segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Jorge Henrique (A Chuva)


Sentiu a pancada nas costas e, num movimento rápido, voltou-se para ver se identificava quem o agredia. Ninguém. A rua deserta. O vento brincava com um pedaço de jornal e as notícias dançavam ao som de uma música inaudível. No céu, densas nuvens davam-se as mãos e cobriam o azul numa ciranda diferente. No chão, ao seu lado, um pequeno livro, desses de bolso.

Levou a mão à cabeça. Doeu, mas não chegou a ferir. Mesmo assim, queria pegar seu agressor, dizer-lhe umas boas.

O livro? Renato nem se preocupou em saber o título da arma que o acertara, seu autor, de que tratava... Que diferença faria? Que importância isso teria em sua vida? Sempre viveu sem depender dessas futilidades! Sabia negociar. Comprava, vendia e trocava como ninguém. Nunca havia folheado seriamente uma arma como aquela nem lhe conhecia a inusitada utilidade. Era incapaz de desvendar-lhe os meandros e os macetes, como o fazia com habilidade em seus negócios. E isso, culpa alguma lhe incutia. "Objetos inúteis! Ainda mais neste mundo cão!".

O saber de que precisava, via-o nos olhos de um cliente ou de um fornecedor, na intenção que um sorriso opaco podia ocultar. "Objetos inúteis! Nada acrescentam!". A não ser que se os utilize para fim tão pouco nobre: "atacar cidadãos de bem!". Vivia sem aquilo desde pequeno e não seria agora que mudaria sua postura, mesmo tendo sido acertado direto na cabeça por um ponto de vista contrário ao seu.

Seguiu caminho.

Ainda desconfiado, olhou para traz, mas não havia realmente ninguém, apenas ele e o livro.

Já absorto noutros pensamentos, dobrava a esquina da rua do alto quando sentiu nova pancada um pouco acima da nuca, dessa vez mais forte que a anterior. Essa outra edição, embora ainda no formato bolso, pareceu-lhe mais robusta, o suficiente para lhe provocar um pequeno inchaço no local. Renato correu a dobrar a esquina de volta em busca do autor, não do livro, mas do ato. Sem resultados. Sentiu certo estranhamento na realidade a sua volta. Aquilo o incomodara. Pensou em fugir, mas não havia necessariamente de quê, nem por quê, nem para onde. Ocorreu-lhe olhar para cima. Chuva!? E essa agora! A pé, sem guarda-chuva, e sendo atacado por algum imbecil desocupado!

Apertou o passo, queria se ver logo livre daquela situação. Quando nota cair-lhe ao lado outro livro. Rápido, corre os olhos por todos os lugares possíveis. Ninguém... Mas, ao longe, próximo a uma venda, parece-lhe haver na calçada um pequeno dicionário e, junto à farmácia, na outra extremidade da rua, parece-lhe cair outro livro. Mais à frente, um deles estilhaça a vidraça de uma loja de roupas. "É o cúmulo! Ninguém faz nada para impedir esse louco!". Mal termina seu pensamento e uma forte pancada, agora no cocuruto, o desequilibra e o faz virar-se. Era um volume dos grandes. Esse machucou bastante. Parecia-lhe ter vindo de cima, mas não havia edifícios na rua do alto. Reluta em procurar seu agressor em prédios que não existem, mas mecanicamente olha para cima. Percebe uma estranha ave cruzar o céu, num vôo rápido e linear, como uma seta. Era o pássaro mais esquisito que já vira.

É capaz de perceber as formas retilíneas da ave e seu adejar ordenadamente desarticulado. Nota-lhe a estranha textura das penas e sente-se esquisito ao constatar que sua percepção do mundo e das coisas mudara, seu olhar se tornara mais aguçado. Como poderia perceber minúcias numa ave de vôo tão rápido?

Para testar sua nova percepção, tenta identificar-lhe o bico, mas a ave não o tinha. Nota as pequenas manchas ordenadas horizontalmente ao longo do corpo do pássaro, quando este se choca contra o muro da antiga escola primária de Dona Lourdes! Renato corre para melhor estudar o esdrúxulo ser. Estremece diante do que seus olhos lhe mostram. Não era uma ave, mas uma antiga edição de um livro de que já ouvira muito falar: A Metamorfose.

Relutou em aceitar uma idéia que lhe batia às paredes da cabeça, mas de onde teria vindo aquele livro, então? Não havia prédios! Não havia ninguém! A Metamorfose parecia-lhe ter vindo de muito alto! Do céu mesmo! Ainda que alguém o tivesse atirado, teria de estar numa posição muito elevada. A não ser que... o tivessem jogado de um avião! Mas... Não havia sombra desse avião!

A idéia teimosa alfinetou-lhe novamente o juízo. Era absurdo, sua razão lhe dizia, mas... Só poderia ser aquilo!

Outro livro espatifa-se na calçada ao seu lado. Não havia mais como refutar aquela idéia, por mais absurda que lhe parecesse, era aquilo mesmo: estava... chovendo! Estava chovendo... livros!?

Renato obedece o ímpeto instantâneo de correr para a marquise mais próxima, a fim de se abrigar, pois uma chuva de livros poderia machucar bastante as carnes, até de um corpo tão resistente quanto o seu. Enquanto corre para se proteger, seus olhos vislumbram o espetáculo e suas pernas passam a obedecer o comando deles, os olhos, e a reduzir a marcha.

Os livros acertam-lhe a cabeça, os braços, o peito, a alma. Renato já não sentia dor, apenas aquela chuva no corpo inteiro e tentava perceber-lhe os pingos a molhar seu ser.

Era um espetáculo!... Algo inefável e insólito. Livros, livros de todos os tipos, tamanhos, formatos, assuntos, matérias... Livros! Caíam por todas as partes, em todos os lugares. Aqui, ali, acolá... Baudelaire, Joyce, Machado, Drummond... Não só livros, mas revistas, periódicos, jornais, até panfletos, tudo em que se podiam ver letras a dançar, dançava na ciranda daquela chuva inusitada e absurda.

Fontes:
http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/jh_chuva.shtml
Imagem = http://www.cartuns.com.br

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 447)

Desenhos com giz em 3D sobre a calçada, por Justin Beever
Uma Trova de Ademar

Ninguém jamais colhe flores
plantando ódio e maldade;
só faz colheita de amores
quem planta amor de verdade!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


A pena, que escreve a trova,
e alegra a gente, na Terra,
dá pena, pois, como prova,
também declara uma guerra!...
–HÉLIO DE CASTRO/PR–

Uma Trova Potiguar


Nem fada nem cinderela,
nem chapeuzinho vermelho,
nada mais que a imagem dela
refletida num espelho.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


No quadro negro da vida,
o apagador natural
é o tempo. O tempo querida,
que apaga tudo, afinal...
–DELMAR BARRÃO/RJ–

Uma Trova Premiada


2007 - Nova Friburgo/RJ
Tema: MENSAGEM - M/E


Diz “aguarde”, na amargura
da mensagem enviada,
prefiro o “não” que tortura
do que promessa adiada!
–JOSÉ VALDEZ C. MOURA/SP–

Simplesmente Poesia

Em Busca de Ti
–AUZÊH FREITAS/RN–


Caminhei
com passos trôpegos
em busca de Ti
do teu corpo ancoradouro
dos meus anseios e devaneios.
Se te encontrar quero me afogar
para que me socorra.
E nesta respiração ofegante
sentir teu beijo na minha boca.

Estrofe do Dia

Estamos a fazer plenos
Para o ano que começa,
Sepultando desenganos,
Dissabores, peça a peça.
Faz-se mister, todavia,
Que juntemos todo dia
Um pedido à nossa prece:
-Derrama oh Deus, por favor,
A tua benção, Senhor,
Antes que tudo comece!
–RAIMUNDO DE SALES BRASIL/BA–

Soneto do Dia

A Face da Semente
–JOÃO BATISTA XAVIER/SP–


Desejo sublimar nosso passado;
louvar as tempestades superadas;
beber o eterno amor a nosso lado
em gotas de saudosas madrugadas.

Os gestos de ternuras ensaiadas
perpassam nosso leito derramado
no supra-sumo das horas paradas;
na incandescência do suor cansado.

Uma semente apenas... o bastante
para acalmar os dardos dos anseios
de noite aberta no perfil amante.

E germinou suave na saliência
do ventre abençoado os nossos meios
à mais sublime face da inocência!!!
--
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Sílvio Fontoura (Microbiografias)

Era um jurista dos cimos,
Lutando contra ladrões,
E morreu, legando aos primos
Quinhentos e dez milhões.

O homem tinha a sala escrava
De livros, do piso ao teto,
Depois, viu, no Além, que estava
No princípio do alfabeto.

Assinara noutra data
Leis cruéis, decretos vãos...
Mas na vida imediata
O pobre nasceu sem mãos.

Dizia beber um pouco
Por remédio e benefício...
Terminou, violento e louco,
Nas grades de velho hospício.

“Nada tenho para dar” –
Gemia a velha em tipóias,
No entanto, ao desencarnar,
Saiu dum colchão de jóias.
--
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Antonio Callado (A Revolta da Cachaça)


A Revolta da Cachaça, é uma brilhante metáfora da condição do negro no Brasil, e compõe, juntamente com O tesouro de Chica da Silva, Pedro Mico e Uma rede para Iemanjá, o Teatro Negro de Antonio Callado: rico, corajoso e solidário, um marco na história da dramaturgia brasileira.

Aparentemente leves, as quatro peças tematizam problemas profundos da sociedade brasileira, marcada pelo estigma da escravidão e do preconceito, da discriminação e da marginalização do negro, no passado e no presente. Para conviver com isso o negro deve apelar seja à malandragem, feito Chica, seja aos deuses afros, como ela e a mãe do filho de Iemanjá, seja à violência como Ambrósio e Pedro Mico.

A gravidade do tema contrasta com a leveza do estilo de modo a torná-la mais impressionante. O espectador ri mas ri culpado, principalmente se ele é branco e bem de vida. O custo do seu riso é um certo mal-estar que dura para além do espetáculo.

No caso de Pedro Mico, a problemática social do abismo econômico entre os habitantes da favela e os habitantes da zona sul, metonimicamente representada pela Lagoa que se vê do alto dos barracos vizinhos, cruza-se com a problemática racial e regional. Aparecida imagina o dia em que a favela vai descer e invadir a casa dos ricos da Lagoa. Pedro Mico sabe que, se o fizerem, vão acabar atraindo a polícia, que vai tirá-los à força de lá, mas avalia o quanto pode ser divertido e o quanto podem aproveitar das casas ricas nem que seja por pouco tempo.

A Revolta da Cachaça

Em A Revolta da Cachaça a referência histórica nos recorda o episódio que ficou conhecido com este nome, no Rio de Janeiro, de que resultou a morte de João de Angola e de Jerônimo Barbalho, decapitados no dia 6 de abril de 1661, na frente do Convento de Santo Antônio, por contrariar uma proibição da metrópole referente à produção de cachaça na colônia.

Dedicada ao ator negro Sebastião Prata, conhecido como Grande Otelo, essa peça se passa no Rio de Janeiro dos anos 50-60.

Pode-se dizer que se trata de um meta-teatro, porque seu tema é uma peça de teatro que deveria ter como ator principal um negro, mas que não se termina, porque o diretor tem dificuldade de acabá-la talvez por isso mesmo. Esse autor e diretor é Vito, que começou a escrever a peça há 10 anos atrás para seu amigo negro, Ambrósio. Dez anos depois Ambrósio volta para reclamá-la a ele e a sua mulher, Dadinha, com quem, no passado tivera uma história de amor.

Em A Revolta da Cachaça a referência histórica nos recorda o episódio que ficou conhecido com este nome, no Rio de Janeiro, de que resultou a morte de João de Angola e de Jerônimo Barbalho, decapitados no dia 6 de abril de 1661, na frente do Convento de Santo Antônio, por contrariar uma proibição da metrópole referente à produção de cachaça na colônia. Mas esta não é a trama da peça. O episódio deveria compor o argumento de uma peça que um ator negro, Ambrósio, luta para representar mas se vê impedido no seu propósito por não contar com a cooperação de um dramaturgo branco, supostamente seu aliado, comprometido com o sucesso junto à mídia. As informações históricas são prestadas pelo personagem Ambrósio que não só se revela um conhecedor da revolta como também um crítico do momento histórico em que vive. Além disso, representa a consciência crítica do ator que exige a sua participação na composição da peça, o que desencadeia o conflito principal na relação ator/dramaturgo, levando à catástrofe.

As relações amorosas e de amizade são desmascaradas no final, pois o autor se nega a terminar a peça e acaba provocando a ira de Ambrósio, que tenta matá-lo, mas morre no final, sem consegui-lo. Nessa versão, o negro acaba representando o papel ao qual sempre esteve confinado e do qual queria fugir: o de marginal e criminoso.

Vito é um intelectual que trata o negro de forma paternalista. Dadinha, a mulher branca que o utiliza como objeto sexual. Aí se insinua algo que voltará em peças mais recentes de autores negros, que é a visão da mulher branca atraída sexualmente pelo negro, ou melhor, pela projeção que faz dele em suas fantasias: o violador forte e bruto contra a vítima indefesa da barbárie.

A peça, que teria Ambrósio no papel principal, semi-escrita e nunca terminada, como já citado, se chamaria "A revolta da cachaça", e o papel heróico do negro seria feito por Ambrósio.

A discussão sobre a peça e suas várias versões se dá enquanto todos bebem cachaça (enviada em um grande barril por Ambrósio, como presente misterioso, antes de sua chegada em pessoa à casa dos antigos companheiros de teatro). Ambrósio ameaça Vito com um revólver. A problemática do negro está condensada aí. A peça é complexa e não há espaço disponível para mostrar isso aqui, mas as citações abaixo, de Ambrósio, podem dar uma idéia dessa complexidade.

Sobre a discriminação do negro pela polícia:

"Eu procuro sempre andar meio almofadinha, como se dizia antigamente. Crioulo tem que andar com ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva viva no bolso. Se ele não se enfeita e de repente pinta uma cana–quem é o primeiro a entrar no camburão? Até o negro se explicar..."

A respeito do teatro:

"Quando pensamos que peças de teatro são escritas no Brasil desde que Cabral abriu a cortina deste palco... parece incrível que esta seja a primeira que tem um preto como protagonista.
E o preto protagonista é o crioulo mesmo e não o branco pintado de preto.
Se você continuar assim quem fica sem peça sou eu, porra. Acabo outra vez fazendo papel de criado, de ladrão, de bicheiro, ou chofer.

(...)

Me dá a peça, Vito! Não aguento mais ser copeiro, punguista eassaltante.
Vim aqui cobrar a fama que você me deve. Vim para morar, pra morrer. Mas no meio do rio ou da rua. Chega de margem."


A peça encena a contradição branco e negro, mas cercada de outras que ainda a fazem mais atual e complexa: a relação homem-mulher e homem-homem, já que sugere uma paixão homossexual entre Vito e Ambrósio no passado e no presente, assim como entre este e a mulher de Vito, Dadinha. A questão de não escrever a peça se cruza, assim, com o racismo e a questão sexual; ela não se conclui apenas porque o ator é negro, mas porque Vito tem ciúmes, como marido e como homossexual.

No final, depois de disparar em Vito e de colocá-lo dentro do Barril de Cachaça, Ambrósio foge para o jardim. Um policial dispara e o fere. Mas parece que morre do coração. As reações da polícia são representativas do preconceito racial, pois ela só pode esperar do negro o papel de assassino. A palavra final é de Dadinha, para a qual o crioulo se transforma no morto que, impessoalmente, como um pobre desconhecido, será conduzido diretamente ao necrotério.

A primeira versão, identificada pelo ator como "enredo de escola de samba", lembra a tendência geral para a representação estereotipada do negro em papéis secundários, e o ator negro se nega a participar desta mistificação, pedindo - ou intimando o dramaturgo a produzir a outra versão. A peça acaba por transformar-se numa discussão sobre problemas de ordem estética e ideológica, envolvendo a produção de um texto em que um ator negro deve definir a sua participação como artista e como conhecedor da sua história. É através deste que uma série de informações são anunciadas, de tal forma que o público fica sabendo quem são os integrantes da Revolta, em que circunstância aconteceu e qual foi o seu resultado. É através do ator negro que o público toma conhecimento da história de Jerônimo Barbalho, um fidalgo que produzia cachaça no seu engenho, embora não dispensasse o vinho da Madeira. Foi traído pelo irmão Agostinho Barbalho que o denunciou ao governador por produzir cachaça sem licença, o que irá ocasionar a sua perseguição e punição. Mas o ator deve representar outro personagem, por quem manifesta especial simpatia: João de Angola, cúmplice na Revolta. Sobre este, Ambrósio informa: "João de Angola fazia as armas de Jerônimo Barbalho e o abebé de Iemanjá. Os pretos em Luanda e Benguela se escravizando entre eles mesmos porque lá ninguém obedecia. Todos mandavam. Tomavam posse uns dos outros, trocavam de dono, se vendiam em troca da cachaça que vinha do Rio."

Assim, as informações vão se somando e o leitor ou espectador vai compondo uma história de resistência, acontecida no passado, ao mesmo tempo em que se processa outro conflito, no presente, no processo da produção do texto, quando o personagem negro luta para imprimir nele a sua marca, exigindo do dramaturgo uma versão que não contemple as exigências do mercado.

O ator negro vive o conflito do marginalizado que deve "andar meio almofadinha", com "ar de quem é troço na vida, de quem tem grana no banco e erva viva no bolso" para não ser o "primeiro a entrar no camburão" no confronto com a polícia. O personagem cria, assim, na vida real, uma máscara para defender-se. No teatro precisa de um papel principal para reverter os estereótipos humilhantes que envolvem a presença do negro em papéis secundários ou pontas. Por isto Ambrósio explode: "Estou de saco cheio de fazer papel de marginal, o cara que fica na praia espiando barco, no meio-fio olhando automóvel, sempre na beira, na margem. Vim aqui cobrar a fama que você me deve. Vim pra morar, pra morrer. Mas no meio do rio ou da rua. Chega de margem." Movido por esta hybris o personagem negro vai às últimas conseqüências na sua empresa, decidido a matar ou morrer, literalmente. A obsessão leva-o a uma série de estratégias para forçar o dramaturgo a concluir a versão definitiva da peça, a começar por um insólito presente que é anonimamente enviado ao dramaturgo antes da sua chegada: um enorme barril de cachaça que chega à casa de Vito, intrigando a todos pela sua origem. Depois chega inesperadamente o ator que procura sensibilizar o dramaturgo com a manifestação de um último desejo de artista frágil, doente, vaticinando uma morte próxima. Entretanto, diante da insensibilidade do dramaturgo aos seus apelos de Ambrósio o ator saca de uma arma, precipitando o desenlace da peça, que culmina com a intervenção policial, tiroteio e morte do ator, cumprindo-se, desta forma, a premonição de Ambrósio, que não morre propriamente do tiro, desfechado na sua perna pelo policial, mas em decorrência de problemas cardíacos. A cena final, com o dramaturgo saindo comicamente de dentro do barril de cachaça, onde estivera escondido, e a constatação da morte de um negro, como acontecimento banal que causa alívio a todos, reproduz uma situação típica das manchetes policiais, envolvendo negros que previamente são julgados como marginais perigosos.

Nesta peça de Callado é importante lembrar a presença do ator negro, como personagem principal, que luta para representar um papel vivido por um outro negro na história, levando-nos ao tema da resistência, como forma de afirmação do negro, numa sociedade que tende a conferir-lhe papéis secundários na vida e no teatro, como lembra o personagem Ambrósio. Entretanto a consciência crítica do personagem não se traduz numa ação política organizada, capaz de levá-lo resistir ou pelo menos a tentar resistir diante dos obstáculos que se interpõem à sua realização profissional como negro dentro do teatro. O personagem luta isoladamente e de forma suicida, provocando, inconscientemente, a sua própria aniquilação, marcado por uma desmedida que levará à queda inevitável. Ele tem uma arma de fogo que não sabe manejar. Vito, o vencedor, confirma a sua superioridade. O barril de cachaça, presente do ator negro, é, ironicamente, a barricada que defende o inimigo, quando, num lance cômico o dramaturgo se esconde dentro do barril e sai de lá encharcado de cachaça depois do perigo. O negro é relegado para o seu lugar. A peça termina melancolicamente com a confirmação da sua derrota. A sua hybris o fulmina. A hamartia, ou a falha aristotélica, para lembrar a tragédia clássica, decorre da necessidade e urgência, por parte do ator, de arrancar de um suposto aliado a peça impossível, em função dos valores opostos que ator e dramaturgo representam. A recognição do inimigo por parte do ator desencadeia neste um sentimento de revolta que precipita a catástrofe.

A peça apresenta, assim, alguns traços da tragédia, não faltando ao personagem negro a premonição da própria morte e a desmedida que o arrasta para ela. Para atenuar a seriedade trágica, Callado apela para alguns expedientes cômicos, mas no seu conjunto a peça tende mais para um drama que conserva algumas marcas do trágico.

Pedro Mico

Pedro Mico é uma das mais importantes obras de Antonio Callado. Peça em um ato, cuja ação transcorre em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 50.

Pedro é um negro que tem a fama de ser muito bom na arte de enganar a polícia, que o busca por crimes de roubo. Sua grande agilidade em escalar prédios altos é a razão pela qual os jornalistas lhe deram o nome de Mico. Para essas ocasiões ele tem sempre uma corda ao alcance da mão. Pedro não sabe ler e, como quer estar informado sobre o que aparece nos jornais, sobretudo na seção policial, para inteirar-se se e como falam dele, resolve seu problema com ajuda de mulheres que sabem ler e que lêem para ele as principais notícias. A peça apresenta uma cena entre ele e sua mais recente conquista, a prostituta Aparecida, a quem pede que lhe leia os jornais do dia, como uma espécie de prova ou condição para que continuem a relação amorosa. Aparecida faz isso muito bem, mas o encontro de trabalho e amor é interrompido pela ciumenta Melize, vizinha de Pedro Mico no Morro da Catacumba, onde vivem e onde transcorre a ação.

Melize não sabe ler, mas está tentando aprender para ver se conquista Pedro, por quem tem uma grande paixão. Seu irmão, Zemelio, é admirador de Pedro e o avisa que a polícia está vindo apanhá-lo. Melize, por ciúmes, o havia denunciado. Antes disso, Aparecida havia contado a Pedro a história de Zumbi, o escravo, líder do quilombo de Palmares.

Esse quilombo existiu no Brasil entre 1630 e 1695 na Serra da Barriga, hoje região de Alagoas, estado do nordeste brasileiro de onde provém Aparecida. Zumbi se matou quando a polícia venceu a resistência dos quilombolas e ia prendê-lo. Matou-se jogando-se num abismo e se transformou no herói mítico para os negros e para o movimento negro.

Na peça de Callado, quando chega a polícia, para prender Pedro, Melize e Aparecida saem para tentar detê-la, ganhando tempo. Quando voltam, a janela aberta e uma roupa de Pedro pendurada em uma árvore levam a pensar que ele se houvesse matado, imitando o gesto desesperado de Zumbi. A polícia desce para buscar o cadáver e as mulheres ficam chorando. De repente, reaparece Pedro na janela, pois tudo havia sido um de seus truques. Enquanto a polícia o busca lá em baixo do morro, ele escapa com Aparecida. No horizonte fica a possibilidade de que um dia Pedro volte para guiar a conquista da cidade pelos negros da favela, tal qual um Zumbi redivivo. É o sonho de Aparecida que tenta vendê-lo a Pedro: “Você já pensou, Pedro, se a turma de todos os morros combinasse para fazer uma descida dessa no mesmo dia?... Tu já pensou, Pedro?”, pergunta Aparecida no final, que se fecha com a resposta enigmática de Pedro: “Não. Mas vou pensar”.

Pedro Mico trata com leveza e humor de questões que encontram-se em nossa conjuntura sócio-econômica atual: exclusão social, a condição do negro, a falta de perspectiva de sobrevivência e a condição da mulher, diante da condição de objeto.

Como vimos, a peça Pedro Mico tem também como personagem principal um negro, que, entretanto, não dispõe de dotes artísticos ou de conhecimentos históricos para tentar compor a sua história, identificando-se com um herói negro a exemplo do ator Ambrósio, da peça anterior, A Revolta da Cachaça. Quem detém a memória histórica, desta vez, é a companheira de Pedro, Aparecida, a mulher que sabe ler o suficiente para deslumbrar o iletrado marginal que, de forma narcisista, quer saber o que publicam a seu respeito.

Em Pedro Mico nos defrontamos com a figura típica do malandro, um ser deslocado das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja pelo modo de andar, falar ou vestir-se. Pedro Mico não reproduz, entretanto, apenas a sagacidade e os gestos peculiares do malandro assim concebido, vivendo de expedientes. É possível verificar que se trata de um "autêntico marginal ou bandido", categoria em que se inscreve o nosso anti-herói "sem nenhum caráter", correndo os riscos que a sua marginalidade plena apresentam. A homologia com o personagem Zumbi fica por conta dos dotes de habilidade e sagacidade exigidos pelo negro a ser escolhido para governar os Palmares. Só que a sagacidade de Pedro Mico serve a outros fins: é o típico malandro, favelado de morro carioca, que tenta escapar das batidas policiais e é, de fato, envolvido com a criminalidade. O seu sucesso presumível junto às mulheres lhe garante uma precária segurança emocional num espaço em que o malandro subsiste na corda bamba, literalmente pendurado no morro, sempre em atitude defensiva.

A história de Zumbi dos Palmares que é contada pela prostituta Aparecida que acaba motivando no companheiro a ardilosa escapada da polícia. Na cena final ambos tencionam, efetivamente, fugir para a terra dos quilombos (Alagoas) indiciando, simbolicamente, uma mudança de perspectiva para o negro alienado que preserva a imagem do crioulo astucioso, prepotente, agressivo e sedutor.

Vimos que Aparecida é a porta-voz da História. Compete à mulher, também marginal, a iniciativa de transmitir conhecimentos e gerar transformações. Os dados por ela apresentados sobre a história de Zumbi são pouco precisos, relembra antigas lições de escola, mas é o suficiente para dar a conhecer ao companheiro (e à platéia) a história do herói que "fugiu com os outros negros que estavam cheios de apanhar de chicote e de viver nuns barracos imundos e meteu o peito no mato até chegar no tal morro dos Palmares. Lá não perdeu tempo com samba nem nada disso tudo que se faz hoje não. Fez muro, botou lá uma fortaleza, cercou o morro e aquilo ficou feito um país." Não faltam, ainda, através da mesma personagem, informações sobre a expedição militar que derrotou Zumbi, que "brigou feito um gato bravo, matou gente que não foi brincadeira" e no final se atirou num precipício, seguindo a versão mítica mais conhecida de Sebastião Rocha Pita, segundo a qual o herói perseguido se atira no despenhadeiro no reduto do Macaco para fugir à escravidão. A perspectiva da morte provoca, neste ponto, uma reação do companheiro: "Esse negócio de morrer no fim é danado. Ganha quem fica vivo."

A figura de Aparecida surpreende para a época, em se tratando de Brasil. Ela representa a mulher nordestina, transladada para a capital do país, que se nega a trabalhar como doméstica (destino da maioria), entregando-se à prostituição, mas sem perder a ambição de sair dessa vida para uma melhor. Uma arma importante para isso ela tem: sabe ler e tem uma compreensão maior que a do malandro das contradições sociais em que está inserida.

A imagem da prostituta é positiva. A iniciativa é sempre dela. O seu saber vem das letras mas também das lendas de sua terra, Alagoas. Ela é a portadora e transmissora do mito de Zumbi, cuja história conta como se contam contos, aumentando um ponto e associando-a ao seu amante: "Zumbi deve ter sido um crioulo assim como você".

A justaposição da história de Zumbi dos Palmares com o aparente epílogo de Pedro Mico produz, como apontou a crítica na época, um choque de efeito dramático extraordinário. A sabedoria de Aparecida, que lhe vem dessa combinação especial entre letra e oralidade, é captada intuitivamente por Pedro Mico que a trata de modo entre machista e cavalheiresco, proibindo Melize de desrespeitar a que agora é sua mulher, o que parece redimi-la do passado.

Pedro Mico, negro, perseguido pela polícia, marginal de morro, vai transformando-se numa réplica moderna do Zumbi, ou melhor dizendo, numa paródia deste. A sua fuga juntamente com a companheira, para Alagoas, ou Bahia, conforme uma segunda decisão de Aparecida, comandando a ação, contraria idéia enunciada pelo malandro segundo a qual as mulheres servem para obedecer os homens. No desfecho da peça, após uma perseguição policial, Pedro, não tem o mesmo destino de Ambrósio, assim como não tem o destino de Zumbi. Influenciado pela história do herói palmarino, contada pela companheira, faz de conta que se atira na ribanceira que dá para a janela do seu barraco, deixando um casaco dependurado nela, como sinal de que havia precipitado no abismo. Quando os policiais descem para conferir a suposta morte do perseguido, Pedro reaparece vitorioso, saindo do seu esconderijo, debaixo do barraco, e se proclama, ironicamente: "-— Zumbi, mas vivo." O anúncio do anti-herói pode também ser interpretado como inversão da história que virou lenda, segundo a qual o herói dos Palmares teria se atirado num precipício, versão que a moderna historiografia não confirma. De qualquer forma o personagem da peça de Callado se constrói como um Zumbi às avessas, que sobrevive precariamente, confinado nas margens de uma sociedade em que a repressão policial não é forma de combater a criminalidade, na medida em que a polícia acaba contaminada igualmente pela corrupção, conforme o demonstra a peça.

Uma rede para Iemanjá

Uma rede para Iemanjá, peça em um ato, escrita em 1961, tem como protagonista Jacira, mulher jovem e loura, que, grávida e abandonada pelo marido, busca uma rede onde possa se deitar para parir.

Essa peça se passa no Rio de Janeiro, nos anos 50. Aí se mesclam mulheres brancas com trabalhadores da construção civil, negros e nordestinos, por sua vez mestiços de índio; um negro tem o apelido de Manuel Seringueiro; uma mulher branca leva o nome de Jacira, mas se diz filha de Iemanjá e a única coisa que almeja é ter o seu filho numa rede, porque assim quer a sua deusa.

Tudo gira em torno desse parto na rua, em uma rede, deixada aí pelo marido de Jacira, que a abandona, mas não sem antes atender esse seu desejo: uma rede para parir. No parto ela é ajudada por um velho, cujo filho, Juca, morreu afogado. Ela o encontrara na praia rezando para Iemanjá trazer seu filho de volta. O menino que nasce na rede é visto assim como uma espécie de reencarnação de Juca. Como isso se passa pouco antes do 31 de dezembro, dia em que se homenageia Iemanjá, a peça pode ser lida como uma versão afro-brasileira de um auto de natal.

O tesouro de Chica da Silva

O tesouro de Chica da Silva, em 2 atos, é uma peça de fundo histórico, escrita em 1958.

A escrava Chica da Silva é a principal figura, cercada por suas mucamas, também negras, que formam uma espécie de coro. Além delas, há outras personagens importantes que com elas atuam, o seu amante, contratador de diamantes, João Fernandes, o Conde de Valadares, anti-herói, e outros brancos e negros que fazem parte do ambiente do Arraial do Tijuco (hoje, Diamantina) no século XVIII, tempo em que se passa a história.

Quando a peça começa, Chica é a amante do contratador e vive muito feliz com ele. Mas encontra-se no Tijuco o corrupto Conde de Valadares, governador da Capitania, embaixador do Rei de Portugal e do temido Marquês de Pombal. Ele está encarregado de fazer uma devassa que irá provocar a ruína de Chica e de João Fernandes. Na peça, Chica tenta primeiro comprar o conde, mas ele sempre quer mais.

Como ela não tem um tesouro em pedras preciosas que lhe havia prometido, ele ordena a prisão do contratador e a devolução de Chica para a senzala, para que volte a viver como as outras escravas. Aí ocorre o inesperado: o filho do Conde, D. Jorge, que não era publicamente reconhecido como tal, apaixona-se por Chica e, por amor, mata o capitão enviado pelo conde para levá-la à senzala. O tesouro prometido por Chica se converte então, para surpresa final do conde e do público, no filho deste, que ela lhe presenteia adormecido em sua cama, quando descansava do stress sofrido por matar o capitão. Como o conde não quer que o crime se divulgue e muito menos seu autor, o que o desmoralizaria, rende-se e faz o que Chica quer. Propõe-se a soltar o contratador que estava preso, mas Chica lhe ordena que ainda o deixe dormir na prisão uma noite, para que aprenda a ser mais corajoso, já que ela o condena por deixar-se vencer tão facilmente pelo conde. Como se vê, Chica domina a cena, apresentando-se como mulher forte, ao contrário do passivo contratador.

Um aspecto importante a assinalar nessa peça é que a rusticidade mal disfarçada de Chica serve freqüentemente para revelar a pseudo-cultura de uma elite de brancos tão ou mais ignorantes do que ela. O contraste se obtém ainda contrapondo elementos da cultura branca a elementos da cultura negra, como na música, por exemplo, onde o lundu africano aparece ao lado da música austríaca, apreciada pelos nobres portugueses. Mas também se evidencia a capacidade de os negros, representados por Chica e seus companheiros e companheiras, se apropriarem da música estrangeira e da música de brancos, valorizando, entre outras, a modinha de origem portuguesa.

Aqui, como em Pedro Mico, estão presentes os mitos afrobrasileiros. Além de Zumbi, são mencionados os Orixás, a quem Chica sempre recorre nos momentos difíceis, ficando com fama de feiticeira.

A personagem Chica da Silva reproduz também, tal como Pedro Mico, a figura do negro esperto e sedutor. No caso, trata-se da mulata com toda a sua ambiguidade de caráter, postada entre os poderosos detentores da riqueza produzida pela mineração, e um séquito de mulatas que a servem. Aqui, o enredo se presta a uma alegoria de escola de samba. É a mulata por quem os portugueses se entregam, a exemplo do Contratador de Diamantes João Fernandes e do jovem D. Jorge, filho do Conde de Valadares. A lendária história da amante do contratador não conhece limites para a mulata herdeira de grandes fortunas em jóias, propriedades e escravos, que quase perdeu seus privilégios com a intervenção do temível Conde de Valadares, na figura do Governador da Capitania e Embaixador d'El Rei D. José e do Marquês de Pombal.

Ao contrário de Pedro Mico, a astúcia, simplesmente, não seria suficiente para livrar Chica da Silva e o companheiro das malhas do fisco português que tencionava tirar o máximo proveito das riquezas minerais produzidas na colônia, à custa de condenações rigorosas, usando toda a violência possível. Foi graças à providencial aparição do apaixonado D. Jorge que Chica e o Contratador se livram da ruína anunciada, como se constata no desfecho cômico, com a sedutora mulata encontrada pelo furioso Conde, na cama, nos braços de D. Jorge, após o assassinato pelo próprio filho do Capitão da Guarda. Com a família envolvida no escândalo e a garantia de vantagens pessoais o fiel vassalo do rei bate em retirada e silencia sobre os desmandos morais da colônia degenerada e os desvios de riquezas entre gente desclassificada, conforme julga o Governador.

A representação da personagem Chica da Silva já não nos remete ao “negro heróico”, como paradigma de uma história da resistência, que sofre a perseguição e a morte para afirmar-se. Chica da Silva possibilita uma atrevida convivência com os poderosos, com todos os riscos que esta parceria pode provocar, ao reproduzir a relação da senhora com o seu séquito de mucamas, prestes a servir, felizes a colaborar.

Fonte:

Guerra Junqueiro (Boa Sentença)


Um homem rico, mas avarento, tinha perdido dentro de um alforje uma quantia em ouro bastante avultada. Anunciou que daria cem mil-réis de alvíssaras a quem lha trouxesse. Apresentou-se-lhe em casa um honrado camponês levando o alforje. O nosso homem contou o dinheiro, e disse:

– Deviam ser oitocentos mil-réis, que foi a quantia que eu perdi; no alforje encontro apenas setecentos; vejo, meu amigo, que recebeste adiantado os cem mil-réis de alvíssaras; estamos pagos por conseguinte.

O bom camponês que nem por sombras tocara no dinheiro, não podia nem devia contentar-se com semelhantes agradecimentos. Foram ter com o juiz, que vendo a má fé do avarento, deu a seguinte sentença:

– Um de vós perdeu oitocentos mil-réis; o outro encontrou um alforje apenas com setecentos. Resulta daí claramente que o dinheiro que o último encontrou não pode ser o mesmo a que o primeiro se julga com direito. Por consequência tu, meu bom homem, leva o dinheiro que encontraste, e guarda-o até que apareça o indivíduo que perdeu somente setecentos mil-réis. E tu, o único conselho que passo a dar-te, é que tenhas paciência até que apareça algum que tenha achado os oitocentos mil-réis.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Mauro Luna (Trovas da Reencarnação)

Angústias de amor perdido...
Fita o Céu, alma que chora!...
O Sol que se vai à noite
É o mesmo que vem na aurora.

“Tudo passa”, diz o povo,
Atento ao velho rifão,
Mas o amor volta de novo,
Na luz da reencarnação.

Reencarnação traz o olvido
Na existência transitória,
Menos no amor que persiste
Qual estrela na memória.

Amor na reencarnação,
Às vezes, pranto encoberto...
Saudade que vem de longe,
De um coração que está perto.

Uma afeição quando atinge
Todo o sonho da esperança,
Tem a beleza de um lírio
Nos dedos de uma criança.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Circo de Cavalinhos – II – O plano de Emília


Pedrinho tirou várias cópias do programa e as pôs dentro das cartas de convite que ia enviar aos seus amigos e às amigas de Narizinho.

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GRANDE CIRCO DE ESCAVALINHO

eqüestre e pedestre dirigido por

PEDRO MALASARTE
ESCAVALINHO DA SILVA
no Sítio do Pica-Pau Amarelo

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A famosa Emília correrá
no seu cavalo de rabo de pena

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O incrível homem que
come fogo e engole espadas

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O célebre palhaço Sabugueira
(rir, rir, rir. . .)

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A monumental pantomima o
Phantasma da Ópera

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O espetáculo terminará
com uma sensacionalíssima
SURPRESA

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Os espectadores terão direito a
uma cocada ou um pé-de-moleque
da célebre doceira ANASTAZIMOVA

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HOJE HOJE HOJE
VER PARA CRER

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Preços: cadeiras: 1 real;
arquibancadas: 10 centavos

Observação: é expressamente
proibido entrar por baixo do pano

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Quem levou as cartas? Quem mais se não esses preciosos portadores chamados Envelopes? Mas como os senhores Envelopes não sabem chegar ao destino se não forem acompanhados dos senhores Sobrescritos e de diversos senhores Selos, Pedrinho arranjou diversos senhores Sobrescritos e diversos senhores Selos para acompanharem os senhores Envelopes na longa viagem que tinham de fazer. E esses portadores se comportaram muito bem.

Nenhum deles se distraiu pelo caminho com brincadeiras, de modo que as cartas foram parar direitinhas nas mãos de cada um dos convidados.

— Muito bem! — disse a menina depois que os portadores partiram. — Só resta agora convidarmos os nossos amigos do País das Maravilhas. Eles nunca viram um circo e hão de gostar.

— É no que estou pensando — disse Pedrinho. — Acho melhor fazer um convite geral e incumbir o senhor Vento de ser o portador.

E o menino assim fez. Escreveu um lindo convite numa folha de papel de seda, picou o papel em mil pedaços e subiu à mais alta pitangueira do pomar para jogá-los ao vento lá de cima. E jogou em verso, porque o Vento, o Ar o Fogo e outras forças da natureza só devem ser faladas em verso.

Vento que vento frade,
Estas cartas levade,
Norte, sul, leste, oeste,
E direitinho, se não...
Temos complicação!

Narizinho, de nariz para o ar embaixo da árvore, riu-se daqueles versos. Depois lembrou-se de uma coisa.

— Você fez asneira, Pedrinho. Mandou convites para todos, o que não é prudente. Podem aparecer o Barba Azul, o capitão Gancho e outras pestes.

— Não tenha medo. Se algum deles cair na tolice de aparecer, atiço-lhe o cachorro em cima.

— Que cachorro? Não temos nenhum aqui.

— Mas vamos ter. Pedirei ao tio Barnabé que nos empreste o Maroto por uma semana. Preciso dele para não deixar que ninguém penetre por baixo do pano — e também para ser atiçado contra Barba Azul, capitão Gancho ou qualquer outro pirata que apareça. Que acha da idéia?

— Serve.

— Neste caso, apare no avental estas lindas pitangas.

E começou a derriçar lindas pitangas, vermelhas e graúdas. Depois desceu, com os bolsos cheios e sentou-se na raiz da árvore ao lado da menina. Ia comendo e falando.

— Tenho agora de levantar um empréstimo — disse ele. – Sem comprar uma peça de algodãozinho não poderei fazer o circo. Mas custa R$ 10,00 e no meu cofre só há R$ 5,30.

A menina fez a conta na areia com um pauzinho.

— Estão faltando R$ 4,70, se a minha conta estiver certa.

— Menos — advertiu Pedrinho. — Podemos contar com a renda do circo.

— Grande renda! Você bem sabe que todos vão pagar de mentira, e com dinheiro de mentira não se compra nada nas lojas.

— Sim, mas há duas cadeiras de um cruzeiro cada uma, reservadas para vovó e tia Nastácia. Elas têm que pagar dinheiro de verdade. E vou fazer já os bilhetes, porque precisamos vender essas cadeiras hoje mesmo e receber o dinheiro adiantado.

Pedrinho engoliu apressadamente as últimas pitangas e foi fazer os dois bilhetes especiais.

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C. de E.
Cadeira Reservada ..................................... R$ 1,00

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Narizinho, como era muito jeitosa para negócios, encarregou-se de vendê-las. Dona Benta não botou dúvida; comprou e pagou com uma nota muito velha, mas que ainda corria.

Tia Nastácia, porém, era a negra mais regateadeira deste mundo, de tanto regatear com os mascates sírios que passavam por lá. Fez a choradeira do costume e tanto barateou que obteve a sua entrada por 80 centavos.

— Com uma condição! — disse a menina. — Você tem que arranjar um tabuleiro de cocadas e pés-de-moleque. Circo sem cocadas não tem graça.

A negra resmungou, mas acabou prometendo. Obtidos assim mais R$ 1,80, ainda ficavam faltando R$ 2,90. Como fazer para consegui-los? Estavam os dois meninos atrapalhados com aquele difícil problema, quando a boneca apareceu com a sua colherzinha torta.

— Eu sou capaz de arranjar esse dinheiro! — disse ela depois de refletir um momento. — Mas só o arranjarei se Pedrinho me der aquele carro de rodas de carretel que ele fez outro dia.

Pedrinho soltou uma gargalhada.

— Você está pensando que dinheiro é biscoito, Emília? Por mais ativa que seja uma boneca não é capaz de arranjar nem um tostão.

— Não duvide de mim, Pedrinho. Bem sabe que sou uma boneca diferente das outras. Se me promete o carrinho, juro que arranjo o dinheiro.

— Pois vá lá, prometo!

A boneca deu uma risadinha cavorteira e foi correndo para dentro.

— Grande boba! — exclamou Pedrinho. — Pensa que dinheiro é cisco.

— Não duvide de Emília — advertiu a menina. — Ela tem lábias e não me admirarei se aparecer com o dinheiro.

— Como?

— Sei lá. Isso é com ela.

— Muito bem — disse Pedrinho mudando de assunto. – Tenho agora de ir ao mato cortar paus e cipós para a armação do circo. Enquanto isso, trate de fazer a roupa dos artistas.

— E a roupa da “surpresa”?

— Essa fica para o fim — concluiu o menino, pondo o machadinho ao ombro e partindo para a floresta.

Na tarde daquele dia dona Benta caiu numa grande aflição. Imaginem que tinha perdido os óculos e não podia costurar, nem fazer coisa nenhuma. “Sem óculos não sou gente” – costumava dizer. Nastácia e Narizinho já haviam batido a casa inteira, mas nem rasto encontraram dos “olhos de dona Benta”. Nisto a boneca aproximou-se da pobre senhora, dizendo com o seu arzinho de santa:

— Todos já procuraram os seus óculos, menos eu. Quer que os procure?

— Que bobagem, Emília! Pois se Nastácia e Narizinho, que são gente, não acharam meus óculos, você, que é uma simples boneca de pano, os há de achar?

— Tudo é possível neste mundo de Cristo, como a senhora mesma costuma dizer. Se quer experimentar a minha habilidade de achar coisas...

— Pois procure. Quem a impede disso?

— Quanto me paga?

— Interesseira! Pago o que você quiser. Um tostão, por exemplo.

Emília deu uma risada gostosa.

— Tinha graça! Era só o que faltava eu procurar óculos para ganhar um tostão! Meu preço é R$ 3,00.

— Você está louca? Não sabe que R$ 3,00 é quase o preço de um par de óculos novos?

— Não sei, nem quero saber. Só sei que meu preço para procurar óculos de velha é R$ 3,00 — e em notas novas. Se quer, bem; se não quer...

— Quero, quero — respondeu dona Benta já meio danada. – E quero também que vá brincar e não me atormente mais.

Emília saiu a procurar os óculos por todos os cantos e dali a cinco minutos gritava:

— Achei, achei o fujão! — e veio correndo, a sacudir os óculos no ar.

Dona Benta abriu a boca, de espanto.

— Onde estavam, Emília?

— Dentro do bolso de sua saia de gorgorão amarelo. Dona Benta abriu ainda mais a boca. Não podia compreender aquilo. Havia muito tempo que não punha aquela saia; como, pois, os óculos tinham ido parar lá, e logo no bolso? Mistério...

— Agora passe-me para cá os três cruzeiros em notas novas. Promessa é dívida — como diz tia Nastácia.

Dona Benta não teve remédio. Foi ao baú, escolheu três notas novas e deu-as à boneca. Emília dobrou-as, bem dobradinhas, e foi correndo procurar o menino que já havia voltado da floresta.

— Pronto! Aqui está o dinheiro! Passe-me um tostão de troco.

Pedrinho arregalou os olhos, assombrado, e apalpou as notas para ver se eram verdadeiras. Depois tirou um tostão do bolso e deu-o à boneca.

— Não aceito tostão velho e feio — disse Emília torcendo o nariz. — Quero um novo, alumiando.

Pedrinho teve de procurar pela casa inteira um tostão novo e teve também de consertar uma das rodas do carro de carretel, que estava solta. Só depois disso é que Emília entregou o dinheiro.

— Para que quer tostão, Emília? Dinheiro de nada vale para quem é boneca.

— Quero para rodar — respondeu ela — e saiu, muito contente da vida, rodando o tostão pela sala.

Enquanto isso, dona Benta e tia Nastácia cochichavam na cozinha a respeito do estranho acontecimento.

— Foi cavorteiragem dela, sinhá! — dizia a preta. — Emília está ficando sabida demais. Juro que foi ela quem escondeu os seus óculos para apanhar os cobres. A gente vê cada coisa neste mundo! Uma bonequinha que eu mesma fiz, e de um pano tão ordinário, tapeando a gente desta maneira! Credo!...
––––––––––––––
Continua… Circo de Cavalinhos – III – O circo

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 8 de janeiro de 2012

Paraná em Trovas Collection - 39 - Dinair Leite (Paranavaí)

Regina Vilarinhos (A Hora do E-mail)


Ah, o que é um e-mail? Quantos e-mails a gente espera por dia ou por hora? Para onde a gente quer mandar um e-mail?

Será que ao abrir nossa caixa de entrada, acharemos lá mensagens do mundo inteiro: algumas alucinantes e maravilhosas, ou repetitivas e entediantes... Ou até mesmo Deus ou alguns dos seus anjos de plantão, sabe aqueles que ficam com a caixa de e-mails aberta o tempo todo (afinal somos milhões de usuários!), mandam AQUELA mensagem linda, perdoando todos os nossos mails de piadinhas sobre padres e freiras, as fotos com os Deuses e Deusas gregas, as correntes carentes que mandamos para sabermos quantos de nós estão de plantão esperando por elas.

Quando damos o login de identidade, vem a resposta mágica: "Você tem 6 novas mensagens", em negrito! Finalmente, Deus ouviu minhas preces e resolveu me dar mais uma chance, eletronicamente falando. Anda computador! Abre logo a caixa de entrada, está lá minha salvação (pelo menos por hoje!).

Minha inspiração está de volta! Meu dia não está perdido! Terei assuntos diversos para o resto do dia e da semana. Encaminharei para todos a nova piada do Bush e Saddam, enviarei aquela apresentação com fundo musical para os amigos mais ecléticos, tirarei vantagem entre as invejosas sobre a foto de meu amigo virtual, que diz que está louco para me conhecer e que virá um fim de semana do Rio, só pra matar a curiosidade e, quem sabe, termos algo mais que uma amizade.

Mas, que coisa, o computador dele deu vírus (de novo) e ele perdeu as fotos da última viagem à Porto Seguro, que tinha escaneado para me mandar. Ah, mas ele promete que no próximo e-mail manda sem falta. E eu acredito. E depois, uma mensagem de mala direta, uma de alerta sobre a doença transmitida pelo celular... Ah, sim tem uma apresentação (mais uma!), com uma linda mensagem do mestre que transmitia ensinamentos aos seus discípulos e disse... Ei! Duas mensagens de minhas amigas escritoras. Será que estão me enviando um novo poema, saído agora dos seus neurônios poéticos e repletos de amor pra dar?

Meus Deus, elas me pedem conselhos! Pode?! Eu, dar conselhos à alguém? Como puderam pensar isso de mim... eu queria tanto dizer-lhes que estão enganadas. Já imaginou abrir sua caixa postal e achar uma mensagem de pedido de conselhos?

"Você é tão equilibrada!" Afirma uma. "Você sempre tem uma palavra de razão", dispara outra. Gente, e agora? Não posso deixá-las na esperança de abrirem seus e-mails e não encontrarem minha resposta, seja lá como for. Elas também tem ansiedade eletrônica e sofrem de emaillatria, como se de cada letrinha lida no corpo da mensagem, um novo mundo se abrisse, o amor de suas vidas surgiria na tela do monitor quando a foto fosse baixada, a combinação exata das dezenas da mega sena viria em código conhecido somente por elas.

Respiro fundo, pouso minhas mãos sobre o teclado, clico em "Escrever nova mensagem", e me lembro de que em meu computador tem uma apresentação linda, com fotos do Taj Mahal, um mantra maravilhoso, infalível, e trato de anexá-lo ao texto. Junto com ele, copio uma piada excelente sobre loiras. Não! Sobre portugueses...Nãããooo! Ah já sei, a foto do Bush e Saddam em enlace carnal extremamente amoroso. Pronto! Minha resposta está perfeita e só preciso clicar no enviar. Antes, digito os endereços no Cco, pois uma não precisa saber que mandei a mesma mensagem para a outra. Pelo menos, por enquanto, até nos encontrarmos pessoalmente e minha estratégia ser revelada.

Uma esperança sendo enviada pela banda larga.

Os olhos delas irão brilhar, quando brotarem na suas identidades a notícia mágica: "Você tem (1) nova mensagem." Em negrito.

Fonte:
Contos do Coral. Garganta da Serpente.

Francisco José Pessoa (Décima: Palhaço)


A vida se nos faz meros palhaços...
sorriso solto num choro prendido,
querer que é dado nunca agradecido
saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
embebedar-se tanto pra esquecer,
sentir-se ser alguem, mesmo sem ser,
no picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
imagem tão real quanto ilusória
pranto da morte rindo pra viver!
--
Fonte:
Décima enviada pelo autor

J. G. de Araújo Jorge (Quatro Damas) 5a. Parte


" ELA "

Quando ela passa na rua
é como uma banda de música:
- um escarceu!

E como sou maluco por música
desde garoto,
- lá vou eu !

" ELEGIAS A UM AMOR PERDIDO... "

I
Vivemos pior que dois estranhos,
como condenados, carregando
um hediondo segredo
a nos torturar...

Pesada solidão a das almas nuas
que continuam juntas, sempre duas,
sem nada que esperar...

II
Levamos escondido
o corpo de um amor
que em vida, nos enlevou
e hoje, nos oprime...

a verdade
é que simulamos dolorosamente
uma felicidade,
como quem oculta algum crime...

III
A nossa covardia
( e quais serão as razões,
se não há para nós amanhã ou depois? )
- invento esta agonia
a dois...

E assim, como preso sem grades,
em nossa mútua presença,
vamos cumprindo cada dia
de uma interminável sentença...

IV
Crueldade do destino!
Quantas vezes cansado,
sem saber com que forças, me pergunto,
e a mim mesmo me digo:

- por que, pelo mal que fizemos
apenas a nós mesmos
um tão duro castigo ?

" ESCOLHA "

- Se tivesses que escolher
entre o céu
a terra
a liberdade
o amor,
que escolherias ?

- O amor.

" ESTÁ CHEIO DE TI MEU CORAÇÃO..."

Está cheio de ti meu coração
como a noite de estrelas está cheia,
tão cheia, que ao se olhar para a amplidão
o olhar de luz se inunda e se incendeia...

Está cheio de ti meu coração
como de ondas o mar que o dorso alteia,
como a praia que estende sobre o chão
milhões de grãos do seu lençol de areia...

Está cheio de ti meu coração,
como uma taça, erguida, transbordante,
num momento de amor e de emoção,

- como o meu canto enquanto eu viva e eu cante
como o meu pensamento a todo instante
está cheio de ti meu coração !

" ESTAMPAS "

I
E dizer
que me fazes sentir Príncipe Encantado
capaz de mil romances e aventuras
e do sonho mais belo,

eu, cavaleiro, de glórias enfastiado,
vencido e destronado,
sem reino e sem castelo...

II
Chegas
com teus olhinhos vidrados
teus olhinhos de contas, de boneca ou de fada,
e se encontro teu olhar
esqueço toda a vida passada
e tenho a impressão de que tudo
vai começar...

Oh, a pureza de teu coração! Oh, a ingenuidade
de teu olhar de manhã sem segredos,
sem nuvens, sentimental...

De repente, me sinto
como um brinquedo, numa casa de brinquedos,
ao olhar de uma criança
na véspera de Natal…

"ESTES VERSOS "

Estes versos não foram escritos como tantos
nas minhas horas sós, nas madrugadas
da lembrança...

Escrevi-os em teu corpo, eu os dizia ao teu lado
ao teu ouvido
com os lábios em teus cabelos,
sem perceber que eram versos ...

Foste tu que os encontraste em seu canto
que acreditaste neles,
(e, quem sabe? por vaidade)
te punhas a repeti-los para que não se perdessem ...

Estes versos não eram para ser escritos,
não sabiam sequer que eram versos,
eram apenas palavras de amor que tu recolheste
como um punhado de flores silvestres sem nome...

Simples palavras de amor que colheste, e em tuas mãos
desabrocharam sua inútil perenidade,
quando tinham nascido para morrer pelo chão
como as coisas efêmeras...

Agora
estes versos, que não eram versos, que eram simplesmente
palavras de amor,
são versos
de dor.
--
Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Quatro Damas. 1. ed. 1964.

Marcelo Gama (Retalhos)


Paixão é cardo na areia
Que o rochedo traz na face,
Qualquer maré que se alteia
Arranca o broto que nasce.

Nas mágoas do amor cativo,
A desdita mais atroz
Vem sempre de um só motivo:
Gostamos demais de nós.

Amar – sofrer por amor.
Ser amado – ser feliz.
Qualquer um pode ser flor,
Difícil é ser raiz.

Ser mais livre na existência!...
Não tentes ser livre em vão...
Às vezes, independência
É o nome da ingratidão.

Caridade se percebe
No câmbio melhor que há:
Quem dá tudo o que recebe
Mais recebe do que dá.

Nada dói mais, onde ando,
Que esta cena rude e cega:
Menino pobre fitando
O pão que o mundo lhe nega.

A morte tem tanta arte
Nas lições a que se aplica,
Que, às vezes, vive quem parte,
Enquanto morre quem fica.

Ninguém se queixe da sorte –
Luz ou lama, guerra ou paz –
Na vida, quanto na morte,
Cada um tem o que faz.

A vida se classifica
Por esta base singela:
Quanto mais útil, mais rica,
Quanto mais simples, mais bela.

Não sei que glória mais vasta,
Se da estrela na amplidão,
Se da fonte que se arrasta
Servindo a todos no chão.
--
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 446)


Uma Trova de Ademar

Versos já fiz - não sei quantos -
relembrando a mocidade...
Hoje servem de acalantos
para ninar a saudade.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Contemplo o céu para vê-las
com um respeito profundo,
pois na raiz das estrelas
eu vejo o dono do mundo.
–RODOLPHO ABUDD/RJ–

Uma Trova Potiguar

Desperto e fico tristonho,
é triste o meu despertar,
ver acabado o meu sonho
antes do sonho acabar!
–PROF. GARCIA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Voltas mais calmo... Vens triste...
E te juro amor infindo...
Foi mentindo que partiste,
e eu te recebo... Mentindo!...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ–

Uma Trova Premiada

2011 - Niterói/RJ
Tema: MEMÓRIA - M/H


Pode ir embora, querida...
Que eu guardo a dor compulsória
de ter que arrancar da vida
quem tatuei na memória...
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Simplesmente Poesia

A Flor do Altar da Virgem
–THALMA TAVARES/SP–


Maria mais me encantava
quando aos cabelos prendia
a flor que eu sempre roubava
do altar da Virgem Maria.

E a Virgem sempre me olhava
com olhar de simpatia.
Penso até que perdoava
o meu gesto de ousadia.

Talvez tivesse entendido
que esse meu ato atrevido
era um gesto de ternura.

E ao dar a flor à Maria
eu juro que me sentia
enfeitando a formosura!

Estrofe do Dia

Se a saudade soubesse como estou
não faria tamanha ingratidão,
pediria ao meu pobre coração
mil desculpas por tudo que causou;
um estrago em meu peito ela deixou
que remédio nenhum faz mais efeito,
pra curar está dor não achei jeito
que a lembrança por dentro me corrói;
se a saudade soubesse o quanto dói
não faria comigo o que tem feito.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

Velho Órfão
–JOSÉ ANTONIO JACOB/MG–


Desde cedo esperei o que não vinha
E a minha vida foi perdendo o prazo:
Fui vendo a minha sombra mais sozinha
E o meu destino cada vez mais raso.

E, enquanto, andei do quarto até a cozinha,
Pesou-me os passos, e causou-me atraso,
Desfolharam-se os dias na folhinha
E o tempo foi morrendo em meu ocaso.

Súbitos longos anos tão estreitos,
Sinto vê-los perdidos sem proveitos,
E sem proveitos não me presto mais...

Eu sou aquele velho desolado,
Que vive a andar atrás do seu passado,
Como a criança órfã que procura os pais.
--
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Oscar Batista (Trovas da Esperança)


Esperança – doce alento
De quem serve, ama e confia,
Escora no sofrimento,
Pão nosso de cada dia.

O mundo – furioso mar;
A vida – prova de fé!...
Esperança – a nau serena
Que não se rende à maré.

Artigo da Lei Celeste
Para a vitória do bem:
Não arredes a esperança
Do coração de ninguém.

Quando a gente tudo perde
E nada mais tem à mão,
Esperança lembra a estrela
No meio da escuridão.

Esperança – eterna chama
Que ampara, aquece e ilumina!...
Luar refletindo o Sol
Da Providência Divina.
--
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Lendas e Contos Populares do Paraná (Almirante Tamandaré, Antonio Olinto, Arapoti, Clevelândia, Palmeira, Piraí do Sul)


ANTONIO OLINTO
O caixão


Em um rio de Antonio Olinto há um caixão, todo feito de cimento, que vaga pelas águas; poucas pessoas conseguiram vê-lo, pois ele aparece às vezes. Dizem que um dia, quando um homem estava pescando viu o tal caixão. O pescador, que sempre levava uma arma, naquele dia já a havia utilizado para atirar em uma pomba na beira do rio; mas quando ele foi pegá-la só havia penas e o misterioso caixão. Assustado, foi contar para os amigos e vizinhos que logo foram ver no local o caixão.

Ao chegarem no local, nada havia; desapareceu o misterioso caixão. Contam, também, que para retirar esse caixão da água é preciso que se tenha dois bois gêmeos. As pessoas que viram esse caixão já tentaram tirá-lo da água, mas, até hoje, ninguém conseguiu.

ARAPOTI
O preço da farra


João era um homem fanfarrão que não vivia sem um baile e diversão e, mesmo depois de casado, freqüentava bares e galpões por Arapoti afora.

Certa noite, ele encontrou uma bela moça e, após duas ou três músicas, não esperou nenhum instante e acompanhou-a até à casa dela. A mulher tinha ótima aparência, bem vestida e devidamente maquiada; era a figura mais notável da festa. Mas sua presença por ali já não se via há muitos e muitos anos. Chegando à casa da moça, eles entraram em uma sala enorme, o homem tirou seu casaco e colocou-o sobre uma cadeira. Após o lanche, e muito papo, ele despediu-se com a certeza de que voltaria a vê-la mais vezes.

No outro dia, o coveiro que era seu amigo foi até sua casa e entregou-lhe o casaco. A princípio, João duvidou, mas reconheceu como sendo seu aquele casaco e contou que havia esquecido na casa daquela moça. O seu amigo sorriu, dizendo que o havia encontrado dentro de um mausoléu no cemitério.

ARAPOTI
O espírito do cemitério


Há anos atrás ocorreu um fato no cemitério da cidade. Alguns jovens, em uma brincadeira de mau gosto, apostavam quem pegava mais cruzes, brincadeira esta que era muito comum naquela época.

Certo dia, uma moça muito bonita faleceu por causa não relatada, deixando um clima sombrio no local. Ao chegar o dia de finados, mais ou menos duas semanas depois do acontecimento, um rapaz senta-se sobre um túmulo e repara em uma bela garota ao seu lado. Inicia-se a conversa entre os dois que acaba repentinamente quando ele revela que roubava cruzes. Ela o desafia a roubar uma cruz naquela noite, a sua própria. Ela entrega-lhe uma rosa e desaparece no meio de outras pessoas. Ele guarda a flor dentro do bolso, envolta em um lenço azul.

Naquela noite, para a surpresa dele e de seus amigos, não havia nenhuma lápide e nenhuma cruz; era como se aquele lugar nunca tivesse existido. Ele lembrou-se da rosa. Quando pôs a mão no bolso teve uma terrível surpresa: a rosa transformara-se em um pedaço de osso humano.

CLEVELÂNDIA
A escrava


Há muitos anos atrás, em uma fazenda de nosso município, um fato curioso aconteceu. Certa amanhã de inverno, dona Maria esquentava-se na boca de seu fogão à lenha, quando sua escrava começou a falar, que quando morresse, não gostaria de ser enterrada no cemitério municipal e sim no cemitério da fazenda. Ali era o lugar que ela gostava. Dizia ela: “aqui eu nasci, aqui vivi e aqui quero ficar; naquela colina de onde poderei ficar enxergando os meus senhores, os quais foram tão bons para mim”. Sua patroa ria muito e não ligava para o que ela falava.

Como, naquela época, morriam muitas crianças ainda bebês, do chamado mal dos sete dias, a fazendeira fez um cemitério para as crianças, bem embaixo de um lindo pinheiro. Foi todo cercado com uma linda cerca branca. Muito tempo se passou e a escrava faleceu. Foi velada na fazenda, depois colocada em uma carroça para ser enterrada no cemitério municipal.

Porém, para sair da fazenda era preciso passar bem ao lado do cemitério das crianças e veja só o que aconteceu: quando chegaram bem perto do cemitério da fazenda, a carroça parou e os bois não iam nem para frente nem para trás. Puxavam, batiam nos bois, gritavam e nada adiantava. No mesmo instante, dona Maria lembrou do pedido que a escrava havia feito e determinou que voltassem, pois ela seria enterrada no cemitério das crianças, assim fazendo a vontade da escrava.

Os bois, então, começaram a andar sem que ninguém precisasse comandá-los. Andaram e chegaram até o portão do cemitério ali parando. Enterraram a escrava ali, realizaram seu último pedido, seu desejo de permanecer para sempre perto de seus senhores. Como dizia a escrava: “aqui nasci, aqui vivi e aqui quero ficar”.

PALMEIRA
Túmulo fora do cemitério


No verão de 1872, Zeca Paula, filho de rico estancieiro do Rio Grande do Sul, na cidade de Uruguaiana, trazia uma grande tropa, com destino à feira de Sorocaba, em São Paulo. Exaustos pela travessia do caminho do Viamão, chegando aos campos gerais estes resolveram fazer uma
pausa forçada.

Enquanto os peões zelavam pela tropa, Zeca Paula hospedava-se na freguesia de Palmeira, foi então que deparou com uma linda jovem, filha de importante família local. Os dois logo se apaixonaram. Conta a lenda que o pai não apreciava aquele namoro. Foi então que a jovem deixou de ser vista na janela. Dizem que a linda moça padecia em um sítio muito distante, consolada por sua mãe. Com o desaparecimento da moça o namorado entristeceu-se, de tal ponto que foi ao desespero. Pouco tempo depois, encontraram-no morto, enforcado em seu próprio quarto.

Sendo esta grande injúria contra Deus, no seu sepultamento o pároco não permitiu que seu corpo fosse enterrado no cemitério da capela Bom Jesus, ficando assim do lado de fora e em cova rasa.

Não se passando muito tempo, veio seu pai a Palmeira, substituir aquela modesta cruz de madeira por uma sepultura de pedra e cal, onde colocou uma lápide com os dizeres: “aqui jaz José de Paula e Silva filho do Barão de Ibicuí, nasceu em 2 de abril de 1835 e faleceu em 7 de março de 1873”. Com a reforma do cemitério, os restos mortais foram levados para o cemitério municipal onde se pode ver a referida placa em seu túmulo.

PALMEIRA
Lenda dos dois cavaleiros


Como um tropeiro cometeu uma injúria muito grave a Deus, o pároco não permitiu que o seu corpo fosse enterrado dentro do campo santo. Foi então enterrado fora dos muros do cemitério da capela do Senhor Bom Jesus. Entretanto, nesse mesmo período, um outro homem havia se enforcado, também cometendo grave injúria contra Deus.

Dizem que esses homens visitam-se. Passam pela “rua do Banhado” correndo, montados em cavalos sem cabeça e quando se encontram, descem de suas montarias e começam a cavar o solo, em sinal de cumprimento. Depois de voltar cada um ao seu lugar, desaparecem misteriosamente.

PIRAÍ DO SUL
O túmulo de Maria Quebra


Já existindo como aglomerado populacional desde o início do século XVII, o então Bairro da Lança manteve até o início do século XX as mesmas características das povoações habitadas por portugueses e seus descendentes, em sua convivência com o índio e o negro.

A Proclamação da Independência, a libertação dos escravos, a Proclamação da República ou a Revolução Federalista, ou outro fato nacional, em muito pouco modificaram o dia-a-dia dos habitantes do Bairro da Lança. Localizado às margens do caminho do Viamão a Sorocaba, o pequeno povoado que englobava as localidades de Cercadinho (Campo Comprido), Lança, Silva, Fundão, Machadinho, Furnas (Murtinho), Tabor e Jararaca, assistia à passagem do viajante que demandava São Paulo ao Rio Grande do Sul, ou dos Pampas ao Norte do País. Por ser o único caminho de ligação com o sul do Brasil, ou acolhia o tropeiro em sua passagem para a feira de Sorocaba, ou na volta aos campos de criação do Sul, sem que as características do seu dia-a-dia fossem modificadas significativamente.

Os mortos eram enterrados com o tradicional cerimonial da época, nos cemitérios existentes nas concentrações mais importantes do bairro como: Campo da Lança, Campo Comprido, Furnas e Fundão e mais recentemente no cemitério da Vila Piraí, localizado no Alto da Rua XV, onde os portugueses, brasileiros, índios ou escravos recebiam sepultura sob as bênçãos da fé cristã, o respeito às Leis, aos costumes e à tradição.

Entre os séculos XIX e XX, residia na rua hoje denominada Julieta Veiga Queiroz, nas imediações da casa de dona Zelinda Miro, uma senhora a quem chamavam “Maria Quebra”. Tinha esse nome em razão do gênio atirado, ou por suas atitudes violentas e rudes, o que era motivo constante de brigas e desentendimentos, o que lhe valeu o apelido.

A passagem para o século XX veio trazer a Piraí do Sul sensíveis modificações em todos os segmentos da vida local, notadamente em seus costumes e hábitos, comércio, sociedade, modificações estas que perduram até o final da Primeira Guerra Mundial.

A população local que era constituída essencialmente de descendentes de portugueses, com suas mesclas com o índio e o negro, recebeu o choque da imigração européia (alemães, poloneses, russos/ucraínos e italianos), bem como um significativo contingente árabe. Novos rumos tomou o aglomerado populacional, com um significativo aumento na construção de casas em novos estilos e o traçado de novas ruas. O dia-a-dia da Vila Piraí foi modificado sensivelmente, com novos hábitos na vida social, na igreja, no casamento, na comida, na escola, no comércio e na política, conservando até hoje a influência da imigração italiana. Com o aumento da população da sede da Vila, o pequeno cemitério da rua XV (alto), passa a receber os mortos não só da zona urbana, mas também da zona rural, recebendo melhoramentos, bem como túmulos artisticamente construídos.

Maria Quebra, na sua vivência com bebidas e festas e pela vida devassa que levava, contraiu o mal de Hansen, tendo padecido por longos anos desta enfermidade. Em meados do ano de 1917 veio a falecer, preparando-se o seu sepultamento, que seria realizado no cemitério ao alto da rua XV, como era de costume para os moradores da Vila. Sepultamento esse que não foi autorizado, sob a alegação de que Maria Quebra havia morrido de lepra e não poderia ser enterrada junto aos mortos daquele cemitério. O cemitério mais próximo da Vila era o Campo da Lança, que estava sendo desativado, primeiro pelo novo hábito de se utilizar o cemitério da Vila e, também, porque o local estava infestado de tatus rabo mole, ou testa de ferro; animais que profanavam as sepulturas, levando a que as famílias se negassem a enterrar seus mortos naquele local. O cadáver de Maria Quebra, insepulto, esperava local para seu merecido descanso, tendo em vista a negativa da autorização do uso do cemitério municipal.

Por fim, decidiu-se que ela poderia ser enterrada nas proximidades daquele campo santo, desde que fora dos muros. Assim, Maria Quebra recebeu sepultura ao lado direito da estrada que passa nos fundos do cemitério municipal e vai em direção ao bairro do Bonsucesso. Sua sepultura está a uns 700 metros além dos muros, ao pé de um centenário cedreiro, onde até hoje alguns devotos depositam suas preces e oferendas.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr. (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 21. ed. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005. (Cadernos Paraná da Gente 3).

Guerra Junqueiro (O Talismã)


Dois habitantes da mesma cidade exerciam nela a mesma indústria, mas com resultados bem diversos: um enriquecia-se e o outro arruinava-se, o que não era de espantar, pois que o primeiro zelava os seus negócios com uma actividade infatigável, enquanto que o segundo, entregue inteiramente aos seus prazeres, encarregava os estranhos da direção da casa.

– Explica-me, disse um dia este último ao seu colega, qual é a razão porque a sorte nos trata de modo tão diverso? Vendemos iguais mercadorias, a minha loja está situada corno a tua e apesar disso, enquanto ganhas, eu não faço mais do que perder. E não é porque eu seja estroina: não bebo, nem jogo. Chego a pensar algumas vezes se não terás por acaso algum feitiço ou talismã.

– Efetivamente, respondeu o outro, herdei de meu pai um talismã de uma virtude incomparável. Trago-o ao pescoço e ando assim com ele todo o dia por toda a casa, do celeiro à adega, e da adega ao celeiro. E o caso é que me corre tudo às mil maravilhas.

– Olé, meu querido colega, empresta-me, pelo amor de Deus, essa relíquia milagrosa!

– Pois vem buscá-la amanhã de manhã.

Quando ao outro dia foi procurar o seu generoso concorrente, apresentou-lhe este uma avelã, através da qual tinha passado um fiozinho de seda.

O nosso homem pô-la imediatamente ao pescoço, e começou a correr por toda a casa. Observou então a completa desordem de tudo aquilo. Na adega faltava-lhe vinho, cerveja e azeite; na cozinha, o pão, a carne e os legumes; no celeiro, o milho, o trigo, o feijão; na estrebaria, o feno e a aveia, roubados das manjedouras dos cavalos; viu finalmente, como os seus livros e registros andavam mal escriturados; viu tudo isto e que era necessário remédio, compreendendo que o dono da casa nunca pode ser substituído por terceira pessoa na direção dos seus negócios.

Passados dias foi entregar ao dono o precioso talismã, agradecendo-lhe duplamente o bom conselho, e a maneira delicada por que lho tinha dado.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Adelmar Tavares (Trovas Depois da Morte)


O regozijo da morte
Que ninguém sabe dizer
Tem a beleza da noite
No instante do amanhecer.

Ouvi, alguém que dizia:
-Lá se vai o poeta morto,
Sem perceber a alegria
Do sonho chegando ao porto.

No momento derradeiro,
Antes do sono feliz,
Compus em gotas de pranto
A trova que nunca fiz.

Afeições enternecidas,
Meus derradeiros amores!...
Deus vos salve, mãos queridas,
Que me cobristes de flores!...

Morte!... No termo das provas,
Senhor, agradeço a luz
Com que adornaste de trovas
As trevas de minha cruz!
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Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Circo de Cavalinhos – I – A operação cirúrgica


Depois do concurso para a fabricação do irmão de Pinóquio, houve no sítio de dona Benta outro concurso muito engraçado – o concurso de “quem tem a melhor idéia”. Quem venceu foi a Emília, com a sua estupenda idéia de um “círculo de escavalinho”. Dona Benta, que era o juiz do concurso, achou muito boa a lembrança, mas deu risada do título.

— Não é “círculo”, Emília, nem “escavalinho”. É circo de cavalinhos.

— Mas toda gente diz assim — retorquiu a teimosa criaturinha.

— Está muito enganada. Eu também sou gente e não digo assim.

O Visconde, que está quase virando gente, também não diz assim.

Emília teimou, teimou, e por fim acabou aceitando só metade da emenda.

— Já que a senhora “faz tanta questão”, fica sendo circo de escavalinho.

Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida.

— É que a senhora não está compreendendo a minha idéia — explicou. — Escavalinho é o nome do diretor do circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte Escavalinho da Silva, está entendendo?

Dona Benta riu-se da esperteza, mas Pedrinho gostou da idéia e aceitou que o circo teria o nome inventado pela boneca. Em vista disso começaram os três a formular planos e a distribuir papéis.

Emília seria a dama que corre no cavalo e pula os arcos. João Faz-de-conta seria o homem que engole espada e come fogo. E palhaço?

Estava faltando justamente o principal, que era o palhaço.

— O Visconde daria um bom palhaço, se não fosse a sua mania de ciência; mas creio que podemos curá-lo. Vou chamar o doutor Caramujo.

— Acho boa a idéia — concordou Narizinho. — Além disso...

Mas não pôde concluir. Rompera um bate-boca na cozinha, no qual se ouvia a voz de tia Nastácia gritando:

“Puxe daqui pra fora”! Os meninos correram a ver do que se tratava e encontraram-na tocando o Visconde com o cabo da vassoura.

— Que é? Que foi?

— Pois é este senhor Visconde que está me bobeando — explicou a negra. — Eu aqui bem quieta escamando estes lambaris para o almoço, e o “estrupício” aparece de livrinho na mão e começa a mangar comigo, com uma história de “seno” e “co-seno” e não sei que história de “mangaritmos”. Eu estou cansada de dizer que não sei inglês, mas o diabo parece que não acredita...

— “Mangaritmos!” — exclamou o Visconde erguendo os braços para o céu — e plaf! caiu por terra com o ataque.

Narizinho correu a socorrê-lo e levou-o para a casinha dele, onde o acomodou dentro da lata que lhe servia de cama. Depois gritou:

— Depressa, Pedrinho. Mande Rabicó chamar o doutor Caramujo. O nosso Visconde está muito mal.

A casa do Visconde era um vão de armário na sala de jantar. Dois grossos volumes do Dicionário de Morais formavam as paredes. Servia de mesa um livro de capa de couro chamado O Banquete, escrito por um tal Platão que viveu antigamente na Grécia e devia ter sido um grande guloso. A cama era formada por um exemplar da Enciclopédia do Riso e da Galhofa, livro muito antigo e danado para dar sono. Mas desde que o Visconde ficou uma semana inteira atrás da estante e criou bolor pelo corpo inteiro, não era ali que ele dormia, para não sujar o chão com o seu pozinho verde; dormia na lata. Outros “móveis” — armarinhos, cadeiras, estantes, também eram formados dos livros de capa de couro, que dona Benta havia herdado de um seu tio, o Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira. Era naquela casinha que o Visconde passava a maior parte do tempo, lendo, lendo que não acabava mais. E tanto leu que empanturrou.

Rabicó fora chamar o médico. Meia hora depois chegava o célebre doutor Caramujo, afobadíssimo, de malinha debaixo do braço.

— Quem é o doente? — foi logo indagando.

— É o senhor Visconde de Sabugosa, que teve hoje um ataque. Venha vê-lo, doutor.

O médico dirigiu-se para a lata do Visconde, examinou-o e franziu a testa.

— Hum! O caso é dos mais graves. Tenho de operá-lo imediatamente. Sua Excelência está empanturrado de Álgebra e outras ciências empanturrantes. Tragam-me uma bacia d’água, toalha e também uma pedra de amolar.

Pedrinho trouxe as coisas pedidas; o médico amolou na pedra a sua faquinha e abriu de alto a baixo a barriga do Visconde.

— Xi! — exclamou fazendo uma careta. Vejam como está este pobre ventre. Completamente entupido de corpos estranhos.

Pedrinho e Narizinho espiaram aquela barriga aberta e viram que em vez de tripas o Visconde só tinha uma maçaroca de letras e sinais algébricos, misturados com “senos” e “co-senos” e “logaritmos” — ou “mangaritmos”, como dizia a tia Nastácia.

— Coitado! — exclamaram ambos, compungidos. Está mesmo muito mal.

O doutor Caramujo tomou uma colherzinha e começou a tirar para fora toda aquela tranqueira científica, depositando-a num pequeno balde que Pedrinho segurava.

— Não tire todas as letras — advertiu o menino. Se não ele fica bobo demais. Deixe algumas para semente.

— É o que estou fazendo. Estou tirando só o que é Álgebra. Álgebra é pior que jabuticaba com caroço para entupir um freguês.

Terminada a operação, o doutor colou a barriga do doente com um pouco de cola-tudo.

— Temos agora de deixá-lo em repouso durante três dias — recomendou. Depois desse prazo poder dar seus passeios pelo campo, a fim de tomar sol e respirar as brisas da manhã. Também é preciso esconder quanto livro de Álgebra exista por aqui, para evitar recaída.

Pedrinho pediu a conta, pagou-a e despediu-se do doutor, recomendando-lhe que desse muitas lembranças ao príncipe Escamado, a dona Aranha e outros personagens do reino.

— Que bom médico! — exclamou a menina logo que o doutor Caramujo partiu. Com um doutor assim até dá gosto ficar doente. Mas estou notando que esquecemos duma coisa, Pedrinho.

— Que foi?

— Esquecemos de botar casos engraçados dentro da barriga do Visconde. Como vai ser palhaço de circo, ficaria ótimo se nós o recheássemos como tia Nastácia faz com os perus.

— Recheio de quê? — indagou o menino.

— De anedotas, por exemplo.

— Bem pensado! Mas ainda está em tempo, porque a cola não secou.

E abrindo de novo o Visconde, puseram dentro três páginas bem dobradinhas dum livro do Cornélio Pires Depois colocaram-no outra vez e deixaram-no a secar em paz.

— Venha ver, Emília, quanta letra saiu de dentro do coitado — disse a menina, indo ao quintal despejar o balde. — Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros, Os únicos que não fazem mal são os que têm diálogos e figuras engraçadas.

Passados os três dias de repouso, o Visconde pulou da sua lata e foi passear pelo terreiro, conduzido pela Emília, ainda muito fraco mas perfeitamente curado das suas manias.

— Agora sim — disse Pedrinho — nosso circo vai ter um palhaço ainda melhor que o tal Eduardo das Neves que tia Nastácia tanto gaba. Você, Narizinho, precisa fazer-lhe uma roupa bem pândega.

— Estou pensando em fazer-lhe uma roupa de palhaço de verdade, com um grande sol amarelo atrás.

— Pois vá cuidar do sol que eu vou organizar o programa da festa.

Dali a pouco o programa estava pronto — e que lindo!

— Está muito bom — aprovou a menina. — Só falta a música.

— Já pensei nisso e está difícil de resolver. Vovó não pode ser música, porque precisa ficar recebendo os convidados. Tia Nastácia também não pode, porque precisa ficar tomando conta das cocadas. Não sei como este para ser...

— Rabicó! — sugeriu a menina. — Rabicó pode ser música. Não é muito afinado, mas passa.

— Esse não; preciso dele para outra coisa. — e Pedrinho cochichou-lhe ao ouvido um segredo.

— Ótimo! — exclamou a menina batendo palmas. — Vai ser uma sensação! Acho que é a melhor idéia que você já teve, Pedrinho!

— Mas veja lá! Não diga nada a ninguém — nem à Emília, senão a coisa perde a graça.

E ainda cochicharam por vários minutos, dando grandes risadas espremidas.
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Continua… Circo de Cavalinhos – II – O plano de Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa