segunda-feira, 4 de julho de 2011

Carlos Drummond de Andrade (Antologia Poética)


O AMOR BATE NA AORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que não amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia.
Joaquim se suicidou e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

DENTADURAS DUPLAS

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica? ... )

Resovin! Helocite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
emgenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
férricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

A MÃO SUJA

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo de casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
não limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

Leon Eliachar (A Outra)


Amâncio tinha outra mulher. Toda a vizinhança sabia, menos ela, Iracema, que era a verdadeira. Chegara a duvidar se a mulher verdadeira é a que é casada, com juiz de paz e tudo direitinho, ou se é a outra, que aparece sem mais nem menos e toma o marido das outras. Sempre fora uma boa esposa, econômica, doméstica, não era dada a extravagâncias — no fim deu nisso que todo mundo dizia. Não sabia até que ponto um homem pode fingir dentro de casa, sem que a mulher perceba. Amâncio continuava, aparentemente, o mesmo homem. Em casa não faltava nada, nem mesmo carinho. Talvez fosse veneno das amigas:

— Deixa de ser boba, você não quer acreditar porque é ingênua. Todo mundo sabe que seu marido não é fiel. Segue até mulher na rua.

Uma amiga mais íntima chegou a dizer frontalmente:

— Não tenho nada com a sua vida, só lhe digo isso porque somos amigas há mais de doze anos. Mas o seu marido tem outra mulher. E digo mais: se você bobear, ele vai trocar você pela outra.

Iracema não queria dar ouvidos. Sempre viveu bem com o marido, não era agora que ia dar trela pras fofoquices dos invejosos. “É despeito de quem fala”, pensava consigo mesma. Mas no íntimo, muito lá no íntimo, não se mostrava assim tão conformada.

— Que é que posso fazer?

Até o porteiro do edifício já olhava pra ela como se ela fosse uma boboca, passada pra trás pelo marido. Talvez até ele estivesse levando algum pra ficar na moita, mas o seu ar zombeteiro, quando ela o cumprimentava, já estava atravessando os limites da sua paciência. Os tormentos não paravam:

— Faz macumba, sua boba.

Ela fez tudo que podia fazer: macumba, prece, cartomante, pitonisa, promessa, nada deu certo. Chegou ao cúmulo de dar trotes pelo telefone e de fazer ameaças com cartas anônimas. Estava se sentindo ridícula ante a certeza dos outros e a sua dúvida. Por mais que quisesse se afastar da idéia de que o marido a traía, os boatos e os cochichos acabaram vencendo e trazendo à tona o seu amor-próprio. Era preciso tomar uma atitude e só tendo provas concretas poderia ter coragem pra falar com o marido.

— Põe um detetive atrás dele. Uma vez aconteceu isso com uma conhecida minha e. . .

Ouviu dezenas de casos, todos semelhantes. Não agüentava mais ouvir as histórias das outras, sempre atribuídas a uma amiga ou uma conhecida. Nunca era com elas mesmas.

— Vivo muito bem com o meu marido, mas se isso que está acontecendo com você fosse comigo, não sei não.

Iracema não resistiu à pressão. Uma tarde, bateu o telefone pra uma agência dessas que resolvem problemas: “Serviço rápido e eficiente, mantendo completo sigilo”. Nem sequer deu o seu nome, inventou um qualquer, o próprio detetive disse que assim era melhor, que a agência não fazia questão, pra inspirar mais confiança.

— Às oito está bom?

— Não, senhor, às oito meu marido está em casa. Prefiro às quatro.

— Qual o endereço, por favor?

— Prefiro num lugar distante da minha casa.

— Compreendo, minha senhora.

— No barzinho Lagoa, que ele nunca passa por lá.

— Combinado, às quatro em ponto. Como é que a senhora vai vestida?

— Bem simples. Uma saia cinza e uma blusa branca, com um broche do lado esquerdo.

— Perfeito. Eu vou de terno cinza.

Iracema foi viva, achou melhor ir toda de verde, pra despistar. Às quatro em ponto, lá estava ela, tomando um guaraná, quando entrou o marido:

— Você aqui, Amâncio?

Ele puxou uma carteirinha do bolso:

— Nunca lhe disse nada, mas nas horas vagas sou detetive particular.

E começou a bronca:

— E você? Que é que está fazendo aqui a esta hora da tarde?

Iracema não teve saída. Voltaram discutindo o caminho todo, ele acusando, ela se defendendo.
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Sobre o autor = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-1922.html
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Conheça-se a si mesmo = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-conhea-se-si-mesmo.html
O homem ao quadrado = http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/leon-eliachar-o-homem-ao-quadrado.html

Fontes:
ELIACHAR, Leon. A mulher em flagrante. Círculo do Livro. Digitalizado, revisado e formatado por Susana Cap
Imagem = http://www.apostilahacker.com.br/

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) II – O Visconde Novo


Em virtude da lembrança da marquesa, a grande novidade daquele dia foi o reaparecimento do Visconde de Sabugosa.

Os leitores destas histórias devem estar lembrados do que aconteceu ao pobre sábio naquele célebre passeio ao País das Fábulas, quando o Pássaro Roca ergueu nos ares o Burro Falante e o Visconde. Os viajantes haviam se abrigado debaixo da imensa ave julgando que fosse um enormíssimo jequitibá de tronco duplo — troncos inconhos. Tudo porque o Pássaro Roca estava imóvel, dormindo de pé! Mas quando a imensa ave acordou e levantou o vôo, lá se foi pelos ares o pobre burro pendurado pelo cabresto, e agarrado ao burro, lá se foi o pobre Visconde.

Na maior das aflições, Pedrinho teve uma boa idéia: correr ao castelo próximo em procura do Barão de Munchausen. Só o barão, o melhor atirador do mundo, poderia com uma bala cortar o cabresto do burro. Pedrinho sabia que o barão já fizera uma coisa assim naquela viagem em que, alcançado pela noite num grande campo de neve, apeou-se para dormir e amarrou o cavalo a um galo de ferro que viu no chão — o único objeto que aparecia no campo de gelo. Na manha seguinte, com grande surpresa sua e de toda gente, acordou na praça pública duma cidadezinha, e erguendo os olhos viu no alto da torre da igreja, atado ao galo de ferro, o seu cavalo de sela! Compreendeu tudo. E que na véspera, quando chegou àquele ponto e parou para dormir, a neve havia coberto totalmente a cidadezinha, só deixando de fora o galo da torre da igreja... E ele então tomou da espingarda, apontou para as rédeas do cavalo pendurado e pum! cortou-as com uma bala. O cavalo caiu sem se machucar. O barão montou e lá seguiu viagem, muito contente da vida.

Ao ver o Burro Falante pendurado pelo cabresto a uma das pernas do Pássaro Roca, Pedrinho lembrou-se dessa história e correu a pedir socorro ao barão, o qual morava num castelo próximo.

O barão veio e com um tiro certeiríssimo resolveu o caso: cortou o cabresto do burro, sem ferir nem a ele nem ao Pássaro Roca. E o pobre burro, sempre com o Visconde a ele agarrado, caiu no mar, donde foi salvo por Pedrinho — mas o Visconde morreu duma vez. Emília encontrou-o lançado à praia pelas ondas, sem cartolinha na cabeça, depenado dos braços e das pernas, salgadinho, todo roído pelos peixes — e guardou aquele toco em sua canastrinha com a idéia de um dia restaurá-lo.

E esse dia afinal chegou, naquele “descanso-de-lagarto” do mês de abril. Emília lá estava no quarto de Tia Nastácia, insistindo com a boa negra.

Tia Nastácia arrenegava, dizia que era o mês do repouso, etc, etc. — mas quando Emília tinha uma coisa na cabeça era pior que sarna. Tanto amolou que a negra, depois de muito resmungo, resolveu acabar com aquilo — e o meio de acabar com aquilo era um só: satisfazer o desejo da boneca.

— Está bom, diabinha, faço, faço. Que remédio? Não sei por quem puxou esse gênio de sarna. A gente está descansando da trabalheira e a malvadinha aparece com as encomendas... Dê cá o toco

Emília entregou-lhe o toco do Visconde. A negra olhou bem para aquilo e riu-se com toda a gengivada vermelha.

— Che, não dá jeito! Isto nem toco é mais — é toco de toco. Melhor botar fora e fazer um Visconde completamente novo, dum sabugo fresco lá do paiol.

— Botar fora!... — repetiu Emília com indignação. — Fique sabendo que isto são os sagrados restos mortais do Visconde. Vou fazer um enterro, como se faz com os defuntos.

Tia Nastácia estava com preguiça de discutir.

— Pois enterre lá o seu defunto enquanto eu faço um Visconde novo — e encaminhou-se para o paiol de milho enquanto a boneca se dirigia para a horta. Por que a horta? Porque no fofo dos canteiros da horta era mais fácil abrir um buraco. E lá no canteiro das alfaces Emília enterrou os restos mortais do Visconde, pensando consigo: “Quem comer salada destas alfaces vai ficar sábio sem saber como nem por quê...”

No paiol, Tia Nastácia debulhou uma bela espiga de milho vermelho para obter um sabugo novo, e teve a luminosa idéia de deixar uma fileira de grãos, de alto a baixo, a fim de servirem de botões. Também teve a idéia de trançar as palhinhas do pescoço em forma de “barba inglesa”, isto é, repartida em duas pontas. E como o sabugo era vermelho, ou ruivo, saiu um Visconde muito diferente do primeiro, que era de sabugo de milho branco.

Depois de arrumá-lo muito bem, com duas compridas pernas, dois belos braços e cartolinha nova na cabeça, foi mostrá-lo aos meninos.

Emília torceu o nariz. “Está falsificado. Não presta.” Mas Pedrinho aprovou: “Está ótimo, embora pareça mais um banqueiro inglês do que um sábio da Grécia”.

— E que nos adianta banqueiro aqui? — observou Narizinho. — Melhor transformá-lo em explorador africano, como aquele Doutor Livingstone de que vovó tanto fala, o tal que andou anos e anos pelo centro da África procurando as origens do Nilo. Basta trocar essa cartola por um chapéu de cortiça com fitinha pendurada e vesti-lo dum fraque de xadrez. Eu tenho um retalho que serve, daquele meu vestido de escocês.

A idéia agradou a Emília. “Sim, serve. Um explorador africano será excelente aqui — para procurar objetos perdidos. Arranjaremos diversas origens para ele procurar.”

E foi desse modo que surgiu no Sítio do Pica-Pau Amarelo aquele grave personagem de fraque de xadrez, botões de milho no peito e chapéu de cortiça com fitinha caída atrás.

Mas o Doutor Livingstone veio ao mundo com um defeito: era sério demais. Não ria, não brincava — sempre pensando, pensando. Tão sério e grave que Tia Nastácia não escondia o medo que tinha dele. Não o tratava como aos demais do sítio. Só lhe dava de “senhor doutor”; e depois que Narizinho lhe disse muito em segredo que o Doutor Livingstone era protestante, a pobre preta não passava perto dele sem fazer um pelo-sinal disfarçado e murmurar baixinho: “Credo!”

— Mas será mesmo protestante, menina?

— É, sim, Nastácia. Tanto que já arranjou a bibliazinha que vive lendo.

A negra derrubou um grande beiço. Depois olhou para suas mãos cheias de calos e disse:

— Este mundo é um mistério!... Quando me lembro que estas mãos já fizeram uma bonequinha falante, e depois o tal “irmão de Pinóquio”, e depois um visconde que sabia tudo e agora acaba de fazer um protestante, até sinto um frio na pacuera. Credo! Deus que me perdoe...

Na primeira semana de sua vida aconteceu com o Doutor Livingstone uma tragédia que muito consternou a todos da casa. Estava ele certa tarde lendo a sua bibliazinha no quintal, quando um frangote veio vindo. O sábio fechou a Bíblia e dirigiu algumas palavras em inglês ao frango, visto como era um frango leghorn, descendente dum galo vindo dos Estados Unidos e que, portanto, devia entender alguma coisa da língua de seus avós. O frango, porém, nada entendeu (ou fingiu que não entendeu); aproximou-se mais e mais, virando a cabecinha como fazem as aves quando descobrem petisco. É que tinha enxergado os lindos “botões” vermelhos do peito do inglês...

— Do you like my buttons? — perguntou com a maior ingenuidade o sabugo, como quem diz: “Está gostando dos meus botões?” Mas em vez de responder e elogiar a beleza daqueles botões, sabem o que o frango fez? Avançou de bicadas contra o pobre sabugo e comeu-lhe cinco botões, um depois do outro! Os berros do Doutor Livingstone atraíram a atenção de Nastácia, que veio correndo com a vassoura e tocou o frango a tempo de salvar o resto dos botões. Como fossem treze, ainda ficaram oito — mas falhados. O maldito frango tinha desfeito a obra-prima de Tia Nastácia...

— Deixa estar, mal-educado! — berrou ela furiosa. — Assim que crescer mais, eu te pego e prego na caçarola — e o senhor doutor aqui há de comer a moela. Desrespeitar desse modo uma criatura de tanta sabedoria, que não faz mal a ninguém e vive quieto no seu canto lendo a sua Bíblia! É ser muito sem compreensão das coisas... Credo! — E Tia Nastácia deu um tapa na boca porque achava inconveniente pronunciar essa palavra perto dum protestante.

Desde esse dia o Doutor Livingstone ganhou um medo horrível às aves. Bastava que uma galinha cacarejasse no terreiro, ou um galo cantasse lá longe, para que o seu coraçãozinho batesse apressado, enquanto, com mãos trêmulas, ele fechava o fraque de xadrez em defesa dos oito botões restantes.

— Vejam — disse um dia Pedrinho. — Este nosso Doutor Livingstone tem cara de não ter medo de leão, nem de rinoceronte, nem de leopardo, nem de nenhuma fera africana. Mas a gente percebe que tem um medo horrível de qualquer ave das que não sejam de rapina. Sendo de rapina, isto é, das que só comem carne, ele não dá importância, nem que seja um monstruoso condor dos Andes. Mas se é ave das que comem milho, ah, o medo dele é como o de vovó com as baratas. Se vê uma galinha, empalidece; e quando um galo canta, o seu coraçãozinho pula dentro do peito como um cabritinho novo...
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Continua … III – As Estrelas
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Juliana Boeira da Ressurreição (A Importância dos Contos de Fadas no Desenvolvimento da Imaginação) Parte II, final


3. Imaginado o que foi imaginado

O maravilhoso dos contos de fadas faz com que aos poucos a magia, o fantástico, o imaginário deixem de ser vistos como pura fantasia para fazer parte da vida diária de cada um, inclusive dos adultos que já se permitem em muitos momentos se transportar para este mundo mágico, onde a vida se torna mais leve e bem menos operativa.

Imaginação s. f. ( lat. imaginatio, imaginationis). 1. Faculdade que permite elaborar ou evocar, no presente imagens e concepções novas, de encontrar soluções originais para problemas. 3. Faculdade de inventar, criar, conceber”. (Dicionário CULTURAL. 1992, p. 604)

As situações reproduzidas no conto maravilhoso acontecem num espaço redigido por leis totalmente diferentes daquelas que dominam nosso mundo cotidiano, embora haja uma preferência muito grande pelos bosques e florestas. Quer dizer, neste espaço, onde dominam as leis do sobrenatural e do imaginário, não existem distâncias e os personagens podem deslocar-se com grande facilidade da terra para o céu e deste para o mar.

Com isso, o conto maravilhoso pode até introduzir a situação inicial com a famosa frase “Era uma vez, num reino muito distante...”; contudo, num mundo imaginário e sobrenatural, o que menos importa é a localização temporal. Tudo acontece de repente e a duração dos acontecimentos não é cronometrada pelas mesmas unidades temporais que vivenciamos. Por exemplo, se o autor diz ‘dia’, ele está se referindo a um momento sideral preciso que altera o dia e a noite. O tempo é apenas uma paisagem da situação vivida pelos personagens.

Num espaço e num tempo assim constituídos, não se poderia esperar que habitassem seres como a gente. Pelo contrário, este é o mundo habitado pelos seres maravilhosos: fadas, magos, bruxas, anões, gigantes, gênios, gnomos, ogros, dragões, duendes e outros seres criados pela natureza. Todos eles convivem com grande naturalidade e nada que lhes ocorre é considerado estranho. Também não conhecem o processo do crescimento biológico. São crianças e adultos, mas não sofrem a ação do tempo, já que este não existe. A velhice ou a juventude faz parte do caráter do personagem.

No espaço sobrenatural não existe tempo real, tudo acontece de repente e justamente, com total arbítrio do acaso. Os personagens existem, mas não foram criados por leis humanas. São, antes, fenômenos naturais. Por isso são seres encantados”. (MACHADO, 1994, p. 43)

Todo conto popular revela uma tendência muito grande para o encantamento: aquelas situações em que ocorrem transformações provocadas por algum tipo de magia, que não são explicadas de modo natural.

Há aquele tipo de história em que o encantamento ocorre em qualquer circunstância, pois o elemento mágico está presente em toda parte. Mas há também, um tipo de conto maravilhoso em que as transformações são privilégios de alguns seres encantados, dotados de poderes sobrenaturais. As narrativas mais significativas deste modelo são as histórias dos contos de fadas. São as histórias que, como o próprio nome diz, se concentram nos poderes mágicos das fadas, dos magos ou de algum outro ser dotado de poderes sobrenaturais.

“Fadas: são os seres que fadam, isto é, orientam ou modificam o destino das pessoas. Fada é um termo originado do latim fatum, que significa destino”. (MACHADO, 1994. p. 44)

Ainda que não se possa localizar no tempo a origem desses seres, a nossa tradição cultural se encarregou de definir as fadas como seres simbólicos, dotados de virtudes positivas e poderes sobrenaturais, concentrados em suas varinhas mágicas. Por isso, elas sempre aparecem nos momentos de grandes conflitos, quando as pessoas pensam que seu destino está tomado por uma fatalidade da qual é impossível fugir. Assim sendo, o conto de fadas torna-se uma manifestação valiosa na representação dos sonhos e dos desejos humanos, os mais profundos e significativos.

A professora com a qual realizei a entrevista diz que “o importante é que o maravilhoso acontece no mundo da magia, do sonho e da fantasia, onde tudo escapa às limitações da vida humana e onde tudo se resolve por meios sobrenaturais”. Foi bastante interessante ouvi-la contando sobre a reação das crianças nos momentos em ela conta as histórias, como trabalha com a entonação da voz e como as crianças reagem às situações vividas pelos personagens. Ela contou que é muito fácil perceber as emoções sentidas pelas crianças através de um olhar, de um sorriso, de um olhar de medo e até mesmo pela torcida de que, no final da história, o bem vença e os problemas se acabem e que sejam felizes.

Durante o relato, ela também contou:

“Tenho observado, no meu fazer pedagógico, satisfação e encantamento de crianças que variam dos 6 aos 10 anos de idade, cada vez que trabalhamos com contos de fadas. Ouvem com atenção, participam, opinam, contam estórias, etc. Através da fantasia, da imaginação, transmite-se à criança, valores que poderão auxiliá-la na sua formação, ajudando-a a superar medos, a enfrentar situações difíceis, enfim encorajando-a para alcançar o equilíbrio”.

Após leituras e comentários com a professora fiquei a pensar neste processo encantador pelo qual passa a nossa imaginação; o escritor, ao escrever, trabalha com sua imaginação para que o leitor venha a imaginar aquilo ele escreveu, e talvez o que o escritor imaginou pode não ter nada a ver com o que o leitor imaginou.

É incrível o quanto a nossa imaginação é livre; ao ouvirmos uma história ou ao lermos um livro, podemos viajar pelo mundo todo, por lugares nunca vistos, imaginando seres e situações nunca vividas antes. Por meio da imaginação podemos resolver nossos problemas, viver nosso presente, planejar nosso futuro e aprimorar nosso passado.

Imagino como é mágica a imaginação das crianças; para elas tudo parece tão real, mesmo no mundo imaginário. Quantas crianças possuem um amigo imaginário, com o qual brincam, conversam, cantam e até mesmo contam histórias imaginadas por elas mesmas. E este se torna um ser “real”, vem a ser uma realidade que vive somente no imaginário da criança. A professora acrescenta “um conto bem narrado ativa e intensifica toda uma série de experiências na criança, pois através da fala, dos gestos, da entonação da voz, o narrador atribui sentido ao que está sendo narrado”.

Comparo a imaginação infantil ao planejamento por meio de sonhos que alguns adultos se permitem passar; a diferença é que, em alguns casos, os sonhos podem se tornar realidade, e isto é o que faz com que a vontade de sonhar continue viva.

4. Hora do Conto na escola

A literatura infantil é algo que me encanta, me interessa; seguidamente converso com meus alunos do Ensino Médio sobre a relação que existe entre eles e as histórias infantis. Hoje percebo o quanto eles gostam de relembrar os momentos da infância e o quanto alguns personagem se tornaram inesquecíveis em sua vida. No entanto, considerei imprescindível compreender como se efetiva esse contato pedagógico do professor com a criança e os contos de fada, até mesmo para compreender mais o que os jovens manifestam de lembranças dessas vivências, e para poder disponibilizar este estudo aos professores que desempenham este papel. Decidi-me, pois, por desenvolver uma pesquisa exploratória, analisando a bibliografia pertinente e conversando com uma professora que atua com a Hora do Conto.

A pesquisa exploratória é vista como o primeiro passo de todo o trabalho científico. Este tipo de pesquisa tem por finalidade proporcionar maiores informações sobre determinado assunto; facilitar a delimitação de uma temática de estudo; definir os objetivos ou formular as hipóteses de uma pesquisa, ou, ainda, descobrir um novo enfoque para o estudo que se pretende realizar. Pode-se dizer que a pesquisa exploratória tem como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições. Através dessa metodologia de pesquisa avalia-se a possibilidade de se desenvolver um estudo inédito e interessante, sobre uma determinada temática. Sendo assim, proporciona maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito. De um modo geral, esta pesquisa constitui um estudo preliminar ou preparatório para outro tipo de pesquisa.

O instrumento de coleta de dados que utilizei foi uma entrevista semi-estrutura, a partir da qual apresento uma análise descritiva.

A Hora do Conto, nesta escola, é realizada uma vez por semana para alunos de pré à 4ª série. É uma atividade do laboratório de aprendizagem que oferece ainda a visita do “carro da leitura” (biblioteca ambulante que visita salas de aula uma vez por semana). Durante a visita do “carro da leitura”, todas as turmas de pré à 4ª série param outras atividades para poder ler, seja contos ou histórias em quadrinhos.

Sempre que possível, a Hora do Conto é realizada de acordo com o projeto que está sendo desenvolvido pelo currículo - contos, histórias, poesias, músicas são apresentados tanto pelas professoras responsáveis pelo Laboratório de Aprendizagem, como também pelos alunos. Algumas vezes, a Hora do Conto é enriquecida com trabalhos em dobradura, colagem, desenho e formação de textos, poesias e dramatizações.

Existe também a preocupação com o desenvolvimento da sociabilidade e desenvoltura dos/as alunos/as para se apresentarem em Horas Cívicas e festas comemorativas na escola, através de pequenas dramatizações de contos infantis, danças, músicas ou declamações de poemas.

Na conversa com a professora entrevistada, ela comentou sobre a importância do maravilhoso dos contos de fadas que concretiza imagens, símbolos, etc. como mediadores de valores eventualmente assimilados pelos ouvintes; esses valores contribuem e influenciam à formação da personalidade da criança.

A capacidade de simbolizar é fundamental para a nossa natureza psíquica e emocional, e é um atributo desejável para um desenvolvimento intelectual pleno, saudável e criativo. A professora acredita que os contos de fadas são a chave para ajudar as pessoas a desembaraçar os mistérios da realidade, e diz que talvez a resposta esteja na linguagem simbólica de que os contos de fadas se revestem, pois está ligada aos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional.

Concordo com a professora entrevistada, quando a mesma diz que “Os contos de fadas têm formas diferentes de expressar idéias, mostrando sentidos profundos e inesperados às crianças e as auxiliam a compreender a sua condição humana e a lidar com os conflitos a ela inerentes”, pois os contos de fadas, de uma forma mágica, têm o poder de mexer com os nossos sentimentos mais íntimos e verdadeiros. Por meio deles as crianças se identificam com as situações vividas pelos personagens como se fosse sua própria vida; de acordo com os acontecimentos no decorrer da história, são perceptíveis as reações das crianças. E esses conflitos, vividos por meio do imaginário, são capazes de auxiliar muito no desenvolvimento emocional e humano das crianças, ajudando-as a entender, de forma mais acessível, os acontecimentos de sua vida real.

Considerações finais

Durante cada leitura que realizei para escrever este artigo mais me encantava e vibrava com cada novas descobertas. Os contos de fadas são enriquecedores e satisfatórios, eles ensinam sobre os problemas interiores dos seres humanos e apresentam soluções em qualquer sociedade. A fantasia ajuda a formar a personalidade e por isso não pode faltar na educação.

Durante os estudos, relembrei momentos de minha própria infância: o medo de alguns personagens, como a bruxa; a ansiedade para saber o que aconteceria com a Cinderela no final da história e qual seria o destino da madrasta malvada e de suas filhas. Foi muito interessante, pois hoje todas estas sensações se transformaram em lembranças encantadoras. Percebo também essas sensações quando meus alunos relatam algumas lembranças da infância: observo as expressões do rosto, do olhar, dos gestos... É impressionante como podemos aprender, criar, sonhar, imaginar por meio de nossas leituras e recordações.

Por isso, saliento a importância dos contos de fadas e da leitura no desenvolvimento da imaginação infantil: os mesmos contribuem muito na formação da personalidade, ajudam as crianças a entenderem um pouco melhor este mundo que as cercam. Se no processo de ensino se desse uma atenção especial ao emocional que existe em cada uma das crianças, este mundo seria bem melhor!

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Ricardo. Literatura infantil: origens, visões da infância e certos traços populares. Disponível em http:// www.ricardoazevedo.com/artigo07.htm. Acessado em 17-07-2005.
BARCO, Frieda Liliana Morales, RÊGO, Zíla Letícia Goulart Pereira, FICHTNER, Marília Papaléu. Era uma vez ... na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001.
BETTLLHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CAGNETI, Sueli de Souza. Livro que te quero livre. Rio de Janeiro: Nordica, 1986.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
DOHME, Vania. A atividade lúdica como mídia educacional.... Disponível em http://www.ueb-df.org.br/artigo0.asp?art=11, acessado em 17/07/2005.
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. – 3.ed.- São Paulo: Saraiva, 2001.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. – 3. Ed.- São Paulo: Atlas, 1991.
MACHADO, Irene A. Literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1994.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1995
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Juliana Boeira da Ressurreição, pós-graduanda do curso de Novas Abordagens em Língua Portuguesa e Literatura da Língua Portuguesa -Faculdade Cenecista de Osório-FACOS/RS Orientadora Profa. Dra. Cristina Maria de Oliveira

Fonte da Imagem = Believe in your dreams

Antonio Manoel Abreu Sardemberg (Poemas de Amor)


AMOR E PAIXÃO

Amor é brisa suave,
é aconchego, é carinho,
vôo cadente da ave
indo em busca do seu ninho.
É bruma leve do mar
em manhã de primavera,
desejo louco de estar
com alguém que se espera.

Volúpia louca é paixão,
mar revolto, tempestade...
É amar sem a razão,
é só loucura e vontade.
Paixão é amor sem juízo,
sem norte, reta ou tino,
errante sem ter destino,
o inferno no paraíso!

Amor é paz, é ternura,
é o frescor da aragem,
a mais cálida coragem,
maior ato de bravura.
É o céu lá nas alturas,
é a mais sublime imagem!

Paixão é inconseqüência,
é demência desmedida,
é o nada, é ausência,
é o fim – a despedida!

Amor é tudo, enfim
é a vida iluminada,
é a afirmação, é o sim,
é o encontro na chegada!

SEU BEIJO


Seu beijo é favo de mel,
a seiva que me alimenta,
é pedacinho do céu,
desejo que me atormenta!

É o fogo mais ardente,
que se pode experimentar,
é sinônimo de querer,
volúpia louca de amar!

Seu beijo é tudo, enfim!
É o querer.
O gostar,
vontade imensa de ter
mas que não posso alcançar!
seu beijo é gotinha dágua,
nas profundezas do mar!

PRESA

Quero ser a sua presa,
Enroscar-me em sua teia
Sem reação ou defesa,
Ser manjar em sua mesa,
Deixar sugar o meu sangue
Até secar minha veia...

Quero ser seu alimento,
Provisão de cada dia,
Ser o seu pão, seu sustento,
E depois do acalento,
Ser sua noite de orgia.

Eu quero ser o seu vinho,
O cálice que inebria.
Ser madrugada, seu dia,
Ser seu parceiro no ninho.

Quero ser a sinfonia
Mais suave e maviosa,
Ser seu verso e sua prosa
Seu delírio e fantasia...

Quero ser a sua rima,
Sua trova e sextilha,
Sua estrada, sua trilha,
Seu fogo ardente, seu clima.

ABRAÇO

Chegou como aragem mansa
Em manhã de primavera...
Era a mais doce quimera,
A mais intensa esperança,
A desejada bonança
Que um homem quer e espera.

No rosto, abria um sorriso,
Um semblante angelical,
Um mundo pleno e total.
Era o próprio paraíso!
Nunca senti nada igual.

Nos seus olhos cor de mel
Trazia a luz que irradia
Lindo toque de magia,
Universo de esplendor
Que eu sempre quis um dia.

Seus braços aconchegantes
Eram buquê de carinho,
O afago de um ninho,
A ternura de amante,
O perfume do jasmim,
Emoção mais fascinante
Que senti dentro de mim.

E, assim, bem de mansinho,
Nossos braços se enroscaram.
E ficamos bem juntinhos
Atados como num laço...
Então eu pude sentir
Minha razão de existir
Nesse terno e doce abraço.

NOITE DE AMOR

Entro em teu quarto com meu pensamento,
Devagarinho pra não te despertar,
E pouco a pouco, em doces movimentos,
Passo em teu corpo todinho tocar!

Sinto o calor que ele me irradia,
Ouço em teu peito o coração pulsar,
Quero que a noite nunca vire dia,
Que o tempo pare, só pra te amar!

Em toques cálidos fico a percorrer,
Todo teu corpo , só para sentir,
A sensação gostosa de te ter!

E já em êxtase eu te quero tanto,
Mais, muito mais, começo a te pedir,
E você me dando todo teu encanto!

VOCÊ

No rosto traz um sorriso
terno, amigo e verdadeiro,
no peito traz um gigante,
que se abre a todo instante
e acolhe um mundo inteiro!

És ternura da mais terna,
és doçura da mais doce,
e se eu poeta fosse,
diria da forma mais Vera:
és outono, primavera,
o mais ardente verão!
És acalento, alegria,
meu sonho de cada dia,
és tudo afinal então!

E neste dia de hoje,
quero te confessar:
se eu fosse o CRIADOR,
dar-te-ia o céu, o mar,
o campo coalhado de flor,
e para arrematar,
dar-te-ia todo amor,
que se possa imaginar!

Fonte:
E-mail enviado pelo poeta
Alma de Poeta

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 263)


Uma Trova Nacional

Ante ao talento me ajoelho...
E o teu talento invulgar,
tanto me serve de espelho
como me serve de altar.
–CLÁUDIO DE CÁPUA/SP–

Uma Trova Potiguar

Em cada conto, que conto,
conto somente o que é meu,
e, dessa conta, eu desconto,
tudo aquilo que for seu.
–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada

2008 - Bandeirantes/PR
Tema: AUDÁCIA - M/E.

Resguarda a paz do rebanho,
dando a mão ao teu vizinho,
que é uma audácia sem tamanho
tentar caminhar sozinho!
–CAROLINA RAMOS/SP–

Uma Trova de Ademar

Quando a lua nasce cheia,
mostra reluzentes brilhos,
como a luz que Deus semeia
nos olhos dos meus três filhos!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Em sofrer minha alma insiste,
mesmo sabendo, também,
que a dor da espera é mais triste
se não se espera ninguém...
–ALONSO ROCHA/PA–

Simplesmente Poesia

–LUIZ GONZAGA FILHO/AL–
Poema do Tempo

Se alguém me perguntar agora
como foi o início de tudo,
responderei: francamente não sei!
Sei que um dia surgiu a vida
e, depois de longo momento,
surgiu o homem
e tudo passou a acontecer.
Hoje, com o homem, as ciências
a serviço do bem e do mal;
hoje, com o homem, as máquinas
a serviço da vida e da morte.
Se me perguntarem agora
o que irá acontecer amanhã.
Responderei: francamente, não sei!
Sei que existirá um Deus, eternamente.

Estrofe do Dia

Quero mostrar-lhe o desenho
Da vida, desde menino,
Um traçado do destino,
Coisas guardadas que eu tenho:
Carrego o peso de um lenho
Que Deus transforma num bem,
E quando a descrença vem,
O Mestre de Nazaré
Me devolve aquela fé
Que às vezes você não tem.
JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

–CONCEIÇÃO ASSIS/MG–
Amor, Amor!...

Amor, amor!... Assim tu me chamavas
Quando em teus braços presa me sentias
Amor, amor!... Baixinho sussurravas
E eu esquecia mágoas, nostalgias...

E de tristeza agora são meus dias...
Já não podes dizer quanto me amavas,
Não te vejo sorrir quando dormias,
Já não repousas onde repousavas...

Mas quando vou à campa onde tu dormes,
Entre ciprestes retos, uniformes,
Onde o silêncio é rei dominador,

Na voz da brisa leve eu ouço ainda
A tua voz, a tua voz tão linda,
A sussurrar baixinho: amor... amor!...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

domingo, 3 de julho de 2011

JB Xavier (Antologia Poética)


NÃO TENTES ME ESQUECER

Não tentes mentir ...não para ti...
E para não te machucares,
Não tentes me esquecer...
Tu não conseguirias....
Por que terias
Que renegar nossos momentos,
As auroras que nos encontraram
Trocando juras de amor...

Terias que relembrar a dor
De nossas partidas,
As alegrias febris dos reencontros...
Terias que ouvir de novo o que nos dissemos...
As promessas,
Os passeios amenos
Pelo parque, os sonhos,
E reviver todos os nossos projetos...

Terias que ouvir de novo os inquietos passarinhos,
Festejando na areia de nossos caminhos,
Revisitar as alamedas de luz
Que um dia brilharam para nós...
E terias que ouvir de novo a voz
Deste amor que em minha alma não cala!
Terias que ouvir tua própria fala
Jurando, assim, tão solenemente,

Que irias me amar eternamente...
Minta para mim, se o desejares,
A mim, que erigi altares
Onde sagrados tabernáculos
Guardavam teu amor, que duraria para sempre,
Mas não mintas a ti mesmo, te iludindo,
Porque jamais poderias sentir a dor
Deste fim de amor, que estou sentindo...!

PARA SEMPRE EM TUA VIDA

Se de ti vieram todos os meus sonhos,
Se te amei para além de todos os limites,
E se te amo ainda,
Por que o Universo te afastou de mim,
E me deixou a assim,
Nesses descaminhos tristonhos,
Onde eternamente espero a vinda
Deste amor que nunca teve fim..?

Se de amor forrei meu caminho,
Se de rosas perfumei nosso leito,
E se de luz pintei nosso universo,
Porque da rosa me restou o espinho
Que me obriga a seguir sem ti, sozinho,
Nesta realidade falsa , a me arrancar do peito
A lágrima que me resta, ou este último verso
Que ofereço a este amor, eivado de carinho?

Ah! Se teu peito latejasse sem ar, como arfa o meu!
Se tu sentisses a vida se esvaindo, como se esvai a minha
Se eu pudesse ser teu rei, como és minha rainha
Se a Verdade cumprisse tudo o que prometeu,
Tu serias minha e eu seria eternamente teu...

Mas, hei de estar em ti, na solidão entristecida
Desta derrota com gosto de vitória dolorida,
Porque enquanto ressoar pela eternidade a tua existência ,
Haverá, de nós, mais que uma simples reticência
Porque estarei, para sempre, na história de tua vida..

TEU BRILHO EM MINHA ALMA

Esse ponto brilhante que habita minha alma,
A natureza última do meu ser,
A tradução mais exata do meu entardecer,
A ficção cuja realidade transcende e acalma,
É o que restou do sol esfuziante,
Do instante
Em que tua luz inundou meu mundo...
E brilhará assim, na eternidade,
Nesse brilho pálido onde permeia uma saudade
A iluminar o dia que se faz noite, num céu moribundo...

LEMBRANÇAS DE TI...

Hoje te visitei, ou foste tu que me visitaste?
Que importa? Mas te vi, e teu toque novamente senti
Roçando em minha pele, os beijos que beijaste,
As lágrimas de alegria das tantas que chorei por ti...

Hoje em júbilo, novamente o sol nasceu sobre o mundo
Com a mensagem de esperança que tanto me sustentou
E o dia nasceu feliz, trazendo a cada segundo
As lembranças de ti, o riso, o canto, a alegria que tanto me sustentou...

Hoje trago o coração em festa, o universo te reverencia ,
O mundo sorri, as nuvens te rendem homenagem,
O vento me entrega teu perfume, e o próprio dia
Renasce orvalhado, na suavidade de sua doce aragem...

Hoje te visitei, ou foste tu que me visitaste?
Que importa? Que importa se esse encontro ainda tem algo de tristonho?
O que importa é que revivi os momentos em que vibraste
Aos meus abraços, ainda que tudo tenha sido um sonho…

A ÚLTIMA ROSA

Oh, rosa delicada, de onde vem
Essa doçura, esse veludo que te cobre,
Se convives entre esporões, nessa tua nobre
Altivez, que te coloca no infinito, e ainda além?

De onde retiras o frescor, a cândida doçura
O pulsante carmim, a oferenda irrestrita?
E se te escondes entre espinhos, como a prata na acantita...
O que te transforma assim, nessa meiga candura?

Vem, perfumada rosa, e ocupa o vazio de minha vida
Vem enfeitar a tristeza e adornar os caminhos
Por onde trilham meus pensamentos, desconsolados e sozinhos,
Vem mostrar-lhes teu ardor e lhes curar a ferida...

Que fazes aí nesse vaso, ainda viçosa e bela,
Ainda me lembrando do dia em que em ti habitavam minhas esperanças
No vermelho dos teus anelos, a me trazer dos lábios dela as lembranças
Neste minúsculo mundo onde rebrilhas, altiva e singela...?

Oh, delicada rosa, se ao menos esses espinhos que te enfeitam
Fossem venenosas garras que ferissem,
E ao ferirem levassem meu coração às sombras, se existissem
Ainda as ninfas que de amor tanto se deleitam...

És a última rosa, o último sinal, o último sonho deste amor distante,
A última fronteira, a última carta, a última amiga que assistiu
Meu último olhar e o último aceno quando ela partiu...
És tu a única testemunha deste último instante...

E aí estás, como minha mais ensandecida dor
Como a mais terna de todas as minhas recordações
Pois foste tu que estiveste entre nossos lábios, quando nossos corações
Beijaram-se, trazendo na luz dos olhares todo o nosso ardor...

Foste meu último presente, onde ofertei a ela todo o meu amor…

ENQUANTO HOUVER UM SONHO

Se não existe o mundo sem ti, que faço aqui,
Ainda habitando o sonho?
Que imaculado céu é esse que tampouco existe
Mas pelo qual procuro ainda a estrela que se perdeu?
Se a ilusão é a mais real das consistências, por que vivo
Nessa imaginada realidade, perseguindo visões
Cavalgando Pégasus, imitiando a Fênix,
Enquanto me ombreio a Sísifo
Em sua eterna tarefa de conseguir o impossível?

E se a realidade em que vivo nada mais é que o sonho perdido,
Porque quase te posso tocar, ainda que hoje sejas apenas uma ilusão?
Por que a luz que me serve de guia nessa eterna escuridão
Flui ainda de teus olhos, e tua voz ainda ecoa,
Como sinos a dobrarem num intangível campanário?

Ó deidades e eternos condenados,
Que indolentes se banham nas águas do Aqueronte,
Deixai-me ao menos que eu me transforme também nessa ilusão,
Para que o sonho possa ser minha realidade,
E eu, assim, repouse finalmente no barco de Caronte,
Para que me conduza a Hades,
Que há de selar meu destino com seu eterno silêncio
Ao qual, há muito, já me condenaste…

Fonte:
JB Xavier

Lurdiana Araújo (Caldeirão Literário do Tocantins)


CÁLICE

Se o amor acabou,
traz-me o cálice
que finda esta vida,
transforma minha alma
nas flores, na lua.

Se o amor acabou,
acabou-se a lida.
Traz-me o cálice
sem despedida.

Esquece as juras
Sob a luz da lua,
esquece que minh’alma
desejava a tua.

Esquece o silêncio
na madrugada fria,
minh’alma partiu,
sem despedida
pra longe da tua.

VIDA

A vida é uma metáfora tão mágica,
Que confunde até o crepúsculo da aurora.
O segredo está em saber acreditar.
O pingo da chuva quando se lança
Do firmamento ao chão,
Não é um suicida,
É um aventureiro
Em busca do mar.

SAUDADE

A saudade é uma flecha doída
Corta o peito, deixa a alma traída,
Nem mesmo as mágicas do tempo
Selam esta ferida.

Tece as rendas do tempo em nossa face
Nos escraviza, nos minimiza, tira da gente
O melhor da vida.

FOGUEIRA

Coração, deixa de besteira,
O amor é apenas uma fogueira
Queima a alma inteira.

Como fogo na lareira
Vai nos queimando como madeira
Nos consumindo a vida inteira.

É uma chama traiçoeira
Quer nos sufocar, apedrejar,
Aniquilar.

Nunca tente pular esta fogueira
Uma ferida corta a carne quer não queira,
E nos aprisiona nesta chama traiçoeira.

É inútil relutar, nem mesmo nossas cinzas,
Conseguem se libertar de alguma maneira.
O amor é apenas uma fogueira, chama traiçoeira.

MEU VÍCIO

Alucinação,
Loucura,
Palavra fria,
Ternura.

Foi se o tempo
Do meu ócio,
Desejar não posso.

Estou aprisionado
No meu vício,
Já quase não existo.

Fraquejante
Eu desisto,
Não da vida,
Do meu vício.

Esta paixão suicida
Que fiz de abrigo
Roubou-me a vida.
–––––––––-

Professora, escritora, poetisa. Nasceu em Filadélfia, Estado do Tocantins. Radicada em Brasília há quinze anos, é formada em Artes/Teatro. Especialista em Arte-Educação e Tecnologias Contemporâneas. Pós-graduada em Arteterapia.

Vencedora do XXIII PRÊMIO INTERNACIONAL DE POESIA NOSSIDE 2007 em Reggio Calábria – Itália.

Livros publicados: Querido Mundo (poesia) 2005. Participou de diversas antologias.

Página pessoal: http://ideiaspoeticas.blogspot.com

Redatora do site Cerrado Poético – www.cerradopoetico.com.br

Zacarias Martins (Tocantins Poético)

Link
POLIVALENTE

Conserto quase tudo
mesmo que às vezes
possa provocar
alguns estragos.

Fazer o quê?
Ninguém é perfeito!

SORRISO ENIGMÁTICO

À noite,
ficava horas a fio
com aquele sorriso maroto,
mergulhada em seus pensamentos.
Jamais se conformou por ser apenas
uma dentadura num copo d´água!

SONHÓDROMO

Não me impeçam de viver o meu sonho.
Também tenho o direito de sonhar,
mesmo que às vezes,
isso incomode muita gente
por causa do barulho.

TÁ CERTO, TÁ CERTO...

É curioso
quando certas pessoas
conseguem a proeza
de terem razão
mesmo quando estão erradas.

SÍNDROME DE CELEBRIDADE

...E de repente descobri
que sou um homem de palco
e não de platéia.

Zacarias Gomes Martins, poeta e jornalista, nasceu em Belém do Pará em 1957 e reside em Gurupi, TO desde 1983. É membro fundador da Academia Tocantinense de Letras e do Conselho Municipal de Cultura.

Livros de poesia: Transas do Coração (1978), O poeta de Belém (1979), Poetar (1980), O Profeta da felicidade (1984), Vox Versus (1986) e Pinga-fogo (2004). Participou de várias antologias.

Blog: www.zacapoeta.zip.net

Fonte:
Antonio Miranda

André Telucazu Kondo (Celeiro da Infância)


Uma das cinco cronicas vencedoras do V Concurso Literário “Cidade de Maringá” (Cronicas Vencedoras) Troféu Laurentino Gomes. Será postada, cada dia, uma das cronicas vencedoras até totalizar as cinco vencedoras.

A estrada que levava à fazenda do meu tio era cercada por eucaliptos. A porteira de madeira, com os braços abertos, me recebia com carinho. Eu ainda era criança quando entrei no celeiro da fazenda pela primeira vez. Na época, havia uma grande coruja branca morando lá, sempre de olhos bem abertos. Era como se ela fosse uma grande avó, só observando as estripulias que meus primos e eu aprontávamos. Fazíamos bagunça, ela piava, nós riamos.

De todas as brincadeiras no celeiro, a mais divertida era com certeza subir a escada do silo e saltar no mar de milho. "Nadávamos" por horas, sem nos importar com nada, sem nos importar com o tempo. Mas, infelizmente, o tempo se importava e passou...

Já adulto, voltei à fazenda. A porteira de madeira era agora de ferro. Os novos tempos exigiam mais segurança, pois a fazenda já havia sido roubada várias vezes. E o celeiro? Desapareceu. Os novos tempos exigiam mais economia, e estocar os grãos ficava mais barato no celeiro da cooperativa local. E as crianças? Cresceram. Os novos tempos exigiam um comportamento mais sério delas.

Bateu uma saudade grande, enquanto eu caminhava pelo local em que um dia o celeiro existiu. Um dos meus primos estava se preparando para casar, minha prima já tinha até filho e o outro primo estava se formando na faculdade. Eu caminhava sozinho pelo vazio de um celeiro que já não existia mais.

Foi então que o vento soprou e me trouxe uma pena branca. Apanhei-a no chão e sorri. Aquela singela pena deu asas à minha saudade. Fechei os olhos e ouvi uma grande coruja branca piar, enquanto meu mundo se acabava em um dourado e imenso mar de milho.

Ao abrir os olhos, eu vi que o celeiro não estava mais lá, simplesmente porque, agora, não era mais o celeiro que guardava a minha infância, mas era eu quem guardava o celeiro, dentro do peito.

Fonte:
AGULHON, Olga e PALMA, Eliana. V Concurso Literário "Cidade de Maringá". 1. ed. Maringá: Academia de Letras de Maringá, 2011.

William Shakespeare (A Tempestade)

A Tempestade (ilustração de Rui de Oliveira)
Havia no mar certa ilha, cujos únicos habitantes eram um velho chamado Próspero e sua linda filha Miranda, a qual chegara ali tão pequenina que não se lembrava de ter visto outro rosto humano a não ser o de seu pai.

Moravam em uma caverna aberta na rocha, dividida em vários compartimentos, a um dos quais Próspero chamava de seu "gabinete". Ali, guardava seus livros, que tratavam principalmente de magia, arte muito em voga entre os eruditos da época. E tais conhecimentos lhe tinham sido de grande utilidade: ao arribar, por um estranho acaso, àquela ilha que fora encantada pela feiticeira Sycorax, morta pouco antes de sua chegada, Próspero logo libertara, graças às suas artes mágicas, uma legião de bons espíritos que a velha bruxa aprisionara no tronco de grandes árvores, por terem se recusado a executar suas perversas ordens. Esses amáveis espíritos ficaram desde então a serviço de Próspero. E Ariel era seu chefe.

Muito vivaz, Ariel não era de índole maldosa, mas se aprazia em atormentar um feio monstro chamado Calibã, a quem odiava por ser filho de sua inimiga Sycorax. Essa estranha e disforme criatura, com aspecto menos humano do que um macaco, fora encontrada no mato pelo velho Próspero. E este, que o levou para casa e lhe ensinou o uso da palavra, foi sempre muito bondoso para com seu protegido, mas a má natureza que Calibã herdara da mãe o impedia de aprender qualquer coisa de bom ou de útil. Aproveitavam-no, pois, como escravo, para carregar lenha e fazer os trabalhos mais pesados; e a Ariel cabia obrigá-lo a desempenhar seus deveres.

Quando Calibã se mostrava preguiçoso e negligenciava o trabalho, Ariel ( que só era visível aos olhos de Próspero ) aproximava-se pé ante pé e beliscava-o, ou o fazia cair de borco em algum banhado. Ou então, tomando a forma de um macaco, punha-se a lhe fazer caretas; depois, mudando subitamente, virava ouriço-cacheiro e metia-se no caminho de Calibã, que ficava a tremer, com medo de que os espinhos do animal lhe picassem os pés descalços. Com estas e outras picardias, Ariel martirizava Calibã toda vez que ele descurava das tarefas de que Próspero o incumbira.

Com tantos espíritos poderosos sujeitos à sua vontade, Próspero podia governar os ventos e as águas. Assim, por ordem sua, eles desencadearam urna tempestade violentíssima. Próspero então mostrou à filha um belo e grande navio, a lutar com as furiosas ondas que ameaçavam tragá-lo, e disse-lhe que estava cheio de seres vivos como eles.

– Ó meu querido pai, se, com tua arte, desencadeaste esta horrível tormenta, tem piedade daquelas pobres criaturas. Olha, o navio já vai fazer-se em pedaços. Coitados! Todos morrerão. Eu, se pudesse, faria a terra sorver o mar, antes que aquele belo navio se despedace, com todas as preciosas vidas que leva a bordo.

– Não te aflijas, Miranda. Eu ordenei que nenhuma pessoa sofresse o mínimo dano. O que eu fiz foi em teu benefício, minha querida filha. Tu ignoras quem sejas e de onde vieste. De mim, só sabes que sou teu pai e que vivo nesta pobre caverna. Acaso não te lembras de alguma coisa anterior de tua vida? Creio que não, pois ainda não tinhas três anos quando vieste para cá.

– Creio que me lembro, pai – replicou Miranda.

– Mas como? Só se for por intermédio de outra pessoa, em algum outro lugar...

– Bem me lembro... É como se fosse a recordação de um sonho. Não tive eu, uma vez, quatro ou cinco mulheres ao meu serviço?

– Tinhas até mais – respondeu Próspero. – Como isso te ficou na memória? E não te lembras de como vieste para cá?

– Não, pai. De nada mais me lembro.

– Há doze anos, Miranda – continuou Próspero – , eu era duque de Milão, e tu eras uma princesa e minha única herdeira. Eu tinha um irmão mais jovem, chamado Antônio, a quem confiava tudo. Como eu só gostasse do isolamento e do estudo, costumava deixar os negócios de Estado para teu tio, meu falso irmão ( que na verdade provou que o era) . Desprezando as coisas do mundo, enterrado entre os livros, eu dedicava meu tempo ao aperfeiçoamento do espírito. Meu irmão Antônio, vendo-se assim investido de meu poder, começou a considerar-se o próprio duque. O ensejo que eu lhe dava de se popularizar entre meus súditos despertou, em sua má índole, a orgulhosa ambição de despojar-me de meu ducado; o que ele não tardou a fazer, com a ajuda do rei de Nápoles, um poderoso príncipe inimigo meu.

– Mas por que eles não nos mataram então?

– Não se atreveram a tanto, minha filha, tal era o amor que o povo me dedicava. Antônio nos colocou a bordo de um navio e, quando nos achávamos algumas léguas ao largo, fez-nos tomar um pequeno bote, sem vela nem mastro. Ali nos abandonou, pensava ele, para morrermos. Mas um bom fidalgo de minha Corte, de nome Gonzalo, que muito me estimava, colocara no bote, às ocultas, água, provisões, aparelhagem e alguns dos livros que eu apreciava acima do meu ducado.

– Oh, meu pai! Quanto trabalho não devo te haver causado, então!

– Não, minha querida. Tu eras um pequenino anjo protetor. Teus inocentes sorrisos me davam forças para lutar contra os infortúnios. Nosso alimento durou até que abordamos nesta ilha deserta. Desde então, meu maior prazer tem sido educar-te, Miranda, e bem vejo que aproveitaste minhas lições.

– Que Deus te recompense, meu querido pai. Dize-me agora por que provocaste esta tempestade.

– Fica sabendo que esta tormenta há de trazer para cá meus inimigos, o rei de Nápoles e meu cruel irmão.

Dito isso, tocou delicadamente a filha com sua varinha mágica e ela tombou adormecida; Ariel acabava de se apresentar ante seu senhor, para descrever a tempestade e contar o que fora feito dos passageiros. Como os espíritos eram invisíveis para Miranda, não queria Próspero que ela o surpreendesse a conversar com o ar.

– E então, meu gentil espírito – disse Próspero a Ariel – , como desempenhaste tua tarefa?

Ariel fez-lhe uma viva descrição da tempestade e do terror reinante a bordo. O filho do rei, Ferdinando, fora o primeiro a se jogar ao mar; e seu pai julgara-o tragado pelas ondas, para todo o sempre.

– Mas ele está salvo – informou Ariel – , num recanto da ilha, sentado com os braços pendentes, a chorar a perda do rei, seu pai, a quem julga afogado. Nem um fio dos seus cabelos sofreu o mínimo que fosse, e suas vestes principescas, embora encharcadas d'água, parecem mais lindas do que antes.

– Reconheço nisto meu delicado Ariel – disse Próspero. – Traze-o para cá. Minha filha precisa ver esse jovem príncipe. Mas onde estão o rei e meu irmão?

– Deixei-os em busca de Ferdinando, o qual têm poucas esperanças de encontrar, pois supõem tê-Io visto sumir-se nas águas. Quanto à tripulação, nenhum homem se perdeu, embora cada um deles se julgue o único sobrevivente; o navio, invisível para todos, acha-se em segurança no porto.

– Ariel, executaste fielmente teu trabalho, mas ainda há mais o que fazer.

– Ainda mais trabalho? – estranhou Ariel. – Permita que vos lembre, senhor, que vós me prometestes a liberdade. Considerai que vos tenho servido dignamente, sem jamais resmungar, e que nunca vos enganei nem cometi enganos.

– Como !? Já não te lembras de que torturas te livrei? Já esqueceste a horrenda bruxa Sycorax, quase dobrada pelo meio, ao peso dos anos e da maldade? Onde nasceu ela? Fala, dize-me.

– Em Argel, senhor.
– Ah, lembraste, então? Creio que devo também recordar o que te aconteceu, pois me pareces muito esquecido. Essa feiticeira, com seus maléficos bruxedos, demasiado terríveis para a compreensão humana, foi expulsa de Argel e aqui abandonada pelos marinheiros; como tu eras um espírito muito delicado para executar suas ordens, ela te encerrou no tronco de uma árvore, onde te encontrei a soltar gemidos. Desse tormento, fui eu quem te livrou.

– Perdão, caro senhor – disse Ariel, envergonhado de parecer ingrato. – Eu obedecerei às vossas ordens.

– Obedece e serás livre.

Deu-lhe então as ordens necessárias. Ariel dirigiu-se primeiro ao lugar onde deixara Ferdinando e achou-o ainda sentado na relva, na mesma melancólica postura.

– Ó meu jovem cavalheiro – disse Ariel, ao avistá-lo – , não tardarei a levar-vos daqui. Tendes de ir à presença da menina Miranda, para que ela lance um .olhar à vossa linda pessoa. Vamos, senhor, acompanhai-me.

E Ariel pôs-se a cantar:
Lá está teu pai dormindo
No mais profundo dos leitos:
Seus ossos feitos coral,
Seus olhos pérolas feitos.
E do seu corpo mortal
Nada, nada se fanou,
Que em lindas e estranhas coisas
Logo o mar o transformou.
Nas tíbias dele, as sereias
Agora estão a tocar:
Escuta os límpidos sons
Que vêm do fundo do mar

Essas estranhas novas do pai desaparecido despertaram o príncipe do torpor em que tombara. Seguiu, atônito, a voz de Ariel, e assim chegou à presença de Próspero e Miranda, que estavam sentados à sombra de uma grande árvore. Ora, Miranda nunca vira homem algum além de seu pai.

– Minha filha, dize-me o que estás a olhar.

– Oh, pai – disse Miranda, numa estranha surpresa – , decerto é um espírito. Como ele olha em volta! Que linda criatura, meu pai. Não é um espírito?

– Não, filha. Ele come, dorme e tem sentidos como nós. Esse jovem que vês se achava no navio. Está um tanto desfigurado pela dor, senão poderias chamá-lo de uma bela pessoa. Perdeu seus companheiros e anda à procura deles.

Miranda, que imaginava todos os homens com semblante grave e barba grisalha como o pai, ficou encantada com a aparência do jovem príncipe. E Ferdinando, vendo tão encantadora moça naquele local deserto e não esperando mais que maravilhas depois das estranhas vozes que ouvira, pensou que estava numa ilha encantada, da qual Miranda fosse a deusa, e como tal lhe falou.

Ela timidamente respondeu que não era deusa, mas uma simples moça; ia dar outras informações acerca de si mesma, quando Próspero a interrompeu. Estava satisfeito de que os jovens se admirassem mutuamente, pois logo percebeu que se tratava de um caso de amor à primeira vista. Mas, para experimentar a constância de Ferdinando, resolveu opor-lhe alguns obstáculos. Avançou para o príncipe com ar severo, acusando-o de haver chegado à ilha como espião, para dela se apossar.

– Segue-me. Vou amarrar-te o pescoço aos pés. Beberás água do mar e terás por alimento mariscos, raÍzes secas e bolotas de carvalho.

– Não. Resistirei a tal tratamento até encontrar inimigo mais forte. – Ferdinando puxou da espada, mas Próspero, agitando a varinha mágica, fixou-o no lugar onde ele estava, impossibilitando-o de se mover.

Miranda agarrou-se ao pai, dizendo-Ihe:

– Por que és tão cruel? Tem piedade, pai; eu garanto por ele. Este é o segundo homem que vejo, e a mim parece digno de confiança.

– Silêncio! Nenhuma palavra mais, menina! Com que então, advogada de um impostor! Pensas que não há homens mais bonitos, pois só viste a este e a Calibã. Pois eu te digo que a maioria dos homens é tão superior a este, quanto este é melhor que Calibã.

– Minhas ambições são mais humildes. Não desejo conhecer nenhum homem mais bonito.

– Vamos – disse Próspero ao príncipe. – Não tens poder para me desobedecer.

– De fato não o tenho – respondeu Ferdinando. Sem saber que era por magia que se achava privado de todo poder de resistência, sentia-se atônito de se ver tão estranhamente compelido a seguir Próspero. Voltou-se para olhar Miranda enquanto podia avistá-Ia. E dizia consigo, ao penetrar depois de Próspero na caverna:

– Minhas forças estão amarradas, como num pesadelo. Mas leves me seriam as ameaças desse homem e a fraqueza que sinto, se, de minha prisão, eu pudesse, uma vez por dia, contemplar aquela linda moça.

Próspero não deteve Ferdinando por muito tempo na caverna. Logo o levou para fora e encarregou-o de um árduo serviço, tendo o cuidado de informar a Miranda o pesado trabalho que impusera ao príncipe. Depois, fingindo ir para o gabinete, ficou secretamente a espreitá-Ios.

Próspero mandara Ferdinando empilhar algumas pesadas achas de lenha. Como filhos de reis não são muito afeitos a tais misteres, Miranda logo foi achar seu enamorado quase morto de fadiga.

– Ai! Não trabalhe tanto. Meu pai está entretido com seus estudos e não aparecerá antes de três horas. Por que não descansa um pouco?

– Ah, senhora, não me atrevo. Preciso terminar meu trabalho antes de repousar.

– Senta-te, que eu carregarei as achas.

Mas Ferdinando consentiu. E, em vez de ajudá-lo, Miranda acabou estorvando-o, pois iniciaram uma longa conversa, de modo que o trabalho ia muito devagar.

Próspero, que encarregara Ferdinando daquele trabalho apenas para testar seu amor, não estava com os livros, como supunha a filha, mas achava-se invisível perto deles, ouvindo o que diziam.

Ferdinando perguntou o nome dela. Miranda disse, acrescentando que o fazia contra ordens expressas do pai.

Próspero limitou-se a sorrir a essa primeira desobediência da filha. Tendo feito, com suas artes mágicas, que ela se apaixonasse tão subitamente, não se zangava por esta revelar seu amor à custa da obediência. E escutou de boa sombra uma longa tirada de Ferdinando, em que este dizia amá-Ia acima de todas as damas que conhecera.

Em resposta aos louvores à sua beleza, que ele dizia exceder à de todas as mulheres do mundo, ela replicou:

– Não me lembro do rosto de nenhuma mulher, nem nunca vi outros homens além do senhor, meu bom amigo, e do meu querido pai. Como são os outros, por este mundo afora, eu não o sei. Mas, acredite-me, não desejo nenhum companheiro no mundo que não seja o senhor, nem pode minha imaginação conceber outras feições diversas das suas, de que eu pudesse gostar. Mas temo estar a lhe falar muito livremente, esquecendo os preceitos de meu pai.

A isso, Próspero sorriu e sacudiu a cabeça, como se dissesse: – Vai tudo exatamente como eu desejava; minha filha será rainha de Nápoles.

Depois Ferdinando, em outro lindo e comprido discurso (pois os jovens príncipes apreciam belas frases), disse à inocente Miranda que era herdeiro da coroa de Nápoles e que ela seria sua rainha.

– Ah, senhor! Tola sou eu em chorar pelo que me faz feliz. Eu lhe responderei com toda a pureza de alma: serei sua esposa, se comigo quiser casar-se.

Próspero, então, apareceu visível diante deles.

– Nada temas, minha filha. Ouvi e aprovo tudo o que disseste. Quanto a ti, Ferdinando, se te tratei com excessivo rigor, quero oferecer-te generosa compensação, cedendo-te a mão de minha filha. Todos os vexames por que passaste eram apenas para experimentar teu amor, e tudo suportaste nobremente. Como merecido prêmio ateu verdadeiro amor, toma pois minha filha e não sorrias de eu me vangloriar de ela estar acima de qualquer elogio.

Depois, alegando haver coisas que reclamavam sua presença, Próspero lhes disse que sentassem e conversassem até seu regresso. Quanto a essa ordem, Miranda não parecia nada disposta a desobedecer.

Após deixá-los, Próspero chamou Ariel, que logo apareceu, ansioso por contar o que fizera com o irmão de seu senhor e com o rei de Nápoles. Disse que os deixara quase doidos de terror, pelas coisas que lhes fizera ver e ouvir. Quando já estavam os dois cansados de vaguear e loucos de fome, ele fizera surgir à sua frente um delicioso banquete. Depois, quando já se preparavam para comer, aparecera-lhes sob a forma de uma harpia, voraz monstro alado, e o festim sumira. Para aterrá-los ainda mais, a harpia lhes falou, recordando a crueldade do banimento de Próspero do ducado e da desumanidade de deixar que ele e a filha perecessem no mar; e afiançou que, por isso, sofriam eles agora tantos horrores.

O rei de Nápoles e o dissimulado Antônio arrependeram-se da injustiça que tinham feito a Próspero. E Ariel garantiu ao amo que estava certo da sinceridade de ambos e que, embora fosse um espírito, não podia deixar de lastimá-Ios.

– Então, traze-os cá, Ariel. Se tu, que és apenas um espírito, sentes as suas desditas, como não vou eu, que sou um ser humano como eles, compadecer-me de tanto sofrimento? Traze-os depressa, meu gentil Ariel.

Ariel não tardou em voltar com o rei, Antônio e o velho Gonzalo, que os tinha seguido, maravilhados com a música selvagem que ele tocava nos ares para os arrastar à I presença do amo. Esse Gonzalo era o mesmo que tão bondosamente fornecera mantimentos e livros a Próspero, quando o perverso irmão o abandonara em alto-mar, entregue à morte.

De tal modo a mágoa e o terror lhes haviam embotado os sentidos que eles não reconheceram Próspero. Este primeiro se deu a conhecer ao bom Gonzalo, chamando-o de seu salvador; só assim, seu irmão e o rei souberam de quem se tratava.

Antônio, com lágrimas e tristes palavras de pesar e verdadeiro arrependimento, implorou o perdão de Próspero, e o rei expressou seu sincero remorso por ter auxiliado Antônio a depor o irmão. Próspero perdoou-lhes. E, tendo ambos se comprometido a lhe restituir o ducado, disse ele ao rei Nápoles:

– Tenho uma surpresa para vós.

Abrindo uma porta, mostrou-lhe Ferdinando a jogar xadrez com Miranda.

Nada podia exceder a alegria do pai e do filho ante esse encontro inesperado, pois cada um julgava o outro afogado.

– Oh, maravilha! – disse Miranda. – Que nobres criaturas! Que mundo admirável deve ser o que contém pessoas como essas.

O rei de Nápoles ficou tão espantado ante a beleza e a graça de Miranda quanto ficara anteriormente seu filho.

– Quem é? – perguntou ele. – Deve ser a deusa que nos separou e, de novo, nos juntou.

– Não, senhor – respondeu Ferdinando, sorrindo ao constatar que o pai incorrera no mesmo engano que ele, ao ver Miranda. – Ela é uma mortal. E, pela imortal Providência, é minha. Escolhi-a quando não podia pedir teu consentimento, pois não te supunha vivo. Ela é filha de Próspero, o famoso duque de Milão, de que tanto ouvi falar, mas nunca tinha visto. Dele recebi nova vida: tornou-se para mim um novo pai, ao conceder-me esta linda moça.

– Então, serei pai dela – disse o rei. – Mas que coisa estranha ter de pedir perdão à minha filha!

– Basta – disse Próspero. – Não relembremos os males passados, já que tiveram tão venturoso fim.

E Próspero abraçou o irmão, assegurando-lhe novamente que o perdoava; disse que uma sábia Providência fizera com que ele fosse banido de seu pobre ducado de Milão, para que a filha herdasse a coroa de Nápoles, pois acontecera de o filho do rei ter-se enamorado de Miranda naquela ilha deserta.

Essas bondosas palavras, ditas na intenção de consolar Antônio, encheram-no de tal vergonha e remorso que ele rompeu em pranto, incapaz de dizer qualquer coisa. O velho Gonzalo chorava ao ver a feliz reconciliação e pedia a bênção de Deus para o jovem par.

Próspero comunicou então que o navio estava a salvo no porto, com os marinheiros a bordo, e que ele e a filha partiriam com todos na manhã seguinte.

– Enquanto isso – acrescentou ele – , venham receber a guarida que minha pobre caverna pode oferecer, e passarei o serão a distraí-Ios com a história da minha vida, desde que cheguei a esta ilha deserta.

Chamou então Calibã, para preparar algum alimento e pôr a caverna em ordem. E todos se espantaram com a forma extravagante e selvagem daquele feio monstro, que, segundo Próspero, era o único criado a seu serviço.

Antes de deixar a ilha, Próspero liberou Ariel, para grande alegria do travesso e pequenino gênio, que, embora fosse um fiel servidor do seu amo, estava sempre a suspirar pela liberdade, a fim de poder vagar pelos ares, como um pássaro selvagem, sob as árvores verdes, entre as belas frutas e as cheirosas flores.

– Meu querido Ariel – disse Próspero ao libertá-Io – , sentirei tua falta. Contudo, terás a prometida liberdade.

– Obrigado, meu amo. Mas deixai-me acompanhar vosso navio ao porto, para garantir ventos favoráveis. Depois, meu senhor, quando eu for livre, que alegre vida hei de levar!

E então Ariel cantou esta linda canção:

As flores que a abelha suga
Essas flores sugo eu.
E numa corola durmo
O sono que Deus me deu.
Ai! quando pia a coruja
É ali que busco sossego,
A menos que voando fuja
Sobre as costas de um morcego.
Alegria! Oh Alegria!
Adeus, adeus, dissabores!
Irei viver todo o dia
Por entre os ramos e as flores.

Próspero abriu uma profunda cova e nela enterrou seus livros de magia e a vara de condão, pois resolvera nunca mais utilizar as artes mágicas. Tendo vencido seus inimigos efeito as pazes com o irmão e o rei de Nápoles, nada agora faltava para completar sua felicidade, senão rever a terra natal e assistir às núpcias da filha com o príncipe Ferdinando, que seriam celebradas com a maior pompa, logo que chegassem ao seu destino. E, após uma agradável viagem, graças à proteção de Ariel, não tardaram todos em aportar a Nápoles.

Fonte:
Charles & Mary Lamb. Contos de Shakespeare. Tradução de Mario Quintana
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Amosse Mucavele (A Poesia Epigramática do Amin Nordine ou a Babalaze do Atirador das Verdades)


Um poema assim é árduo/ sem cola e na vertical/ pode levar uma eternidade. ‘’ ARMÊNIO VIERA’’ Ao Sangare Okapi e Lúcilio Manjate "Amosse Mucavele"

Amin Nordine nasceu em Maputo aos 17 de fevereiro de 1969 e perdeu a vida aos 5 de fevereiro de 2011,e autor de apenas 3 livros, o que não tem importância porque a literatura não se assemelha a uma competição, onde quem publica muitas obras sai vencedor (assim sendo existem escritores que tem sido felizes nesta maratona aliando a quantidade versus qualidade como o seu cavalo de batalha e tem se notabilizado como verdadeiros campeões ex: Mia Couto, Antônio Antunes, Pepetela, Moacyr Scliar…),bastando lembrar-se do Luís B. Honwana, Noemia de Sousa, Gulamo Khan,e Lilia Momple para sustentar a tese de que qualidade nem sempre rima com a quantidade.

Publicou - Vagabundo Desgraçado (1996), Duas Quadras para Rosa Xicuachula (1997), e Do lado da ala-B.

Amin Nordine e um militante de uma escrita sólida em todos lados seja o da ala- A ou da ala- B, isenta de qualquer submissão política, caracterizada pelo inconformismo da realidade que o circunda e pela revolta social, esta poesia epigramática e uma revelação de um fatalismo que voa em voo rasante sobre as angustias de um passado melancólico, e um presente envenenado.

E do futuro o que se espera ? o futuro não será isto!’’… superlotada receita galgando o vento/com as mãos no coração do destino.’’

O que é do lado da ala-B? o leitor descobrirá que esta no lado mas vil de um jovem país com os seus problemas, e é neste lado onde reside o poeta solitário nas suas abordagens anti-heróicas, mas das multidões na sua mordacidade social, um verdadeiro maquinista do comboio dos duros, um autêntico vomito da babalaze de um poeta bêbedo do seu dia-a-dia. Detentor de uma caligrafia rebelde, com versos quentes como o fogo e cortantes como a espada afiada, onde eclodem temáticas de afrontamento de um certo tempo histórico (ex: carta ao meu amigo Xanana, banqueiros de banquetes, bandeira galgada aos 25, (c)anibalizinhos…)

Talvez o outro lado da ala destes poemas, não! Isto ultrapassa a dimensão poética, ou por outra destes melancolicos dissabores que despertam os filhos desta pátria que nos pariu deste manancial de barbaridades versus mentiras, que transformam o sonho de estar livre da opressão em um pesadelo ,não será esta a voz do povo?

Estes melancolias dissabores são a pólvora contida na’’ bala’’(ala-B) desta poesia que o autor preferiu chamar de’’ arma da vitória’’ que dispara esta bala certeira onde a cada estrofe vai abatendo o seu alvo. Dai nasceu este livro embrulhado por uma critica social.

A título de exemplo o poema ‘’barbearia dos cabrões (‘’queixos barbudos engravatados/ barbearia dos cabrões/ que deixa todo chão careca/ e ao alto mastro hasteiam bandeira/ para desfraldarem o corpo nu do povo…’’)

‘’Apesar da irrequietude e da impenitência, algumas vezes virulentas que caracterizam esta poesia ou das entremeadas doses de apurada ironia ou de compaixão pelos desafortunados, o que sobressai nesta forma particular da escrita e um virtuosismo estimulador da sensibilidade da razão,(…),nessa brevidade desafiadora da nossa capacidade leitoral e estética.’’( F.NOA-o prefaciador).

Segundo Zenão a brevidade e um estilo que contêm o necessario para manifestar a realidade. Esta brevidade encaixa-se na poesia do A.Nordine onde nota-se uma presença massiva de traços inter-textuais da obra do poeta Celso Manguana cidadãos da mesma esquina (ambos eram jornalistas culturais do semanário Zambeze) guerreiros da poesia epigramática, e soldados da mesma trincheira. A.Nordine exilou-se na morte, Celso Manguana exilou-se na loucura, e eu procuro exílio na memória destes 2 poemas:

‘’Sonâmbula esta pátria
cresce nas estatísticas
e acorda com fome
custa amar uma bandeira assim?
tem o amargo do asilo
almoço de pão com badjias
sabem bem todos dias.’’
Celso Manguana pag.14- aos meus pais-Pátria que me pariu-2006.

‘’ Se por tanto tivesse ser capaz
moça-pátria deste amor que refrega
seja o meu coração a minha entrega
escrever-te a cerca duma paz
e alto levante-se da vez que nega
não é para o povo o discurso assaz
nenhum político, milagroso ás
é tamanho o sofrimento que chega!
para o povo aumentem um quinhão
venha do vosso governo mais pão
burilada a página da história
apagar a sua triste memória
fazemos o país livre da escória!!!’’
A.Nordine-pag.50-soneto da paz-Do lado da ala-B-2003.

Fonte:
Texto enviado pelo autor