética erudita. Na Paulicéia Desvairada e no Losango Cáqui, Mário enfrenta a questão da autêntica expressão do “eu”.Em Clã do Jaboti, depois de feita a crítica do individualismo de vanguarda, o mesmo problema é enfrentado de maneira diversa:

A revelação do “eu” passa pela socialização que no caso, significa abrasileiramento, maneira de enfrentar a alienação devoradora dos padrões culturais europeus (Idem, 328).

Porém Clã do Jaboti, ao bordejar os perigos do caráter nacional, consegue ao final demonstrar que o que busca Mário de Andrade a partir do estudo do folclore e da cultura popular é novamente a sua própria imagem, a figura do letrado brasileiro, quer dizer, daquele que está entre a realidade na qual vive e toda a cultura estrangeira que é a base de sua formação:

Brasil que eu amo porque o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é minha expressão muita engraçada,
Porque é meu sentimento pachorrento,
Porque é meu jeito de ganhar dinheiro,
De comer e de dormir.
(ANDRADE,1979, p.109)

Mas também a euforia desses versos de Clã do Jaboti irá se reconfigurar.(Remate dos Males, publicado em 1930, prefere a fluidez variada de uma transmutação incessante: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”) são os versos que abrem “Remate dos Males”, e sua estrofe central contrasta com as afirmativas finais de “o poeta come amendoim”:

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
(Idem ,157)

Não há mesmo uma correlação automática entre o ser e sua expressão, é o que constata o poeta. A “cultura brasileira”, que antes servira como ponto de referencia para dar unidade ás diferentes facetas do “eu”, mostra-se agora insuficiente. Remate dos Males, publicado em 1930, dá o balanço e liquida a primeira fase do modernismo . Talvez seja o livro mais variado de Mário , uma exibição extraordinária e depurada de todas as conquistas técnicas dos anos 20. Tem “Danças”, de 1924, no melhor estilo de combate de vanguarda, fragmentário e destruidor; tem o “Tempo de Maria” (1926), construtivo, pitoresco, saboroso e brasileiro como os textos impregnados pelo sentimento “possivelmente pau-brasil”; e tem as experiências finais da década, quando o modernismo abandona as contingências e a estética do choque, em um refluxo meditativo mais interiorizado: os “Poemas da Negra” (1929), e os “Poemas da Amiga” (1929-1930), que prenunciam a produção modernista madura e equilibrada dos anos 1930:

Publicado no mesmo ano da revolução que abre um novo período na história republicana, o Remate dos Males é sintomático: a liquidação geral a que ele procede guarda uma notável simetria com o ímpeto de mudança de rumos que gera a revolução (LAFETÁ, 1986, p.330).

Após Remate dos Males, em que a variedade do “eu” é apresentada em bloco ao leitor, como problema, Mário passou onze anos sem publicar um volume novo de poesias. Só em 1941, com este título justamente, Poesias, é que será editada uma antologia, constituída de poemas anteriores e apresentando dois livros inéditos: “A Costela do Grão Cão e o Livro Azul. Nesse livro aparece a quarta máscara a que se refere Lafetá, que a chamou de espelho sem reflexo. Há aqui uma radical descida do poeta em si mesmo, uma procura do “eu” que é ao mesmo tempo a procura do “outro”. E o curioso é que nesse mergulho na subjetividade acaba por se revelar uma dimensão social inesgotável: a “longa viagem na noite” que o poeta realiza aí, figura, simultaneamente, a intimidade atormentada e as inquietações de um grupo social que perdera a euforia e a confiança que, antes, permitiram-lhe realizações cheias de vitalidade.

Eu me aproximo de mim mesmo
No espanto ignaro com que a gente se chega pra morte
(...)
Tudo me choca, me fere, uma angústia me lava
Estou vivendo idéias que por si já são destinos
E não escolho mais minhas visões
(...)
Será que nem uma arrebentação
(Idem, 333)

E com um passo já esta-se diante de uma nova atitude de pesquisa, que descobre aspectos insuspeitados do país e conforma uma outra máscara: a do poeta político, de o Carro da Miséria, Lira Paulistana e Café. Essas obras trazem consigo vários pontos convergentes, tais como a denúncia da exploração social, a revisão amarga daquilo que foi cantado de modo eufórico na juventude, a esperança de transformação, a resistência e a expressão de uma angustia muito pessoal diante dos desmandos do mundo. Vê-se outra vez que o empenho interessado do poeta em desvelar o interior da luta de classes constitui-se de um prolongamento de suas inquietações intimas:

O passado atrapalha os meus caminhos
Não sou daqui venho de outros destinos
Não sou mais eu nunca fui decerto
Aos pedaços me vim – eu caio- aos pedaços disperço.
(...)
Rompe a consciência nítida :EUTUDOAMO
(...)

Destino pulha alma que bem cantaste
Maxixa agora samba o coco
E te lambuza na miséria nacionar
(Idem, 335)

Em Mário de Andrade o sentimento do mundo e o sentimento individual estão amalgamados: observa-se nas várias máscaras que constituem o eu-lírico do poeta, uma complexidade crescente. Entre o arlequim, o poeta aplicado, o poeta sem espelhos e o político, há acima de tudo aquele que toma a decisão de procurar a si mesmo, que transita entre o alto e o baixo, vai do eu aos outros, convivendo heróica e angustiadamente com o risco que envolve essa busca tanto no que diz respeito a aventura do fazer poético, quanto a da procura da própria identidade.

Para terminar, gostaria de, ao invés de tecer os comentários já desgastados no que diz respeito á importância de Mario de Andrade no que tange sua conduta e compromisso intelectual com seu tempo e nossa cultura, citar um trecho de Donald Schüler que talvez condense o propósito e a validade da mutabilidade das várias máscaras de sua poesia:

Ethos entrou no vocabulário do teatro com o sentido de personagem. Mascarados, os atores fazem-se personagens. Máscara é morada. Também morada o rosto que a reveste. Se derivarmos anthropos (homem) de anti (diante de) e ops, rosto, o próprio homem se apresenta como alguém que anda de rosto velado. A cadeia de máscaras não termina. O que se esconde atrás da ultima máscara? (SCHULER, 2001, p.179)

As máscaras renovam-se continuamente, pois o que elas dizem jamais cessará de vigorar: isto é, a cada nova leitura que fazemos de Mário, renova-se a sua poesia, o homem e a sociedade em sua complexidade de horror, fascínio, desencanto e deslumbramento.

Fonte:
Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.5, n.1: p.22-32, jun. 2007.

Andrey do Amaral (Novo (e divertido) Acordo Ortografico)

União Brasileira de Escritores (Eleição da Diretoria e Conselho)


Eleição da Diretoria e Conselho da União Brasileira de Escritores

De conformidade com os Artigos 36, inciso, Artigo 37, incisos I e III e Artigo 38 e seu parágrafo único, dos Estatutos, convoco uma Assembléia Geral Ordinária dos Associados para o próximo dia 15 de março de 2010, às 9 horas em primeira convocação, e uma hora depois em segunda, na sede da entidade, Rua Rego Freitas, 454 – cj. 121 – 12º andar, nesta Capital, prolongando-se até às 20 horas, para examinar e votar o relatório e as contas da administração do presente mandato e eleger a Diretoria Executiva e o Conselho Consultivo e Fiscal, em escrutínio secreto, para o próximo biênio.

São Paulo, 4 de janeiro de 2010.
Levi Bucalem Ferrari – Presidente

Observação: A nova Diretoria, que comandará os destinos da UBE para o biênio março 2010/março 2012, tomará posse imediata, cumprindo os Estatutos. Apenas uma chapa foi registrada.

Os sócios da Capital votarão na sede no horário acima e os do Interior e outros Estados por correspondência. A secretaria está providenciando o envio das cédulas de votação aos associados do interior e outros estados.

Só poderá votar e o associado em dia com a tesouraria da entidade.
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CHAPA V
Biênio - março de 2010 a março de 2012
Presidente: Joaquim Maria Guimarães Botelho;
1º Vice: Renata Pallottini;
2º Vice: Audálio Ferreira Dantas;
Secretário- Geral : Sueli Carlos;
1º Secretário: Maria José Vianna;
2º Secretário: Luiz Avelino Lima;
Tesoureiro-Geral: Nicodemos Neves Sena;
1º Tesoureiro: Gabriel Kwak;
2º Tesoureiro: Djalma da Silveira Allegro.
Diretores Departamentais: Antonio Francisco Carvalho Moura Campos, Célio Roberto Turino de Miranda, Claudio Jorge Willer, Deonísio da Silva, Dirce Lorimier Fernandes, Giselda Penteado di Guglielmo, Mariza Baur, Menalton João Braff, Raquel Naveira e Roberto Scarano.

Conselho Consultivo e Fiscal: Anna Maria Martins, Antonio Carlos Ribeiro Fester, Antonio Possidonio Sampaio, Fábio Lucas, José Carlos Garbuglio, Levi Bucalem Ferrari, Marisa Philbert Lajolo, Paulo Oliver, Plínio Cabral e Rodolfo Konder.

Fonte:
Jornal da União Brasileira de Escritores – fevereiro de 2010 – n.13

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Monteiro Lobato (O Engraçado Arrependido)


Nota: algumas palavras de sentido desconhecido coloquei entre parenteses em tamanho menor após a palavra, de modo a que o leitor não tenha que recorrer constantemente ao final do texto para procura-las
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Conto publicado na Revista do Brasil, n.° 16, de abril de 1917, com o título de “A Gargalhada do Colector”.


Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta mil arrobas afazendados no Barreiro, só aos trinta a dois anos de idade entrou a pensar seriamente na vida.

Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa da veia cômica, e com ela amanhara (conseguira) casa, mesa, vestuário e o mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglês e tudo quanto bole com os músculos faciais do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas.

Sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de Fuão Pechincha, o autor mais dessaborido (insípido) que Deus botou no mundo; mas era tal a arte do Pontes, que as sensaborias (conversa enfadonha) mais relambórias (sem graça) ganhavam em sua boca um chiste raro, de fazer os ouvintes babarem de puro gozo.

Para arremedar gente ou bicho, era um gênio. A gama inteira das vozes do cachorro, da acuação aos caititus ao uivo à lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca perfectibilidade capaz de iludir aos próprios cães - e à lua.

Também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untanha (anfíbios, tipo o sapo), ralhava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava (discurso com emoção) de patriota em sacada. Que vozeiro de bípede ou quadrúpede não copiava ele às maravilhas, quando tinha pela frente um auditório predisposto?

Descia outras vezes à pré-história. Como fosse d’algumas luzes, quando os ouvintes não eram pecos (néscios) ele reconstituía os vozeirões paleontológicos dos bichos extintos - roncos de mastodontes ou berros de mamutes ao avistarem-se com peludos homos repimpados a fetos arbóreos - coisa muito de rir e divulgar a ciência do sr. Barros Barreto.

Na rua, se pilhava um magote (reunião) de amigos parados à esquina, aproximava-se de mansinho e - nhoc! - arremessava um bote de munheca à barriga da perna mais a jeito.

Era de ver o pinote assustado e o - passa! nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu, estrepitoso e musical - música d’Offenbach.

Pontes ria parodiando o riso normal e espontâneo da criatura humana, única que ri além da raposa bêbada; e estacava de golpe, sem transição, caindo num sério de irresistível cômico.

Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferenciava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se (riam sem controle) uns, outros afrouxavam os coses , terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos (risos estridentes), eram guinchos, engasgos, fungações a asfixias tremendas.

– E da pele, este Pontes!
– Basta, homem, você me afoga!

E se o pândego se inocentava, com cara palerma:

– Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca...

Quá, quá, quá - a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo supremo dos risos incoercíveis.

Com o correr do tempo, não foi preciso mais que seu nome para deflagrar a hilaridade. Pronunciando alguém a palavra “Pontes”, acendia-se logo o estopim das fungadelas pelas quais o homem se alteia acima da animalidade que não ri.

Assim viveu Pontes até a idade do Cristo, numa parábola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá momos em troca de jantares e paga continhas miúdas com pilhérias de truz (golpe, pancada).

Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado:

– Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça que caloteia de carranca.

Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso pândego; mas a conta subia a quinze mil réis - valia bem a pelotada. Entretanto, lá ficou a lembrança dela espetada como alfinete na almofadinha do amor-próprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve, aqueles até a cabeça.

Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar as delícias de ser tomado a sério, falar e ser ouvido sem repuxo de músculos faciais, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada (pegada) um coro de “Lá vem o Pontes!” em tom de quem se espreme na contenção do riso ou se ajeita para uma barrigada das boas.

Reagindo, tentou Pontes a seriedade.

Desastre.

Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony.

O estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurou uma faceta nova da sua veia cômica verteu mais sombra na alma do engraçado arrependido. Era certo que não poderia traçar outro caminho na vida além daquele, ora odioso?

Palhaço, então, eternamente palhaço à força?

Mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas; impõe gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anos verdes. O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança, requer na cara a imobilidade da idiotia que não ri. Não se concebe vereador risonho. Falta ao dito de Rabelais uma exclusão: o riso é próprio à espécie humana, fora o vereador.

Com o dobrar dos anos a reflexão amadureceu, o brio cristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe a azedo. A moeda pilhéria tornou-se-lhe dura ao cunho; já a não fundia com a frescura antiga; já usava dela como expediente de vida, não por fogança despreocupada, como outrora. Comparava-se mentalmente a um palhaço de circo, velho e achacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretas hílares como as quer o público pagante.

Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no estudo da transição necessária ao conseguimento de um emprego honesto. Pensou no balcão, na indústria, na feitoria duma fazenda, na montagem dum botequim - que tudo era preferível à paspalhice cômica de até ali.

Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lhe expôs os propósitos regeneradores, pedindo por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição, o galego e os que espiavam de longe à espera do desfecho torceram-se em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.

Esta é boa! É de primeiríssima! Quá! quá! quá! Com que então... Quá! quá! quá! Você me arruína os fígados, homem! Se é pela continha dos cigarros, vá embora que me dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma...

E a caixeirada (balconistas), os fregueses, os sapos de balcão e até passantes que pararam na calçada para “aproveitar o espírito”, desbocaram-se em quás de matraca até lhe doerem os diafragmas.

Atarantado a seríssimo, Pontes tentou desfazer o engano.

Falo sério, e o senhor não tem o direito de rir-se. Pelo amor de Deus, não zombe de um pobre homem que pede trabalho e não gargalhadas.

O negociante desabotoou o cós da calça.

Fala sério, pff! Quá! quá! quá! Olha Pontes, você...

Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma atenazada (atazanada) entre o desespero e a cólera. Era demais. A sociedade o repelia, então? Impunha-lhe uma comicidade eterna?

Correu outros balcões, explicou-se como melhor pôde, implorou. Mas por voz unânime, o caso foi julgado como uma das melhores pilhérias do “incorrigível” - e muita gente o comentou com a observação de costume:

Não se emenda o raio do rapaz! E olhem que já não é criança...

Barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho fazendeiro que despedira o feitor e expôs-lhe o seu caso.

Depois de ouvir-lhe atentamente as alegações, conclusas com o pedido do lugar de capataz, o coronel explodiu num ataque de hilaridade.

– O Pontes capataz! Ih! Ih! Ih!
– Mas...
– Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro. Ih!
– Ih! Ih! É muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes, ninguém!

E berrando para dentro:

– Maricota, venha ouvir esta do Pontes. Ih! Ih! Ih!

Nesse dia, o infeliz engraçado chorou. Compreendeu que não se desfaz do pé p’r’a mão o que levou anos a cristalizar-se. A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental, de homem do chifre furado ou da pele, estava construída com muito boa cal e rijo cimentado para que assim esboroasse de chofre.

Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias, porque abstrato, porque não sabe rir nem conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão, só ele, o tomaria a sério - o caminho da salvação, pois, embicava por ali.

Estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, das coletorias e do resto. Bem ponderados o prós a contras, os trunfos a naipes, fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bentes, por avelhantado (envelhecido) e cardíaco, era de crer não durasse muito. Seu aneurisma andava na berra pública, com rebentamento esperado par qualquer hora.

O ás de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses em via de influenciar a política no caso da realização de certa reviravolta no governo. Lá correu atrás dele e tanta fez para movê-lo à sua pretensão que o parente o despediu com promessa formal.

– Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá o teu coletor rebentando por’lá, ninguém mais há de rir-se de ti. Vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar que esfrie o corpo.

Pontes voltou radioso de esperança e pacientemente aguardou a sucessão dos fatos, com um olho na política e outro no aneurisma salvador.

A crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros e, entre estes um politicão negocista, sócio do tal parente. Meio caminho já era andado. Restava apenas a segunda parte. Infelizmente, a saúde do major encruara, sem mais patentes de declínio rápido. Seu aneurisma, na opinião dos médicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, de estourar ao menor esforço; mas o precavido velho não tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os fados lhe conchegavam tão fofo ninho, e lá engambelava à doença com um regime ultrametódico. Se o mataria um esforço violento, sossegassem, ele não faria tal esforço.

Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura (emprego rendoso que exige pouco trabalho), impacientava-se com o equilíbrio desequilibrador dos seus cálculos. Como desembaraçar o caminho daquela travancá (obstáculo). Leu no Chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o, andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito; chegou a entender da matéria mais que doutor Iodureto, médico da terra, o qual, seja dito aqui puridade, não entendia de coisa nenhuma desta vida.

O pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tentação de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço!

A gargalhada é um esforço, filosofava satanicamente de si para si. A gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer rir...

Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com a serpente.

Crime? Não! Em que código fazer rir é crime? Se disso morresse o homem, culpa era da sua má aorta.

A cabeça do maroto virou picadeiro de luta onde o “plano” se batia em duelo contra todas as objeções mandadas ao encontro pela consciência. Servia de juiz a sua ambição amarga a Deus sabe quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores.

Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um tanto mais magro, de olheiras cavadas, porém com um estranho brilho de resolução vitoriosa nos olhos. Também notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia - mas a argúcia não era virtude sobeja entre os seus conterrâneos, além de que estados d’alma do Pontes eram coisa de somenos, porque o Pontes...

Ora o Pontes...

O futuro funcionário forjou, então, meticulosos planos de campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem recolhido consigo e pouco amigo de lérias (lábias); insinuar-se-lhe na intimidade; estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo tinha ele o calcanhar-de-aquiles.

Começou frequentando com assiduidade a coletoria, sob pretextos vários, ora para selos, ora para informações sobre impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilíssimo, calculado para combalir a rispidez do velho.

Também ia a negócios alheios, pagar cisas, extrair guias, coisinhas; fizera-se muito serviçal para os amigos que traziam negócios com a fazenda.

O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, mas Pontes escamoteou-se à interpelação montado numa pilhéria de truz, e perseverou num bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas do cardíaco.

Dentro de dois meses já se habituara Bentes àquele serelepe, como lhe chamava, o qual, em fim de contas, lhe parecia um bom moço, sincero, amigo de servir e sobretudo inofensivo... Daí a lá em dia d’acúmulo de serviço pedir-lhe um obséquio, e depois outro, e terceiro, a tê-lo afinal coma espécie de adido à repartição, foi um passo. Para certas comissões não havia outro. Que diligência! Que finura! Que tato! Advertindo certa vez o escrevente, o major puxou aquela diplomacia como lembrete.

Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem jeito para tudo e ainda por cima tem graça.

Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultação na alma do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas.

Aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe, agora factótum (pessoa imprescindível) indispensável, teve campo de primeira ordem para evoluções táticas.

O major Bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: não ria, limitava suas expansões hílares a sorrisos irônicos. Pilhéria que levava outros comensais (pessoas que comem juntas na mesa) a erguerem-se da mesa atabafando (encobrindo) a boca nos guardanapos, encrespava apenas os seus lábios. E se a graça não era de superfina agudeza, ele desmontava sem piedade o contador.

Isso é velho, Pontes, já num almanaque Laemmert de 1850 me lembro de o ter lido.

Pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo, dos fígados para o rim, que se não pegara daquela, doutra pegaria.

Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o fraco do major. Cada homem tem predileção por um certo gênero de humorismo ou chalaça (gracejo). Este morre por pilhérias fesceninas (gênero de poesia satírica latina, nascida, ao que parece, entre os camponeses de Fescênia [Etrúria], e muito popular até o fim do Império Romano do Ocidente) de frades bojudos. Aquele péla-se pelo chiste bonacheirão da chacota germânica. Aquel’outro dá a vida pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaça onde se põe a nu’a burrice tamancuda de galegos a ilhéus.

Mas o major? Por que não ria à inglesa, nem à alemã, nem à francesa, nem à brasileira? Qual o seu gênero?

Um trabalho sistemático de observação, com a metódica exclusão dos gêneros já provados ineficientes, levou Pontes a descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia as unhas por casos de ingleses a frades. Era preciso, porém, que viessem juntos. Separados, negavam fogo. Esquisitices do velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacete de cortiça, roupa enxadrezada, sapatões formidolosos (enormes, pavorosos) e cachimbo, juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da polpa feminina, lá abria o major a boca e interrompia o serviço da mastigação, como criança a quem acenam com cocada. E quando o lance cômico chegava, ele ria com gosto, abertamente, embora sem exagero capaz de lhe destruir o equilibrio sangüíneo.

Com infinita paciência, Pontes bancou nesse gênero e não mais saiu dali. Aumentou o repertório, a gradação do sal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou a aorta do major com os produtos dessa hábil manipulação.

Quando o caso era longo, porque o narrador o floria no intento de esconder o desfecho a realçar o efeito, o velho interessava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou continuação.

“E o raio do bife?” “E daí?” “Mister John apitou?”

Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor não desesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto ir à fonte lá ficou. Não era mau o cálculo. Tinha a psicologia por si - e teve também por si a quaresma.

Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos em torno a uma enorme piabanha (peixe caraciforme da fam. dos caracídeos (Brycon piabanha), que ocorre no rio Paraíba, de até 65 cm de comprimento, dorso cinzento com manchas rosadas ao longo da linha lateral) recheada, presente dum colega. O entrudo desmazorrara a alma dos comensais e a do anfitrião, que estava naquele dia contente de si e do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O cheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.

Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major. Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes. E naquele bródio (refeição farta e alegre), primara a Gertrudes num tempero que excedia as raias da culinária e se guindava ao mais puro lirismo. Que peixe! Vatel o assinaria com a pena da impotência molhada na tinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar.

Entre goles de rica vinhaça, eis a piabanha sendo introduzida nos estômagos com religiosa unção. Ninguém atrevia a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.

Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia engatilhado o caso dum inglês, sua mulher e dois frades barbadinhos, anedota que elaborara à custa da melhor matéria cinzenta de seu cérebro, aperfeiçoando-a em longas noites de insônia. Já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momento em que tudo concorresse para levá-la produzir o efeito máximo.

Era a derradeira esperança do facínora, seu último cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, metia duas balas nos miolos. Reconhecia impossível manipular-se torpe, mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, então é que o aneurisma era uma potoca (mentira), a aorta uma ficção e o Chernoviz um palavrório, a medicina uma miséria, doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais chapado sensaborão ainda aquecido pelo sol – indigno, portanto, de viver.

Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos psicologia a pobre vítima, quando o major veio ao encontro: piscou o olho esquerdo - sinal de predisposição para ouvir.

– É agora! - pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como por acaso uma garrafinha de moll pôs-se a ler o rótulo.

Perrins; Lea and Perrins. Será parente daquele Lord Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?

Inebriado pelos amavios (encantos) do peixe, o major alumiou um olho concupiscente (cobiçoso), guloso de chulice.

Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser marca X. P. T. O. Conta lá, serelepe.

E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.

A anedota correu capciosa pelos fios naturais até as proximidades do desfecho, narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estratégico em que havia gênio. Do meio para o fim, a maranha (trama complicada) empolgou de tal forma o pobre velho que o pôs suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona no garfo detida a meio caminho. Um ar de riso - riso parado, riso estopim, que não era senão o armar bote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto.

Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por uns instantes a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deu-lhe um pontapé e com voz firme puxou o gatilho.

O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da sua vida, franca, estrondosa, de ouvir-se no fim da rua, gargalhada igual à de Teufelsdrock diante de João Paulo Richter. Primeira e última, entretanto, porque no meio dela os convivas, atônitos, viram-no cair de borco sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.

O assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confusão, esgueirou-se para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira, suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor.

Polícia?

Semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gente levara à conta de mágoa pela morte do amigo. Não obstante, trazia sempre nos olhos a mesma visão: o coletor de bruços no prato, golfando sangue, enquanto no ar vibravam os ecos da sua derradeira gargalhada.

E foi nesse deplorável estado que recebeu a carta do parente do Rio. Entre outras coisas, dizia o ás: “Como não me avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da morte do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, já estava lavrada a nomeação do sucessor. A tua leviandade fez-to perder a melhor ocasião da vida. Guarda para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem chega tarde só encontra os ossos - e sê mais esperto para o futuro.”

Um mês depois, descobriram-no pendente duma travessa com a língua de fora, rígido.

Enforcara-se numa perna de ceroula.

Quando a nótícia deu volta pela cidade, toda a gente achou graça no caso. O galego do armazém comentou para os caixeiros:

Vejam que criatura! Até morrendo fez chalaça. Enforcar-se na ceroula! Esta só mesmo do Pontes...

E reeditaram em coro meia duzia de “quás” - único epitáfio que lhe deu a sociedade.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Urupês. SP: Brasiliense, 1994.

Carlos Drummond de Andrade (Antologia Poética)


A falta de Érico

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.
================

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
==================

A poesia (não tires poesia das coisas)


elide sujeito e objecto.


Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Trovando pelo Paraná


Almirante Tamandaré – Harley Stocchero
Meu amor sempre me espera
à tarde com um lanchinho,
mas eu fico na quimera
de tomarmos nosso vinho.

Apucarana – Fahed Daher
Cada um tem seu destino!
A pedra faz o castelo,
o bronze, a máquina e o sino,
o ferro faz o martelo.

Arapongas – Maria Granzoto
Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos,
que a todos acolhem cá!

Bandeirantes – Neide Rocha Portugal
Perdido na escuridão,
sem saber se é noite ou dia,
pede o cego na oração:
- Senhor, protege o meu guia!

Campo Largo – Áureo Baika
Eu curto todo momento
e não perco um só segundo.
Num minuto em pensamento
posso estar em outro mundo!

Campo Mourão – Sinclair Pozza Casemiro
Busca-se ainda o Caminho,
vive-se a doce ilusão
de um mundo feito carinho,
que ao fraco não negue o pão!

Castro – Hilda Koller
Saibamos as leis de cor,
Façamos do lar um templo,
mas nada educa melhor
do que o nosso bom exemplo.

Contenda – Hildemar Cardoso Moreira
Ao professor muito devo,
devo ao médico também.
Mas o livro é meu enlevo,
tudo que sei dele vem.

Curitiba – Vânia Maria de Souza Ennes
Descontraia sua testa,
sorrir é grande investida!
Quem transforma a vida em festa
vence tensão reprimida!

Ibiporã – Mauricio Fernandes Leonardo
Semblante santificado
cabeleira cinza escuro,
mamãe viveu seu passado
planejando meu futuro.

Irati – Mafalda de Sotti Lopes
Toda semente que eu planto
nos sulcos da minha dor,
germina regada em pranto,
mas, desabrocha em amor!

Ivatuba – Elidir D’ Oliveira
Volta, amor! – é o teu retorno
felicidade e prazer.
Teu corpo é um caminho morno
que eu adoro percorrer!

Joaquim Távora – Adilson de Paula
Pôr-do-sol, campos desertos,
e o pinheiro então parece
estar de braços abertos
a sussurrar uma prece.

Lajes – Maria Amélia Macedo Bertolini
Espanha, Ucrânia e Japão,
culturas de muitas graças!
Proporcionam diversão
em Curitiba, são praças.

Lapa – José Westphalen Corrêa
Nas águas mansas do lago,
nas verdes ondas do mar,
nas delícias de um afago,
vejo a mão de Deus pairar.

Londrina – Cidinha Frigeri
“Não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe...”
- Por mais que um ser nos perfure,
que nossa alma não desabe!

Maringá – Antonio Augusto de Assis
Neste planeta sofrido,
com tanto lixo fedendo,
há muito louco varrido,
pouca vassoura varrendo.

Morretes – Lúcio da Costa Borges
A primavera cantemos
anos juvenis, risonhos...
Além nós todos sabemos,
restarão só nossos sonhos!

Palmeira – Heitor Stockler de França
Confesso é no teu perfume
e no sabor do teu beijo,
que para mim se resume
a volúpia do desejo.

Paranaguá – Leôncio Correia
Se o beijo guarda o perfume
de estranha, esquisita flor
é porque o beijo resume
a vida e a glória do amor.
.
Paranavaí - Dinair Leite
A trova quando é sentida
viaja em nossa emoção
Nos faz fiéis toda a vida,
une os povos, faz irmãos

Pinhais – Ligia Christina de Menezes
Meu girassol pobrezinho
saudoso, não resistiu.
Morreu olhando o caminho
por onde meu bem partiu...

Pinhalão – Lairton Trovão de Andrade
Todo filho vem dos pais,
vem o mel da flor silvestre;
não há dor sem dor nos ais
nem discípulo sem mestre.

Piraí do Sul – Vera Vargas
Contra mágoas, dissabores,
um santo remédio há.
Receita: Rua das Flores –
Curitiba – Paraná.

Piraquara – Horácio F. Portella
A saudade rasga o véu
do tempo e traz do passado
minha mãe, que lá do céu
sempre tem me abençoado.

Ponta Grossa – Amália Max
A esperança em nossa vida,
pelo valor que ela ostenta,
pode até ser resumida,
como o pão que nos sustenta.

Quatro Barras – Airo Zamoner
Nas noites da minha vida,
vida errada, vida certa,
cada estrela me convida
a uma nova descoberta.

Rio Branco do Sul – Sara Furquim
A vida é um mar de rosas
legando beleza e olor,
às criaturas bondosas,
que sabem semear o amor.

São Jerônimo da Serra – Déspita Perusso
Belo e vetusto pinheiro!
Tão alto... é grande a distância...
foi meu leal companheiro
nos doces anos da infância...

São Jorge do Ivaí – Hulda Ramos Gabriel
Tão suave é o teu carinho:
Há nele a calma de um lago...
- Tem a ternura de um ninho
e a paz de um materno afago!

São José dos Pinhais – Patrícia Cristiane de Siqueira
Esta estação é tão linda...
Cobrindo os campos de flores.
Que seja sempre benvinda!
Com alegria e muitas cores.

São Mateus – Gerson Cesar Souza
A frase dura que escapa
da boca de muitos pais
é tão cruel como um tapa
e, às vezes, machuca mais!

Tomazina – Cecim Calixto
Curitiba tem seus bares
com requinte de Paris,
Aos boêmios, seus altares,
e aos poetas, lar feliz.

Ubiratã – José Feldman
Paraná...terra de encantos...
Luz de um povo varonil!
A flora e a fauna são mantos
que engrandecem o Brasil.

União da Vitória – Hely Marés de Souza
Quero rever os meus pagos,
ouvir toda a velha história.
Quero sentir os afagos...
da minha União da Vitória!

Cecília Meireles (O Livro da Solidão)


Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

Fonte:
Cecília Meireles. Obra em Prosa . vol 1. RJ: Nova Fronteira, 1998.

Cecília Meireles (Escolha o Seu Sonho)


Cecília Meireles é notória por sua poesia de caráter neo-simbolista, pois tematiza, numa linguagem levemente musical, a efemeridade dos bens da vida. Diante disso, o que é terreno perderá valor em frente a uma realidade mais eterna e misteriosa e, portanto, transcendente, metafísica.

al tempero estará também presente nas 46 crônicas de Escolha o Seu Sonho. Esse gênero transformou-se no século XX, do relato histórico dos tempos do humanista Fernão Lopes, na busca de um olhar inusitado, lírico e literário sobre as coisas de nosso cotidiano.

E com a poetisa, agora prosadora, assumirá uma identidade única em nossa literatura.

Cecília Meireles enfocará em seus pequenos textos, de no máximo três páginas cada, sempre aspectos fora do terreno, decolados a partir do nosso chão comum, rotineiro.

Em “Programa de Circo” verá que os artistas, em pequenas proezas, conseguem ser transcendentes, principalmente o trapezista, longe do solo. Eis aqui o símbolo do que a cronista realiza na obra.

É um elemento que estará presente em outros pontos, como na homenagem que faz em “O ‘Divino Bachô’”, poeta japonês que tirava, em seus pequenos poemas, imagens profundas e ousadas baseado apenas em simples elementos que via em sua realidade. Enxergamos e admiramos nos outros o que queremos para nós – eis uma pista para a compreensão de Cecília Meireles.

A autora de fato tem esse dom de ir além do cotidiano banal, muitas vezes por meio da proeza de usar essa rotina como sua base. Ou então, no que ela se mostra surpreendente, não precisa viajar para longe da realidade terrena: consegue enxergar nesse plano pobre uma riqueza surpreendente.

É o que ocorre em vários instantes do livro, como em “Arte de Ser Feliz”. Nele, a cronista consegue ver, num chalé em frente à sua janela, beleza e fonte de felicidade num humilde pássaro de porcelana pousado sobre um ovo azul. Quando o céu ficava dessa mesma cor, parecia que a ave flutuava no nada.

Cecília Meireles nos parece provar que somos cegos, insensíveis à riqueza de elementos ao nosso redor. Cobra-nos uma reeducação dos sentidos e do intelecto para captar o que sempre esteve grudado à gente.

É a tese encampada implicitamente em vários momentos, mas escancaradamente em “Da Solidão”, em que prega que não devemos ter medo de ficar sós, pois de fato nunca o estamos: tudo lembra tudo, tudo tem sentido, tudo ao nosso redor carrega significados e existências que nos impedem de nos sentirmos solitários.

Uma observação que poderia ser levantada é a de que essas crônicas poderiam sofrer de um complexo de Polyanna, na medida em que demonstram uma visão saltitante, encantada e, portanto, alienada da realidade. Tudo é sonho, fantasia, alegria. No entanto, não é verdade.

Em vários momentos (“Casas Amáveis”, “Tempo Incerto”, ”História de Bem-Te-Vi”, “Vovô Hugo”, “Chuva com Lembranças”, “O Fim do Mundo”, “Semana Santa em Ouro Preto”, “Ovos de Páscoa”, “Saudades dos Trovões”, “Aberrações do Número”, “Que é do Sorriso?”) há uma crítica aos novos tempos, de industrialização, urbanização, em que, na correria, não se consegue fôlego ou disposição para realizar o olhar atento sobre os pequenos e belos aspectos de nossa existência. Sua crítica, nesses momentos, parece algo de retrógrado, ingênuo ou saudosista.

Há momentos, entretanto, em que sua visão crítica não se derrama apenas para o presente. Em “Do Diário do Imperador”, ao falar sobre os relatos de D. Pedro II, entristece-se e até derrama um certo fel ao notar que os problemas relatados no século XIX ainda se mostram atuais, principalmente no que se refere à falta de zelo em relação à pátria e à coletividade.

Consegue, pois, vislumbrar um elemento eterno em meio à efemeridade, exercício que já havia feito em “Visita a Carlos Drummond”, em que, em homenagem ao aniversário do poeta mineiro, constrói uma fantasia em que a sua família e a dele sempre se encontraram em 500 anos de História Ibero-Americana, as encarnações podendo até serem vistas como atualizações.

Todos esses elementos, como já se disse, Cecília vaza em pequenos textos em que se notam leve musicalidade e a preferência pelo vago e misterioso, como em “O Estranho Encontro”.

Lida com aspectos sofisticados em um veículo tão simples, o que se mostra mais surpreendente quando se tem em mente que essas crônicas foram primeiramente lidas no rádio, nos programas “Quadrante”, da Rádio Ministério da Educação e Cultura, e “Vozes da Cidade”, da Rádio Roquette Pinto.

Trata-se de uma proeza que faz lembrar “O Grupo Fernando Pessoa”, em que Cecília Meireles tece comentários sobre as limitações da literatura quando se utiliza do meio oral, como foi no Trovadorismo.

Não possibilitando tempo para a reflexão silenciosa, comum na leitura, o texto oral acaba-se tornando diluído, avesso a questões mais profundas. Prende-se ao momento, ao passageiro.

Porém, quando vê como os jovens lidam com a poesia de Fernando Pessoa, tão rica, entende que muitas vezes o mistério literário rompe essa barreira. É o que se aplica, sem hesitação, a Escolha o Seu Sonho.

Fonte:
Vestibular

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Castelo de Trovas (Bandeirantes/PR)


No meu jardim encantado,
belas flores cultivei:
filhos meus que, com cuidado.
fé e amor, eu lapidei!
(Alice Bonfim Metring)

No alto daquele gramado,
que linda flor amarela!
Mas, que destino malvado...
Hoje, enfeita uma lapela!!!
(Dâmila Fernanda Figueiredo)

Meu medo não é morrer
por quem amo tanto assim.
Meu dilema é não saber
se esse alguém morre por mim.
(Élson Souto +)

Velhos sonhos, na lembrança,
vou mantendo em meu viver...
Não abandono a esperança
de que irão acontecer!
(Istela Marina Gotelipe Lima)

Amor, carinho e esperança
marcaram as nossas vidas...
Hoje, somente a lembrança
nas fotos envelhecidas!
(Janete de Azevedo Guerra)

Comecei seguir viagem,
e em meu destino, pensando,
eu voltei... faltou coragem
de deixar “alguém” chorando!
(Jéssica Fernanda Costa)

Todos devemos cuidar
da água que nós bebemos
para quando precisar
saber que sempre a teremos
(Lucas Paulo Alves de Souza)

Nunca se dê por perdido
nos labirintos da vida;
a entrada perde o sentido,
se não se busca a saída!...
(Lucília A. T. De Carli)

Neste amor desencontrado,
busquei sempre ser feliz.
Eu quis ficar ao seu lado,
mas o destino não quis.
(Maria Angélica Mathias)

Relembrando bons momentos
de paz efelicidade,
viajam meus pensamentos
nos momentos de saudade!
(Maria Aparecida Roxo Santos)

O grande herói nesta vida
é aquele que para e pensa
em dar perdão, sem medida,
por maior que seja a ofensa!
(Maria Helena Cristovo)

De ilusões eu fui vivendo
e a esperança, disfarçada,
via os meus sonhos morrendo
e nunca me disse nada!
(Maria Lucia Daloce Castanho)

O dilúvio sem igual
que dizimou os ateus
não era chuva, afinal...
eram lágrimas de Deus!
(Nathan Osipe)

Desconhece a própria vida
quem julga a roupa ou a cara,
pois é na fenda escondida
que brota a orquídea mais rara!
(Neide Rocha Portugal)

Velha casa de madeira
presente em minha lembrança...
- Oh, saudade verdadeira
dos meus tempos de criança!
(Neila Martelli Toledo Campos)

Com água a vida é mais doce,
e com tanta luz divina,
a vida é como se fosse
uma fonte cristalina!!!
(Saulo Patrick Pereira Maia de Ávila)

Quantas vezes uma vida,
que tão mansa nos parece,
tem no mistério escondida
a dor que nunca se aquece.
(Wanda Rossi de Carvalho)
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Fontes:
XXV Jogos Florais de Bandeirantes,PR – 2008
Boletim Nacional da UBT – junho de 2009