segunda-feira, 1 de março de 2010

Adelmar Tavares (1888 – 1963)


Adelmar Tavares da Silva Cavalcanti nasceu em Recife em 16 de fevereiro de 1888.

Sobre o seu nascimento escreveu Maria de Lourdes Costa, na "Gazeta Comercial" de Juiz de Fora, em 1959: "Há setenta anos passados, no 3º andar da rua Santo Antônio, em Recife, num sobrado azul salpicado de estrelas brancas, onde havia uma casa de fazendas chamada: "Loja das Estrelas", nascia o maior trovador do Brasil: ADELMAR TAVARES da Silva Cavalcanti." E continua: "Ele próprio descreve: "Nossos familiares brincavam com meu pai, dizendo: "Tavares, o menino vai ser poeta. Nasceu nas estrelas...''

Adelmar fez os seus primeiros estudos em Goiana (Pernambuco). Transferiu-se para Recife com 11 anos. Estudou no Colégio XI de Agosto e no ''Instituto Pernambucano". Formou-se em Direito em 1910. Em Recife, com outros colegas de Faculdade, publicou o seu primeiro livro, em 1907, quando tinha apenas 19 anos. O volume intitulava-se "Descantes", compunha-se de trovas e os seus companheiros eram: Carlos Estevão, Manoel Monteiro, A. Silveira Carvalho e Moreira Cardoso.

Veio para o Rio de Janeiro logo depois de formado. Nesta cidade ocupou o cargo de adjunto de Promotoria Pública, de advogado do Banco do Brasil e foi, mais tarde, presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e professor da Faculdade de Direito de Niterói. Em 1926 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira nº 11 que tem como patrono Fagundes Varela.

Conheci Adelmar Tavares; há mais de vinte anos, apresentado pelo nosso amigo comum - o poeta A. J. Pereira da Silva. Se antes já apreciava o trovador, nesses vinte anos a minha admiração cresceu e foi-se solidificando a amizade.

Em 1947, assim iniciava uma crônica sobre o seu livro "Poesias Escolhidas": "Se deixar correr livremente o pensamento, eis as idéias que o nome de Adelmar Tavares me sugere: ... trova... emoção... bondade... ternura. . . "

Em 1951 escrevia eu: "Adelmar Tavares é considerado, com inteira justiça, o Príncipe da Trova Brasileira. Suas quadras, nascidas de um coração emotivo, são simples e puras, sem preocupações técnicas e preciosismos. Andam anônimas, na boca do povo e são admiradas e elogiadas por críticos, leitores e trovadores. Profundamente lírico, possui trovas sentimentais e conceituosas que enternecem e fazem meditar."

E ao receber o seu "Ramo de Cantigas" assim terminava o artigo que escrevi sobre o livro, em 1955: "... E quantas, nesse "Ramo de Cantigas" poderiam ser citadas?! Quase todas. . . diria, sem exagero. Pois, os que compõem trovas ou que admiram esse gênero poético, sabem que Adelmar Tavares é um trovador de mãos cheias.. . Repletas de trovas bonitas, espontâneas e musicais, nascidas de um coração de poeta-trovador. Suas quadras são fáceis. Fáceis de ouvir, sentir e decorar. E são perfeitas. Não pela preciosidade de rimas ou termos raros, mas, sim pelo sentimento, pela idéia e inspiração."

Além de poeta, jurista, professor, Adelmar Tavares é um dos marcos que assinalam o prestígio e a revitalização da Trova no Brasil. Pelo seu valor como poeta e pela sua posição social e literária, ajudou o reerguimento da Trova e sua aceitação como gênero poético dos mais apreciados e mais difíceis. Desde a mocidade, com seu primeiro livro "Descantes", em 1907, até os dias que correm, em 1959, Adelmar Tavares tem contribuído magnificamente para a elevação da Trova na língua portuguesa. Já fez as suas bodas de ouro como trovador! E nesses cinqüenta anos tem sido sempre o mesmo: um sincero e admirável poeta simples, cheio de ternura, - um criador riquíssimo de belas trovas! Neste meio-século como o mundo se transformou! E o menino de Goiana e jovem estudante de Recife como subiu! Advogado, professor, presidente do Tribunal de Justiça, membro da Academia Brasileira de Letras. E, no entanto, apesar das modificações do mundo e de sua própria vida, guardou carinhosamente o seu grande amor à Poesia, conservou permanentemente a sua fidelidade à Trova.

O valor da Poesia de Adelmar Tavares, a aceitação de suas trovas, quer nos meios literários, quer nas esferas populares, são fatos tão conhecidos que não necessitam de provas. Mas o que contarei a seguir é tão expressivo que não deveria guardar só para mim: Quando em 1956 publiquei "Meus Irmãos, os Trovadores", na Introdução pedia que os leitores ou poetas me enviassem a relação das 250 trovas (entre as duas mil) que mais lhe tivessem agradado. Os três primeiros votantes foram poetas e das duas mil quadras apenas quatro restaram com a votação unânime dos três. E dessas quatro trovas três pertenciam a Adelmar Tavares, que no livro tinha mais de seiscentos companheiros. Ao receber a quarta relação, também de um poeta, vi que só restava uma única trova com a votação unânime dos quatro. Essa trova era também de Adelmar e, por coincidência, era a nº 1 do livro que recebera tal numeração sem intuitos de preferência ou prioridade. Transcrevo-a aqui para matar a natural curiosidade do leitor:

"Para matar as saudades,
fui ver-te em ânsias, correndo...
- E eu que fui matar saudades,
vim de saudades morrendo.. ."

Fica assim comprovado o grande prestígio das trovas de Adelmar entre poetas e trovadores.

Por outro lado, o seu prestígio popular é muito grande. Eis um exemplo no meio de muitos. Tendo eu organizado um "Inquérito sobre trovas populares (anônimas)" em todos os Municípios Brasileiros, feito oficialmente pelo IBGE, notei o seguinte fato, muito interessante: chegavam-me às mãos muitas trovas, como anônimas, e que na realidade pertenciam a trovadores meus conhecidos, entre eles, com maior freqüência, as de Adelmar Tavares. E no meio delas, talvez com maior insistência aquela citada acima.- "Para matar as saudades", e outras também dele, como esta, vinda do Município de Ourém, no Pará, citada de memória, por Pacifico da Costa:

"É nossa alma uma criança,
que nunca sabe o que faz,
quer tudo que não alcança,
quando alcança, não quer mais."

Do Maranhão - Município de Paranarama, ouvida em Rosário, num Coco do Mato, Hilton Pires de Castro envia-nos esta, como anônima:

"A imagem de nossas almas
está nas águas profundas,
quanto mais tristes mais calmas,
quanto mais calmas" mais fundas."

Do Piauí - Município de Floriano, Messias Alves Feitosa manda-nos esta com a informação: "de poeta desconhecido", o que constitui o maior galardão dos trovadores:

"Tu censuras de minha alma
esse alvoroço, esse ardor...
Quem tem amor e tem calma,
tem calma ... não tem amor..."

De Itatira, no Ceará, recebemos esta outra, como anônima:

"Todo rio na corrente
busca um lago, um rio, um mar.
Mas o destino da gente
quem sabe onde vai parar?"

... E assim poderíamos ir correndo as fichas de todo o Brasil e nos diversos Estados, em todos os recantos, encontraríamos uma trova de Adelmar Tavares aflorando, anônima, na boca do povo...

...E que alegria e glória maior para um trovador do que essa de ouvir as suas próprias trovas na boca do povo?! O próprio Adelmar, saudando o grande trovador português Antônio Correia de Oliveira, na sua chegada ao Brasil, compôs várias quadras e entre elas havia esta, que serve perfeitamente para o seu autor:

"Porque és um Rei de verdade.
- Nem há reinado maior,
que o reinado de um poeta,
que o povo sabe de cor.. .

Não cabe na pequena extensão deste trabalho uma análise minuciosa das trovas do nosso biografado. Vejamos assim, rapidamente, a maneira de trovar de Adelmar Tavares. O que, em primeiro lugar, ressalta aos nossos olhos é o seu carinho e amor pela Trova e, ao mesmo tempo, como disse anteriormente, a sua fidelidade a esse gênero. Na Introdução de "Um Ramo de Cantigas" ele confidencia: "A trova foi sempre, das formas de poesia, a que mais me tocou a sensibilidade, porque foi a poesia dos lavradores de meu velho engenho pernambucano, a poesia daquelas violas inesquecíveis que fizeram o enlevo da minha meninice, e levarei comigo dentro da alma até o último bater do coração."

E esse carinho fica evidenciado nestas palavras simples e saudosas, a respeito de seu livro "Descantes": "Isso é uma saudade muito grande na minha vida ... porque essas trovas nasceram das serenatas. . . O violão... o luar... e a serenata ... daqueles lindos tempos... A serenata era tudo para nós. . . "

De alma lírica e coração sensível, cultuando a Trova, Adelmar Tavares é sobretudo um poeta simples. De uma simplicidade que encanta e que está presente em quase todas as suas quadras. Não força a sua maneira de dizer, faz as suas trovas como se estivesse conversando. Elas nascem espontaneamente como esta:

"Vivo triste, triste, triste,
que mesmo nem sei dizer.
- Desconfio que é saudade,
que é vontade de te ver."

Numa gravação feita há alguns anos, em meu poder, ele observava: "A trova quando é erudita demais não é propriamente trova... A trova não precisa ter essa erudição profunda porque perde assim o seu espírito, aquele espírito de que o Luiz Otávio falava ainda há pouco..."

Além da simplicidade as suas trovas são sentidas. Têm alma, têm sentimento. Vejam, por exemplo:

"Neste mundo, a certas vidas,
a morte seria um bem,
mas até a própria morte
se esquece delas também."

Por outro lado seus versos agradam porque possuem melodia. São musicais, no ritmo e nos sons. Sintam toda a beleza, sonoridade e poder sugestivo desta miniatura:

"Duvido que alguém no mundo,
olhe sem melancolia,
uma vela no horizonte,
lá longe... no fim do dia..."

Simplicidade, sentimento, música... Com estas três chaves milagrosas vai Adelmar Tavares abrindo o coração do povo e nele aninhando as suas trovas.. . Tão suavemente que o povo, muitas vezes, não grava o seu nome... mas guarda as suas trovas ... Disse-me ele: "Esse é o destino das trovas: é perder o seu autor... é cair na boca do povo ... O povo toma a trova do autor.. . Eu apenas completaria: é o destino das boas trovas... "

O caráter predominante de suas trovas é o lirismo. O seu cantar é suave, geralmente cheio de ternura e de bondade. Ele mesmo confessa: "Quem dera que minhas trovas, andassem pelos caminhos, consolando os desgraçados, dando pão para os ceguinhos. . . "

Na sua mocidade cantou o amor lírica e apaixonadamente. São inúmeras as suas trovas sobre o amor, a saudade, ou para a mulher amada. Vejamos apenas uma, tão delicada e sugestiva:

"Quando vejo o teu sorriso,
tudo se doira e aligeira.
Teu sorriso é na minha alma,
como o sol numa roseira."

Além dessa faceta lírica, sentimental, o Rei da Trova Brasileira é também um trovador conceituoso. Compõe muitas quadras profundas. Daquelas que o leitor lê, repete mentalmente e fica a meditar... Entre outras: "Ora a Vida! ... Deixa-a andar." ou "A imagem de nossas almas", ou "Todo o rio na corrente" ou esta, tão profunda e triste:

"A morte não é tristeza,
é fim, é destinação.
- Tristeza é ficar na vida
depois que os sonhos se vão...

E a trova satírica estará também entre os motivos constantes de sua inspiração? - Não, ela não se harmoniza bem com a alma pura, com o coração ingênuo e sem maldades de Adelmar Tavares. Ele não é contra a trova satírica, humorística, bem feita. Em 1953 me dizia: "Essa trova satírica é usada muito pouco. Quem no Brasil fere, às vezes, essa trova mordaz e que eu aprecio imenso, porque è um dos nossos maiores trovadores, é Bastos Tigre. O Bastos Tigre tem coisas admiráveis... Também magnífico é Djalma Andrade... E' uma das grandes vozes trovadorescas nossas..." E terminava: "Quando essa trova (a satírica) é feita sem talento é chalaça. . . " Com o que concordamos. Às vezes, - muito raramente - ele usa uma leve ironia, como naquela: "Proclamas teu amor-próprio" ou "Tu censuras de minha alma" ou ainda: "Amar com ciúme... Quem ama?!" Em algumas a ironia é dirigida a si próprio, como em: "Para esquecer-te, outras amo". Há um tipo de trova, tão raro - ou mais ainda - do que a satírica, e que Adelmar usa com talento e felicidade. E' a trova sugestiva, pictórica. A trova que faz lembrar o "hai-kai" japonês. O poeta dá leves pinceladas sugere... e o leitor, sensível e inteligente, captará a semente de Poesia e fará com que floresçam em seu coração as mais belas rosas que eram contidas naquela semente... Eis um sugestivo exemplo:

"Se eu pintasse minha infância,
pintava, num sol de estio,
a sombra de uma ingazeira,
debruçada sobre um rio."

Eis aí, prezados leitores, um resumo da vida de Adelmar Tavares, um breve estudo de suas trovas e a citação de alguns de seus pensamentos revelados em palestras íntimas, despreocupadas. É claro que o nosso ilustre e conhecido poeta não necessitava de apresentação. Mas, cumprindo prazerosamente um dos itens da regulamentação da COLEÇÃO TROVADORES BRASILEIROS foi com imensa satisfação que reli as suas trovas e escrevi estas palavras para o seu livro. Palavras sem brilho, é verdade, mas, assim como as trovas de Adelmar, espontâneas e nascidas na profundidade de nosso coração.
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Continua … As 100 trovas de Adelmar Tavares
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Fonte:
Prefácio do Livro por Luiz Otávio.
JORGE, J. G. de Araujo e OTÁVIO, Luiz (organizadores). 100 Trovas de Adelmar Tavares. RJ: Editora Vecchi, 1959.Coleção Trovadores Brasileiros. volume 5.

Daniel Mazza (Poemas de Fim de Tarde)


A CARPIDEIRA

Na sala, emudecido, esquife intransigente,
Com a seda branca e fúnebre aconchegando
O corpanzil do morto, glacial e infando,
Em repouso cansado, exausto eternamente.

Tece preces, a esposa, pelo Miserando,
Enquanto genuflexo, o filho, penitente,
Em alta voz pranteia, sua mão tremente
A soltar do pai a gélida, segue negando.

Enlutados na fila para as despedidas:
Aproximam-se um a um, benzem-se, balbuciam
E prosseguem, por fim, com as almas recolhidas...

Num canto, em espetáculo de encenação,
Soluços teatrais, lágrima financeira,
Concentrada e calma, chora uma carpideira

PÃO E CIRCO

No Coliseu, o urro das famintas feras
O povaréu romano alvoroçava.
O circo mais o pão que alimentava
A Roma augusta das passadas eras.

Ao sinal das trombetas, os escravos
Na saliva da morte agonizavam...
Festejos na tribuna onde brindavam
Tibério César e a súcia de ignavos.

Os caninos cravados no pescoço...
Ventres rasgados expelindo a entranha...
O banquete das feras inclementes...

O brilho rubro aumentava o alvoroço...
Enquanto César, com a face estranha,
Mudo, sorria, sorrateiramente..

ODES

I

Não sei se o sonho que tenho
É o sonho que sonho.
A mesma
Chuva que irriga os vales,
Inunda as pequenas aldeias.
A lua sobre os amantes risonhos
É a mesma,
Sombria nos bosques escuros.

II

Se creres que podes:
Tenta.
Arrisca a perder-te,
Mas desbrava longe.
Arrisca à deriva,
Mas navega além do horizonte.
Melhor é a certeza da derrota
Que a vitória na possibilidade.
Se creres que podes:
Ousa.
Confia em ti.

III

As tuas esperanças
Deposita-as em ti.
As pedras do teu jardim,
Remove-as.
Planta as tuas sementes,
Varre os teus canteiros,
Rega as tuas árvores.
Não esperes que o vento
Limpe o chão do teu Outono.
Limpa-o tu. Sê teu estro.

IV

Reina sobre ti,
Mas não como um César: ergue o teu polegar.
Calígula perscruta
As viscosidades do teu corpo: reina sobre ti.
Estrangula o Iscariotes
Nas tuas mãos avarentas:
Reina sobre ti.

V

A mesma terra que calcamos
É a manta que nos recama no sono da sepultura.
Como uma brisa beijando as ramagens,
Passamos...

Após dormirmos
As folhas cinzas,
Ao pé das árvores
No Outono alheio,
Todos os anos
Ainda assim
Sobrevirão.

VI

Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.
O beijo na face dado
Ainda hoje
Nós o damos!
Nada diferentes
De escribas e fariseus.
Esbanjamos Avarezas
E Vaidades, Vaidades.
Facilmente corrompidos
Por um punhado de moedas.
Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.

VII

Meu coração publicano,
Corrupto cobrador de impostos...
Meu coração fariseu,
Mesquinho doutor da lei...
Meu coração soldado romano com as mãos ensangüentadas,
Pôncio Pilatos com as mãos impecavelmente lavadas,
Caifás com a consciência impecavelmente limpa,
Barrabás impecável.

Lázaro meu coração...

O ladrão
Meu coração
Na cruz.

VIII

Com a força com que abraçamos
Somos abraçados.
O beijo que pomos na face,
Simultaneamente,
Na face é-nos posto.
Das sementes do Mal plantadas,
O Mal medrará.
No espelho invejoso fitamos
Nossos olhos invejosos...

IX

Entre lobos
Lobos sejamos.
Entre ovelhas:
Ovelha.
Perante tantos Césares,
Submissos nunca.
Os oprimidos, entre nós,
Não sejam oprimidos.
Demo-nos
As mãos.

X

Melhor é a coroa na choupana
Que o esfregão no palácio.
Enfuna as tuas velas,
Conduz a tua jangada:
O parco peixe pescado
É teu.
O mar
Pertence a Deus.

XI

Aos deuses,
Nunca tarda,
A dádiva pedida...

Passem-se os anos:
Não tardará
O que nunca tarda.

Em breve,
Sobre o campo seco,
O amanhecer da chuva.

XII

Antes pelos jardins em que caminho,
Sem uma única flor,
Que caminhar por jardins floridos de outrem.

Quando fui semear
A terra não era minha...

Quando olhei para trás
Tinha virado à esquerda
Ao invés de à direita...

XIII

As lágrimas perdidas,
Na face humana
Diamantes são
Garimpados da vida...
A risada de hoje
É o soluçar de amanhã.

A mesma
Lagarta
Que hoje,
Penosamente,
Arrasta-se,
Amanhã,
Borboleta,
Graciosamente,
Voa.

XIV

Brinca enquanto ainda
Tens tempo para brincar.
A infância não é infinda
Há de chegar ainda
O tempo em que vais chorar.

O Outono em breve vem
Com as folhas murchas e pardas.
O Verão ficou mais além,
A Primavera passou também
O Inverno no peito guardas!

XV

De mim mesmo
Padrasto.
Estou farto da disciplina!
Ando
Por cima dos muros.
Salto
Das sacadas das janelas.
Da educação que me deram,
Restaram os pés descalços.
Algum dia
De mim mesmo
Pai.

A "EPOPÉIA" DA MORTE

I

Na companhia dos bichos,
Na terra que lhe foi dada,
O homem com os seus caprichos
São o resumo do nada.

Seiva das árvores altas,
A sua carne é do fruto.
O homem com as suas faltas
Paga por fim o tributo.

O homem é cálcio e carbono,
O húmus a nutrir a terra.
O seu corpo é um abono
Doado a faminta terra.

O homem é a pele...E os ossos,
Braços e rins, sangue e dedos,
Carne exalando remorsos,
Pútrida de ânsias, de medos.

O homem enriquece o solo
Como o fez a sua avó.
E repete o protocolo
Assim retornando ao pó.

E a sombra noutrora viva
Agora é raiz de um horto.
Foi a solução aditiva
Da terra o seu corpo morto.

Debaixo do chão que o cobre
O homem, servido, é a ceia.
Da terra a ceia tão nobre
Temperado com areia.

Debaixo do chão que o enterra
É o homem a comida farta
Que a fome enorme da terra
Nem os seus ossos descarta.

Debaixo dessas ramagens
O homem alimenta os milhos.
E transforma-se nas vagens
Que nutrirão os seus filhos.

Debaixo do chão que o come
O homem a vida renova.
E sobra apenas seu nome
Para, da vida, dar prova.

II

Propriedade divina,
A morte arrendou esse chão.
E eis que moureja na sina
Do homem nessa plantação.

A lida infinda da morte
É ceifar toda a arrogância,
E plantar toda a coorte
Junto com sua ganância.

III

A morte não quer passagem
Para a viagem fortuita.
E o homem não leva bagagem
Nessa viagem gratuita...

Com o seu infindo labor,
Essa Matrona infalível,
No sofrimento e na dor
Traz a benção indizível.

Com o seu infindo labor,
Essa Matrona usurpável,
No regozijo e no amor
Traz a agonia execrável.
G G G G G G G G G G G G

Fonte:
MAZZA, Daniel. Fim de Tarde. Editora Funpec, 2004.

Luiz Alberto Machado (O Poema e a Poesia)



Falar de poesia num tempo tão sem poesia é, deveras, quase falar balela. No entanto, apesar de tanta insensibilidade, tanta mediocridade, tanta barbárie, insiste-se no sentimento do ser humano na forma como realmente ele deve ser: humano.

Entenda-se que a insensibilidade, a mediocridade e a barbárie sempre se fizeram presentes no inventário humano, o que nos deixa, por conclusão, que não é nenhuma novidade resistir. Se sempre fora adversa a realidade com relação ao sentimento humano, não será agora, que tudo se redima de uma vez. A gente vai continuar resistindo mesmo que a indiferença seja plena e que os ouvidos e toda percepção humana se torne uma parede gélida de inumanidade.

Pois bem, antes de mais nada, gostaria de fazer menção ao fato de diversos estudantes solicitando a diferença entre poema e poesia. Então, aproveito tal interesse para trocar umas idéias a respeito.

Inicialmente, na tentativa de esclarecer o que é o poema, faço uso da definição dada pelo eminente escritor Assis Brasil:

"Poema é o ´objeto` poético, o texto onde a poesia se realiza, é uma forma, como o soneto que tem dois quartetos e dois tercetos, ou quatorze versos juntos, como é conhecido o soneto inglês. Um poema seria distinto de um texto ou estrofes. Quando essa nomenclatura definitiva é eliminada, passando um texto a ser apresentado em forma de linhas corridas, como usualmente se conhece a prosa, então se pode falar em poema-em-prosa, desde que tal texto (numa identificação sumária e mecânica) apresente um mundo mais ´poético` ou seja, mais expressivo, menos referente à realidade. A distinção se torna por vezes complexa. (...) a poesia pode estar presente quer no poema que é feito com um certo número de versos, quer num texto em prosa, este adquirindo a qualidade poema-em-prosa".

Já poesia, Assis Brasil define como:

"(...) uma manifestação cultural, criativa, expressiva do homem. Não se trata de um ´estado emotivo`, do deslumbre de um pôr-do-sol ou de uma dor-de-cotovelo; é muito mais do que isso, é uma forma de conhecimento intuitivo, nunca podendo ser confundido o termo poesia com outro correlato: o poema".

Daí fica claro que um é o objeto e, o outro, a manifestação. E para não ficar tão simplista, possibilitando maior amplitude, considere-se outras observações, a meu ver, pertinentes. Aristóteles, por exemplo, em sua Poética, tratou sobre o assunto:

"(...) não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. (...) a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e essa o particular. (...) Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações".

Sobre esta visão aristotélica, Ariano Suassuna considerou que a poesia, no sentido grego, significa criação:

"(...) como espírito criador que se encontra na raiz de todas as artes. (...) A poesia seria o espírito criador que se encontra por trás de todas as artes literárias, sejam estas realizadas através da prosa ou do verso".

Assim, poesia é "o ritmo e a imagem, principalmente a metáfora".

Ampliando mais a discussão, no que concerne ao que pensam determinados poetas do que seja, na verdade, a poesia.

Vejamos pois, o que pensa, por exemplo, Maiakovsky:

"A poesia começa onde existe uma tendência. (...) A poesia é uma indústria: das mais difíceis e das mais complicadas, mas, apesar disso, uma indústria. Aprender o ofício de poeta não é aprender o modo de preparar um tipo definido e limitado de obras poéticas, mas sim, o estudo dos meios de todo o trabalho poético, o estudo das práticas dessa indústria que ajudam a criar outros. (...) O trabalho do poeta deve ser quotidiano, a fim de melhorar a técnica, e acumular reservas poéticas".

Eliot, por outro lado, defende que:

"(...) A poesia pode ter um significado social deliberado e consciente. (...) Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter para o povo da mesma raça e língua do poeta um valor que não tem para os outros. (...) nenhuma arte é mais obstinadamente nacional do que a poesia (...) a poesia que é o veículo do sentimento".

E arremata: "A poesia é uma constante lembrança de todas as coisas que só podem ser ditas em uma língua, e que são intraduzíveis". E como tarefa de poeta, Eliot defende que primordialmente e sempre se leve a efeito uma revolução na linguagem, articulada com musicalidade de imagens e de sons. Pound, entretanto, acrescenta: "Cada homem é o seu próprio poeta", defendendo que ninguém será um poeta escrevendo hoje com um jeito de anos atrás e que a linguagem deve ser usada com eficiência.

Uma série de outras questões podem e devem ser abordadas, ficando, portanto, para a próxima oportunidade, uma maior observação a respeito do tema poesia.

Fontes:
Luiz Alberto Machado http://www.sobresites.com.br/
Imagem = http://www.euniverso.com.br/

Heloisa Buarque de Hollanda (Longa Vida, o Poema)



Armando Freitas Filho, que neste fevereiro último comemorou seus 43 anos de vida e 20 de poesia, relatou recentemente a um razoável público no auditório da OLAC, sua forma de trabalhar: escreve de pé, frente à mesa, inclinando-se sobre o papel, ou seja, na medida do possível, em posição de sentido.

No trato social, seu grande charme é um sotaque adoravelmente sincopado, um certo “embaraço fônico”. Ou seja, alguma prudência, hesitação, no que diz respeito ao abandono emocional.

No afetivo, uma enorme fidelidade dissimulada por enérgicas representações, regras, compassos e manias (entre as quais, seu copo diário de Longa Vida CCPL 2000, o leite).

No literário, nos dá a dica:

“Esta mão que me escreve
há tanto
e tenta
dizer o que a outra
cala, não consente
segurando
o sonho
a caravela, o delírio
o incrível Hulk
que pode rebentar as costuras
os costumes
que pode
incendiar a casa
o próprio corpo
e avançar
pelo espelho adentro
contra si mesmo.”

O que identifica a longa vida e obra de Armando é, exatamente, o partido que tira deste estado de alerta, ou mais precisamente, da recusa às “facilidades”da emoção e da escrita. Em seu texto não se observa — salvo em raros momentos — aquela opção pela poesia instantânea, informalmente pessoalizada, anotada, diretamente “psicografada” do dia-a-dia que marcou a poesia brasileira recente. Entretanto, a leitura de Longa vida indica uma extrema contemporaneidade com os novos poetas: o jogo, o provérbio, o ready-made, o erotismo escancarado, a sensibilidade política, a vida como o grande tema — um inegável sabor de época. Acontece que — ainda que afinado com as questões e com o sentimento da geração 60/70 — nosso poeta escreve “só/ em último caso/ ou como quem alcança/ o último carro”.

Na apresentação de Longa vida, companheira de viagem, Ana Cristina Cesar (a misteriosa e excelente poeta de A teus pés, hit merecido da poesia 80) tenta decifrar a trama do texto (e talvez da longa vida) de Armando: “Há sempre uma dose dupla sobre a lareira, sob a vista. Há sempre uma tensão entre o vôo livre e a gaiola das loucas, entre um nômade e um sedentário, entre uma mulher que parte de avião e um homem que fica no aeroporto, entre a mesa burocrática e o impulso incendiário, entre o poema superloquaz, perito nas palavras, seus jogos, saltos mortais, e o hemisfério silencioso dos sentidos, entre o “deslizante verso discursivo” e a “lucidez dos sobressaltos” de que fala João Cabral”.

Tratando de dualidade, tentando distinguir e resolver onde a paixão/onde o texto, quando a poesia/quando a vida, o poeta não abre mão de sua marca registrada: um compromisso jurado e sacramentado (ainda que altamente emocionado) com o rigor no trato com a palavra.

Sua longa viagem poética prova e comprova esta determinação. Como não poderia deixar de ser, seu primeiro livro, de 1963, chamou-se Palavra. Tanto Palavra quanto Dual (1966), ligados à vanguarda Praxis, refletem um momento (não diria um resultado) quase que de “exercícios de escrita”, a palavra como um campo experimental rigoroso, muitas vezes de certa forma aprisionador, mas que lhe trouxe como dividendo o inegável know-how do poeta com seu instrumento. Em seguida, publica Marca registrada (1970) onde a preocupação explícita com o momento político traz-lhe alguns problemas “inevitáveis e concretos” e denuncia já um certo olhar voltado para fora, como que um reconhecimento de terreno. Munildo de um evidente domínio do texto, Armando permite-se, então, falar abertamente de si: seguem-se De corpo presente, Mlle. Furta Cor, À flor da pele (estes dois últimos experimentando com Rubem Guerschman e Roberto Maia as possíveis articulações da imagem com o texto poético), À mão livre. Entretanto, sempre atento, adverte:

“À mão livre
mas não tanto
pois escrevo
para não voar
enquanto a loucura
descabelada
por todos os ventos
sobre a escada
perde o pé
e range
dentes e degraus
enquanto escrevo
pelos ares.”

Se a questão da poesia é central em seu trabalho (”quem escreve sempre alcança/ a quem? o quê?”) a questão das viagens “viagens hors texte”não é menos complexa. Trabalhando a fundo as trilhas de seu percurso “sem carro próprio/ sob nome falso”, Longa vida, modulado como um inventário, desfia memórias (relutantes), enigmas de bares e verões em verde-amarelo, impressões de amor e morte “à tona, à toa, na vida anônima”. Fala ainda de um personagem que teme a memória (”Caço/ o que se despede:/ e não deixa nenhum sinal/ pista ou vestígio”) , que teme seu narrador (”armando suas falcratuas/ um eu que é um pseudo/ um índice onomástico/ um mar ou uma/ máscara/ a próxima cara”).

Uma observação inadiável que a leitura de Longa vida sugere: Armando escreve bem. Qualidade que vem se tornando cada vez mais rara nestes últimos tempos de proliferação indiscriminada de poetas. É seguramente esta qualidade que lhe autoriza a resgatar — no melhor estilo 80 — o desejo de ver “a vida voando/ lá fora/ em versos livres/ e brancos”.

Longa vida surpreende exatamente enquanto parece promover o cruzamento entre a preocupação formal e a “escrita da paixão”que caracterizou a poesia jovem da última década. Assim como Marca registrada parecia empenhado em promover o cruzamento entre o experimentalismo de vanguarda e com a preocupação social dos anos 60.

Sem dúvida uma longa vida bem vivida (”Valium, valei-me/ pois aos quarenta/ eu não sei se eu sou eu/ ou se eu sou ou”) a do velho Armando que insiste, entretanto, em não perder de vista os labirintos e os disfarces do poeta fingidor.

Fonte:
Jornal do Brasil – Caderno B Sábado,9/4/83. Disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/

Luiz Alberto Machado (A Poética de Aristóteles)



Quando me vi às voltas com a poesia, versejando desde menino, cheguei ao momento de que precisaria não apenas colocar sentimentos, emoções e idéias nos versos rimados, mas aprofundar os conhecimentos acerca da arte poética.

Foi ai que pretendendo saber mais a respeito da poesia e, ao mesmo tempo, descobrindo que poesia vai além de tudo que eu imaginava ser, fui estudando métricas, estética, aprendendo e trabalhando exaustivamente a respeito da arte.

Indispensável se faz, primeiramente, que se tenha conhecimento de uma obra de relevo: a Poética de Aristóteles. É nela que se encontra o entendimento filosófico acerca da poesia.

Indubitavelmente é uma obra tão reveladora que é indispensável para quem pretende militar na área, seja versejador, poeta ou estudioso da arte poética.

É com esta obra que a gente pode discernir o que é poesia, o que é poética e tudo que está imanente ou transcendente a esta arte.

O filosofo grego Aristóteles

O filosofo grego Aristóteles, era realista, utilitarista e adepto do senso comum. E conforme as bases fundamentais do realismo grego e talqualmente Platão, considerava a arte como imitação direta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. E no entendimento de Ariano Suassuna, o pensamento aristotélico sente a arte como um depoimento do mundo, contido numa outra realidade, transfigurada. Por esta razão, é a arte é uma criação da beleza, sendo o imitar congênito no homem, sendo ele o mais imitador. Isto quer dizer que Aristóteles considerava a poesia de Homero superior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto.

Nascido em 384 a.C, em Estagira, cidade da Calcidia, Aristóteles viveu no período da história grega em que a hegemonia da Macedônia se estendia sobre toda a Grécia. Ele vai para Atenas com 16 anos de idade, encontrando, de um lado, Isócrates que pretendia ser a retórica a melhor preparação para a vida política. E de outro, Platão, que em sua academia, mostrava que a preparação para a vida pública exigia mais do que opiniões e recursos retóricos – deveria ter fundamentos científicos. Aristóteles preferiu o caminho apontado por Platão e, durante 20 anos, freqüentou a Academia.

Quando morre Platão, Aristóteles deixa Atenas e vai para Assos. E em 343 a.C., Filipe da Macedônia chama-o à sua corte, confiando-lhe a educação de seu filho, futuro "Alexandre O Grande". Morto Filipe, Alexandre sobe ao trono e prepara uma expedição ao Oriente. É o momento de Aristóteles voltar à Atenas. Lá, próximo ao templo dedicado a Apolo Liceano, abre uma escola, o Liceu, que passou a rivalizar com a Academia, então dirigida por Xenócrates. Ao contrário da Academia platônica, voltada fundamentalmente para investigações matemáticas, o Liceu se transformou num centro de estudos mais dedicados às ciências naturais. Aí, Aristóteles trabalhou, escreveu e ensinou durante 12 anos. Acusado de ateu, Aristóteles se instalou, no ano de 322, em Cálcis (na Eusébia), onde no ano seguinte, morreu aos sessenta e dois anos de idade.

Decifrando a poética aristotélica

Entre os escritos e obras, A Poética de Aristóteles é uma obra esotérica e terá por base a fundamentação conceitual de imatação (mimesis) e de catarse (katharsis, purificação, purgação). Mimesis, no sentido aristotélico, é ativa e criativa, determina o modo de ser do poema trágico e estará sempre ligada à idéia de arte (tecgné) e de natureza (physis), defendendo sempre que a arte imita a natureza. Já a catarse para Aristóteles é uma força emotiva causada pela mimesis levando a um efeito suscitado pela tragédia no público.

No primeiro capítulo da obra aristotélica, são abordados alguns aspectos da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de imitação. Nesse sentido, apresenta-se como propósito da obra a abordagem da produção poética em si mesma e seus gêneros, da função de cada um desses gêneros e a maneira pela qual a fábula deve ser construída com vistas à conquista do belo poético. A epopéia, a poesia trágica, a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística enquadram-se nas artes da imitação, havendo entre elas, contudo, a diferença de que seus meios não são os mesmos, tampouco os objetos que imitam e a maneira pela qual se dá essa imitação. Nas artes citadas, a imitação ocorre por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados em conjunto ou separadamente. A epopéia utiliza a palavra simples e nua dos versos.

No segundo capítulo encontra-se uma abordagem acerca das formas pelas quais se utiliza a imitação. Assim, afirma-se que a imitação aplica-se aos atos das personagens, as quais podem unicamente ser boas ou ruins, dependendo da prática do vício ou da virtude. Nesse sentido, as personagens são representadas como melhores ou piores.

No terceiro capítulo é tratado do refinamento da classificação focalizada no capítulo anterior, afirmando ser possível imitar os mesmo objetos nas mesmas situações e numa mesma narrativa, seja pela introdução de um terceiro personagem, seja insinuando-se a própria pessoa sem a intervenção de outro personagem. Uma outra forma de seria contar com a ajuda de personagens que agem por si só.

No quarto capítulo ocorre uma análise acerca da origem da poesia e seus diferentes gêneros, que teria duas causas, ambas devidas à natureza do homem. Tendo em vista que a imitação corresponde a um instinto humano, característica que o distingue dos demais seres vivos, pela imitação são adquiridos os primeiros conhecimentos e experimentado o prazer. A poesia, então, teria sido criada pelos homens mais aptos à execução da imitação, por meio de ensaios improvisados. A divisão em gêneros resultaria das diferenças entre os caracteres dos sujeitos imitadores: aqueles mais propensos à gravidade reproduziriam as belas ações e seus realizadores, ao passo que os menos propensos se voltariam para as pessoas ordinárias com o objetivo de censurá-las. Aponta-se Homero como o pioneiro dos gêneros dramático e cômico. Defende-se, também, a superioridade da tragédia e da comédia em relação ao iambo e à epopéia. Tal superioridade seria a responsável pela migração dos poetas para os dois primeiros gêneros.

No quinto capítulo é efetuada uma comparação entre epopéia e tragédia. A primeira, assim como a tragédia, focaliza os assuntos sérios, porém não inclui qualquer forma negativa e é menos limitada quanto à duração em relação à tragédia. Ambas apresentam partes constitutivas comuns e todos os caracteres presentes na epopéia encontram-se também na tragédia.

No sexto capítulo são focalizadas as diferentes partes da tragédia, conceituando esta, entendendo-se que o pensamento é a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do assunto de maneira conveniente e busca provar a existência ou não de determinada coisa e realizar uma declaração de ordem geral. Já o caráter torna possível a decisão após a reflexão, razão pela qual o caráter somente se revela após a decisão dos personagens. A elocução é a escolha dos termos, os quais apresentam o mesmo poder de expressão, seja no prosa ou no verso. Já o canto é o principal tempero do espetáculo. Defende-se a idéia de que a despeito do efeito de seu efeito sobre os ânimos, a encenação em si mesma não pertence à arte da representação e não guarda qualquer relação com a poesia. Dessa forma, a tragédia existiria por si só, independentemente da representação e dos atores.

O sétimo capítulo trata da extensão da ação, parte primeira e capital da tragédia. Conceitua-se princípio como sendo aquilo após o qual é natural haver ou produzir-se outra coisa; fim como sendo o contrário, ou seja, ocorre após outra coisa e é algo após o qual nada ocorre. Assim, para se ter uma voa composição na fábula, seria necessário que o início e o fim não fossem obras do acaso, mas de condições indicadas. Assim, afirma-se que para que algo seja considerado belo, deve não só apresentar ordem em suas partes, como também comportar certas dimensões. Sob essa ótica, um ser vivente muito grande ou muito pequeno não poderia ser belo. Dessa forma, a dimensão dessa extensão seria dada pela duração dos concursos e pelo grau de atenção do espectador, ponto este que não dependeria da arte.

O oitavo capítulo trata da unidade da ação e afirma que, ao contrário do que se pode pensar, o que confere unidade à fábula não é a personagem principal. Assim, o que importa é que a unidade da imitação resulte na unidade do objeto, de forma que a supressão ou deslocamento de uma parte seja suficiente para mudar ou confundir o conjunto.

O nono capítulo versa sobre a competência do poeta ao narrar exatamente o que acontecido, mas sim o que poderia acontecer, o possível, a verossimilhança ou a necessidade. Assim, a diferença entre o historiador e o poeta não é a forma da obra, mas o que ela relata. Assim, o historiador relata o que ocorreu e o poeta, o que poderia ter ocorrido. Por isso, a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado, pois permanece no universal - o que uma categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias segundo o verossímil ou necessário - ao passo que a história focaliza o particular. Assim, a missão do poeta concentra-se em criar fábulas e não em fazer versos, sendo poeta justamente porque imita ações. Neste capítulo, atribui-se a maus poetas a criação de fábulas episódicas, obras em que a conexão dos episódios não observa a verossimilhança e nem a necessidade. Assim, a tragédia deve imitar a ação em seu conjunto e, além disso, imitar fatos capazes de suscitar o terror e a compaixão, principalmente se tais sentimentos nascerem de fatos que se encadeiam contra a experiência do espectador, causando, assim, maior admiração do que se fossem devidos ao acaso e à fortuna.

No décimo capítulo traz tão-somente a noção de que as fábulas são classificadas em simples ou complexas de acordo com as ações que imitam.

No décimo primeiro capítulo são apresentados os elementos da ação complexa, quais sejam peripécia, reconhecimento e catástrofe ou patético. A Peripécia é um elemento de ação complexa, que, segundo Aristóteles, consiste numa reviravolta das ações, o que conduz a história a um rumo contrário ao que parecia indicado e natural. O uso da peripécia é um dos instrumentos usados para que se chegue ao objetivo de causar terror e compaixão, ou catarse, finalidade da qual se presta qualquer tragédia. Como várias das peças já eram conhecidas do público, estratégias como essa provocavam mais interesse do público, o prendia mais e o deixava ansioso. Logo, essa reviravolta na história fazia com que o público ficasse mais curioso e mais identificado com a história e, assim, a interação do público com a peça aumentava. É com o uso da peripécia e de ações simples, diz Aristóteles, que se alcança o fim que se propõe alcançar, a saber a emoção trágica e os sentimentos da humanidade.

No décimo segundo capítulo encontram-se as divisões da tragédia, que são: prólogo, epílogo, êxodo e canto coral. O Prólogo é a parte que a si mesma se basta e que precede a entrada do coro (párodo). O episódio é uma parte completa da tragédia colocada entre cantos corais completos. O êxodo é uma parte completa da tragédia, após há qual não há canto coral.

No décimo terceiro capítulo fala das qualidades da fábula em relação às personagens. A fábula bela deve ser complexa e capaz de excitar temor e compaixão. Nelas, o infortúnio dos personagens não são fruto de sua perversidade, mas sim das suas ações. Para ser bela, a fábula necessita propor um fim único, oferecendo a mudança da felicidade para o infortúnio em virtude de um erro grave.

No décimo quarto capítulo aborda os diversos modos de produzir o terror e a compaixão, os quais podem nascer do espetáculo cênico, podendo, porém, derivar do arranjo dos fatos, o que é preferível e evidencia maior habilidade do poeta. Na tragédia, o temor e a piedade devem ser causados pelas ações. As ações que inspiram dor devem ocorrer entre amigos ou inimigos, ou indiferentes. Numa boa tragédia, o personagem não hesita em matar, saiba ou não quem é a vítima.

No décimo quinto capítulo ressalta-se a importância de que a representação e o entrosamento dos fatos apresentem verossimilhança de modo que as ações e palavras da personagem estejam de acordo com o necessário e verossímil. Assim, o desenlace das fábulas deve nascer da própria fábula e não de um artifício cênico, não havendo, tampouco, espaço nas ações para o irracional.

Nos capítulos seguintes são apresentados alguns conselhos ao poeta Diz-se que, ao organizar sua fábula, o poeta deve sentir como se a tivesse diante de seus olhos e completar o efeito do que é dito pelas atitudes das personagens, razões pelas quais a poesia exige entusiasmo. Fala-se, ainda, que os assuntos devem conter primeiramente uma idéia global, distinguindo os episódios a seguir. Então, devem ser atribuídos nomes aos personagens, os quais variam em função da sua terminação em neutros, femininos ou masculinos.

No décimo oitavo capítulo afirma-se que em todas as tragédias há o nó e o desenlace. O primeiro corresponde à parte que vai do início ao ponto em que ocorre mudança e o desenlace é a parte que vai da mudança até o final da peça. Uma boa peça deve conjugar adequadamente o lace e o desenlace. O canto coral teria o papel de passagem entre uma peça e outra.

Nos dois capítulos seguintes são encontradas observações acerca da elocução e do pensamento, dois dos elementos essenciais da tragédia. O pensamento tem como objeto a retórica e é de seu domínio tudo aquilo que se exprime por meio da linguagem, incluindo a demonstração, a refutação e a maneira pela qual se movem as paixões, tais como compaixão, temor, e a cólera, os quais devem dotar de importância e verossimilhança. A elocução é tratada a partir de seus elementos essenciais: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, artigo, flexão e expressão.

A partir daí encontra-se o objeto e as formas dos nomes ou figuras. O nome simples é desprovido de elementos significativos. Já a composição do nome duplo varia pode ser de um elemento significativo com um elemento vazio de sentido ou de elementos todos significativos. Os nomes usados podem ser da própria língua ou estrangeiros. Faz-se uso também de metáforas e nomes forjados, que são aqueles que em princípio não apresentam sentido, mas que passam a possui-lo pela utilização do poeta. Os nomes alongados assim se chamam devido ao alongamento ou abreviação. Os nomes masculinos terminam em N, R, S ou letras compostas de S, que são as consoantes duplas Y e X. Os femininos terminam em vogal sempre longa, como H, W e A alongado. Nenhum nome termina em muda ou vogal breve.

No vigésimo segundo capítulo observam-se as qualidades da elocução. A principal dessas qualidades é a clareza, contudo sem constituir em algo trivial, que é obtida a partir do uso da linguagem corrente. Para manter-se nobre, a elocução vale-se de metáforas, alongamentos e tudo o que se afasta da linguagem corrente, mas sem exageros.

No vigésimo terceiro capítulo é abordada a unidade de ação na composição épica. Diz-se que é necessário que a fábula seja dotada de tom dramático, e que encerrem uma só ação, com princípio, meio e fim.

No vigésimo quarto capítulo trata das partes da epopéia, que deve ser simples ou complexa, ou de caráter, ou patética. Assim, seus elementos essências são os mesmos da tragédia, salvo o canto e a encenação, e também são necessários reconhecimentos, peripécias e catástrofes, devendo, além disso, apresentar pensamentos e linguagem bela. A diferença entre epopéia e tragédia está na métrica. Assim, a epopéia deve apresentar limite exato, ou seja, seu conjunto deve ser abarcado do início ao fim.

No vigésimo quinto capítulo apresenta a maneira pela qual deve se apresentar o que é falso. Diz-se que o poeta deve dialogar o mínimo possível com o leitor. Nas tragédias, pode-se apresentar aquilo que é maravilhoso, sendo que na epopéia pode-se avançar até o irracional, para obtenção de um maravilhoso em grau mais elevado. Quanto à verossimilhança, defende-se a idéia de que é preferível o impossível verossímil ao possível incrível. Além disso, os assuntos poéticos devem ser racionais.

O vigésimo sexto capítulo traz algumas respostas às críticas feitas à poesia. Defende-se a idéia de que é erro do poeta a tentativa de imitação do impossível e o erro que provém de uma escolha mal feita não é intrínseco à própria poesia. Contudo, o erro torna-se secundário se a finalidade da arte tiver sido alcançada, a não ser que esse mesmo fim pudesse ter sido alcançado sem o uso de eventos impossíveis. Pode-se justificar o erro, ainda, pelo argumento de que o autor representou as coisas como elas deveriam ser, ou como a platéia acha que é, ou como elas eram em uma outra época. Critica-se também o uso exagerado de palavras estrangeiras. Admite-se, ainda, que possam ocorrer eventos aparente inverossímeis e que esse acontecimento seja verdadeiro.

O vigésimo sétimo capítulo trata da superioridade da tragédia sobre a epopéia. Argumenta-se que a menor extensão da tragédia proporciona maior prazer do que a diluição da epopéia, sem, contudo, deixar de atingir o seu objetivo, que é o de imitar. Além disso, a imitação da epopéia apresentaria menos unidade, pois trata de muitas fábulas simultaneamente.

Por fim, fica entendido que esta obra constitui-se de importante e bastante esclarecedor manual para o entendimento das tragédias, tornando-se base para a compreensão desse tipo de obra e, inclusive, para o estudo da arte dramática e da História da Arte como um todo.

É preciso observar, ainda, que a poética no sentido aristotélico, segundo Massaud Moisés, advem de talento poético, arte da versificação, designando, assim, o seu tratado e teoria da arte de criar poesia. E para Daniel Delas e Jacques Filliolet é consagrada à essência e à origem da poesia.

Para Assis Brasil, a poética é entendida hoje como a ciência da literatura, o que levou Jean Cohen a dizer que é a ciência cujo objeto é a poesia.

Afinal, para Aristóteles qual o significado para a poesia?

Para Aristóteles a poesia é imitação, um ato congênito ao homem, ao lado do ritmo e da harmonia.

Por isso, no sentido aristotélico, a poesia, segundo Jean Cohen, designava um gênero literário, por transferência da causa para o efeito, do objeto para o sujeito, designando a impressão estética particular normalmente produzida pelo poema. Tal condução levou-se a entender que a poesia, com base em Ariano Suassuna, está entre as artes auditivas, e possui três espécies principais: a lírica, a épica e a filosófica

Fonte:
http://www.sobresites.com.br/poesia/resenha/aristoteles.html

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Belmiro Braga (100 Trovas)


1
As almas de muita gente
são como o rio profundo:
- a face tão transparente,
e quanto Iodo no fundol ...
2
Em ti, minha Mãe, se encerra
todo o meu maior troféu:
- guardas num corpo de terra
uma alma feita de céu.
3
Fiz na vida o meu escudo
desta verdade sagrada -
o nada com Deus é tudo
e tudo sem Deus é nada.
4
Quem, mesmo nas alegrias,
de lastimar não se furta
de ver tão longos os dias,
para uma vida tão curta?
5
Pobre de mim! Por desgraça
meu coração é um coador:
nele, o riso escorre e passa,
e fica tudo o que é dor.
6
A beleza não te atrai?
Só te casas por dinheiro?
Tu pensas como teu pai,
que morreu velho e ... solteiro.
7
Saudade... palavra linda,
de sete letras... Saudade
é noite que tem ainda
lampejos de claridade.
8
Casa em março Ester Macedo
e em julho é mãe... Ora, o alarde!
O filho não veio cedo,
o esposo é que veio tarde...
9
Só mesmo Nossa Senhora
pode dar paz e conforto
à desgraçada que chora
a ausência de um filho morto.
10
Muitas vezes imagino,
nos meus dias desolados,
que o meu coração é um sino
dobrando sempre a finados.
11
Eu não lamento o revés
do morto que se fez pó;
do vivo, que espera a vez,
desse sim, eu tenho dó.
12
Quantos mortos trago vivos
no fundo do coração,
e dentro em mim quantos vivos
há muito mortos estão! ...
13
Olhaste Jesus na Igreja
demais. E tanto o tens visto ...
Fazes-me assim ter inveja
da própria imagem de Çristo.
14
Não devo guardar ressábios
da nossa extinta afeição:
morto me trazes nos lábios
e, vivo, no coração,
15
Eu morro por Filomena,
Filomena por Joaquim,
o Joaquim por Madalena
e Madalena por mim.
16
A vida, pelo que vejo,
hoje é vale e amanhã cimo:
- A quantos pobres invejo
e a quantos ricos lastimo!
17
Vivo, encheu (a História o prova)
com suas glórias o mundo,
e, morto, não enche a cova
de quatro palmos de fundo.
18
Teu coração é morada
que não atrai, felizmente:
- Quem nele arranja pousada
encontra a cama ainda quente.
19
Meu coração é uma ermida
toda enfeitada de flores,
onde conservo escondida,
Nossa Senhora das, Dores.
20
Uma princesa parece
pelos trajos do alto preço,
mas quanta gente conhece
seus vestidos pelo avesso! ...
21
Os beijos, segundo os sábios,
dados com muita afeição,
não deixam sinal nos lábios,
mas deixam no coração.
22
Num tronco seco, sem vida,
minha mão teu nome abriu
e o tronco seco, em seguida,
reverdeceu e floriu.
23
Desilusões, desenganos,
tudo a velhice nos traz,
mas existe, além dos anos,
a eterna bênção da paz
24
Politiqueiros... Que súcia !
Segundo as leis de Lavater,
o que lhes sobra em astúcia,
é o que lhes falta em caráter.
25
Dizem que a lágrima nasce
do fundo do coração...
Ah! se a lágrima falasse,
que doce consolação!
26
Vi teus braços... que ventura!
teu colo ... as pernas, que gosto!
Agora, tira a pintura,
que eu quero ver o teu rosto.
27
Quis a sorte que eu te visse,
quis o amor, que eu te adorasse,
quis o dever que eu partisse,
quis a paixão que eu ficasse.
28
Mulheres que eu vi no banho,
vejo-as depois num salão!
- Se pelo rosto as estranho,
pelas pernas sei quem são.
29
Por ver-me alegre e contente,
julga-me o mundo feliz:
nem sempre o coração sente
aquilo que a boca diz.
30
Na justiça tem confiança
e verás, depois, surpreso
que, por ter venda e balança,
ela te rouba no peso.
31
Muitos supõem a ventura
ver em meus olhos brilhar,
quando esse brilho é a tortura
de não poderem chorar.
32
A mulher para ser Venus
deve ter cintura fina,
olhos grandes, pés pequenos
e língua bem pequenina.
33
Que grande, triste verdade
me sussurra o coração:
- a dor é uma realidade,
a alegria - uma ilusão...
34
Quanta vez junto a um jazigo
alguém murmura, de leve:
- Adeus para sempre, amigo!
E diz-lhe o morto: - Até breve!
35
Natal! E eu sinto em minha alma
cantando uma ave... Natal!
No dia azul - quanta calmal
Parece a noite um rosal!
36
O que perdemos na vida,
procuramos sem achar,
exceto a mulher perdida,
que achamos sem procurar...
37
Tu não vês que vivo louco
por causa desta afeição?
Coração, sossega um pouco,
coração sem coração!
38
Muito mais desenxabido
que a goiabada sem queijo,
é te abraçar, bem querido,
e não poder dar-te um beijo.
39
(Mãe)
Acima de tudo, acima
do céu, te devemos pôr:
o teu nome não tem rima,
nem limite o teu amor.
40
Coração, bate de leve;
deixa os teus sonhos horríveis,
que um coração nunca deve
sonhar coisas impossíveis.
41
Como juiz, reto e calmo
posso afirmar sem receio:
- Mulher de boca de palmo
tem língua de palmo e meio.
42
Amigos ... E quanta gente
não crê na verdade atroz
que, no mundo, há um somente:
Aquêle que existe em nós.
43
Natal. No céu e na terra
quanta alegria! Natal!
A paz adoçando a guerra,
o bem adoçando o mal.
44
Teus olhos, Risália amada,
me recordam dois ladrões,
sob a pálpebra rosada
tocaiando corações...
45
Olhos pretos, dois acesos
e recendentes carvões:
- Par de algemas que traz presos
corações e corações.
46
Prezado amigo, perdoa
a resposta demorada:
tu sabes, quem vive à toa,
não tem tempo para nada.
47
Não conhecem mesmo os sábios
este caso singular:
- Fala a mente pelos lábios
e o coração pelo olhar.
48
A mulher, além de tema,
faz tudo com perfeição,
que até nos passando a perna,
tem a nossa gratidão...
49
No anel que me deste, pego
e vejo que é falso, crê.
- Se o amor verdadeiro é cego,
também falso é o amor que vê
50
Nossa Senhora Sant'Ana,
permita que possa um dia
mobiliar minha choupana
com as "cadeiras de Maria!"
51
Na vida, maior ventura
nada nos pode causar
do que a tépida ternura
que nos vem de um doce olhar.
52
De Júlia o pesar profundo
parece uma coisa pouca;
- vive na boca do mundo
por ser beijada na boca.
53
Aquele que dá esmola
tem duas vezes a palma:
- Primeiro, ao pobre consola,
depois, consola a sua alma.
54
Deus do amor, Deus da esperança,
conduze por flóreo trilho
os passos dessa criança
- lindo filho do meu filho!
55
Há dois poderes no mundo
que tudo movem. Primeiro:
- Mulher bonita. Segundo:
dinheiro, muito dinheiro.
56
Sobre o triste chão de abrolhos
em que tu vieste ficar,
meus tristes, cansados olhos,
não se cansam de chorar.
57
Dos beijos me lembro, Glória,
mas não do sabor, meu bem.
Por que a fronte tem memória
e a minha boca não tem?
58
Na terra que te consome,
nem uma triste inscrição!
Pudera! Porque teu nome
não me sai do coração.
59
Ouvindo-a falar da vida
dos próprios pais, tive pena
de ver língua tão comprida
numa boca tão pequena.
60
Onde um berço se embalança
há riso, ventura e luz:
- Sobre os berços, doce e mansa,
paira a sombra de Jesus.
61
Do berço à tumba há um caminho
que todos têm de transpor:
de passo a passo - um espinho,
de légua em légua -uma flor.
62
Chegaste, afinal! Chegaste
no instante mais que preciso;
vens trazer a quem mataste
as rosas de um teu sorriso...
63
Noite de núpcias. O Gama
encontra a esposa envolvida
num lindo roupão e exclama:
- Posso, enfim, ver-te vestida!
64
A mãe, que aperta no seio
um filho de seu amor,
tudo enfrenta sem receio:
a calúnia, a injúria e a dor.
65
Minha vida é uma jangada
num mar revolto de escolhos,
baloiçando sossegada
à doce luz dos teus olhos.
66
Tenho um neto e essa ventura
veio florir os meus dias,
que um neto é um sol que fulgura
num céu de nuvens sombrias.
67
Arvore és santa: os teus ramos
baloiçam ninhos de amor;
és abrigo, e em ti achamos
sombra, fruto, aroma e flor.
68
Entre o berço e a sepultura
um relâmpago fugaz,
mas que séculos perdura
pelo que nele se faz!
69
A mãe que a um filho acalenta
- tal o seu amor profundo -
tem a impressão que sustenta
em seus braços todo um mundo.
70
Quem maldiz a vida, prova
não conhecer que ela é vã:
- no espaço do berço à cova
há ontem, hoje, amanhã.
71
Coração de coração
quando quer bem, faz assim:
- põe nas arestas de um não
toda a pelúcia de um sim. . .
72
A caridade... Consola
ao vermos que ela é perfeita,
não por ser grande a esmola,
mas no modo por que é feita.
73
Quem ama, há de conhecer
a triste escala do amor:
- Desejo, ilusão, prazer,
cansaço, fastio e dor.
74
O noivo, da noiva outrora
via o rosto e nada mais;
se o rosto não vê agora,
todo o resto vê demais...
75
Que em vossos risos mais brilho
nas alvoradas não vemos;
nos olhos ternos de um filho
é que nós, Pais, nos revemos.
76
Assim como brotam flores
do triste, empedrado chão,
em rima brotam-me as dores
que trago no coração.
77
Da tua voz a frescura
feita de encanto e de olor,
lembra um veio de água pura
sob roseiras em flor.
78
Para ser feliz, um louco
costuma me aconselhar:
- deverás desejar pouco
e quase nada esperar. . .
79
Para um pai o bem se encerra
num berço - como um troféu,
as alegrias da Terra
e as esperanças do Céu.
80
Vi-a apenas uma vez;
uma só; não mais a vi,
e tal impressão me fez,
que nunca mais a esqueci.
81
Há no livro uma luz calma
que torna o mundo maior:
- quem vê pelos olhos da alma,
vê mais longe e vê melhor.
82
Na minha infância, dezembro,
aos outros meses igual
passava triste... e eu me lembro
de que não tive Natal...
83
- Toda amizade - é fingida,
todo mal - recompensado,
toda injustiça - aplaudida
e todo amor - enganado...
84
(A Maria Teresinha)
Nestes dois nomes se encerra
um rutilante troféu:
- Se Maria é a flor da terra,
Teresinha é a flor do céu.
85
Nosso amor, que ardia em brasa,
foi morrendo de mansinho,
e entre a minha e a tua casa
mal se descobre o caminho ...
86
Filha - o sorriso que encanta,
noiva - é a flor que perfuma,
A esposa - a graça de pluma,
e mãe - a graça da santa.
87
Maio, outrora tão ridente,
como vive triste agora!
Que saudades tem a gente
daqueles maios de outrora!
88
Quantas vezes tenho ouvido:
- Como ele ri de prazer!
Quando esse riso é um gemido
que aos lábios me vem morrer...
89
Fogem-te da alma os pesares,
a treva aos teus olhos brilha,
toda vez que tu beijares
esse amor, que e a tua filha.
90
Teus olhos, lagos risonhos,
de escuras margens em flor,
ah! se eu pudesse os transpor
no bergantim dos meus sonhos! ...
91
Correm-te os dias serenos
e um ano vem e te traz:
uma esperança de menos,
um desengano de mais.
92
Quando a mulher quer, eu acho
que nem Deus a desanima:
- É água de morro abaixo,
ou fogo de morro acima.
93
Um bacharel, meu vizinho,
quer saber por que razão
eu faço um verso "assinzinho"
e o denomino... versão...
94
Risália, naquelas flores
que te dei à despedida,
entre lágrimas e dores,
eu pus toda a minha vida.
95
O maior dos meus desejos
é ver-te, vendo com gosto
eu entupir com meus beijos
as covinhas do teu rosto...
96
Só duas cores havia
de rosas que aqui registo:
a cor dos pés de Maria
e a cor das chagas de Cristo.
97
Se eu fosse uma flor, querida,
queria, cheia de anelos,
morrer ditosa e esquecida
na noite dos teus cabelos ...
98
Se eu fosse uma fonte, nada
me privaria do gesto
de ver-te em mim reclinada,
para em mim veres teu rosto ...
99
Raio de sol ser desejo
para um dia (oh! que ventura!)
depor-vos na fronte um beijo
e vos ver ainda mais pura...
100
Arvore seca, nem flores
nem sombra e frutos dou mais:
mataram-me a seiva as dores
continuas dos vendavais.
___________________

Fonte:
JORGE, J. G. de Araujo e OTÁVIO, Luiz (organizadores). 100 Trovas de Belmiro Braga. RJ: Editora Vecchi, 1959.Coleção Trovadores Brasileiros. volume 1.

Heloisa Buarque de Holanda (26 Poetas Hoje Digital)


"Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia."

O parágrafo acima poderia se referir ao novo paradigma surgido com a era digital, ou às dezenas de saraus de poesia que surgem hoje na perifeira de São Paulo, mas não. Consta no prefácio escrito por Heloisa Buarque de Hollanda para o livro 26 poetas hoje (Aeroplano, 2007, 6° ed.), em 1975. Naquela época, enquanto no mundo girava a roda de aquários e a geração hippie, inspirada na sua predecessora beat, vivia sua onda, no Brasil corria solta a censura e a repressão militar. Foi o período do chamado vazio cultural, diagnosticado pelo jornalista Zuenir Ventura e decorrente do silenciamento forçado das vozes criativas.

À margem das atenções, pelo seu poder de audiência reduzido, a poesia tornou-se uma área de livre manifestação, abarcando frustrações, fosse da juventude, fosse da esquerda. Proliferavam os volumes de produção independente, vendidos diretamente pelo autor, impressos em mimeógrafos, confeccionados com originalidade e esgotados rapidamente. A poesia, pelo menos no Rio de Janeiro, acontecia e parecia estar em toda parte: em recitais, lançamentos, portas de teatro e bares da moda.

O livro organizado por Heloisa tinha por intenção "reunir num livro 'de editor', e, portanto num livro que se insinuasse num circuito mais amplo, manifestações isoladas ou praticamente isoladas, que eu percebia como importantes no campo da cultura e no campo da literatura", disse a crítica literária à revista José no ano seguinte da publicação do livro. Os poetas escolhidos, de diferentes gerações e motivações, portanto desorganizados como grupo, eram todos praticantes de uma mesma dicção ligada ao cotidiano e donos de uma atitude de desierarquização do espaço nobre da poesia. Uma revisitação mais forte do ideal modernista de 1922. 26 poetas hoje (Aeroplano) foi além do pretendido e virou espécie de retrato oficial do que é considerado o último grande rótulo da poesia brasileira: a poesia marginal.

Logo de cara, o livro obteve enorme repercussão nos jornais e atiçou como nunca o meio acadêmico, impulsionando a carreira de crítica literária da já estabelecida professora universitária Heloisa Buarque. Essa história está contada em Escolhas: uma autobiografia intelectual (Lingua Geral): "Para meu espanto, a antologia teve uma repercussão inexplicável. Sou convidada para conferências, seminários, entrevistas. O pequeno volume da Editora Labor foi resenhado e escrutinado em um sem número de jornais e revistas. Os jornalistas se entusiasmavam com uma 'novidade' para os espaços melancolicamente vazios de seus cadernos e suplementos culturais. Os professores e criticos dividiam-se frente à uma possivel 'agressão' à instituição literária", escreveu Heloisa no seu mais recente livro.

Hoje, 26 poetas hoje (Aeroplano) transformou-se em uma antologia clássica. Os poetas nela presentes, por ironia, se tornaram cânone e temas de teses de mestrado e doutorado, quando antes eram sequer considerados literatura. Alguns já estão mortos, como Torquatto Neto, Ana Critina César e Waly Salomão; outros ainda vivem a poesia, como Roberto Piva e Chico Alves; um, Roberto Schwartz, um dos maiores críticos literários em atividade; outros, como Chacal, Capinam e Geraldo Carneiro, roteiristas e compositores.

Fonte:
http://portalliteral.terra.com.br/blogs/26-poetas-hoje-digital

Aparecido Raimundo de Souza (O Encantador de sonhos)


“Quid scribit, bis legit”

“De médico e de louco todos temos um pouco. E de escritor também”- disse Harold Robbins em 1998 numa de suas entrevistas em Nova Iorque. Naquela época, isso já provava que um número cada vez maior de aspirantes sonhava com o fantástico mundo literário. De fato. Ainda hoje, quase dez anos depois, não são poucas as pessoas que buscam uma porta de editora aberta, de acesso fácil à publicação de sua obra, de um editor que acredite no talento do autor principiante e ofereça, a ele, a oportunidade tão almejada de ver seus trabalhos publicados e, claro, a disposição do respeitável público nas prateleiras das livrarias mais concorridas do país.

Nesta terra onde tanto se fala e se apregoa em propagar o livro e a boa leitura àqueles mais carentes, sabemos que, no fundo, por detrás das coxias, tudo não passa de pura balela, conversa fiada para boi dormir. Na verdade, o governo não está preocupado com a educação dos jovens, em mostrar ao mundo o talento de seus compatriotas. Ele quer que nossas crianças sejam, no amanhã – não o futuro da nação, mas um bando de analfabetos, tipo vaquinhas de presépio – de preferência que não saiba discernir um automóvel de uma bicicleta.

Todavia, apesar dos pesares, nem todos pensam assim. No meio dessa cambada de oportunistas da pior espécie, encontramos alguém que ainda pensa em estar do outro lado da porta, de braços abertos, à espera, para dar as boas vindas ao escrevinhador desconhecido. É o caso de Albert Paul Dahoui que, no intuito de “facilitar a vida de quem sonha em fazer livros e conquistar leitores”, abriu uma editora, no Rio de Janeiro, a Corifeu, que vem publicando, com regularidade, uma gama de novos talentos, como Dilson César Devides - 30 anos de Rock: Raul Seixas e a cultura brasileira de 1970 à contemporaneidade; Mário Alvim - Via Láctea; Gabriel Torres - Conspiração; Jurandir Araguaia - O Homem que não bebia cerveja; José Eduardo Stamato- Tempo de transformação; Angélica Borges - O Monge; Dy Lugon - Momentos; José Cornetta - A Construçao do ser; Julio Silva - Sonhos&Desejos; Antonio Valter Kuntz - Original Dewey; Diogo Santana - Fé e anarquia, Orlando J.D. Corrêa - Urrando no trecho e tantos outros.

Além de editor, Albert é também escritor. Acabou de lançar “O Sucesso de Escrever”, uma obra excelente que “coloca nos trilhos o potencial literário de cada pessoa”. Nesse opúsculo são abordados assuntos que vão desde a criação dos personagens, a estrutura de uma trama em todas as suas nuances, passando pela lógica da construção do começo, meio e fim, culminando com a consecução do trabalho como um todo.

O livro não trás fórmulas matemáticas como “O Homem que calculava, de Malba Tahan, nem se compara a manuais de especialistas que ensinam como se deve ou não escrever. Acima de tudo, o autor busca, de maneira simples, mostrar aos novatos que os “eventos iniciais precisam ser dinâmicos, a ponto de impactar o leitor, de cara, a ponto que, em nenhum momento, ele venha a se desinteressar pela leitura”. Esclarece que o meio do livro deverá alternar passagens de ritmo rápido para passagens mais lentas, dando tempo, ao leitor, para que saboreie e se deleite melhor com os aspectos íntimos de cada personagem ou situações e, sobretudo, a maneira como elas são apresentadas.

“O sucesso de Escrever” fala, ainda, das resoluções que devem ser objetivas, das frases longas, cheias de vírgulas, dos parágrafos extensos demais e cansativos. Discorre sobre as descrições longas, dos personagens, de palavras pouco usadas, ou daquelas muito rebuscadas, nas quais o cidadão leigo e menos desatento, precise, de um dicionário ao alcance das mãos.

Dahoui é, acima de tudo, um inventor de assombros e, mais que isso, ajuda o sonhador a construir suas fantasias mais estrambóticas, a sonhar com os pés no chão, a encontrar seu caminho sem se distanciar da realidade em que vive. Excelente, pois, para quem carrega, no sangue, o espírito aventureiro de um Veríssimo, ou de um Fernando Sabino. Recomendável para todos que se aventuram nessa senda quase intransponível de se tornar alguém reconhecido dentro de um universo cada vez mais fechado. Ser escritor, neste país, é como andar de mãos dadas com as ilusões que nascem da alma, mas igualmente com os pés atados e, pior, ladeado por um cotidiano invariavelmente bloqueado e desestimulante. O livro de Dahoui nos leva a acreditar piamente que não estamos ilhados no meio de outros escritores famosos e de renome, nem somos um Robinson perdido entre os demais semelhantes.

Fontes:
http://www.paralerepensar.com.br (6 agosto 2007)
Imagem =
http://dry-martini.blogspot.com

Mário Bortolotto (Poesias Escolhidas)


O CAMINHO MAIS CURTO PRO INFERNO

Ah, os dramaturgos
com seus textos suplicantes
que são a extensão doentia de seu criador.
Tem um que sempre participa de concursos de dramaturgia
dia desses ganhou uma menção honrosa
e começou a acreditar que agora sim, vai chegar lá.
Ele me disse exatamente assim:
Marião, agora é a minha vez!!
Confesso que fiquei assustado com tanta determinação.
Tem outro que trabalha em jornal e está pensando em escrever um romance.
Eu dou a mó força.
Tem outro que só está dando um tempo na dramaturgia,
porque sabe que o seu negócio mesmo é cinema.
Tem outro que escreve novela de tv.
E tem aquele que quer escrever novela de tv.
Tem um deles que se acha especial porque escreve minissérie.
Tem aquele que namora a atriz que vai produzir seu texto.
E tem um outro que namora o ator.
Tem um outro que comeu a produtora.
O problema é que ele comeu mal
e a mulher não quis mais saber do texto dele.
Tem outro que só escreve comédias
porque disseram pra ele que é mais comercial.
Tem o dramaturgo maldito
e o darling da mídia.
E tem aquele de grandes aspirações que nunca consegue terminar seu texto.
Tem aquele que está há três anos escrevendo sua grande peça
e tem aquele que só conseguiu escrever uma peça na vida
e vive falando sobre ela, e acha todos os atores burros
por não terem ainda encenado o seu texto.
Tem o que enlouqueceu
e o que ficou parado em alguma curva dos anos 60.
Tem o dramaturgo da moda
e aquele que está sempre por fora.
Tem o muito encenado
e o eterno gênio inédito.
Tem aquele que não suporta outros dramaturgos.
O que acha tudo uma bosta.
E tem aquele que vai a todas as estréias de seus companheiros.
Tem um que faz um bico de ator em comerciais
pra pagar a produção do seu texto de vanguarda.
E tem outro que tirou foto pruma revista gay segundo ele pelas mesmas razões.
Tem um que diz que é performer.
E outro que vive de ministrar workshops de dramaturgia.
Tem outro que é jurado de concursos de dramaturgia.
E tem ainda aquele que escreve peças pra teatro empresa
mas que garante que é por pouco tempo.
Tem o dramaturgo publicitário cheio de tiradas geniais.
E tem o dramaturgo crítico de teatro.
E tem aquele que almoça sempre com o crítico
e diz que tem prazer em almoçar com o crítico.
Tem aquele que implora pro crítico vir assistir a sua peça
e aquele que proíbe a entrada do crítico.
Tem um que não desgruda do telefone
sempre a um passo de uma grande montagem.
E tem o que desistiu.
E tem os que continuam insistindo.
Tem o velho dramaturgo que acha que a dramaturgia morreu
e o novo dramaturgo que quer matar a velha dramaturgia.
Pobres inocentes.
Vocês não fazem idéia da encrenca em que se meteram!
G G G G G G G G G G G G

O FRACASSO COMO RECOMPENSA

prometo e não tomo providências
meu evangelho renegado por todas as manhãs
minha fuga dos restaurantes coreanos e dos suspiros forjados
tenho pensado insistentemente em constrangimentos noturnos
mas ainda acredito no que se convencionou chamar de suplicio
até fracassados tem códigos de ética
minha fé inabalável em possíveis viagens pra bem longe daqui
entre palmeiras e a brisa fria do fim de tarde
eu devo me deitar na solenidade da memória perdida
num quarto de hotel com nome exótico e reverente
a majestade de quem se deu por esquecido
de quem jogou fora todas as fichas
de quem sempre esteve fadado à derrota
mesmo sentado no topo do mundo
mesmo que ela dance semi nua na minha frente
que me ofereça sua nuca em sacrifício
e que derrame vinho em meu peito e deslize sua língua suave
ainda assim vou pensar que é sempre tarde demais
meu orgulho abençoado de perdedor
deixo o testamento de um loser
com duvidosa compaixão pela raça humana
como recompensa, tenho o sol abrasador
e a crença vil num evangelho porcamente escrito
só levo comigo minha inadequação e alguns poemas de Dylan Thomas
não tem mais pra ninguém

Daqui a 20 minutos, vai ser eu e Deus.
G G G G G G G G G G G G

ENQUANTO ELA RANGE OS DENTES
EU ESPERO OS FANTASMAS

Os fantasmas bebem comigo quando a lua vem
Eu abro a minha porta todas as noites
Eles aparecem e se apropriam das poltronas
coçam meus pés e bebem meu vinho
Não falam da vida os fantasmas
nem comentam as fotos que guardei
Eu me sinto bem com os fantasmas
Eles apenas gostam de ficar por ali
assoprando nas orelhas do cachorro
o cachorro se acostumou com os fantasmas
já não tira os chinelos das poltronas
percebeu o quanto os fantasmas são
importantes pra mim e o cachorro também
não quer me ver triste e eu sei que de
uns tempos pra cá o cachorro também ficou
dependente deles pois uiva de dia enquanto
eu leio Frost no telhado
o dia passou a ter 72 horas
o dia passou a ter grossos livros de poesia
o dia passou a ter Whitman, Thoreau e Bashô
o dia agora é um osso esquecido no assoalho
o dia agora é uma longa espera da noite
que é quando os fantasmas aparecem
Eu espero já sem muita paciência
não há nenhuma suavidade ou delicadeza em meus gestos
os fantasmas são a melhor companhia pra
quem descobriu que está realmente sozinho.
G G G G G G G G G G G G

ÓPERA DOS POMBOS SEM DESTINO

Eu moro no sótão onde os pombos morrem
Eu deixo a janela aberta
e deixo que eles venham morrer a meus pés
Eles entram voando e me olham
com seus olhos tristes de pombo
Como eu posso ser feliz com todos esses pombos mortos
abandonados por Deus
Gostava quando eles se chocavam contra o pára-brisa
Pombos desgovernados sempre me fascinaram
Esses pombos com destino certo
eles me deixam com os olhos cheios de lágrimas
vez ou outra um avião passa no céu
e os pombos sonham com lugares nunca visitados
Um dia os pombos desaparecerão
terão voado para algum lugar inatingível
não haverá mais pombos
e alguém irá contar histórias sobre pombos
os seus cadáveres espalhados no chão do meu sótão
receberão visitas apaixonadas
mas pra mim o que vai ficar
será a lembrança dos pombos na minha caixa de correio
pombos que se recusaram saber o caminho
pombos que Deus há de acolher
pombos dos quais sempre vou me lembrar
ouvindo ópera no sótão
meu sótão de pombos sem destino
-------------------

Fontes:
Confraria do Vento
Maquina do Mundo. Revista de Poesia.

VIANNA, Christine (organização). Antologia de Poetas Londrinenses v.12. Londrina, PR, 2000.

Cândido Rolim (Ronald Augusto e as Fissuras de Linguagem)


Até que enfim uma poesia me comunica que não quer comunicar. Que sua função é outra: cair fora do “sistema unívoco de linguagem” (Adorno), significar a esmo, jamais atingir uma margem, nem o ambíguo conforto da forma. Enfim uma escritura que, após o front da linguagem, os secretos escrutínios, funda outros desafiadores sentidos.

Topo com a poesia de Ronald Augusto (Rio Grande, RS, 1961), cuja obra, herdeira do concretismo e das conquistas da poesia visual, crítica por excelência, dispensa as falsas visitações da verve e da aura diletante.

O texto de RA roda por aí há cerca de 20 anos (Homem ao Rubro-1983, Puya-1987, Kânhamo-1987 e Vá de Valha-1992) hibernando nos subdiretórios “poesia gaúcha moderna”, “poesia negra” ou “poesia concreta e visual”. Seja como for, uma poesia universal e difícil, desagradável a quem reverencia um certo “modo de dizer sentimentalmente raro”. Com efeito, em seus livros breves e magros não encontramos “páginas de sentimento em que o verso exalte a delicadeza de esteta que se deve sempre encontrar em um poeta”, nem aquela amena sintaxe atrelada a plangências e demais falácias ab imo pectore, e sim um verbo giratório contra poesias e poetas de tardio pastoreio, a água crespa contra a água moribunda.

Noto, sem fechar questão, que a poesia de hoje, contrariando em parte a imagem/idéia de que “a palavra tem canto e plumagem” (G. Rosa) tem sido mais de sintaxe que de palavra, rumo à abstração.

Em RA encontramos palavras sempre em vias de, prestes a, em busca do gaboso trejeito, a ironia, o maldizer. Palavras-arestas cegadas pelas farpas de uma sintaxe cotó roçam a mensagem e de forma elíptica (às vezes em excesso) caem à beira do dito. Revoltada contra a função (e acho aí uma atitude que já qualifica demasiado seus escritos), a poesia de RA é outra que vira o rosto à pertinência abusiva, à subserviência da língua a um propósito (estatal ou estético) demasiado poético-competente ou politicamente correto. Observo em algumas passagens do seu último livro (CONFISSÕES APLICADAS, Ameop, 2004), vários indícios dessa atividade anti-poética, construída desde “aparas de linguagem” (p. 27), “fissuras de linguagem” (p. 62) e “fendas de linguagem” (p. 77). De fato esse comportamento intersticial de sua expressão é bastante recorrente, revelador de um escamoteio verbal tinhoso e de um desatrelamento daquela poesia-boa de poetas recompensados por um consenso suspeito. Ora, quando uma maneira de dizer se revoga (e bem poucos ousam abandonar o barco) no seio desse mesmo código gasto e, melhor, das suas fendas, é possível e até salutar o manuseio de novos sentidos.

Ácido, o artista, além de não estar a fim de nenhuma fidedignidade, põe tudo em xeque, inclusive as vanguardas de que é filho:

diz
trair a tradição
inventar a
(Vá de Valha)

Ou mais enfático:

leitor ulisses
homero (
e) m
pessoa

ninguém
está de posse do
pós
(Vá de Valha)

O texto de Ronald, que opera a fundo o lema work in progress, à medida que nunca se completa, vai quebrando simetrias e sentidos, promovendo um enxame de possibilidades sintáticas e sintéticas ao redor, aptas a receberem a associação latente do leitor. Afinal, questionamos: o poema buscará um fim, uma solidez, um estágio estético de onde não se vislumbre mais o mais?

Alguém dirá, comiserado: e o leitor? E a consideração com o pobre leitor? E a comunicação? Admitamos, portanto, que há o risco de o dileto leitor não entrar no texto, não captar a “mensagem” (cito aqui alguns encontradiços questionamentos acerca de). Ora, mas não reside aí o problema milenar de toda poesia e, afinal, de todo dizer? Se a questão é esta, maior desrespeito com a assistência está em oferecer-lhe um texto edulcorado onde, em nome de falaciosas inerências e votos de pundonor, permaneça indiferente ou, pior, sorria no final, agradecida ao bom poeta por este não ter sugerido nada além do que ela aprendera a apreciar.

Ronald Augusto experimenta quase todas as possibilidades da síntese, através de um surrealismo sincopado, minimal. Dançando esse ritmo truncado, de signos devidamente frustrados de qualquer pretensão de uniformidade, eleva o significante a um ponto onde o significado se rarefaz (logo, multiplica-se), proliferante, polissêmico. Contra o alvo, a revoada. A ver:

regaço pedra o
régua quadril
(Vá de Valha)

O módulo pedra o/quadril projeta no leitor um feixe de imagem, e o o (artigo?) após a pedra sugere um sutil “motivo” hispânico. Pois bem, a função da poesia não é dizer o indizível, quando muito aproximar o incompatível (regaço – quadril = régua – pedra). O quadril torna a pedra dúctil, enquanto o regaço dribla, distrai, compatibiliza, corporifica e nega a fatalidade retilínea da régua. Faça-se, para melhor percepção, uma leitura linear e outra transversa dessa mesma “estrofe”, em quiasmo.

Aquela suspensão de sintaxe e vocábulos de que falávamos antes, a par de permitir sempre um discurso incidental irônico, capcioso, deixa as palavras como que à espera de algo, prestes à bifurcação. Poesia véspera de constelação:

poema a
moenda
arroio
mexendo moedinhas
na algibeira
(Vá de Valha)

Noutro momento, percebe-se a ausência de hierarquia entre os significantes – adjetivo – substantivo – verbo (onde um e outro?). E veja-se que, mesmo de ascendências diversas e até incompatíveis, os signos não se livram de um contágio recíproco entre eles. O poeta coloca tudo ao rés do nome e parece dizer: - palavra, signifique fora de si! Signifique-se! Prolifere!. Exemplifiquemos:

o vindouro
uva o
veio

Ou

músculo ou
crespos
musseque a favela
cestos
(Vá de Valha
)

Enquanto isso, o ritmo corre a favor do rito. É quando o mito do discurso encontra o discurso do mito, palustre e pobre locus da infância:

que
favo mangue
bessanga
o
moleque
(Vá de Valha)

Impossível não associar tais textos com alguns momentos da poesia de matiz africana (vide, por exemplo, Arlindo Barbeitos, em Nzoji), quando as palavras vicejam rente ao chão, no ar seco, de coivaras. Poesia casulo de vivência vária. Sumo de língua nova: por polpa a// arquipenumbra.

Contra a poesia de RA conspira, a meu ver, o que noutro momento a absolve, isto é, a elipcisação excessiva. Escondido atrás de um vácuo significante (estanco um vazio com outro, CA, pág. 35) pensa-se que o poeta se esquiva, não quer correr o risco da respiração completa ou de uma eventual explicitude. Ora, mas não há as mil formas de ver o poema? Afinal, o homem (portanto, o texto) não é poroso ao tempo? À tendência centrífuga/constelante das palavras tem que se dar um instante de perenidade, um provisório vetor rumo à plasticidade, seja para o presente, seja para o não-tempo. Há também a poesia dos conceitos! Quer dizer, o poeta pode até querer “estancar um vazio com outro”, ou pretender um arranjo de abstrações que lhe oculte o rastro. O problema - e isto a poesia de RA mostra a todo instante e os poetas-se-achantes insistem em negar – é que tudo isso se dá inapelavelmente no campo da linguagem. E é essa maldita linguagem que irá denunciar todo o entorno do homem, inclusive suas insuspeitas filiações e encostos.

Em O HOMEM AO RUBRO (Porto Alegre, 1983), porém, esse impasse se supera e o autor nos fornece desde lá uma senha para o seu último livro CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004). Manejando sem receio sua assumida “oralidade atravessada”, utiliza-a se não para resolver o texto em imagem (e saquei para mim uma felpa // bífida // de onda), também para ex/trair outros módulos de alta voltagem poética, adequando o como se diz com o que se diz. Citemos:

minha capoeira
assopro ela para além de duas
quadras
com imediateza e
antepassadas lâminas
um linguajar
de músculos paisanos
(O Homem ao Rubro)


Coincidência ou não, parece que o poeta hoje se dá conta disso, por exemplo, nos poemas do seu CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004), onde o artífice assume, com maestria, outra sintaxe, dando uma pausa no mínimo de retórica para um máximo de significação. Uma retomada, a um só tempo, da cantiga de escárnio e dos racontos dantescos, oxidados pela raiva moderna. Dessa obra, transcrevemos a indiscutível qualidade, p. 55:

cera de operárias em orelhas de remeiros
os mesmos mesmo topando com o cu do mundo
porque o mandachuva deles fechará sua
rosácea de rotas
transtornadas feito chama enunciante
nenhum dos seus comerá de outro pão
hera operária nos buracos dos eunucos

Em CONFISSÕES APLICADAS o poeta nos apresenta um livro recheado de périplos odisseicos com os clássicos, não de forma reverente mas dialogante, com ironia e vocábulos sem mofo. A respeito da mudança de ritmo operada na poesia de Ronald Augusto, talvez de maneira inconsciente o poeta nos revelou os passos dessa transposição, dessa mudança de batida, no poema contrafragmento, p. 57, nestes termos:

já agora me parece justo
não dissimular mais coisa nenhuma
dou-lhe conta dos transes que mordo
não com intento de pedir ajuda
nem com a idéia de forçá-lo

Na poesia contemporânea – da qual o texto de RA é um feliz exemplo – a consciência do artista participa da obra como uma anti-escritura. O poema, sob o pastoreio feroz de outro espírito, se escreve desfazendo-se. E aquela consciência ilustrada do artífice, tensionada a n vigílias não o empurra para o silêncio, tampouco para a palavra. Não o coloca em situação de fala ou de diálogo; estimula-o a um não-dizer, fixa-o numa zona plástica entre silêncio e voz. Imerso naquela ramagem de perguntas de que falava René Char, o poeta parece tomado pelo medo moderno de nomear.

Num mundo esvaziado de “guerreiros e celebrantes” e “um presente onde as sereias viraram sirenes” (H. Campos) o poeta adquiriu uma garganta crítica. Também por isso a escritura de RA é incômoda, inconclusa, incôngrua, como se lhe repugnasse ou inquietasse aquele toque edênico do objetivo (Idem). Agarrando-se ao fragmento, aparas da linguagem, transformando o texto em uma instância plástica de urgência e sugestão, revela-nos que o fim de um texto não é centrar o leitor na tirania de suas linhas, mas abrir sua (dele leitor) vontade para outros mundos (verbais ou não). Que a linguagem não nasceu para ser fidedigna, nem para corresponder a um dizer estanque e perpétuo, muito menos para servir às hegemonias sustentadas e retroalimentadas pelo arcano da pertinência.

Bom saber que existe por aí uma poesia in motum, que está na ordem do fazer e não de um estar ou ser, à ilharga da palavra estatal e da sintaxe recrutada para os bons propósitos da in/formação ou do pensamento político (e poético) logicamente correto.

De resto, contra a eternidade distraída que volta e segue, sob o rumor de sempre, efêmera, a poesia, com a linguagem, morre. Mas algumas vezes, felizmente, deixa um grande rastro.
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José George Cândido Rolim nasceu em Várzea Alegre, CE. Morou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente exerce a advocacia em Fortaleza. Tem publicados os livros Rios de Mim (Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1982); Arauto (Sabará: Edições Dubolso, 1988); Exemplos Alados (Fortaleza: Letra & Música, 1997), Pedra Habitada (Porto Alegre: AGE, 2002) e Camisa Qual (Porto Alegre: Editora Éblis, 2008).

Fontes:
http://www.msmidia.com/ameopoema/aut_ronald.htm
Imagem = http://ouirapuru.blogspot.com/