sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Machado de Assis (Esaú e Jacó)

Análise da obra realizada pelo Prof. Teotônio Marques Filho para o Portal Por Trás das Letras

Ao estudar a obra de Machado de Assis, a crítica divide-a em duas fases bem distintas cujo marco delimitado é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. Até essa data, a obra machadiana é marcadamente romântica, onde sobressaem poesia, contos e os romances Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e laiá Garcia (1878).

A partir de 1881, com a publicação das Memórias, Machado de Assis muda de tal forma, que Lúcia Miguel Pereira, chega a afirmar que “tal obra não podia ter saído de tal homem”. A partir daí, “Machado liberou o demônio interior e começa uma nova aventura”: a análise de caracteres, numa verdadeira dissecação da alma humana. É a segunda fase - fase marcadamente realista, sem a qual “não teríamos Machado de Assis”.

Além de contos, poesia, teatro, crítica, integram essa fase os romances seguintes, entre os quais está o nosso Esaú e Jacó (1904): Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1900) e Memorial de Aires (1908), seu último romance.

Criticamente, Esaú e Jacó não é o melhor romance de Machado de Assis, chegando Massaud Moisés a colocá-lo como “um declínio”, principalmente se comparado aos outros romances da segunda fase: “Esaú e Jacó é simples, mas simples por fora e por dentro”, conclui o crítico.

Entretanto, vale a pena ler o livro não só pelas virtuosidades do estilo de Machado de Assis como pela história narrada e outras pérolas que o escritor vai jogando ao longo do romance.

Como já ficou situado, Esaú e Jacó se enquadra no estilo realista, o que procuraremos mostrar a seguir.

O ESTILO DE ÉPOCA

Cronologicamente, Esaú e Jacó é um livro que surgiu nos fins do Realismo (1904), estando fora da fase áurea do Realismo brasileiro e da ficção machadiana (1880-1900). Isso quer dizer que se torna difícil enquadrar o romance nos moldes realistas, como quer a crítica, ao situá-lo na segunda fase de Machado de Assis. Talvez mais correto seria localizá-lo numa terceira fase... Além do mais, por essa época (1893), surgia um novo estilo - o Simbolismo, que, apesar de ser um movimento essencialmente poético, vai manifestar-se no livro de Machado de Assis.
Não obstante, alguns aspectos do Realismo podem ser detectados no livro.

1) Fidelidade na descrição de situações e personagens. A verdade dos fatos é uma das principais preocupações realistas. Ser fiel àquilo que descreve é uma norma que o escritor realista, tanto quanto possível, procura seguir. Se compararmos o escritor realista com o romântico, veremos que este se caracteriza pela fantasia, pela imaginação, pelo idealismo. O escritor realista é, mais ou menos, o oposto: encara a realidade direta e objetivamente e procura mostrar o que é, não o que deve ser, como os românticos.

Se você leu Esaú e Jacó atentamente, não foi difícil perceber essa preocupação. Em diversas passagens, Machado se preocupa com a verdade dos fatos, em ser fiel àquilo que narra, como é o caso desta passagem do Cap. V:

“Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história, ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as causas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue”.

Quanto à autenticidade das personagens, é difícil perceber no livro, com exceção do Conselheiro Aires, que acaba “ocupando o centro de toda a narrativa”, como ressalta Massaud Moisés. Outras personagens, como Pedro, Paulo e Flora, lembram figuras românticas. Flora, por exemplo “é moça, virgem, e morre de doença estranha, mal de sentimento ou coisa parecida” (Massaud Moisés).

2) Gosto pela análise. A análise é uma característica básica na ficção realista, principalmente a análise psicológica.

Esaú e Jacó, como veremos mais adiante, atém-se à análise da complexidade dual do ser humano. Em inúmeras passagens encontramos essa preocupação de analisar, onde Machado procura desvendar e esclarecer os segredos da alma humana, como é o caso do excerto que vamos transcrever, extraído do Cap. XCIII:

“Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas palavras ao coração: “Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil a ação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda, esquece-os: se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão o resto”.

3) Objetividade a impessoalidade. Não resta dúvida que essa é uma característica que reflete a época - época do cientificismo, da precisão, da observação. Ao contrário do Romantismo, no Realismo o escritor não interfere na conduta de suas personagens; tanto quanto possível, ele se afasta delas, desenvolvendo assim uma narrativa objetiva e impessoal.

No nosso romance, é fácil perceber essa característica, embora o Conselheiro Aires tenha muito de Machado de Assis: é um homem cordato, grave, ponderado, equilibrado, inteligente tomo o próprio escritor. Mas o livro em si retrata uma situação que é vista e narrada por um observador que procura ser objetivo e impessoal, como revela na passagem abaixo, do Cap. XLVIII:

“Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não sela das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso por aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo”.

4) Narrativa lenta e pormenorizada. Se a grande preocupação do escritor realista é com a análise, claro está que o seu processo narrativo será lento. Os pormenores, detalhes aparentemente dispensáveis, contribuem, por outro lado, para o painel ou retrato da realidade que se quer expor.

Em Esaú e Jacó, a narrativa está cheia de fatos e episódios que não fazem parte propriamente da história, o que retarda o desfecho: o processo é, pois, lento e pormenorizado.

Como exemplo, veja-se esta passagem do Cap. XI:

“Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, Mas eu quero que saibas que casa era, e que rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...”

5) Enfoque do tempo presente. O Realismo retrata a vida contemporânea. Enquanto o romântico se volta para o passado ou se projeta no futuro, através do sonho, da imaginação, da idealização, o realista se fixa no presente, porque o que lhe interessa é a vida que o rodeia. Nesse sentido, justifica-se a crítica, a sátira e a ironia, que se tornam armas com que os escritores realistas combatem as depravações morais da sociedade, da qual riem e escarnecem.

Marca registrada de Machado de Assis, em Esaú e Jacó, abranda-se o tom irônico, não havendo tanta descrença e tanto niilismo como nas Memórias ou em Quincas Borba. Entretanto, aqui e ali reponta a ironia, como é o caso da tabuleta do Custódio, da história do “irmão das almas” e mesmo a situação política do Batista.

Para ilustrar este item, não há melhor exemplo do que os fatos políticos ocorridos na época e que vão culminar com a Proclamação da República, como se vê nos capítulos “Noite de 14” (LIX) e “Manhã de 15” (LX). Há, outrossim, inúmeras referências a personalidades e fatos da história do Brasil, como a política do “encilhamento” de Rui Barbosa.

6) Aspectos simbolistas. O Simbolismo é um movimento essencialmente poético, o que não quer dizer que a prosa esteja totalmente excluída. Inaugurado, oficialmente, entre nós, em 1893, com o livro Broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo é um movimento literário que se fundamenta basicamente na linguagem figurada - no símbolo, como sugere a palavra. Com base nisso, depreende-se a busca do etéreo, do vago, da música, do mistério e do metafísico.

Para o crítico Cavalcânti Proença, “desde o título, há simbolismo” em Esaú e Jacó, apontando inúmeros exemplos como aquele “lenço verde” de Natividade, a simbolizar a esperança no futuro dos gêmeos ou aquela “alma azul” de que o escritor fala no Cap. XIX:

Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela”. Enfim, “ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul”.

Mas, como observa o citado crítico não ficam aí os exemplos, e, sem esforço, podemos lembrar que os dois namorados levam grinaldas à sepultura da moça que ambos amavam. Uma é de perpétuas, de simbolismo muito evidente, e a outra, mais obscura, de miosótis, o “forget-me-not” dos ingleses; um dos apaixonados diz de si mesmo “que o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir”.

Outra figura que lembra o Simbolismo é a moça Flora, que tem muito das virgens vaporosas que povoam a literatura simbolista e se aproximam das esferas celestes e etéreas. Também o velho Plácido, “doutor em matérias escusas e complicadas”, conhecedor de “gestos visíveis e invisíveis”, pode ser colocado aqui como exemplo nesse sentido.

O ESTILO DE MACHADO DE ASSIS

Pode-se dizer que Machado de Assis é o escritor das pequenas coisas, dos detalhes imperceptíveis a olho nu, como ele próprio reconhece numa crônica: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”. Além desse aspecto que Eugênio Gomes chama de “microrrealismo”, muitas outras virtuosidades podem ser apontadas no estilo machadiano, como veremos a seguir:

1) Narrativa lenta. Embora seja próprio dos escritores realistas de um modo geral, o gosto pelo detalhe, a morosidade narrativa marcam de tal forma o estilo de Machado de Assis, que passam forçosamente ao plano individual. Aliás, é o próprio escritor quem o diz nas Memórias Póstumas de Brás Cubas: “tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..."

Em Esaú e Jacó, as paradas e digressões não são tão comuns como nas Memórias. Chega a haver uma certa preocupação com o enredo. Mas o velho hábito está presente em inúmeras passagens, como é fácil perceber numa leitura atenta do livro. Basta ver as várias referências políticas que estão disseminadas pelo romance, as considerações e reflexões filosóficas e morais, além das conversas constantes com o leitor.

2) Humor. O humor é a grande tônica da ficção realista de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro.

Em Esaú e Jacó, o grande humorista das três obras citadas desaparece quase que completamente para dar lugar a um escritor mais crente na vida e nos homens. Entretanto, algumas passagens estão perpassadas de humor, como é o caso da “tabuleta do Custódio”: “Confeitaria do Império” ou “Confeitaria da República”? -Era difícil a escolha do nome que satisfizesse aos interesses do Custódio, posto que a mudança de regime era iminente. Talvez fosse melhor “Confeitaria do Custódio”, que agradava a gregos e troianos; mas o melhor mesmo era “esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas”.

Através do episódio, veladamente, Machado critica a rapidez com que o Brasil mudava de regime. E o que sugere o contexto e mesmo a palavra “moda” que aqui aparece na fala do Custódio.

3) Sátira. Em Esaú e Jacó, embora o livro não esteja infestado do tom satírico e irônico como os anteriores, um bom exemplo é o Batista, político frustrado e sempre dirigido pela esposa, D. Cláudia. Outro bom exemplo é aquele “irmão das almas” que aparece logo no início do livro e acaba ficando milionário, como ressurge no final, inclusive pleiteando Flora em casamento. Quando esta morre, é expressivo o tom irônico com que Machado de Assis descreve o que passou pela mente do Nóbrega, o ex-irmão das almas, como se vê no Cap. CVIII:

“Não vou ao ponto de afirmar que teve prazer com a morte de Flora, só por havê-lo feito acertar na notícia da doença, estando ela perfeitamente sã. Mas que ninguém fosse seu marido, foi uma espécie de consolação. Houve mais: supondo que ela o tivesse aceitado e casassem, pensava agora no esplêndido enterro que lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavalos e as suas plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, à força de compor, cuidava feitas. Depois o túmulo, mármore, letras de ouro...”

Satírico igualmente é o Cap. IV, que se intitula de “a missa do coupé”, onde Machado mostra que a missa - a santa missa - vale mais pela presença de algum ricaço do que pela sua intenção de sufragar almas...

4) Moralismo e Reflexões. Outra característica que marca o estilo machadiano é o gosto pelas considerações filosóficas e reflexões morais que vai espalhando ao longo do seu caminho: “o leitor agarra a história e vai até o fim levado pelo escritor que recheia a narrativa de suas contínuas e peculiares reflexões”, observa o crítico Massaud Moisés. No livro, não há melhor exemplo, nesse sentido, do que o Aires, com suas considerações e reflexões que vai reunindo no seu Memorial, como estas que transcrevemos aqui: “Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem agrava”, escreveu ele no Memorial, justificando assim porque “preferia a conversação das mulheres”.

Noutra passagem, é digna de nota uma reflexão que está no capítulo “A Mulher é a desolação do Homem” (LV), onde afirma Machado que “o leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar, os atos e os fatos, até que deduz a verdade que estava, ou parecia estar escondida”.

5) Citações. As citações de autores ou máximas famosas são constantes no estilo de Machado de Assis. Em Esaú e Jacó, entretanto, como ressalta Massaud Moisés, “as citações assumem uma postura diferente, aderem mais, justificam-se mais do que antes, pois acabam sendo o depuramento, pela memória, dum hábito de longa data.”

Logo no início do livro (Cap. III), está uma citação em francês, extraída do Britannicus, de Racine, um dos maiores teatrólogos franceses: “ni cet excès d’honneur, ni cette indignité” (nem tal excesso de honra, nem tal indignidade). No Cap. XV, o próprio título contém uma citação latina extraída de um hino religioso medieval, que é cantado nas missas dos mortos: “teste David cum Sibylla” (diz David, diz a Sibila), o que quer dizer que tanto as profecias religiosas como pagãs chegam ao mesmo fim.

Digna de nota também é aquela citação da llíada e da Odisséia, de Homero, em que vem definida a personalidade de cada um dos gêmeos (Cap. XLV).

6) Referências bíblicas. Segundo o depoimento do crítico Massaud Moisés, “a Bíblia era um dos livros de cabeceira de Machado de Assis”, principalmente no que concerne à linguagem metafórica, largamente utilizada pelo escritor.

Em Esaú e Jacó, são inúmeras as referências bíblicas que poderíamos inserir aqui, desde o próprio título do livro - Esaú e Jacó, que são personagens bíblicas, até os nomes Pedro e Paulo, que evocam os dois apóstolos. Também os nomes Natividade e Perpétua lembram duas santas da igreja católica. Além desses nomes, que podemos considerar bíblicos, anotem-se ainda as referências:

No Cap. III, o escritor fala de dar esmola “como quer o evangelho”, o que pode ser confirmado com São Mateus, VI, 3: “Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita”. No Cap. VI, refere-se a “uma criatura tirada da coxa de Abraão”, o que igualmente está na Bíblia (cf. Gênesis, XVIII, 11), onde se diz que Abraão e Sara têm filho “já velhos e adiantados em idade”.

No Cap. XIV, há outra referência bíblica que, inclusive, explica o título do livro: “Esaú e Jacó brigaram no seio materno”, o que também aconteceu com o Pedro e Paulo do romance. É o que diz a Bíblia (cf. Gênesis, XXVII, 22): “E os filhos lutavam dentro dela (Rebeca)”. Outra referência bíblica está no Cap. XV, onde o doutor Plácido procura explicação espírita para a rivalidade dos dois gêmeos, citando a Bíblia e mostrando que “os dois apóstolos (Pedro e Paulo) brigaram também”, o que é confirmado pela Epístola de São Paulo aos Gálatas, II, 11, onde se diz que São Paulo “resistiu-lhe na cara” (referindo-se a São Pedro).

7) Interferência do autor. “Machado de Assis foi e sempre será um autor que se torna presente na narração, que intervém, que se faz personagem entre os personagens”, diz o crítico Gustavo Corção. Com efeito, é difícil a gente ler um livro de Machado onde ele não procure dialogar com o leitor. Chama-lhe a atenção, orienta, prepara-o para uma notícia, esclarece sua posição, pede-lhe que não interfira na sua narração; enfim, mantém um verdadeiro diálogo com o leitor ao longo da narrativa.

Em Esaú e Jacó, são inúmeras as passagens, nesse sentido. Como exemplo, veja-se este excerto do Cap. XXVII:

“O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo do amor ou dos amores, que é o seu Interesse particular nos livros.”

Aliás, em todo o capítulo, o escritor dialoga com a leitora, censurando-lhe a curiosidade por querer precipitar os fatos.

8) Personagens. Um detalhe interessante a respeito das personagens machadianas é que elas “não fazem nada, não têm emprego, não têm ocupações”: não têm outra ocupação senão o trabalho de serem personagens de Machado de Assis. Nos seus romances, mesmo da primeira fase, todos estão dispensados do trabalho, porque um dos primeiros cuidados do escritor é “distribuir dotes e heranças, para que seus personagens se movam sem o embaraço da condição servil”. Aliás, conforme o depoimento de Gustavo Corção, isto parece refletir alguma coisa do escritor e da época: “Como homem e cidadão, Machado de Assis é um genuíno representante da sociedade liberal burguesa, e há de ser por isto que insensivelmente, inconscientemente, o trabalho não entra na dinâmica de sua ficção”.

Em Esaú e Jacó, todas as personagens são bem postas na vida e não precisam fazer muito esforço para ganhar dinheiro. Aí está o Aires, diplomata aposentado, o Batista, o Santos, e até o “irmão das almas”, que acaba ficando rico, sem mais nem menos, favorecido pela política do “‘encilhamento”.

9) Linguagem apurada. Para o Prof. Massaud Moisés, um dos melhores atrativos da leitura de Esaú e Jacó é a linguagem, que avulta aqui na sua depuração máxima: “A linguagem mostra-se no melhor de suas possibilidades, enxuta de qualquer excesso, simplificada ao máximo, a ponto de ganhar, aqui mais do que noutro romance, qualquer coisa de clássico, graças ao vigor e à naturalidade presentes”.

É meio difícil transcrever passagens nesse sentido, pois todo o livro é um monumento de perfeição lingüística e artística, não só pela depuração do estilo como pela beleza das imagens, como na passagem abaixo do Cap. XCIII:

“Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do espírito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão trêmula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente até que o músculo as lançou de si. No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro. Foi o que ela achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicável”!

Como se vê, nesse excerto, Machado focaliza a temática da dualidade humana em que Paulo era o coração, “no valor e no ímpeto”; Pedro, o espírito, “pela arte e sutileza”: duas partes de um todo, duas metades que se completavam - coração e espírito: corpo e alma.

ESTRUTURA DE ESAÚ E JACÓ

1) Ação. O núcleo central do romance gira em torno da rivalidade entre os dois gêmeos, sendo de fundamental importância aqui também a presença de Flora, que existe porque os gêmeos existem.

Pedro e Paulo, os gêmeos, filhos de Natividade e Santos, nascem sob o signo de uma profecia: seriam rivais na vida, mas estavam fadados à grandeza: “cousas futuras” - como previu a cabocla do Castelo.

Nascem e crescem sob o signo da rivalidade, tal como Esaú e Jacó ou os apóstolos Pedro e Paulo. E por ironia do destino, amam a mesma mulher, Flora, filha do Batista e de D. Cláudia. Flora, a eleita dos dois, que também os ama a ambos, acaba morrendo, como solução para o intrincado impasse. Pedro e Paulo, depois de formados - médico e advogado, respectivamente, chegam às “cousas futuras”: tornam-se deputados.

No romance, é marcante a figura do Conselheiro Aires, pai espiritual dos gêmeos. Sua presença acaba por ofuscar as demais, passando de personagem secundária a principal, “ocupando o centro de toda a narrativa”, como salienta Massaud Moisés.
O drama central do livro é um triângulo, onde os gêmeos assumem posições opostas (PxP) e buscam a mesma mulher (Flora), que tenta uni-los, (P=P) assentada no seu trono etéreo, inatingível. Entre eles se põe o Aires, que ocupa o centro do triângulo e do livro, como guia e pai espiritual dos três.

2) Lugar. A história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, com diversas referências a localidades ainda hoje existentes, como o Morro do Castelo (hoje Esplanada do Castelo), Botafogo, Andaraí e outras.
Mais no fim do romance, a ação se desloca, durante algum tempo, para Petrópolis.

3) Tempo. Embora Machado seja mestre no tempo psicológico, aqui a seqüência dos fatos se revela essencialmente cronológica; inicia-se com a previsão da cabocla do Castelo, em 1871, indo até os primeiros anos da República (1889). Muitos fatos políticos que se situam nesse espaço de tempo merecem referências, como é o caso da Proclamação da República, que ocupa mais de dois capítulos do livro.

4) Personagens. Com exceção do Conselheiro Aires, todas as personagens de Esaú e Jacó são fracas e estão muito longe da complexidade humana das grandes personagens machadianas. Todas elas, com exceção do Aires, podem ser classificadas como planas, dada a fragilidade que encerram.

A seguir, procuraremos apresentá-las para que se tenha uma idéia mais precisa do perfil de cada uma.

a) Aires. Como já dissemos, o Conselheiro Aires acaba ocupando o centro de toda a narrativa, dada a sua importância no romance como guia espiritual dos meninos. Era estimado e respeitado pela sua conduta ímpar, pela sua hombridade, experiência e dignidade. O título que ostenta - conselheiro - é mais um rótulo feliz de seu papel ao pé daqueles com quem convive do que uma simples referência à glória diplomática. Como observa Massaud Moisés, “é um homem de nervos, sangue, cheio de humanidade, de contradição por isso mesmo, dono duma vitalidade incomum à idade e, simultaneamente, duma melancólica e conformista visão da existência”, no que lembra o próprio Machado de Assis.

Em suma, “Aires é a crença no homem e no seu destino terreno” e revela na obra um gosto pela vida que encanta pela alta dose de sinceridade e pela concepção estóica e sábia da existência.

Para outros detalhes do personagem, leia-se o capítulo XII, onde é apresentado ao leitor.

b) Pedro e Paulo. Pedro e Paulo são os gêmeos que dão nome ao livro (Esaú e Jacó). Caracteriza-os uma rivalidade que remonta ao ventre materno, quando já brigavam.

Não constituem individualidades autônomas, não passando de símbolos da dualidade do ser humano, na sua natureza complexa e intrincada, que só uma Flora pode ver e “explicar”: “No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro”. E que são o “coração” e o “espírito” senão dualidades do mesmo ser? Era certamente por isso que Flora não os distinguia, chamando Paulo de Pedro e vice-versa:

Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo”, como se vê no Cap. XXXV.

Mas a dupla Pedro-Paulo é não só símbolo da dualidade do ser humano como também um meio de Machado pôr a vivo a situação política dos fins do século XIX, em que igualmente está implícita a ambigüidade humana: Pedro era monarquista (conservador), Paulo republicano (liberal): “A razão parece-me ser que o espírito de inquietação está em Paulo, e o de conservação em Pedro”.

Segundo a caracterização do Aires, ainda dentro dessa linha de oposições, o perfil de Pedro estava no início da Odisséia, de Homero:

“- Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa llion...”

O de Paulo no começo da Ilíada:

“- Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à estância de Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães...”

Quer dizer, Pedro era astuto como Ulisses; Paulo, colérico como Aquiles.

Enfim, como ressalta o crítico Affonso Romano, “a narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições”, em que Pedro e Paulo estão como “a dualidade básica do livro”.

E assim termina o livro: os gêmeos, agora deputados - “eleitos em oposição um ao outro” - continuavam rivalizando pela vida: eles eram “os mesmos, desde o útero” - assevera o Aires. Assim é o homem, desde a criação, feito à imagem e semelhança de Deus...

c) Flora. É uma personagem que atravessa a sua curta existência sem perturbar ninguém, ofuscando-se no ocaso da vida sem nenhuma manifestação de natureza ruidosa. “Flora toca-nos, comove-nos até, mas desaparece mansamente do romance como desaparece mansamente de nossa memória sem deixar maior rasto impressivo, como deixa Capitu para sempre e sempre”.

Flora não é uma personagem de carne e osso, como o é Sofia ou Capitu. É antes uma idéia poética, um ideal de juventude do que propriamente uma personagem. “Por pouco é uma heroína romântica, não fosse haver ao todo de sua personalidade um grão de mistério para além dos problemas de ordem amorosa”: vive de leve, morre de leve, sem perturbar ninguém com sua presença, como se não tivesse direito à vida, ou se sua presença fosse o motivo da discórdia entre os dois irmãos, que ela confunde numa só pessoa.

Enfim, como a vê o Aires, Flora é uma criatura inexplicável: “acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita...”

d) Batista - D. Cláudia. São os pais de Flora. D. Cláudia é o retrato da mulher forte, que subjuga o marido fraco. Em muitas partes, “D. Cláudia sobe como personagem, ainda que desça como criatura, pela estreiteza de seus desígnios egoísticos.” A fraqueza do Batista e a fortaleza da mulher podem ser vistas no Cap. XLVII, onde Machado coloca a mulher como sinônimo do diabo. O Batista é o tipo do político que quer subir, mas é fraco; D. Cláudia a mulher ambiciosa que quer tudo para o marido, porque serão delas os privilégios e regalias do sucesso e das glórias dele.

e) Natividade - Santos. São os pais dos gêmeos. Ela, esposa dedicada e mãe extremada, que não hesita em se expor à opinião pública em favor dos filhos, como no caso da consulta à cabocla do Castelo, aonde foi juntamente com a irmã, Perpétua: “tinha fé, mas tinha também vexame da opinião”. Ele, comerciante bem sucedido e banqueiro de grande respeito na praça, como toda personagem machadiana. Daí até o baronato é um pulo: “...no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o titulo de Barão de Santos.”

f) Nóbrega. É o “irmão das almas”, que aparece no inicio do livro tirando esmola “para a missa das almas”. Depois fica rico sem fazer muito esforço, beneficiado que foi pela esmola “graúda” de Natividade (como ocorre no início do romance) e pela política do “encilhamento”, famosa na história do Brasil. Foi um dos pretendentes de Flora e representa uma das inúmeras caricaturas machadianas.

g) Plácido. É “doutor em matérias escusas e complexas”, que procura explicar a rivalidade dos gêmeos. Morre desenvolvendo a teoria da “correspondência das letras vogais com os sentidos do homem”.
h) Perpétua. Irmã de Natividade e, portanto, tia dos gêmeos. É a responsável pelos nomes dos meninos, que, segundo Machado, os tirou do Credo, “estando à missa”, o que constitui um “cochilo” machadiano, pois, no Credo, não há referência aos apóstolos Pedro e Paulo. Certamente quis dizer no “Confiteor”, onde os dois apóstolos estão presentes. Afinal, até o bom Homero “cochilou”: “Aliquando bonus dormitat Homerus...”

i) Rita. É a mana do Aires, com quem Flora vai passar uma temporada, em cuja casa acaba morrendo. Era viúva e se vangloriava de “ter cortado os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos”.

ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

Embora Esaú e Jacó apresente a juventude de Flora e dos gêmeos, além de outros, bem como a idade provecta do Aires, marcada pela serenidade e sabedoria, temas que podem ser estudados no livro, o núcleo principal do romance é a dualidade do ser humano.

Ao abordá-lo, Machado de Assis faz um retrato do momento político brasileiro, em que o Brasil passa de Império a República, mudança que tem um tratamento irônico no livro.

1) Dualidade do ser humano. É o que está explicito no próprio título do livro: Esaú e Jacó, figuras bíblicas que rotulam o romance, filhos de lsaac e Rebeca, que se caracterizaram pela rivalidade. No romance, os irmãos têm nome de Pedro e Paulo, o que evoca os dois apóstolos, também rivais, segundo a explicação do velho Plácido.

Pedro e Paulo, como já ressaltamos “não são individualidades autônomas”, não são pessoas físicas, mas símbolos, representação duma dualidade radical no homem, desde a criação, como faz sugerir a expressão “desde o útero” e a “flor eterna” do Aires, no final do romance: o homem nasceu assim, é assim, e será eternamente assim.

O drama, que constitui o caso psicológico e humano abordado no romance, resulta de serem os gêmeos dois e não um. Quer dizer, os dois gênios (Pedro e Paulo) que deveriam nascer em um, nascem em dois. Os dois aspectos que deviam estar numa só pessoa, como é normal, brotam em duas.

Machado poderia muito bem pegar uma só pessoa e analisar-­lhe essa complexidade dual. Não o fez. Preferiu isolar os dois componentes básicos do ser humano: coração (Paulo) e espírito (Pedro), para usar a nomenclatura de Flora. Isolados em dois, seria mais fácil a dissecação do ser humano, a análise da complexidade antitética do homem.

É isso que Machado quer insinuar: todos nós temos dois gênios (=gêmeos) dentro de nós. Com outras palavras: todos nós temos um Pedro (espírito) e um Paulo (coração). Ora somos inquietos, como Paulo, ora dissimulados, como Pedro; ora republicanos (Paulo), ora conservadores (Pedro).

Por isso mesmo é que Flora os confundia numa só pessoa: Pedro era o lado que faltava em Paulo, e Paulo era o lado que faltava em Pedro; um completava o outro, porque cada um deles não era uma pessoa completa: “Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo”. Também nesse sentido está aquele desenho de Flora, “em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais”, que o Aires identificou com os gêmeos, observando que “as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido”.

Nesse sentido, outra passagem ainda que merece destaque é a cena da morte de Flora, quando os gêmeos “queriam entrar ambos” no quarto, e Flora tem esta expressiva pergunta que é tomada como delírio da moça:

“- Ambos quais? perguntou Flora.”

Mas o Aires, que conhece e sabe tudo, “rejeitou o delírio”: os gêmeos eram uma só pessoa e, portanto, não podiam ser “ambos”.

Enfim, assim termina o romance: os dois gêmeos deputados com prenúncio de que seriam maiores ainda - Presidente da República, certamente. O pior é que “a presidência da República não podia ser para dous”, e eles eram um em dois, criados à imagem e semelhança de Deus, que é um em três...

2) Momento político brasileiro. A narrativa machadiana vem entrecortada de fatos políticos da história do Brasil: a abolição da escravatura, em 1888, vem aí mencionada opacamente, mas servindo para Paulo tecer considerações nitidamente de sentido republicano “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A “emancipação do branco” seria a República, o que “era uma ameaça ao imperador e ao império”, conforme pressente Natividade.

Chega rápida e mansamente a República, da noite para o dia (“Noite de 14” e “Manhã de 15”), o que Machado vai ironizar com a “tabuleta do Custódio”, que caía aos pedaços com a “madeira rachada e comida de bichos”. Era então a “Confeitaria do Império”. Era preciso uma reforma, e o Custódio, embora a contragosto, envia-a ao pintor. Nem bem este tinha acabado a sua obra (estava no “d”), proclama-se a República, sem ao menos avisarem ao pobre homem... Custódio estava desesperado. Em vão o Aires procura consolá-lo, observando que nem tudo estava perdido. Poderia perfeitamente trocar de nome. O pintor parara no “d” (“Confeitaria d”). Era fácil acrescentar “República” (“Confeitaria da República”), ao que o Custódio responde:

Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro”.

Mas como insinua o Aires, agora junto ao Santos, “nada se mudaria; o regime, sim era possível, mas também se muda de roupa sem mudar de pele (...); tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

Fonte:
Hélio Consolaro. Por Trás das Letras.

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 4


3 — O grupo se justapõe à comunidade

A partir dessa etapa preliminar, em que os estudantes se articulam e adquirem consciência do seu estado, forma-se o que se poderia chamar a sua sociabilidade específica. Mesmo antes de 1840 eles já aparecem como grupo diferenciado na pequena cidade de então (doze a quinze mil habitantes); a partir mais ou menos daquele ano, firma-se nitidamente o processo de elaboração de uma expressão própria desse grupo. Imaginemos o estado de coisas àquela altura na capital sossegada e provinciana, que um acadêmico irreverente definia assim: "Depois, o povo paulista tem o mesmo tipo: é monótono por excelência. Chilenas, banguês, burros, padres, capas, mantilhas, lama, caipiras (machos e fêmeas) eis o que encontrava Genesco". Os padrões sociais previam o comportamento de sitiantes, proprietários, comerciantes, advogados, magistrados, funcionários, deputados — isto é, daquilo que os rapazes seriam depois do curso, depois de casados, compadres, pais de família, liberais ou conservadores, almoçando às oito, jantando às três, ceando às sete, dormindo às nove. Mas que padrões se ajustariam ao comportamento de dezenas e logo centenas de moços de gravata lavada, ocupados em atividades tão fora do esquadro? No flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos.

Na idade em que estavam, de passagem da adolescência à maturidade, quase todos longe das famílias, socialmente colocados aquém da vida prática, nutridos de idéias e princípios diferentes dos que norteavam os paulistanos, é natural que desenvolvessem tipos excepcionais de comportamento. Antes, tinham sido meninos de família, como os outros; depois, seriam letrados, políticos e proprietários, como os outros. No breve curso da Academia, porém, eram algo diferente. Tanto mais diferentes, quanto os haviam concentrado na pequena e pacata São Paulo, que não possuía estrutura social constituída de modo a englobá-los.

Desse caráter de exceção nutriu-se a sua sociabilidade peculiar, definida por determinados tipos de comportamento, determinada consciência corporativa, e, finalmente, uma expressão intelectual própria.

A sua localização histórica é reconhecível pelo apogeu das manifestações características, que podemos delimitar, de um lado, pela fundação da Sociedade Epicuréia (1845); de outro, pela estadia de Castro Alves (1868). A partir de 1870 a convivência acadêmica se vai alterando. O crescimento rápido da cidade, a diferenciação crescente das funções, modificaram pouco a pouco o sistema de relações entre os dois grupos — o de estudantes e a comunidade. Aquele foi perdendo o relevo próprio, encontrando vias cada vez mais numerosas de conexão com esta, dissolvendo-se na vida comum. Em consequência, perdeu a sua gloriosa exceção, embora não a sua importância.

Na fase que nos interessa, portanto, o "corpo acadêmico" se define sociologicamente como um segmento diferenciado na estrutura da cidade, à qual por enquanto se justapõe, sem propriamente incorporar-se, caracterizando-se pela formação de uma consciência grupal própria. A boêmia e a literatura constituem a manifestação mais tangível desta, configurando o tipo clássico do estudante paulistano, exprimindo o seu ethos peculiar. É verdade que sempre houve numerosos rapazes alheios à vida acadêmica, tendendo por isto a integrar-se nos outros agrupamentos da comunidade e aproximando-se dos seus padrões. Eram os que decoravam o compêndio, cortejavam bons partidos, agradavam os figurões — antecipando-se à vida. Mas o fato é que os momentos de crise tornavam patente o elevado grau de coesão estudantil, como foi o caso, em 1843, das assuadas ao presidente Joaquim José Luís de Sousa, quando a prisão de dois rapazes levou grande parte dos colegas a se constituírem prisioneiros em solidariedade. E mais ainda no chamado "conflito dos cadetes" (1854), em que houve um morto e a cidade se pôs em pé de guerra, acabando tudo com a remoção do batalhão do Exército envolvido nas ocorrências. Nessa ocasião, toda a Academia saiu a limpo, a despeito da situação dramática, reagindo coesa, exigindo e obtendo desagravos aos seus brios, que reputara ofendidos.

Esta situação criava tensões frequentes entre os estudantes e a comunidade, e não há melhor prova da estrutura dual que era então a de São Paulo do que o seu reconhecimento tácito pela administração, nomeando em 1851 e mantendo por longos anos no cargo de delegado de polícia um lente da Faculdade, o conselheiro Furtado, que nesta qualidade servia de ponte entre a população e o grupo estudantil.

Além das estudantadas e da boêmia, a sociabilidade acadêmica se manifestava de modo mais estruturado nas "repúblicas", agremiações literárias, jornais e revistas.

Há em São Paulo uma reunião original, vivendo louca, caprichosa e interessante, que tem uma crônica importantíssima, mas que varia tanto, como o caráter de seus protagonistas.

Não sabemos que mente de poeta, ou de socialista observador, batizou essa reunião sob o nome simpático de República.

Três ou quatro rapazes reúnem-se, pactuam e vão viver na mesma casa, fazendo em comum as despesas do alimento, do aluguel etc. Eis a República proclamada.

Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários. Pelos fins do decênio de 1840, nelas se reuniam para improvisar bestialógicos em prosa e verso (gênero da mais alta importância, cujas produções se dispersaram infelizmente quase todas) João Cardoso de Menezes, Silveira de Sousa, José Bonifácio, o moço, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães — autor do estupendo soneto:

Eu vi dos pólos o gigante alado…

Das repúblicas a sociabilidade literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática: o Ensaio Filosófico, 1850; o Ateneu Paulistano, 1852; a Associação Culto à Ciência, 1857 (de preparatorianos); o Instituto Acadêmico, 1858; o Clube Literário, o Instituto Científico. Merece lugar à parte a Epicuréia (1845), espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade.

Algumas dessas associações tiveram o seu periódico, destacando-se os famosos Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano e Ensaios Literários do Ateneu Paulistano. E houve jornais, como o Acaiaba (1851), O Guaianá (1856) (cujos nomes indicam a tendência), A Academia (1856), íris (1857).

Concluindo, registremos, do ponto de vista que nos interessa, o caráter complexo e multifuncional do grupo estudantino, no que se refere à literatura.

Note-se, com efeito, que ele constituía um meio estimulante para a produção literária, seja envolvendo o estudante numa atmosfera de exceção, seja integrando-o num sistema de relações em que a atitude literária predominava. Muita gente, que pela vida afora nunca mais ia abrir um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo, contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem maior significado estético.

Mais ainda: era um sistema de intercâmbio literário, garantindo o curso das produções, seja por escrito, seja nas frequentes sessões de grêmio, seja nos recitativos, discursos e debates de república ou tertúlia. Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados — circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias. Lembremos a importância decisiva que teve na formação de José de Alencar o fato de morar na República de um amigo de Francisco Otaviano — cujos livros pôde assim devorar, familiarizando-se com a literatura francesa, sobretudo Balzac. Conheço uma coleção encadernada dos Ensaios literários, em cuja primeira página se lê, numa letrinha corrente e amarelecida: "Foi arranjado com muito custo e por isso é infilável por sua natureza". Nada mais significativo das formas estudantis de circulação bibliográfica…

Além disso, as repúblicas constituíam o público, — elemento básico no funcionamento e na continuidade da literatura. No século passado, os estudantes de São Paulo tiveram este privilégio pouco vulgar no Brasil de então: saída certa para a sua atividade intelectual. Imagine-se o estímulo que decorria, devido à ressonância entre os colegas, espécie de auditório ou conjunto permanente de leitores, cuja opinião formava pedestal para a evidência das obras na comunidade e eventualmente no país.

Finalmente, o corpo estudantil fornecia a crítica, a sistematização das apreciações impressionistas, a tentativa de interpretar o significado das obras. Nas revistas e nos jornaizinhos, censores e apologistas ombreavam com poetas e prosadores. Alguns, da melhor e mais promissora qualidade, como Álvares de Azevedo e Antônio Joaquim de Macedo Soares — este, um embrião de grande crítico, sem dúvida superior aos que então pontificavam. Dedicando grande interesse à análise dos trabalhos de acadêmicos e ex-acadêmicos, ele enriquece as coleções da Revista Mensal, dos Ensaios e, no Rio, da Revista Popular, com um juízo agudo e equilibrado, que é pena tenha sido desviado em seguida para outros setores.

Estas considerações nada significam, todavia, se não lhes juntarmos uma última, a saber, que o Romantismo facilitou a constituição autárquica do corpo acadêmico, fornecendo-lhe uma ideologia adequada, pelas três vias em que se manifestou aqui: nacionalismo indianista, sentimentalismo ultra-romântico, satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos.

Depois da publicação das poesias de Gonçalves Dias, o regato brotado na fonte de Nênia, de Firmino, alargou-se numa torrente imperiosa, a cujo fio se deixaram ir muitos dos jovens. O Acaiaba, redigido por Couto de Magalhães, depois o Guaianá, votaram-se ao Indianismo, que alastrou também pelas outras revistas, em poesia e crítica. Reconhecido por todos como fundador da poesia brasileira, Gonçalves Dias era por alguns considerado o modelo necessário. Dentro dos critérios de nacionalismo estético, imperantes em nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra, do pitoresco nacional, mormente o indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido por muitos como pouco, ou não brasileiro, poeticamente. "Manuel Álvares de Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo", escrevem dois estudantes. "As suas poesias, embelezadas nos perfumes da escola byroniana" — diz outro — "não foram inspiradas ao fogo de nossos lares. As harmonias do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o poeta não se inclinava". Pode-se ver a que ponto chegou a obsessão indianista dos estudantes de então por esta primeira estrofe de O canto de Ibitinga, de L. B. Castilho:

Deixei taba adornada de crânios,
Meus djicks, meu forte cuang,
Deixei inis aonde embalava
Meus amores mais doces que o pang.

E o mocinho explica em notas, complacentemente, que djick é flecha, cuang é arco, inis é rede, pang é mel…

O Indianismo chegou pois a adquirir aspectos característicos na atmosfera acadêmica. Não obstante, era linguagem de maior comunicabilidade, ligando os estudantes ao nacionalismo — que se manifestou em São Paulo de forma ainda mais geral, na celebração constante do Ipiranga, tema localista correspondente ao que foram o Dois de Julho, na Bahia, a Guerra Holandesa, em Pernambuco, a Inconfidência, em Minas.

Igualmente acessível ao gosto comum foi o sentimentalismo ultra-romântico, — a idealização amorosa, a pieguice, a melancolia, vazadas em ritmos melodiosos e fáceis, desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses. Constitui a maioria da produção estudantina do tempo, e bem se compreende a importância que teve para definir a ideologia do grupo, graças à sua insistência no poeta solitário, incompreendido, infeliz, separado por um abismo da comunidade dos homens comuns. Era uma solução para exprimir a posição autárquica do estudante, confirmando-o na sua singularidade, na sua diferença.

Ide, minhas canções, voai aos ermos,
Filhas da solidão, voltai a ela!
[B. Guimarães]

Em face do burguês que lhe esconde a filha e resmunga com as suas tropelias, o moço se define como alma de escol, incompreendida do mundo, fadada à infelicidade. Abundam nas revistas de então as diatribes contra a hipocrisia, a corrupção, a dureza da sociedade — saídas por vezes da pena de algum salteador noturno de galinheiros, ou comparsa de pândegas inconfessáveis. Em face da comunidade estática, o grupo trepidante de moços encontra na atitude romântica uma solução ideal para exprimir a sua diferenciação.

Foi, contudo, o satanismo que constituiu a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo numa atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente. É a típica tonalidade paulistana, difundida por todo o país, contribuição original desta cidade ao Romantismo brasileiro, ligada à pessoa e à obra de Álvares de Azevedo — principalmente o Macário e A noite na taverna. Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e ele encarnam este momento da nossa literatura — sólida trinca de amigos que fascinou muitas gerações de acadêmicos-literatos. E realmente participaram de tal modo dos padrões excepcionais do seu grupo, que não se acomodaram fora dele: Manuel Antônio morreu antes de deixá-lo; Aureliano jamais conseguiu escapar ao seu influxo, a ponto de morrer de bêbado, inadaptado integral à vida; Bernardo deixou a poesia (pelo menos a verdadeira), buscando outro rumo no romance, e na vida foi sempre um inadaptado pouco melhor que o seu infeliz e fraternal amigo.

Com esta corrente, o grupo da Academia atingiu o ponto mais alto da diferenciação e forjou a sua expressão mais característica. Não era possível ir mais longe sem a ruptura total com a sociedade ambiente. E de fato não foi. As "exagerações" da sua poesia não cessam de ser apontadas nos jornaizinhos, e o grupo acadêmico, apesar do fascínio exercido pela lembrança do satanismo, irá pouco a pouco descobrindo conexões que possibilitem a sua integração na comunidade. Varela, que veio pouco depois refazer na vida, e um pouco na poesia, o caminho da famosa tríade, já não passaria de um continuador. Castro Alves dará o sinal da mudança deslocando os rapazes da sua autarquia para a vasta comunhão dos problemas sociais. E o grupo, crescido como floração estranha no flanco da pequena cidade, integrar-se-á lentamente na vida da grande cidade que desponta.

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continua……………
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Trova 169 - Pedro Ornellas (São Paulo)

Fonte:
Imagem obtida em http://edself.blogspot.com

Folclore Popular (Lenda do Preguiçoso)


Diz que era uma vez um homem que era o mais preguiçoso que já se viu debaixo do céu e acima da terra. Ao nascer nem chorou, e se pudesse falar teria dito:

“Choro não. Depois eu choro”.

Também a culpa não era do pobre. Foi o pai que fez pouco caso quando a parteira ralhou com ele: “Não cruze as pernas, moço. Não presta! Atrasa o menino pra nascer e ele pode crescer na preguiça, manhoso”.

E a sina se cumpriu. Cresceu o menino na maior preguiça e fastio. Nada de roça, nada de lida, tanto que um dia o moço se viu sozinho no pequeno sítio da família onde já não se plantava nada. O mato foi crescendo em volta da casa e ele já não tinha o que comer. Vai então que ele chama o vizinho, que era também seu compadre, e pede pra ser enterrado ainda vivo. O outro, no começo, não queria atender ao estranho pedido, mas quando se lembrou de que negar favor e desejo de compadre dá sete anos de azar...

E lá se foi o cortejo. Ia carregado por alguns poucos, nos braços de Josefina, sua rede de estimação. Quando passou diante da casa do fazendeiro mais rico da cidade, este tirou o chapéu, em sinal de respeito, e perguntou:

“Quem é que vai aí? Que Deus o tenha!”

“Deus não tem ainda, não, moço. Tá vivo.”

E quando o fazendeiro soube que era porque não tinha mais o que comer, ofereceu dez sacas de arroz. O preguiçoso levantou a aba do chapéu e ainda da rede cochichou no ouvido do homem:

“Moço, esse seu arroz tá escolhidinho, limpinho e fritinho?”

“Tá não.”

“Então toque o enterro, pessoal.”

Fonte:
Lenda recontada por Giba Pedroza, ilustrada por Orlando. in Revista Nova Escola. Edição Especial. Agosto de 2004.

Ialmar Pio Schneider (Soneto)


Como posso saber se tu me queres
quando me encontro assim... de ti distante ?...
Elejo-te a mais bela das mulheres
e concebo que sejas minha amante.

Quando sonho contigo deslumbrante,
nada me turva a mente e se tiveres
um pensamento alegre, não obstante
o verdadeiro amor não mais esperes...

Lembra-te do poeta que te quis
no decorrer da tua mocidade,
a quem nada ofertaste, mas apenas

fizeste com que fosse outro infeliz,
perdido pelos antros da cidade,
maldizendo das lástimas terrenas...

Canoas - RS, 17 de outubro de 2000

Fonte:
O Autor

Vicência Jaguaribe (Carolina Trovão, seu colar de corais e o raiozinho de sol)


Colar de Carolina
Com seu colar de coral,Carolina corre por entre as colunas da colina.
O colar de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cordo colar de Carolina, põe coroas de coral
nas colunas da colina.
(Cecília Meireles)


- Carolina, corra aqui, me ajude com esta bacia!

E a Carolina acionava as asinhas de seus pés, feito Hermes, o mensageiro dos deuses, e voava para ajudar a mamãe. A bacia estava cheia de roupa lavada para estender no quintal.

- Carolina, onde estão os meus óculos? Preciso ler o jornal e não os encontro!

E a Carolina abria bem seus olhos de lince e achava os óculos do vovô, que fazia um ar de felicidade ao abrir o jornal.

- Carolina! Carolina! Me ajude a pentear os cabelos, que já estou atrasada para a missa!

E a Carolina, com suas mãozinhas de fada, fazia um coque no cabelo da vovó e o prendia com um pente de madrepérola. E a vovó ia bonita e feliz rezar pela família.

- Carolina, leve a Silvinha para passear na colina!

E a Carolina punha seu colar de coral e levava a irmãzinha para passear na colina. E a Carolina ficava mais bonita com os corais do colar colorindo seu colo de cal.

A Carolina, segurando na mão da irmãzinha, apostava corrida com a própria sombra, que às vezes se escondia nas colunas da colina.

A Carolina Trovão era assim: em casa era pau para toda obra. Os adultos nunca a deixavam em paz, e a Carolina ajudava todo mundo. E era um tal de gritar, chamando a Carolina – Carolina, isso; Carolina, aquilo; Carolina, aquilo outro!

E a Carolina Trovão não era Trovão só no sobrenome, não! A Carolina parecia ser o resultado de uma descarga elétrica, que a fazia correr em vez de andar; que lhe conservava em alerta todos os sentidos – seus olhos viam mais; seus ouvidos ouviam mais; seu nariz cheirava mais; sua boca sentia mais gosto e suas mãos tinham mais sensibilidade do que... os olhos, os ouvidos, o nariz, a boca e as mãos das outras crianças e também dos adultos.

Mas a Carolina Trovão era, principalmente ruidosa – falava alto, ria alto, cantava alto e não deixava que ninguém ficasse triste ou desconsolado perto dela. E, sempre que podia, gostava de brincar com gente, com bicho, com coisas e, principalmente, com os elementos da natureza.

Naquele dia, na colina, com a Silvinha, ela percebeu que um raiozinho de sol insistia em tocar nos corais de seu colar. Ela, então, resolveu brincar de esconde-esconde de corais com ele.

Primeiro, puxou seus longos e lisos cabelos ruivos para a frente e escondeu os corais do colar. Mas o vento, amigo do raiozinho de sol, mandou uma rajada, que levantou a bela cabeleira da Carolina, deixando à mostra os corais do seu colar. E o raiozinho de sol caiu diretamente sobre eles.

Depois, ela levantou a gola da blusa de modo a fazer a fazenda cobrir os belos corais do colar. Um raio de sol mais forte do que o raiozinho brincador virou-se diretamente para a Carolina. Ela sentiu tanto calor, que o jeito foi abrir os primeiros botões da blusa e deixar à mostra os lindos corais de seu colar. E o raiozinho de sol refletiu diretamente sobre eles.

Por último, ela tentou proteger-se pelas sombras das colunas da colina, mas o sol mudou de posição, e as sombras foram para o outro lado da colina. Ela ficou, assim, cara a cara com o raiozinho de sol, que se lançou todinho sobre os corais de seu belo colar. E as duas meninas – a Carolina e a Silvinha – viram um espetáculo lindo, que elas nunca tinham visto nem no cinema: os reflexos dos corais do colar da Carolina enfeitaram de coroas de coral as colunas da colina.

Fonte:
Era Uma Vez Outra Vez.

Vicência Jaguaribe (Dois Livros Infantis à Venda)

Fonte:
Montagem da imagem por José Feldman

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 3


2 — Um grupo real

Depois desse momento inicial, uma ou outra manifestação literária em São Paulo, ou de paulista — inclusive José Bonifácio, o poeta Américo Elísio — nada trazem de novo para o nosso ponto de vista. Por volta de 1830 é que vamos encontrar uma segunda congregação de homens, valores e idéias, em torno da Revista da Sociedade Filomática, de importância apreciável em nosso Pré-romantismo, como assinalou José Aderaldo Castelo.

Aqui, não se trata de personalidades tão eminentes quanto as dos três anteriores, nem a sua obra escassa possui o mesmo relevo que a deles. Trata-se, porém, de um agrupamento efetivo, não mais virtual, além de exercer sobre os grupos sucessores uma influência direta, como não aconteceu com a dos outros. O seu fator foi a criação da Faculdade de Direito (1827), que desempenharia papel decisivo na literatura em São Paulo.

Num estudo sugestivo, A. Almeida Júnior define com acerto e precisão o verdadeiro caráter da Academia de São Paulo — menos uma escola de juristas do que um ambiente, um meio plasmador da mentalidade das nossas elites do século passado. Bastante deficiente do ponto de vista didático e científico, foi não obstante o ponto de encontro de quantos se interessavam pelas coisas do espírito e da vida pública, vinculando-os numa solidariedade de grupo, fornecendo-lhes elementos para elaborar a sua visão do país, dos homens e do pensamento.

Interessa-nos aqui, justamente, apontar algumas manifestações desse espírito de grupo na literatura; mostrar como a convivência acadêmica propiciou em São Paulo a formação de agrupamentos, caracterizados por idéias estéticas, manifestações literárias e atitudes, dando lugar a expressões originais.

A Sociedade Filomática, fundada em 1833, reuniu alunos e jovens professores, entre os quais Francisco Bernardino Ribeiro, Justiniano José da Rocha, Francisco Pinheiro Guimarães, Antônio Augusto Queiroga, José Salomé Queiroga, nenhum dos quais nascido em São Paulo (eram cariocas os três primeiros, mineiros os dois últimos). Publicaram seis números de uma revista, esboçaram uma atitude bastante ambivalente de reforma anticlássica, promoveram reuniões e representações — agitaram, numa palavra, a pequena cidade de então, estabelecendo nela a literatura como atividade permanente, por meio do seu corpo estudantil. Quanto mais não fosse, este feito bastaria para consagrá-los, a despeito da pobreza quantitativa e qualitativa da sua produção. Há mais, todavia: desse agrupamento de amigos, tomados pelo entusiasmo da construção literária (que foi no Brasil a mola patriótica do Romantismo, a sua motivação consciente), surgiria, como breve fogacho, um poema que iria iluminar a posterior evolução das letras em São Paulo e abrir caminho para uma das suas mais típicas manifestações. O caso foi que em 1837 falecia Francisco Bernardino, aos vinte e três anos, já lente da Faculdade, guia da Filomática, grande esperança do tempo. O moço jurista protegia e orientava nos estudos um conterrâneo, Firmino Rodrigues Silva, já no fim do curso, e que podemos considerar rebento, primeiro produto do mencionado grupo literário. A amizade entre ambos era grande, e o mais moço nutria pelo mentor uma exaltada admiração. Morto este, a dor inspirou-lhe alguns belos poemas (quase os únicos que fez), entre os quais, e sobretudo, a famosa Nênia. Nela, o sentimento de amizade se exprimia de um modo já próximo às tonalidades românticas. Ao lamento se incorpora uma figura simbólica de índia — alegoria do Rio de Janeiro — que formula, pela primeira vez no Brasil, certos torneios indianistas, como seriam desenvolvidos na obra de Gonçalves Dias:

Tupá, Tupá, oh numen de meus pais!

Álvares de Azevedo, José de Alencar, Paulo do Vale, Sílvio Romero, Paranapiacaba — todos consideram-na o início da "escola brasileira". Nela se entronca o Indianismo inicial, em São Paulo, que em seguida recebeu o influxo decisivo e dominador de Gonçalves Dias. Em 1844, três anos antes dos Primeiros cantos, temos aqui CÂNTICO DO TUPÍ, IMPRECAÇÃO DO ÍNDIO, PRISIONEIRO ÍNDIO, do futuro barão de Paranapiacaba (natural de Santos), prefigurando o tom gonçalvino. Poetas menores da Faculdade de Direito ligaram-se à mesma tradição, como Antônio Lopes de Oliveira Araújo, autor do belo GEMIDO DO ÍNDIO (1850).

Quando a obra do maranhense dominou o meio literário, dando a impressão de que, afinal, havia poesia brasileira, o terreno já estava preparado em São Paulo, graças a Firmino. Também o ambiente criado pela Filomática não se dissolveria mais, e, extremamente receptivo, iria ficando daí por diante cada vez mais denso, — associações sucedendo a associações, revistas a revistas, até criar aquela saturação rompida pelo advento das correntes parnasianas e naturalistas.
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Encontro com Eunice Arruda dia 21 de agosto

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Francisco Miguel de Moura (Sonetos Escolhidos)


QUERENÇAS

Quero ter a vaidade dos caminhos:
dão passagem mas pouco dão abrigo.
Quero ter o orgulho do tufão,
Quero ter a tristeza do jazigo.

Quero sentir da tarde a lassidão
e a solidão da noite no deserto,
das pobrezinhas flores – o perfume,
como as nuvens – ficar no céu aberto.

Quero ter emoções de amor secreto,
sentir como se sente uma paixão,
pra cantar glórias e chorar amores.

Quero viver do ideal concreto,
quero arrancar de mim o coração,
incapaz de conter todas as dores.

SENSUAL ALICE

Foi na queda da minha meninice,
desaguando na minha juventude,
que me veio à cabeça esta virtude
de te gravar no coração, Alice.

Tu brincavas na areia, ondas salgadas
vinham quebrar-se nos teus pés sem pejo.
Aproveitar meu prematuro ensejo
seria um céu. Perdi nossas pegadas.

Sonho as curvas da praia, as curvas tuas
como o seio nascente que guardavas...
De tantas coisas desejei só duas.

Na noite, as mãos levíssimas de sondas...
E entre séria e risonha te afastavas,
levada docemente pelas ondas.

O QUE É A SAUDADE

Impossível saber o que é a saudade...
Uma palavra? A cor de uma tristeza?
Ou uma felicidade sem certeza
que em nós se instala como eternidade?

O que passou, passou, não é verdade?
Ou nos ficou do tempo a chama acesa?
Saudade, um não-sei-quê que traz leveza?
Ou apenas enganos, leviandade?

Está no corpo inteiro ou está na alma?
E se está, por que não nos traz a calma?
Por que nos mata assim, tão devagar?

Saudade, o teu passado é tão presente,
és uma dor que chega de repente
e que parece nunca vai passar.

O TEMPO EXISTE

Existe um tempo que sequer sentimos,
existe um tempo que sequer pensou-se,
existe um tempo que o tempo não trouxe,
existe um tempo que sequer medimos.

Existe mais: um tempo em que sorrimos,
diferente do tempo em que chorou-se,
e um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!

Existe um tempo pior do que ruim
e um tempo amado e um tempo de canção,
existe um tempo de pensar que é o fim.

Tempo é o que bate em nosso coração:
um tempo acumulado em tempo-sim,
e um tempo esvaziado em tempo-não.

O TEMPO SEMPRE VAI

O tempo sempre vai, tempo não volta,
pois do futuro faz sua grande meta.
Caminha sem volteios como atleta,
não anda devagar nem sob escolta.

Veja o tempo da moça, ou do poeta:
Precisa sempre da cabeça solta...
Mas se em dado momento se revolta,
não volta atrás, na linha se completa.

Se o tempo humano desse para trás
seria um desmantelo em tudo mais,
a matéria em fumaça tornar-se-ia.

E, loucos, os filósofos e os poetas
trocariam as curvas pelas retas,
e nesse passo a mundo acabaria.

Fonte:
http://franciscomigueldemoura.blogspot.com/search/label/poesia

Francisco Miguel de Moura (1933)



Nasceu em Francisco Santos (outrora “Jenipapeiro”, município de Picos, sertão do Piauí), aos 16 de junho de 1933.

Estudos primários com seu pai; ginasial e contabilidade, em Picos, onde contraiu matrimônio com D. Maria Mécia Morais Moura. Naquela cidade nasceram os 2 primeiros filhos: Franklin e Fulton; os outros, Laudemiro e Francisco Jr. nasceram na Bahia e Fritz e Mécia, em Teresina.

Formado em Letras pela Universidade Federal do Piauí e pós-graduado na Universidade Federal da Bahia. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Radialista, professor de língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa, atividades que não mais exerce.

Hoje se dedica exclusivamente a ler e escrever e brincar com os netos, que ao todo são dez, na cidade que elegeu para sempre: Teresina.

Prêmios:

*Crítica: Dir.Acadêmico da FAFI -Teresina 1971, Academia de Uruguaiana-RS, 1972
*Poesias: Academia Piauiense de Letras, 1983; Academia Mineira de Letras, B.Horizonte - MG, 2003; Revista "Poesia para Todos", Rio - RJ, 2000; Concurso Nacional de Poesia, S. Paulo, 2000
*Soneto: Editora Alba, Varginha - MG, 2000
*Epitáfios: Edições Minas, Concurso Nacional de Poesia, Juiz de Fora, 1994 *Trovas: Centro de Cultura, Mogi das Cruzes - SP, 1972 *Crônicas: FENAB, Brasília-DF, 1983; Satélite Esporte Clube de São Paulo,1993
*Contos: Secretaria de Cultura do Piauí, 1984/1987; UBE/Academia Carioca de Letras, 2000
*Romances: Secretaria de Cultura do Piauí, 1986; Fundação Cultural do Piauí, Teresina, 2003
*Artigo: Diário dos Açores,IWA – 2005 - EUA
*Antologia: International Writers and Artists Association, 2006 – EUA

COLABORAÇÕES

Revista Jalons - França ; De Repente, Teresina - Piauí ; Mais Foco - Picos -PI ; "Jornal de Picos" - Piauí ; "O Dia", Teresina -PI ; "Meio Norte", Teresina-PI ; "Diário do Povo", Teresina-PI ; "O Primeiro de Janeiro" Portugal ; "Diário dos Açores", Portugal ; Jornal "Correio do Sul" MG ; Revista Lea, da Espanha ; Clarín, da Espanha ; Em-Revista, de São Paulo ; Cirandinha, de Teresina -PI ; Ficção, do Rio ; Cadernos de Teresina, Piauí ; Presença, Teresina-PI ; LB-Literatura Brasileira, de São Paulo ; Poesia para Todos, do Rio ; Literatura, de Brasília - DF ; Almanque da Parnaíba, de Parnaíba

Obras Publicadas

Areias-poesia (1966)
Linguagem e Comunicação...crítica (1972)
Pedra em Sobressalto-poesia (1974)
Bar Carnaúba-poesia(1979)
A Poesia Social de Castro Alves - crítica (1979)
Universo das Águas-poesia(1979)
Terra História e Literatura-antologia(1980)
Os Estigmas - romance (1984)
Eu e meu amigo Charles Brown-contos(1986)
Quinteto em mi(m)-poesia(1986)
Sonetos da Paixão-poesia (1988)
Um Depoimento Pós-Moderno-crítica (1989)
Assis Brasil -Conversa de Escritor-crítica (1989)
Laços de Poder-romance (1991)
Poemas Ou/tonais-poesia(1991)
Chico Miguel na Academia (parceria)-discursos(1993)
Poemas Traduzidos-poesias (1993)
Ternura - romance (1993)
E a vida se fez crônica-crônica(1996)
Poesia in Completa (1997)
Porque Petrônio não Ganhou o Céu -contos (1999)
Rebelião das Almas - contos (2001)
Vir@gens - poesia (2001)
Literatura do Piauí- história e crítica (2001)
Moura Lima - ensaio -(2002)
Sonetos Escolhidos -poesia (2003)
Miguel Guarani, mestre e violeiro - biografia (2005)
Dom Xicote - romance -(2005)
Poemas escolhidos -Antologia do autor -(2006)
Tempo Contra Tempo(parceria c/ Hardi Filho)- poesia (2007)

Fonte:
http://franciscomigueldemoura.blogspot.com/p/biografia.html

Ialmar Pio Schneider (Brique da Redenção)

Brique da Redenção no Bairro do Bonfim, Porto Alegre/RS
Cada domingo é uma festa para os que têm o privilégio de freqüentá-lo. Pessoas de todas as idades e ideologias passeiam ao largo da avenida, conversando, paquerando, olhando as estantes e perscrutando as mil e uma bugigangas expostas. Tudo tem o seu valor, tudo tem o seu preço. Muitos são os objetos antigos em oferta: móveis, louças, panelas, caçarolas, livros, discos, etc.

Por outro lado, existem também as obras de arte (quadros de pinturas diversas, a óleo), aquarelas, e o artesanato (cuias, estojos, barricas para erva-mate), enfim, apetrechos para o chimarrão.

São tantas coisas, até imprevisíveis ou estapafúrdias, que aparecem para permuta ou venda - moedas antigas, selos velhos, fogareiros, ferros de passar a carvão, vitrolas... Há os colecionadores ávidos de encontrar antiqualhas originais que tanto apreciam.

Surgem também os criadores de cães e gatos, das mais variadas raças, que vendem os filhotes a quem os queira adquirir, e não são poucos os que os compram, pois um animalzinho de estimação sempre faz parte do cotidiano daqueles que os podem manter.

A banca do mel é muito freqüentada, já que a oferta de um produto puro desperta o interesse de quantos apreciam esse manjar saboroso e tão completo. Os que ali chegam recebem uma prova para sentirem sua essência (eucalipto, laranjeira, florada silvestre, etc.).

De repente, um aglomerado de gente: é uma apresentação musical. Alguém cantando na manhã ensolarada; e as frases da canção enchendo o ar - “Felicidade foi-se embora e a saudade ainda mora...”, a evocar Lupicínio Rodrigues, o poeta inesquecível.

Lá mais adiante estão os bugres vendendo seus balaios multicoloridos, eles que são os mais legítimos filhos desta terra brasileira, uma vez que aqui se encontravam quando da chegada dos descobridores lusos e espanhóis. Hoje tão escassos resistem à civilização imposta, sofrivelmente.

Também não é difícil imaginar quantos encontros amorosos ou de amigos que não se viam há tempo, aconteceram aqui, nesses 20 anos! E daqueles quantos não frutificaram?

Os pais que trazem seus filhos a fim de espairecerem, os casais de namorados que desfilam de braços dados, os idosos enfrentando a velhice com resignação, todos parecem seguir seus destinos de maneira salutar na esperança de novos dias.

Certamente que a vida seria mais triste se não houvesse um local tão aprazível para preencher as horas de lazer nas manhãs dos domingos porto-alegrenses.
Eis um simples esboço do Brique da Redenção, decantado em prosa e verso, que já se transformou em uma tradicional referência para nossa altaneira cidade que desperta ao sorriso das águas do Guaíba !

Fonte:
O Autor

A Literatura e as Musas

Pintura de Baldassare Peruzzi
Na mitologia grega, as musas são filhas de Zeus e de Mnemósine, deusa da Memória. Na época romana adquirem atribuições mais precisas.
Clio presidia à História;
Euterpe à Música;
Talia à Comédia;
Melpómene à Tragédia;
Terpsicore à Poesia ligeira e à Dança;
Érato à Lírica coral;
Polímnia à Pantomina;
Urânia à Astronomia, e
Calíope à Epopeia.

O lugar da sua predileção era o monte Hélicon, onde cantavam e dançavam em companhia de Apolo.

LITERATURA

Literatura, desde Aristóteles, a retórica, reflexão geral sobre as estratégias do comunicação, especializou-se em poética, ou codificação dos diferentes gÊneros da escrita, restringindo-se apenas à elocutto, ornamento, arte de dizer, em detrimento da inventio – invenção, procura de argumentos; e dadispositio – disposição, ordenação. Estabeleceu-se uma hierarquia, do estilo nobre (ou sublime) ao estilo baixo (ou trivial) passando pelo medíocre, correspondente às três classes da sociedade – nobres, burgueses, camponeses. Para simplificar, podem caracterizar-se as obras literárias a partir dos pronomes pessoais e dos tempos verbais nelas dominantes.

Ao eu (presente) corresponde o gênero lírico, ao tu o teatro – cômico ou trágico, segundo a natureza dos personagens; ao ele – passado, a epopeia, o texto narrativo. Os teóricos aplicaram-se em definir as regras que convém a cada gênero e a designar cada uma das suas categorias internas – é este, essencialmente, o objeto das “artes poéticas. De modo que se estabelece um pacto, um contrato de leitura, entre o autor, inscrevendo o seu texto num dado conjunto, e o leitor, que sabe precisamente o tipo de emoções que deve esperar, ou a que princípios estéticos se apela sob uma dada etiqueta. Mas qualquer codificação rigorosa acaba por desagradar ao verdadeiro criador, que procura libertar-se dela ou situar-se noutro lugar; do mesmo modo o leitor cansa-se das formas convencionais.

PROSA E POESIA

A poesia distingue-se do discurso lógico e prático, destinado a nomear os objetos reais, , a exprimir as suas relações evidentes, a definir os fins e os meios de ação. Distingue-se da prosa como uma linguagem eurítmica e eufônica, próxima do canto. Mas, sendo também um discurso na medida em que é linguagem, o canto poético tem sempre um peso para a prosa, do mesmo modo que esta é sempre capaz de se elevar para a poesia.

O exame das etimologias permite traçar com mais segurança uma tal linha de demarcação: à prosa (oratio pró – r- sa), discurso que vai “direito” ao seu referente; opõe-se a mensagem essencialmente organizada pelo regresso (vertere, versus), o pôr em correspondência ou em ressonância de unidade de linguagem, no texto poético. Assim, critérios estruturais presidiam à distinção entre um tipo poético e tipos narrativos, descritivos ou argumentados. A versificação já não surge assim a não ser como uma manifestação particular e institucionalizada do princípio mais geral de repetição.

REGRAS POÉTICAS E REGRA SOCIAL

Da Idade Média à época clássica, a poesia aparece frequentemente submetida a uma arte de dizer que tem por objeto a procura do belo medido segundo o rigor da submissão às regras – regra poética, mas também regra social. O poeta é alternadamente o protegido do senhor, do príncipe ou do rei.

O século XVIII, não pensando que as “luzes” possam vir da poesia, manospreza-a. As convulsões políticas e sociais dos finais dos séculos XVIII e XIX suscitam um questionamento radical do homem, que experimenta subitamente uma dívida para com o mundo e consigo próprio: o princípio da unidade - do mundo, do homem, rompe-se; a poesia dá conta disso. Os românticos lançam o primeiro grito de alarme para denunciar as contingências de uma arte, que já não pode satisfazer a expressão da multiplicidade das aparências descobertas. Mas permanecem ainda submetidos à lei do verso, ao regime do género. Situação que se vai modificando nos séculos seguintes.

O ROMANCE

A narrativa romanesca é essencialmente prosaica, se tomarmos o adjetivo na sua dupla acepção: “escrito em prosa” e “anti-idealista”. Mesmo redigido em verso, o romance toca sempre na prosa pela utilização de uma linguagem corrente, de uma linguagem que, sem ser a de toda a gente, é utilizada quotidianamente por algumas classes privilegiadas: na sua origem, o fenómeno narrativo chamado “romance” é grafado numa linguagem românica, meio erudita, meio popular, língua nacional falada e lida por aqueles que querem ser os criadores e os chefes de uma nação. Os factores linguísticos, políticos e sociais que determinam o aparecimento do romance no Ocidente cristão têm os seus homólogos nas terras do Islão, no Japão ou na China. Prosaico é-o também o romance enquanto confronta tantos os seus heróis como os seus leitores com todos os aspectos da existência dos homens, nos planos social, psicológico e moral. Assim, nas suas origens, os romances de cavalaria relatam as aventuras que um herói atravessa para obter o bem pelo qual luta – na maior parte das vezes, o amor de sua dama – e já não os grandes feitos realizados ao serviço de uma causa, como celebram as canções de gesta.

O ROMANCE E A HISTÓRIA

Seja ele o aliado ou a negação do determinismo histórico, o romance é uma ficção de caráter histórico, a qual considera o homem comprometido num futuro e numa história coletiva. O romance de educação que descreve a formação moral e intelectual de um herói, é uma das grandes tradições do romance europeu. Do confronto com a história resulta uma grande variedade de tipos humanos, heróis de romance e representantes da sua época: do ambicioso, ao homem revoltado até ao homem estranho a si próprio. Esta relação com a história e com um futuro aberto traduz-se no plano narrativo. O romance recria as condições de experiência do presente histórico: aumento das percepções do mundo, incertezas e obscuridade do futuro.

O sabor do real faz parte do prazer da leitura de romances, e podemos pensar que o sucesso do romance realista do século XIX tinha igualmente a ver com o apetite de conhecimento de leitores para os quais os romances, publicados em folhetins na imprensa, constituíam a principal abertura ao mundo. Com o impulso das ciências humanas e da história das mentalidades, por um lado, da multiplicação dos meios de informação, por outro, os romancistas do século XX perderam o apanágio desta função de instrução. Reinvestiram nas funções de imaginação, estética e crítica, passando pelo questionamento do romance tradicional – daí o divórcio observado entre “romance de consumo” e “romance de criação”. Mas a leitura de romances é também a entrega ao “romanesco”, terreno de jogo intelectual com as mil e uma convenções através das quais se instaura a ilusão do real. Com isto, o romance surge sempre como o paraíso da leitura e o lugar de emergência de todas as possibilidades.

TEATRO

Já o Teatro surge sempre associado à religião ou em fases da vida social e política não estabilizadas. Essa relação religiosa surge-nos comprovada através de formas rituais, onde rito, liturgia e cerimônia são formas embrionárias de “espetáculos” só compreensíveis no espaço lúdico que todas as sociedades expressam numa simbiose entre o sagrado e o profano. A Poética, de Aristóteles, os tratados hindus, como o Natyastra, de Bharata, ou os princípios expostos por Zeami para o teatro japonês – embora diferenciados temporalmente – são a expressão teórica de uma prática social do teatro na sua estreita articulação com o sentimento religioso, primeiro de pequenas comunidades ou, mais tarde, da cidade como lugar cívico por excelência, de que a polis grega é a expressão mais evidente.

No teatro ocidental o primor da estética aristotélica vai ser dominante. Desde logo porque ela obrigará a repensar a diferença fundamental entre o teatro enquanto gênero literário dramático, por um lado, e, por outro, a sua projeção cênica, representada por atores num palco e dita perante o público. O florescimento da tragédia grega, paradigmaticamente representada pela produção de Esquilo, Sófocles e Eurípedes, irá assumir uma importância decisiva no estabelecimento de uma poética e prática teatrais que determinarão decisivamente os grandes vetores da criação dramática até aos nossos dias.

Fonte:
Colaboração de Carlos Leite Ribeiro, Portal CEN. Extrato do artigo A Casa das Musas

domingo, 15 de agosto de 2010

Trova 168 - Marina Bruna (São Paulo)

Pintura do cigano obtida em http://www.magocigano.blogger.com.br

Antonio Brás Constante (As Três Regras que Aprendi através das Três Regras)


Nossa razão de existir é pautada por coisas concretas, mas escrita pela intangibilidade dos sonhos. Outro dia meu filho mais velho (mas ainda assim tão novo na idade de seus dez anos), resolveu (através da determinação daqueles em que o tempo ainda não maculou as esperanças com as dúvidas e fracassos, que vem com a pretensa experiência que carregamos em nossa fase adulta) que queria ser jogador de futebol.

Até aí nenhuma novidade, já que de cada dez meninos, doze querem ser jogadores de futebol em nosso País das maravilhas. Pena que para esses doze pequenos indivíduos terem sucesso em uma carreira tão disputada, eles terão que se destacar perante outros doze milhões de meninos, para somente assim alcançarem o êxito no mundo da bola e em formato de bola, que não parece dar muita bola para tantas outras coisas importantes.

Quando se quer fortalecer um sonho deve-se utilizar a motivação para que ele brilhe, gere luz própria e passe a servir de foco para o futuro. Pensando em tudo isso resolvi dar alguns conselhos para meu rebento, algo que pudesse inspirá-lo e lhe servir de base para fazê-lo seguir em frente. Fechei os olhos buscando alguma sabedoria “zen transcendental” que pudesse utilizar nesse intento, mas o máximo de pretensos pensamentos orientais que vieram a minha mente foram as lembranças dos comerciais de massas instantâneas tipo miojo.

Somente após comer o tal miojo mentalmente é que pude finalmente desobstruir meu cérebro direcionando ele para os aprendizados de minha eterna e sabia professora, a Vida (ela é a orientadora universal de todos os seres vivos). Já falei dela em alguns de meus textos. Dona vida começa a nos ensinar já a partir do primeiro sopro de nossa existência, e suas aulas seguem até o nosso último e derradeiro suspiro.

Com ela aprendi três importantes regras. A primeira é que devemos ter prazer naquilo que fazemos. Quando acordamos pela manhã, por mais frio e chuvoso que esteja, podemos levantar da cama nos sentindo mal-humorados, chateados, sem vontade de cantar uma bela canção e achando que o dia vai ser péssimo, ou abraçar este mesmo dia como quem abraça um amigo. Sairmos dispostos a melhorar o astral geral. Isso ganha força quando desejamos algo. Por exemplo, se me perguntassem se valeu a pena me expor ao ridículo fazendo um certo filme no Youtube, onde contracenei com meu sobrinho e jogamos farinha, ovos, erva-mate, etc. um no outro (para assistir ao filme, basta procurar por “3D – Hoje é seu aniversário”, meu primeiro filme em padrão 3D), eu responderia que sim. Com certeza SIM. Quando tentamos algo, mesmo que não saia como esperamos, damos mais um empurrão em nossos sonhos.

A segunda regra é sempre buscar aprender algo nas coisas que fazemos, se você entra em um jogo onde é o mais fraco, não desanime, aprenda com os mais fortes, e se você for um dos mais fortes, também não desanime achando a partida uma perda de tempo, ensine e motive os mais fracos. Aprendemos muito quando ensinamos, quando nos doamos.

A terceira e última regra é a de procurarmos sempre trabalhar em prol da equipe onde estamos inseridos (afinal somos seres sociais que vivem em sociedade), somando esforços ao grupo. Seja este um grupo de amigos, um time esportivo, uma empresa, ou nossa própria família. Poder colocar a cabeça tranqüilamente no travesseiro ao final do dia tendo a certeza que fizemos o nosso melhor para aqueles que nos rodeiam não tem preço. É como em um jogo de futebol, você entra ali, e muitas vezes não te passam a bola, não demonstram confiança em você, te deixam de escanteio, mas se você passar a bola, se você inspirar confiança, se você demonstrar que pode ocupar um lugar ali sem prejudicar os outros, ajudando-os a alcançarem seus objetivos. Aos poucos os vínculos vão se fortalecendo e a harmonia vai se estabelecendo em volta de todos.

Provavelmente, nem sempre conseguiremos por em prática as tais regras, mas isso não pode nos impedir de recomeçar a cada amanhecer na esperança de fazer com que aquele único dia se torne um dia único. Enfim, como já dizia Cora Coralina:
"Feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina".

Fonte:
O Autor
Imagem = http://www.your-soul.com

Roberto Pinheiro Acruche (Poemas Avulsos)


CAMINHOS

Caminhos... Caminhos!
Cada um com a sua história,
cada um com um destino!...
Caminhos que levam e trazem;
caminhos cruzados, esquecidos, abandonados;
caminhos que se encontram;
caminhos que se perdem!...
Caminhos do medo, da incerteza e da revolta;
caminhos dos enganos e dos desenganos,
onde durante anos aguardei a sua volta!...
Caminho da insensatez, da vaidade;
pelo qual você foi
deixando de vez
um peito angustiado,
sofrendo de saudade.

QUEM SOU EU

Eu sou um caso,
um ocaso!
Eu sou um ser,
sem saber quem ser!
Eu sou uma esperança,
sem forças!
Eu sou energia,
ora cansada!
Eu sou um velho,
ora criança!
Eu sou um moço,
ora velho!
Eu sou uma luz,
ora apagada!
Eu sou tudo,
não sou nada!

BUSCA

Quisera confessar as tantas coisas que me habitam, tornar visível todos os pressentimentos meus, desafogar-me dos sentimentos imprudentes, descobrir uma serenidade divina e livrar-me do desconhecido que me incomoda.

Cruzei por pontes de todas as estações em busca de um momento que revelasse o que sou, o que me embriaga, me assusta e me satisfaz.

Perdi-me pelos corredores da vida,
Deixei que me levasse de vencida...

Grito por um sorriso e enxugo as lágrimas
dissipando a tormenta das dúvidas.
Amparo-me nos sonhos, nas ilusões
e as minhas esquivas, são extraídas das lembranças que despertam e reconstroem
as adormecidas esperanças.

DEGRADAÇÃO

Uma árvore desfolhada, abandonada,
em cujos galhos não havia um só ninho,
não ouve o cantar feliz de um passarinho,
saudando a natureza dedicada.

Outras árvores, têm melancólico destino!...
Alguém ao cruzar o seu habitar
vem espontaneamente lhe cortar,
derramando ali, o seu desatino.

A floresta minada de desgosto,
atormentada, sob um sol posto,
ao se sentir mortificada
chora o canto triste de um passarinho
que perdeu seu berço, perdeu seu ninho
em outra árvore derrubada.

LABAREDAS

Espero-te!
Meu corpo arde em chamas
muito além do suportável...
A saudade de ti
invade-me com imensurável loucura!
Volte, como sempre:
Poderosa, alucinada, insana...
Quero os teus beijos, teu colo, teu cheiro, teus desejos.
Venha com toda a tua excitação...
em busca do amor...
queimando de paixão.

Fontes:
Colaboração do Autor
Colaboração de Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Roberto Pinheiro Acruche



Delegado da União Brasileira dos Trovadores - São Francisco de Itabapoana-RJ

Membro efetivo da Academia Pedralva Letras e Artes Campos dos Goytacazes-RJ

Autor dos Livros:
-Apontamentos para a História de São Francisco de Itabapoana
-A Minha Terra também faz parte da História do Brasil

Participou da:
-A Verve de Sete Poetas - nºs I,III,IV,VII,VIII

Coordenou a realização dos Jogos Florais de São Francisco de Itabapoana
Edita Mensalmente "Trovas e Poemas"
Autor de dezenas de Trovas,Poemas e Sonetos

Fonte:
UBT Nacional.

José Feldman (Lágrimas de um Coração Sofredor)



Sentado na varanda da casa fico a olhar a rua. Pela mente passaram-se muitos anos felizes da vida.

Os passeios com a minha esposa pelo Jardim da Luz. As tardes que sentavamos juntos no banco da praça e ficavamos a olhar as árvores e trocávamos palavras de amor, e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Lembro-me das noites que ficávamos sentados nas mesas da esquina de um bar no Bom Retiro, onde comiamos porções e tomávamos cervejas, e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

As caminhadas que faziamos pelo Bom Retiro, percorrendo ruas e ruas, e conversavamos e sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Lembro-me da primeira casa que moramos no bairro do Bexiga, uma kitinete, que mal dava para se mexer, mas moravamos os dois e a gata persa. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

A gatinha estava grávida e deu filhotinhos, e ficamos com um todo cinza. Nasceu no dia que o Robert Plant e Jimmy Page se apresentaram no Pacaembu. Foi só alegria. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Trabalhavamos o dia inteiro, mas tinhamos toda a noite a nossa disposição. Riamos, brincavamos, faziamos amigos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Mudamos para uma cidade proxima a São Paulo, depois para Curitiba. A situação estava negra, mas nos viravamos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Novos gatos, uma cachorra. Novos amigos, novos passeios, novos caminhos, mas sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

E assim foi, aos trancos e barrancos, mudando de endereços, de cidades, ora se acertando, ora se desesperando, a vida caminhou e caminhamos em direção a nossos sonhos. E sonhavamos, nos amávamos e namorávamos.

Um dia…apenas eu sonhava, amava e queria namorar. Ela cansou de sonhar, de lutar, de amar e de namorar e foi embora. Só ficou um vazio enorme dentro do peito, um coração fragilizado que sofre por amor, e a noite escura que parece não ter fim.

Nunca mais sonhamos, nem amamos e nem namoramos...