sábado, 5 de janeiro de 2013

Raimundo Fontenele (Poesias Avulsas)


O DOM DE SER DE NOVO

 Como num passe de mágica
 vi-me posto de joelhos adorando uma paisagem.
 Todas as estrelas eram azuis
 e o céu era azul e assim era a vida.
 Aquela água cristalina e verde entre montanhas,
 aquele verde de Deus doendo em nossos olhos,
 aquele murmúrio de pássaros,
 leves plumas, algodão nos lábios passeando,
 ó alegria do mundo!, glória única entre os homens.
 E a paz guardada num coração de cofre.
 E os animais com seus passeios divinos.
 Água dos rios, mar de lágrimas oceânicas,
 piano e voz, é esse o criador que tudo faz.
 Você que me trouxe ao mundo e me deu voz
 para falar, e cantar e gritar: vida é isso aqui.
 Nuvens com chuva pra ninguém chorar.
 Fogo nas montanhas para seguirmos viagem.
 Pasto pros animais. Mundo verde, mineral.
 Ponte e abismo pra sairmos da lama.
 Deu-nos o dom dos salmos para dizermos verdades,
 deu-nos o ar nos pulmões pra respirarmos em uníssono
 e suspirarmos, depois, de amor e de lembranças.

OS DOMINGOS

 Domingo sozinho é pára-raios
 de lágrimas. E chove como nunca nessas flores,
 o dia amanhecendo com seus galos.

 Há barulhos estranhos pela casa.
 Um livro de Vallejo e uma faca
 com a qual devo arrancar meu coração para
 ofertar-te : um peixe pulando sobre a mesa.

 Toda ferida acesa. Todo o céu maculado.
 Embaçado amor, corrente de amarrar doido
 que não me deixa correr ao teu encontro.
 É tudo que leio e vejo.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.

Raimundo Fontenele (64 anos de nascimento 42 anos de poemas)


Artigo de Alberico Carneiro

 Raimundo Fontenele nasceu em Predeiras, MA. Em sua trajetória de mais de quatro décadas de publicações, ele nos lega uma obra literária que é causa de orgulho a todos quantos, dentre os maranhenses, levam a sério o reconhecimento do nome do Maranhão como terra de excelentes artistas. E quando dizemos terra de artistas, estamos falando em algo com letra maiúscula, para que o povo não confunda a palavra artista com a mesma que se usa para designar pessoas que, com suas atividades, promovem apenas distração, diversão ou entretenimento, o que, sem dúvida já é alguma coisa, mas não é a mesma coisa. Assim, quando dizemos terra de excelentes artistas, estamos nos referindo a uma São Luís que pode se orgulhar de pessoas que aspiram a dar ao Maranhão um lugar de destaque, como o fazem Ferreira Gullar ou Zeca Baleiro, por exemplo.

 A obra literária de Raimundo Fontenele não se constitui de inúmeros livros, mas o conjunto de textos que ele assina o impõe como uma das mais expressivas referências da poesia maranhense escrita a partir da década de 1970 aos dias atuais.

 Irreverente, ousado, transgressor, não é um poeta de concessões, louvores, marca quase comum de inúmeros escritores que tanto envergonham a classe, nesta província. A mediocridade sempre carrega consigo esse estigma maldito.

 A poética de Raimundo Fontenele não se parece com os textos de ninguém de sua geração. É um poeta marginal ou, conforme melhor se diz, maldito, desses cujos poemas sempre causam estranhamento e espanto aos leitores acostumados com a contemplação do cultivo de hortas, jardins e pomares paradisíacos, onde não penetrou a insídia da conspiração, da obliquidade e do olhar que lê o amor e o revela como a senda do prazer e da dor. Por isso, já os textos de Fontenele selecionados para a antologia Antroponáutica, publicada pelo então Departamento de Letras, de São Luís, em 1972, estavam marcados por aquela dicção de um poeta que optava pelo desvio do lugar comum, ocupado por aqueles que preferem repetir os passos seculares de uma tradição herdada e, não, de uma tradição marcada pela rebeldia, própria de poucos que fizeram ou fazem o caminho sangrando as mãos, os pés e as mentes.

 Claro que a aparição desse poeta, em livro, já em 1970, com Chegada Temporal, causou espécie, incomodou a crítica oficial, conquistou a indiferença dos meios acadêmicos. Tratava-se de um poeta que, no mínimo, rompia com a linha tradicional dos conteúdos poéticos, em se tratando essencialmente de uma linguagem que procurava se impor, transgredindo, rompendo, negando. Sim, uma linguagem que se permitia, metalinguisticamente, criticar a tradição, negar a tradição, dizer que a poesia, em essência está além de cânones, estando muito mais na beleza que se expressa melhor através do fluxo natural dos dados imediatos do inconsciente, detonando os padrões de beleza clássica universal.

 E como a tradição não aceita de graça quem ousa se desenraizar e desfamiliarizar, escritores como Raimundo Fontenele sempre pagam um preço doloroso pela autenticidade da produção de uma obra literária que se quer afirmar sem o selo e a chancelaria de uma sintaxe normativa, já que a finalidade primeira desse tipo de poeta é explodi-la.

 Recebi sempre com surpresa, entusiasmo e orgulho os livros que Raimundo Fontenele tem publicado. Cada vez que ele quebrou uma telha, rasgou livros dos medíocres, detonou um sobradão colonial, fez ajoelharem-se os políticos ladrões e hipócritas e os sentenciou à pena de exílio do convívio social, lá eu me senti em comunhão com ele, cúmplice do mesmo santo e abençoado crime que tanto nos irmana, quando se trata de chutar, quebrar, destruir, eliminar todos, que são poucos gatunos, quantos impedem a humanidade de partilhar dos bens e dons da vida, conferidos a todos nós pelo Criador. Sim, a elite dos abomináveis eleitos do Diabo, que aliena o público no particular.

 Então, com imenso prazer releio Chegada Temporal, 1970; Às mãos do dia, 1972; Venenos, 1994; Marginais, 2001, dentre outros.

 Hoje, ele nos surpreende, entusiasma e enche de orgulho mais uma vez, com o lançamento simultâneo de duas obras-primas – estes antológicos O troglodita e Amores.

 É como um coroamento de uma viagem do poeta em sua circunavegação por São Luís e em exílio. Exílio porque quem verdadeiramente se pode tornar um artista de nome, vivendo aqui nesta província? Meu Deus, raras e honrosas exceções. Costumamos dizer, ficando aqui é melhor morar aqui, mas viver em outros lugares, vivendo aqui. É possível esse milagre?

 Certo é que, com os dois últimos livros, o poeta Raimundo Fontenele confirma a conquista de uma poesia forte, humana, singularmente, genial. Como poucos ele vem sabendo se impor pelo bom uso do talento que recebeu ao nascer. A maioria joga tudo fora, ou na primeira lixeira de bandalheiras que descobrem nos cérebros. 

Fontes:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 269. 9 junho 2012.
Foto: http://www.editoraalcance.com.br 

Jornais e Revistas do Brasil (Hierarchia)

Período disponível: 1931 a 1932
Local: Rio de Janeiro, RJ

Hierarchia foi uma revista de política, economia, cultura e questões sociais lançada no Rio de Janeiro (RJ) em agosto de 1931, tendo Lourival Fontes como diretor e Rodolfo Carvalho como diretor-comercial e diretor-secretário. A redação era na rua Teophilo Ottoni, passando depois para o nº 110 da Avenida Rio Branco (uma sala no prédio do Jornal do Brasil), e, já em 1932, para o nº 23 da praça Marechal Floriano, onde então funcionava a Casa Allemã.

Lourival Fontes se tornaria mais tarde diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural – que mais tarde se tornaria o famoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável também pela censura durante a ditadura do Estado Novo – e chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Admirador, tal como muitos quadros do governo Vargas, do Estado fascista, Lourival Fontes imprimiria à publicação um conteúdo nacionalista, antiliberal e anticomunista, o mesmo atribuído a sua congênere Política, também por ele fundada.

Em formato de livro e com 128 a 166 páginas, a revista era feita em duas colunas e dividida em seções. "Artigos Especiaes", a seção principal, tratava de temas como ensino religioso e ensino leigo, fascismo, diretrizes sociais do Brasil, família e divórcio, centralização e federação, economia, architetura, organisação nacional e defesa militar, democracia. Algumas de suas seções permanentes eram "O mez internacional" e "Revista dos llvros". Os artigos eram, em geral, longos e densos.

Entre os temas mais explorados estavam os rumos políticos do Brasil, a identidade nacional, questões relativas ao fascismo (concepção de Estado, relação com o catolicismo, organização sindical etc), economia e finanças do país, nacionalismo, democracia e corporativismo, política internacional, paz mundial, educação, ensino moral e religioso, família (ver "A família e o divórcio", no nº 2), relações entre Igreja e Estado, estudos sociológicos sobre o Brasil, questões militares, conflitos armados no mundo, eugenia e “limpeza étnica” (como o artigo "A primazia da educação hygienica e eugenica escolar", de Belisário Penna, no nº 2), cultura brasileira, literatura, belas artes (como o artigo de Cândido Portinari no nº 5, mar. e abr., 1932), paralelos entre o Brasil e a Rússia soviética, industrialismo, crise econômica mundial, direitos do operariado, federalismo no Brasil, saúde pública, arquitetura, figuras políticas de destaque, questões agrárias, direitos políticos femininos (nº 5), liberdade de imprensa, turismo etc.

Colaboram nas poucas edições da revista: Antônio José Azevedo Amaral, anos depois responsável pelas revistas Diretrizes e Novas Diretrizes, Sérgio Buarque de Hollanda, Plínio Salgado, Alceu Amoroso Lima (que assinava Tristão de Athayde), Cândido Portinari, Christóvam de Camargo, José Maria Bello, Oliveira Vianna, Octavio de Faria, Heráclito Sobral Pinto, Hélio Vianna, Bezerra de Freitas, Moacyr Pompéa, Alberto Gonçalves, Reis Carvalho, o padre Galdino Moreira, padre Leonel Franca, Mattos Pimenta, José Augusto, Luiz Schnoor, Mendes Fradique, Ildefonso Albano, Fábio Sodré, Povoas de Siqueira, Samuel Torres Videla, Saboya de Medeiros, Ribas Carneiro, Gilberto Amado, Belisário Penna, Anísio Teixeira, Fernando Magalhães, Francisco de San Tiago Dantas, Gustavo Lessa, A. Carneiro Leão, Gennaro Vidal, Pandiá Calógeras, Madeira de Freitas, Pantoja Leite, Bernardo Lichtenfels Júnior, Osório Lopes, Belmiro Valverde, Lino Piazza, Ítalo Balbo, Rego Lins, Geraldo Vieira, Basílio de Magalhães, Everardo Backheuser, João Neves da Fontoura, Levi Carneiro, Agenor de Roure, Vital Brasil, Vicente Licínio Cardoso, Arthur Torres Filho, Aguinaldo Rocha Lima, Graccho Cardoso, Ronald de Carvalho, Nicanor Nascimento, Sebastião Pagano, Daniel de Carvalho, João Prestes, Américo Silvado, Arthur Guimarães, R. P. Motta Lima, Hermínio Conde, Olbiano de Mello, Mesquita Pimentel, Paulo da Silveira, Arlindo de Assis, Waldir Niemeyer, Azevedo Lima, George Readers, Janine Boissounouse, além de Rodolfo Carvalho e Lourival Fontes.

A periodicidade oscilou entre bimestral e irregular. O nº 1 foi lançado em agosto de 1931, ao passo que o nº 2 data de outubro de 1931, o nº 4 de janeiro-fevereiro de 1932 e o nº 5, o último publicado, de março-abril de 1932. Esta 5ª edição foi a última.


Fonte
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/hierarchia

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 28 de outubro de 1855: Sem Inspiração


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estava sem inspiração, o que me sucede muita vez.

Abri um livro, nem me lembra que livro era.

A primeira palavra que vi foi em latim; era um provérbio:

Res est magna tacere.

Façam idéia, pois, que impressão podia produzir uma semelhante máxima num espírito que procurava inspirações.

Quando eu desejava um tema para falar, - e falar mais do que uma moça que discute modas, ou um ministro que falta a uma promessa, - salta-me pela frente a sabedoria romana, e manda-me calar da maneira mais impertinente.

Ora para um folhetinista que não quer absolutamente indispor-se com os sábios, não havia remédio senão obedecer.

Resolvi portanto calar-me.

A resolução era a mais prudente, e também a mais cômoda possível mas tinha um inconveniente.

Os meus leitores, e sobretudo as minhas maliciosas leitoras, eram muito capazes de supor que me calava por não ter nada que dizer.

Isto seria uma quebra para a minha reputação de folhetinista; seria uma falta imperdoável para aqueles que julgam que o espírito de um escritor de revista deve ser uma esponja que durante a semana se embebeda e sature de idéias, e que ao domingo se esprema no papel, e deite uma chuva de bonitos pensamentos e lembranças graciosas.

Ora, apesar de não pretender a glória desta comparação polipiana, contudo o meu amor-próprio não podia consentir que me visse decaído das boas graças do leitor por causa de três palavras latinas.

E três palavras latinas que eram por si mesmas uma mentira e uma contradição; porque, se o tal sábio (Salomão ou Sócrates) estivesse bem convencido da utilidade de calar-se, não teria a indiscrição de falar e dizer aquelas palavras: Res est magna tacere.

Mas é que todos os sábios deste mundo são assim; pregam muito boas máximas, excelentes conselhos, e eles são os primeiros que fazem o contrário, e que dão o mau exemplo.

Tudo isto porém nada tem com a questão; o que é verdade é que me achava na mais difícil posição do mundo; por um lado a prudência e a sabedoria mandavam que me calasse, por outro o leitor e o público exigiam que falasse e escrevesse.

Se houvesse um meio de combinar as duas coisas, e ficar com ambas, seria para mim um salvatério.

Mas ainda estou pouco ao fato destes meios empregados por certos jornalistas e certos políticos, novos Janos da civilização que passam pela sociedade, sorrindo para um e outro lado com cada um dos cantos da boca.

Não me restava pois senão um expediente, e foi o que decidi-me a adotar.

Era preciso calar-me, visto que os sábios o ordenavam; mas, calando-me, restava-me o direito de dizer ao menos os assuntos diversos sobre que me calava.

Assim nem incorro na censura de falador, nem também se pode dizer que não tenho matéria sobre que escrever.

Uma das primeiras coisas sobre que eu me calo é sobre a questão atual da farinha de trigo, sobre a questão do pão.

Com efeito, poucas matérias são tão importantes como esta, que afeta geralmente a todos os diversos interesses da sociedade.

Os pobres e os ricos, os empregados, os ministros, os pretendentes, os confeiteiros, os gastrônomos, as senhoras, o país, a colonização, a estatística, enfim tudo tem uma relação imediata com esta grande questão.

Isto exige uma explicação.

Ei-la:

Há diversas espécies de pão: o pão branco e o pão de rala, o pão-de-ló, o pão d’ouro, e muitas outras espécies menos importantes; há igualmente uma espécie indefinida, genérica, ainda não caracterizada, e que se exprime ordinariamente pelo simples termo – o pão.

Esta última espécie é a mais importante; todos trabalham para ganhar o pão; o pobre muitas vezes não tem o pão para a boca; e o operário vê-se obrigado a regar o pão com o suor do seu rosto.

Já se vê que este pão não é feito nos fornos e nem se compõe de fermento, e que por conseguinte não é o preço da farinha de trigo ou uma padaria central e privilegiada que o tornarão mais fácil para o pobre.

Este pão é o pão do trabalho, do trabalho ativo, honesto e inteligente a que todo o pobre deve dedicar-se com amor, deixando os hábitos de indolência e os vícios, que quase sempre são a causa única da miséria.

Esta espécie pois exige do governo não só uma proteção à indústria do país, como uma política ativa e regular, com as competentes casas de detenção, necessárias para o trabalho dos velhos e mendigos.

A questão do pão-de-ló tem grande interesse também: este pão é muito saboroso e muito suave ao paladar, mas por isso mesmo é um pouco mais caro do que os outros.

Dizem que o pão-de-ló – higienicamente falando – é um pouco indigesto; mas a experiência tem mostrado o contrário: há estômagos que digerem um número extraordinário de boas fatias.

A respeito desta espécie já pusemos em prática o sistema francês da administração municipal da boulangerie parisienne.

Temos uma padaria central ou nacional, e diversas padarias provinciais, onde se fabrica excelente pão-de-ló, que se distribui conforme o estômago de cada um.

Esta organização precisa de uma reforma radical, que demanda longos estudos e muita prudência e reflexão da parte do governo.

Vejam pois que tinha razão quando disse que a questão do pão era uma das de maior vulto da atualidade.

Quanta reforma importante, quanta ciência, quanto estudo e prática não exige esta única palavra?

Que revolução econômica e social não são capazes de produzir estas três linhas juntinhas e cobertas com um til à guisa de chapéu-de-sol?

E ainda isto não é tudo. Disse que o país, as senhoras, as famílias, a população, a estatística, as modas, tudo enfim estava empenhado na questão do pão.

E vou prova-lo.

Mas... agora me lembro que não posso falar, que obriguei-me a calar, em deferência aos provérbios latinos.

Portanto fiquem os leitores em jejum, a menos que algum dos tais impertinentes provérbios não queira falar por mim, como por exemplo, este: Sine Cerere et Baccho friget Vênus.

A bom entendedor meia palavra basta. Aquele friget que ali está com um ar tão sonso e tão ingênuo é um brejeiro de conta; e se ele quisesse falar mostrar-nos-ia a influência legítima do pão.

Porém é um verbo muito sisudo e discreto, e por isso não há meio de arrancar-lhe uma explicação mais clara.

Há ainda outras muitas coisas sobre que podia falar, mas a respeito das quais me calo para cumprir o prometido.

Podia falar da representação da Sapho, e dizer muita coisa bonita e interessante sobre a nossa grega, que inspira com seu canto os nossos poetas, e com os seus olhos os nossos diletantes.

Podia fazer um poema sobre esta história de um amor profundo, que se reproduz entre nós todos os dias, e que acaba sempre por um passo de Leucate.

A única diferença que existe é na posição geográfica e na qualidade do passo de Leucate moderno, o que é devido à diferença dos países e à diversidade das idades, dos usos e costumes.

Assim, o passo de Leucate antigo era um rochedo à beira do mar; o da Idade Média era um convento no cimo de uma montanha; o de nossos dias é um casamento de conveniência.

As Saphos de hoje, quando chegam ao triste desenlace de uma história de amor, sobem ao altar e de lá precipitam-se...

Precipitam-se nos braços de um homem que não amam, precipitam-se na monótona e triste existência de um casamento mal sucedido.

Mudados pois os nomes e os lugares, o drama é o mesmo, e as personagens idênticas.

Em continuação deste tema de Sapho moderna, podia falar-vos das Mulheres de mármore, representadas sexta-feira no Ginásio, e pintar-vos uma bela cena da Grécia criada pelo pincel do Bragaldi.

Haveis de saber o admirável efeito que produziu esta representação, a que deveis ir assistir esta noite; lá conversaremos a gosto, e apreciaremos juntos a habilidade com que todos os artistas desempenham os seus papéis.

Sobre o concerto do teatro lírico desta noite, também poderia escrever algumas linhas recomendando-vos o talento da distinta harpista Mme. Belloc, que não foi feliz na concorrência.

Mas a razão, eu a sei: nesta época de tantos desconcertos era impossível que fosse bem aceito um concerto.

Agora, tendo eu me calado sobre tanta coisa, é justo que converse um pouco com as minhas leitoras.

Tenho de lhes noticiar que se acha criada uma nova ordem – A ordem das violetas...

Esta ordem é dedicada especialmente à caridade, e teve sua origem no dia do leilão das Belas-Artes, em um bouquet de violetas.

Quem a criou (o que para mim é segredo) teve uma feliz inspiração; tirou o ramo do seio, distribuiu as flores à direita e à esquerda a quem as mereceu por caridade; e o sorriso de seus lábios dizia neste momento: - Honni soit que mal y pense.

O caso é que a ordem está criada, e que agora o luxo, o chic, é trazerem os gentlemen na casaca preta a modesta e linda florzinha, que tornou-se o emblema de uma tão santa virtude.

por falar nisto lembro-me que hoje tem lugar o segundo leilão das Belas-Artes.

Quando criaram este edifício, nunca pensaram que ele teria o nobre destino que lhe deram domingo passado, e que o seu nome teria uma outra significação ainda mais apropriada.

Com efeito, que mais belas-artes, do que as artes, as travessuras, os meios engenhosos, que a caridade aí inspirou domingo passado às elegantes peregrinas da Glória?

Mas que há aí de admirar!

Eram brasileiras.

Se não sabeis o que quer dizer isto, ouvi-me.

Vou contar-vos uma história muito linda, um verdadeiro conto de fada.

Não sei se minha pena ainda se lembrará dessas coisas de outro tempo, desses contos árabes tão cheios de poesia oriental.

Mas enfim lá vai.

Foi um dia...

Lancei os olhos sobre uma página solta deste folhetim, e lá vi o meu Cabrion.

Res est magna tacere.

Calo-me pois, e desta vez seriamente; dou um ponto na boca, ou antes, no papel.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (As Galhofas de José Alcides Pinto)

José Alcides e Nilto Maciel
Estive poucas vezes com Alcides Pinto. Antes de 1977, quando morava em Fortaleza, só o conhecia dos livros. E de ouvir falar. Não me aproximava dele, por retraimento. Talvez nem me ouvisse. Talvez nem me cumprimentasse. Ora, eu o sabia poeta muito conhecido, desde Concreto: estrutura visual-gráfica (1965) e Cantos de Lúcifer (1966), sem contar as antologias de que participara no início dos anos 1950. Além de poeta de renome, romancista, contista e autor da peça Equinócio (1973). E eu? Apenas um estudante, apenas um sonhador, apenas um quase-escritor. Mas um estudante, um leitor não podia se aproximar de um escritor, pelo menos para lhe pedir autógrafo? Podia e pode. Mas cadê coragem para tanto? Como eu me enganava! Alcides sempre se mostrou muito acessível. Nunca pareceu arrogante. Dava-se bem com jovens e velhos. Com “marginais” e “acadêmicos”.

Não lembro quando o conheci de fato. Tenho alguns livros dele autografados, quando eu morava em Brasília e certamente o procurei, em Fortaleza, em 1982: O enigma (Fortaleza: Edições Quetzalcoalt, 1974), Cantos de Lúcifer (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966), Manifesto traído (Fortaleza: Lourenço Filho, 1979) e As águas novas (Fortaleza: Editora Henriqueta Galeno, 1975). Autografados no mesmo dia, possivelmente. Na sua casa. Vieram outros autógrafos, outros encontros, em 1998 e 2002.

Não acompanhei sua trajetória de vida, suas “loucuras” (conheço-as de oitiva), suas excentricidades. Falavam-me dele: é doido; virou franciscano; largou o emprego público para se dedicar à literatura; comprou uma fazenda no sertão do ceará, onde só brotavam pedras e onde dorme o dragão da mitologia alcideana. Nunca o vi louco, não o vi vestido de frade, não conheci a famosa fazenda Equinócio. Vivia como pobre, numa casinha de uma vila localizada na Avenida Tristão Gonçalves (sua última morada): na sala, uma rede e uma estante com seus livros (os dos outros nunca vi. Como os meus. Talvez os tenha doado. E como conseguia fazer citações? Tudo de cor. Por isso, às vezes se confundia). Uma cama no quarto. No cozinha, um fogão, uma geladeira, uma mesa com cadeiras. E só.

Fora de casa, andava sempre bem vestido. Quem não se lembra de seu terno branco, com que se apresentava em lançamento de livro, entrega de prêmio, palestra, dele ou de outros? Magro, quase esquelético, flutuava, feito pena branca. Dava gargalhadas estrepitosas, de fazer corar magistrados e madamas, nos salões mais nobres.

O Alcides que conheci vivia em constante alegria, a galhofar com tudo e com todos. Fingia-se doido, sim. Puro gracejo. Certa tarde (não lembro o ano: se antes de meu regresso a Fortaleza, em 2002, se depois), convidou-me Pedro Salgueiro a irmos visitar Alcides. Bateu palmas, à porta. Alcides gritou: Já vou. Pela frincha da porta eu vi: ele se vestia, apressadamente. Já vou, já vou. Pedro repetiu as palmas: Trouxe, para vê-lo, um grande contista cearense. O velho poeta abriu a porta, assanhado, nu da cintura para cima, olhou para mim, me abraçou com força e exclamou: Meu grande contista Airton Monte! Ora, Alcides enxergava bem e sua lucidez não confundiria Airton comigo. Aquilo não passava de mais uma brincadeira.

Visitei-o algumas vezes, ora só, ora acompanhado. Não para conversar demoradamente, mas para vê-lo e levar-lhe alguma publicação, sobretudo a revista Literatura, na qual publiquei poemas e artigos dele, assim como uma entrevista que me concedeu em 2003. Recebia-me com alegria, como certamente acolhia outros amigos e conhecidos. Brincalhão como sempre, quando nos víamos, divertia-se muito: Só existem dois escritores bons no Ceará: eu e você. Se eu mencionava o nome de algum conterrâneo, ele sorria: Esse não sabe escrever.

Vez por outra, telefonava para mim ou eu telefonava para ele. Constantemente a brincar: Poeta (tratava assim todo mundo; pelo menos, os escritores), venha me visitar. Arranjei uma namorada, mas não tenho mais condições de fornicar. Venha me substituir. Eu prometia visitá-lo. E assim o tempo ia passando, até que um dia a outra namorada de todos nós – aquela que aguardamos, mas não queremos –, até que um dia Ela, montada numa motocicleta, o encontrou desprotegido e só, no meio de uma rua, e o levou para as núpcias eternas. Sua última galhofa, em 2 de junho de 2008.

Fortaleza, 5 de outubro de 2009.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/204
Foto = http://literaturasemfronteiras.blogspot.com

Sonetos Dispersos 1

Gustavo Teixeira
(1881/1937)
Casa Paterna


Da velha casa em que a manhã da vida
passei – conservo uma lembrança exata:
antes de eu vir ao mundo foi erguida
perto da serra, quase ao pé da mata.

Dá para o sul a frente enegrecida;
ao lado, para um poente de escarlata,
janelas donde, na estação florida,
se aspira o cheiro dos jasmins de prata.

Perto, o bambual em cujo seio amigo
cantam graúnas, e o pomar antigo
com melros, tiés e gurundis em bando.

O ribeirão, o cafezal, a horta...
Ah! que saudade o coração me corta
do lar querido que deixei chorando!
– – –


Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior
(1845/1898),
Visita à Casa Paterna


Como a ave que volta ao ninho antigo
depois de um longo e tenebroso inverno,
eu quis também rever o lar paterno,
o meu primeiro e virginal abrigo.

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
o fantasma talvez do amor materno,
tomou-me as mãos, – olhou-me, grave e terno,
e, passo a passo, caminhou comigo.

Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)
em que da luz noturna à claridade
minhas irmãs e minha mãe... O pranto

jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
chorava em cada canto uma saudade.
– – –

Elizabeth Barrett Browning 
(1806/1861)
Soneto


Ama-me por amor do amor somente,
não digas: “Amo-a pelo seu olhar,
o seu sorriso, o modo de falar
honesto e brando. Amo-a porque se sente

minha alma em comunhão constantemente
com a sua.” Porque pode mudar
isso tudo, em si mesmo, ao perpassar
do tempo, ou para ti unicamente.

Nem me ames pelo pranto que a bondade
de tuas mãos enxuga, pois se em mim
secar, por teu conforto, esta vontade

de chorar, teu amor pode ter fim!
Ama-me pelo amor do amor, e assim
me hás de querer por toda a eternidade.
– – –


Darly O. Barros / SP
Celagem


Meu estro se extasia, ao ver o ocaso
vermelhecer, à curva descendente
do sol: são seis e vinte e é, sem atraso,
que ele boceja e some, no ocidente...

Meus dedos fremem, não por mero acaso:
há que selar o vôo mais recente,
os frêmitos e arroubos do parnaso,
ao mergulhar as asas no poente;

e, então, a gotejar vermelho e rosa
– colhidos na viagem espantosa,
realizada às fímbrias do cariz, –

vê-lo embebendo a pena em mil rubores
e, num papel, eternizando as cores
do sol poente, em glorioso bis...
– – –


Raimundo da Mota Azevedo Correia
(1860/1911),
A Cavalgada


A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
o som longínquo vem-se aproximando
do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
o remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta,
a lua a estrada solitária banha...
– – –


Sebastião Alício Sundfeld,
Saudade em Tarde de Chuva


Nessa tarde chuvosa, meio acinzentada,
vou na infância buscar a emoção fugidia.
Encosto-me à janela, como antes fazia,
para espiar na rua as águas da enxurrada.

Ronda-me conhecida sensação passada...
O vidro da vidraça é uma carícia fria!
Aqueço-me, porém, no afago que existia
naquele alegre tempo de criança amada.

Tarde de chuva, tarde de história tristonha,
a relembrar da vida um tempo muito antigo,
que mais parece ser a história de quem sonha.

Sou menino outra vez, na magia de agora,
ao pressentir mamãe a contemplar comigo
a chuva derramando saudades lá fora.
– – –


Athayr Cagnin
Cavalheiro


Graças a Deus, ela voltou! Sozinho,
eu já não suportava os dias meus.
Aves, cantai! Abre-se um novo ninho!
Tristezas, meu tormento amargo, adeus!

Ela voltou. Enfeita-se o caminho
por onde passam os pezinhos seus.
Vem para mim. Espera-a o meu carinho.
Ela voltou, por fim... graças a Deus!

Juntos, quem o diria, novamente!
Eu e ela. Nós dois... quem o diria?
Juntos de novo como antigamente!

Voltou. Abrem-se flores. Tons irreais
dão novo colorido ao velho dia.
Um amor que ressurge. Um poeta a mais.
– – –


Luís Vaz de Camões (c. 1517/1580),
“O fogo que na branda cera ardia”


O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
da grande impaciência fez despejo,
e, remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
a apagar seus ardores e tormentos
na vista a quem o sol temores deve!

Namoram-se, senhora, os elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.
– – –


Leonilda Hilgenberg Justus / PR
Vazios


Certo dia, em floresta perfumada,
dois pássaros falavam seriamente:
– Ai, amigo... a minha alma está agoniada
ante as ações dos que se dizem gente...

– Eu, também (fala o outro da galhada).
Mudei-me já três vezes, num repente!
Homens em ambição descontrolada,
arrasaram meus lares, friamente!

Bem logo, onde árvores e claros rios,
delícias para amar, viver, cantar,
veremos só vazios... só vazios...

E daí... – continua mais baixinho... –
ninguém terá ninguém por quem chorar...
sem vida alguma, e até sem passarinho...
– – –


João Henrique da Silva
Extremos


Andavam pela rua avô e neto,
apoiados em mútua confiança,
dividindo entre si, o mesmo afeto.
Eram dois velhos, ou duas crianças.

Neto querido, com avô dileto,
um dando ao outro inteira segurança
através de palavras simples mansas
vindas, ora do avô; ora do neto.

Fiquei admirado, olhando a esmo.
Depois, me perguntei a mim mesmo:
– Qual é o velho, qual é a criança?

Quando eu olhei para eles novamente,
já iam de mãos dadas bem distantes.
Era o adeus apoiado na esperança.
– – –


Raimundo da Mota Azevedo Correia
(1860-1911)
Anoitecer


Esbraseia o Ocidente na agonia
o sol... Aves, em bandos destacados,
por céus de ouro e de púrpura raiados,
fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
os vértices de chama aureolados.
Em tudo, em torno, esbatem derramados,
uns tons suaves de melancolia...

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
a sombra, à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
surge trêmula, trêmula... Anoitece.
– – –


Josué Anacleto Vieira
Meu Cajueiro


Foi da semente que brotou viçoso,
meu cajueiro amigo do cerrado;
no chão fecundo seu feliz repouso,
na imensidão do campo desbravado.

Foi na floresta que cresceu frondoso,
sob a magia do céu azulado;
lá, onde corre manso o Rio Formoso,
fonte da vida como no passado.

Essa distância que afastou nós dois,
parece até que me feriu depois,
da nostalgia que meu peito invade.

Vejo o orvalho das folhas deslizando,
a se espalhar no chão de vez em quando
como se fossem gotas de saudade.

Fontes:
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 08 – AGOSTO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 07 – JULHO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 06 – JUNHO 2000
Seleções em Folha. Ano 4, Nº 09 – SETEMBRO 2000

Monteiro Lobato (Sorte Grande)

Foi numa quieta cidadezinha entrevada, dessas que se alheiam do mundo com a discrição humilde dos musgos. Havia lá a gente do Moura, o arrecadador de taxas municipais do mercado. A morte arrecadou o Moura muito fora de tempo e propósito. Consequência: viúva e sete filhos na dependura.

Dona Teodora, quarentona que nunca soubera a significação da palavra descanso, viu-se de trabalhos dobrados. Encher sete estômagos, vestir sete nudezas, educar outras tantas individualidades... Se houvesse justiça no mundo, quantas estátuas a certos tipos de mães!

A vida em tais lugarejos lembra a dos liquens na pedra. Tudo se encolhe no “limite” – no mínimo que a civilização comporta. Não há “oportunidades”. Os meninos mal empanam emigram. As meninas, como não podem emigrar, viram moças; as moças passam a “tias”, e as tias evoluem para velhinhas enrugadas como maracujá murcho – sem que nunca venha ensejo para a realização dos grandes sonhos: casamento ou ocupação decentemente remunerada.

Os empreguinhos públicos, de paga microscópica, são tremendamente disputados. Quem se aferra a um, dali só é arrancado pela morte – e passa a vida invejado. Uma só saída para as mulheres, afora o casamento: a meia dúzia de cadeiras das escolinhas locais.

O mulherio de Santa Rita lembra os rizomas de gladíolos de certas casas de “cera e sementes” pouco freqüentadas. O dono do negócio os expõe numa cesta à porta, à espera do freguês eventual. Não aparece freguês nenhum – e o homem os vai retirando da cesta à proporção que murcham. Mas o estoque não diminui porque entram sempre rizomas novos. O dona da casa de “cera e sementes” de Santa Rita á a Morte.

A boa mãe revolta-se. Tinha culpa de terem vindo ao mundo as cinco meninas e dois meninos, e de nenhum modo admitia que elas virassem maracujás secos e eles se estiolassem na lembrança viciosa dos zes-ninguéns.

O problema não era totalmente insolúvel como os meninos, porque podia mandá- los para fora no momento oportuno – mas, as meninas? Como arranjar a vida de cinco moças numa terra em que havia seis para cada homem casadouro – e só cinco cadeirinhas?

A mais velha, Maricota, herdara o temperamento, a valentia materna. Estudou o que pôde e como pôde. Fez-se professora – mas já estava nos vinte e quatro e nem sombra de colocação. As vagas iam sempre para as de maior peso político, ainda que analfabetas.

Maricota, um peso-pluma, que poderia esperar?

Mesmo assim, dona Teodora não desanimava.

– Estudem. Preparem-se. De repente qualquer coisa acontece e vocês se arrumam.

Os anos, entretanto, passavam sem que a esperadíssima “qualquer coisa” viesse – e os apertos recresciam. Por muito que trabalhassem em cocadas, bordados de enxoval e costurinhas, a renda não se distanciava do zero.

Dizem que as desgraças gostam de vir juntas. Quando a situação dos Mouras atingiu o ponto perigoso da “dependura”, nova calamidade sobreveio. Maricota recebeu do céu um estranho castigo: a singularíssima doença que lhe atacou o nariz...

No começo não deram importância ao caso; só no começo, porque a doença entrou a progredir, com desorientação de todos os entendidos em medicina das redondezas. Nunca, verdadeiramente nunca, ninguém soubera por lá de coisa assim.

O nariz da moça crescia, engordava, engrouvinhava, lembrando o de certos bêbados incorrigíveis. A deformação nessa parte do rosto é sempre desastrosa. Dá à fisionomia um ar cômico. Todos se apiedavam da Maricota – mas riam-se sem querer.

A maldade dos lugarejos tem a insistência de certas moscas. Aquele nariz foi virando o prato predileto do Comentário. Nos momentos de escassez de assunto era infalível porem-no à mesa.

– Se aquilo pega, ninguém mais planta rabanetes em Santa Rita. É só levar a mão ao rosto e colher...

– E dizem que está crescendo...

– Se está! A moça já não põe o pé na rua – nem para a missa. Aquela negrinha, cria de dona Teodora, me disse que já não e nariz – é beterraba...

– Sério?

– Cresce tanto que se a coisa continua vamos ter um nariz com uma moça atrás e não uma moça com um nariz na frente. O maior, o principal, ficará sendo o rabanete...

Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo. A tal ponto chegou a de Santa Rita que quando aparecia alguém de fora na vacilavam em enfileirar entre as curiosidades locais a doença da moça.

– Temos várias coisas dignas de ver-se. Há a igreja, cujo sino tem um som sem igual no mundo. Bronze do céu. Há o pé de cacto da casa do major Lima, com quatro metros de roda na altura do peito. E há o rabanete da Maricota...

O visitante espantava-se, está claro.

– Rabanete?

O informante desfiava a crônica do famoso nariz com invençõezinhas cômicas de sua lavra. “Não poderei ver isso?” “Creio que não, porque ela já não tem ânimo de pôr o pé na rua – nem para a missa.”

Chegou o momento de recorrer aos médicos especialistas. Como por lá não houvesse nenhum, dona Teodora lembrou-se de um doutor Clarimundo, especialista de toas as especialidades na cidade próxima. Tinha de mandar-lhe a filha. O nariz de Maricota estava ficando clamoroso demais. Mas... mandar como?

A distância era grande. Viagem por água – pelo rio São Francisco, em cuja margem direita se assentava Santa Rita. O percurso custaria dinheiro; e custariam dinheiro a consulta, o tratamento, a estada lá – e onde o dinheiro? Como reunir os duzentos mil réis necessários?

Não há barreiras para o heroísmo das mães. Dona Teodora redobrou da faina, operou milagres de gênio e, por fim, reuniu o dinheiro da salvação.

Chegou o dia. Muito vexada de mostra-se em público depois de tantos meses de segregação, Maricota embarcou para a viagem de dois dias. Embarcou numa gaiola – o “Comandante Exupério” – e logo que se viu a bordo tratou de descobrir um cantinho em que ficasse a salvo da curiosidade dos passageiros.

Inutilmente. Deu logo nos olhos de vários, sobretudo nos dum moço de bom aspecto, que entrou a mirá-la com singular insistência. Maricota esgueirou-se de sua presença e, de bruços na amurada, fingiu-se absorta na contemplação da paisagem. Fraude pura, coitadinha. A única paisagem que via era a sua – a nasal. O passageiro, entretanto, não a largava.

– Quem é essa moça? Quis saber – e um de boca perdigotante, também embarcado em Santa Rita, regalou-se em contar permenorizadamente tudo quanto sabia a respeito.

O moço refranziu a testa. Reconcentrou-se a meditar. Por fim, seus olhos brilharam.

– Será possível? – murmurou em solilóquio, e resolutamente encaminhou-se na direção da triste criatura, absorvida na contemplação da paisagem.

– Perdão, minha senhora, eu sou médico e...

Maricota voltou para ele os olhos, muito vexada, sem saber o que dizer. Como um eco, repetiu:

– Médico?

– Sim, médico – e o seu caso está me interessando profundamente. Se é o que suponho, talvez que... Mas, venha cá – conte-me tudo – conte-me como isso começou. Não se vexe. Sou médico – e para os médicos não há segredos. Vamos.

Maricota, depois de alguma resistência, contou tudo, e à medida que falava o interesse do moço recrescia.

– Com licença – disse ele, e pôs a examinar-lhe o nariz, sempre com perguntas cujo alcance a moça não percebia.

– Como é seu nome? – atreveu-se a indagar Maricota.

– Doutor Cadaval.

A expressão do médico lembrava a do garimpeiro que encontra um diamante de valor fabuloso – um Cullinan! Nervosamente, ele insistia:

– Conte, conte...

Queria saber tudo; como aquilo começara, como se desenvolvera, que perturbação ela sentira e outras coisinhas técnicas. E as respostas da moça tinham o condão de aumentar-lhe o entusiasmo. Por fim:

– Maravilhoso! Exclamou. Um caso único de boa sorte...

Tais exclamações desnortearam a doente. Maravilhoso? Que maravilhamento poderia causar a sua desgraça? Chegou a ressentir-se. O médico tentou sossegá-la.

– Perdoe-me, dona Maricota, mas o seu caso é positivamente extraordinário. De momento não posso firmar parecer – estou sem livros; mas macacos me lembram se o que a senhora tem não é um rinofima – um RINOFIMA, imagine!

Rinofima! Aquela palavra estranha, dita naquele tom de entusiasmo, em coisa nenhuma melhorou a situação de atrapalhamento de Maricota. O fato de sabermos o nome de uma doença não nos consola nem cura.

– E que tem isso? perguntou ela.

– Tem, minha senhora, que é uma doença raríssima. Pelo que sei a respeito, não se conhece um só caso em toda a América do Sul...

Compreende agora o meu entusiasmo de profissional? Médico que descobre casos únicos é médico de nome feito...

Maricota começou a compreender.

Longamente Cadaval debateu a situação, informando-se de tudo – da família, do objeto da viagem. Ao saber de sua ida à cidade próxima em busca do dr. Clarimundo, rebelou-se.

– Qual Clarimundo, minha senhora! Esses médicos da roça não passam de perfeitas cavalgaduras. Formam-se e afundam nos lugarejos, nunca lêem nada. Atrasadíssimos. Se a senhora vai consultá-lo, perderá o seu tempo e o seu dinheiro. Ora, o Clarimundo!

– Conhece-o?

– Claro que não, mas adivinho. Conheço a classe. O seu caso, minha senhora, é a maravilha das maravilhas, desses que só podem ser tratados pelos grandes médicos dos grandes centros – e estudado pelas academias. A senhora vai mas é para o Rio de Janeiro. Tive a sorte de encontrá-la e não a largo mais. Ora esta! Um rinofima destes nas mãos do Clarimundo! Tinha graça...

A moça alegou que a sua pobreza não lhe permitia tratar-se na capital. Eram paupérrimos.

– Sossegue. Eu farei todas as despesas. Um caso como o seu vale ouro. Rinofima! O primeiro observado na América do Sul! Isso é ouro em barra, minha senhora...

E tanto falou, e tanto gabou a beleza do rinofima, que Maricota deu de sentir uns começos de orgulho. Depois de duas horas de debates e combinações, já estava outra – sem vexame nenhum dos passageiros – e a exibir pelo tombadilho o seu rabanete com quem exibe algo fascinante.

O doutor Cadaval era um moço extremamente expansivo, dos que não param de falar. O empolgamento em que ficou fê-lo debater o assunto com todos a bordo.

– Comandante – disse ao capitão horas depois –, aquilo é uma preciosidade sem par. Único na América do Sul, imagine! O sucesso que vou fazer no Rio – na Europa. É dessas coisas que arrumam a carreira de um médico. Um rinofima! Um ri-no-fi-ma, capitão!...

Não houve passageiro que não se inteirasse da história do rinofima da moça – e o sentimento de inveja tornou-se geral. Evidentemente Maricota fora marcada pelo Destino. Possuía algo único, uma coisa de fazer a carreira de um médico e de figurar em todos os tratados de medicina. Muitos houve que instintivamente correram os dedos pelo nariz na esperança de apalpar um comecinho da maravilha...

Maricota, ao recolher-se à cabine, escreveu á mãe:

“Tudo está mudando da maneira mais esquisita, mamãe! Encontrei a bordo um médico distintíssimo que, ao dar com o meu nariz, abriu a boca no maior entusiasmo. Eu só queria que a senhora visse. Acha que é uma grande – uma grandíssima coisa, a coisa mais rara do mundo, única na América do Sul, imagine!

Disse que vale um tesouro, que para ele foi o mesmo que ter encontrado um tal diamante Cullinan. Quer que eu vá para o Rio de Janeiro. Paga tudo. Como aleguei que somos muitos pobres, prometeu que depois da operação me arranja um lugar de professora no Rio!... Até a vergonha lá se foi. Passeio com o nariz à mostra, alto.

E, coisa incrível, mamãe, todos me olham com inveja! Inveja sim – eu leio nos olhos de todos. Decore esta palavra: RINOFIMA. É o nome da doença. Ah, eu só queria ver a cara desses bobos de Santa Rita, que tanto caçoavam de mim – quando souberem...”

Maricota mal conseguiu dormir essa noite. Grande mudança de idéias se operava em sua cabeça. Qualquer coisa a advertia de que era chegado o momento de uma grande tacada. Tinha de tirar vantagens da situação – e como ainda não dera resposta definitiva ao dr. Cadaval, deliberou executar um plano.

No dia seguinte o médico abordou-a de novo.

– Então, dona Maricota, está resolvida, afinal?

A moça estava resolvidíssima; mas, boa mulher que era, fingiu.

– Não sei ainda. Escrevi à mamãe... Há a minha situação pessoal e a da minha gente. Para que eu vá ao Rio preciso ficar sossegada quanto a estes dois pontos. Tenho dois irmãos e quatro irmãs – e como é? Ficar lá no Rio sem eles, impossível. E como deixá- los ficar sozinhos em Santa Rita, se sou o esteio da casa?

O dr. Cadaval refletiu uns momentos. Depois disse:

– Os rapazes eu posso colocar facilmente. Já suas irmãs, não sei. Que idade têm elas?

– Alzira, a logo abaixo de mim, está com 25 anos. Muito boa criatura. Borda que é um primor. Bonitinha.

– Se tem essas prendas poderemos colocá-la numa boa casa de modas. E as outras?– Há a Anita, com 22, mas essa só sabe ler e escrever versos. Sempre teve um jeito extraordinário para a poesia.

O dr. Cadaval coçou a cabeça. Colocar uma poetisa não é nada fácil – mas veria.

Há os empregos do governo, nos quais cabem até os poetas.

– Há a Olga, com 20 anos, que só pensa em casar. Essa não quer outro emprego. Nasceu para o casamento – e lá em Santa Rita está secando porque não há homens – todos emigram.

– Arranjaremos um bom casamento para Olga – prometeu o médico.

– Há a Odete, com 19 anos, que ainda não revelou posição para coisa nenhuma.

Boa criatura, mas muito criançola, bobinha.

– Vai ser outro casamento – sugeriu o médico. – Arranja-se. Arranjaremos a vida de todos.

O dr. Cadaval ia prometendo com aquela facilidade porque no íntimo não tinha intenção de colocar tanta gente. Poderia, sim, arrumar a vida de Maricota – depois de operá-la. Mas o resto da família que se fomentasse.

Assim não sucedeu, entretanto. As aperturas da vida tinham dado a Maricota um senso das realidades verdadeiramente totalitário. Percebendo que aquela oportunidade era a maior de sua vida, resolveu não deixá-la escapar. De modo que, ao chegar ao Rio, antes de entregar-se ao tratamento e exibir na Academia de Medicina o seu caso único, impôs condições.

Alegou que sem a irmã Alzira não tinha jeito de ficar sozinha na capital – e o remédio foi a vinda de Alzira. Mal pilhou lá a irmã, insistiu em colocá-la – porque não tinha o menor propósito ficarem as duas nas costas do médico. “Assim, a Alzira acanha-se e volta.”

Ansioso por dar início à exploração do rinofima, o médico pulou para arranjar a colocação da Alzira. E depois disso deu novos pulos para mandar vir e colocar a Anita. E depois da Anita chegou a vez de Olga. E depois de Olga chegou a vez de Odete. E depois de Odete chegou a vez de dona Teodora e dos dois rapazes.

O caso de Olga foi difícil. Casamento! Mas Cadaval teve uma idéia filha do desespero: intimou um seu ajudante no consultório, português quarentão de nome Nicéforo, a casar-se com a menina. Ultimatum da Moral.

– Ou casa-se ou vai para o olho da rua. Não quero mais saber de auxiliares solterões.

Nicéforo, tipo bastante pai-da-vida, coçou a cabeça mas casou-se – e foi o mais feliz dos Nicéforos.

A família já estava toda arrumada, quando Maricota se lembrou de dois primos. O médico, porém, resistiu.

– Não. Isso também é demais. Se continuar assim a senhora acaba forçando-me a arranjar um bispado para o padre de Santa Rita. Não é não.

A vitória do dr. Cadaval foi verdadeiramente estrondosa. Encheram-se as revistas médicas e os jornais com a notícia da solene apresentação à Academia de Medicina do belíssimo caso – único da América do Sul – dum maravilhoso rinofima, o mais belos dos rinofimas. As publicações estrangeiras acompanharam as nacionais.

O mundo científico de todos os continentes ficou sabendo de Maricota, do seu “rabanete” e do eminente doutor Cadaval Lopeira – luminar da ciência médica sul-americana.

Dona Teodora, felicíssima, não cessava de comentar o estranho curso dos acontecimentos.

– Bem se diz que Deus escreve direito por linhas tortas. Quando havia eu de imaginar, ao nos surgir aquela horrível coisa no nariz de minha filha, que era para o bem geral de todos!

Restava a parte última – a operação. Maricota, entretanto, ainda nas vésperas do dia marcado vacilava.

– Que acha, mamãe? Deixo ou não deixo que o doutor me opere?

Dona Teodora abriu a boca.

– Que idéia, menina! Claro que deixa. Pois há de ficar toda vida assim com esse escândalo na cara?

Maricota não se decidia.

– Podemos demorar um pouco mais, mamãe. Tudo quanto nos veio de bom saiu do rinofima. Quem sabe se nos rende mais alguma coisa? Há ainda o Zezinho a colocar – e o pobre Quindó, que nunca achou emprego...

Mas dona Teodora, arquifarta do rabanete, ameaçou de levá-la de volta para Santa Rita, se ela teimasse na asneira de retardar, por um só dia, a operação. E Maricota foi operada. Perdeu o rinofima, ficando com um nariz igual ao de todas as outras, apenas levemente enrugadinho em conseqüência dos enxertos de epiderme.

Quem positivamente desapontou foi a gente maldosa do lugarejo. O maravilhoso romance de Maricota era comentado em todas as rodinhas com grandes exageros – até com o exagero de que ela estava noiva do dr. Cadaval.

– Como a gente se engana neste mundo! – filosofou o farmacêutico. – Todos pensamos que aquilo fosse doença – mas o verdadeiro nome de tais rabanetes, sabem qual é?–?

– Sorte grande, minha gente! Sorte Grande da Espanha…

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. Disponível em Portal São Francisco

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 774)



Uma Trova de Ademar

Vejo sentadas no chão,
trajadas de desamor,
crianças comendo pão
amanteigado de dor!

–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional

Na mesma rua onde os nobres
desfilam pompa e capricho,
se encontram crianças pobres
entre montanhas de lixo.

–Elen de Novais Félix–

Uma Trova Potiguar


Fui rever meu chão de outrora,
mas a saudade era brava:
meus olhos sorriam fora;
dentro o coração chorava!

–José Lucas de Barros/RN– 

Uma Trova Premiada


2012 - Cantagalo/RJ
Tema - ESPAÇO - 3º Lugar


Ao passar por mim, nem para...
sou a sombra de ninguém!
Que espaço enorme separa
meu amor de seu desdém!

–Wanda de Paula Mourthé/MG–

...E Suas Trovas Ficaram


Arranje um amor, depois
despreze-o, só por maldade,
e temos já pra nós dois,
a receita da Saudade.

–Fernando Pereira/RJ–

U m a P o e s i a


MOTE:
Depois de uma certa idade
fui te esquecendo, meu bem;
chega um tempo em que a saudade
perde a memória também!
–José Ouverney/SP–


GLOSA:

Depois de uma certa idade,
querendo a vida entender,
vi que a mente da saudade
pode o passado esquecer.

Sofri e chorei baixinho,
fui te esquecendo, meu bem,
quando eu vi que o teu carinho
desembarcou do meu trem.

Eu não sei se é por maldade,
mas é um fato frequente:
chega um tempo em que a saudade
também se afasta da gente.

Se a gente, por vil destino,
perde, na vida, o que tem,
mais tarde, por dom divino,
perde a memória também!

–Gilson Faustino Maia/RJ–

Soneto do Dia

A   P I N T U R A.
–Diniz Vitorino/PB–


Os meus cabelos ainda são aqueles
que me encheram de amores e regalos!
Chuva alguma esmaece a tinta deles,
mas o tempo os desbota sem lavá-los.

Hoje a neve dos anos caiu neles,
vem com ordem suprema pra pintá-los.
Não pergunta para mim, nem para eles
se estamos de acordo em transformá-los.

Mesmo frágil demais, finjo ser forte,
por sentir que a vida é como a morte:
tem segredos demais, mas não tem cores.

Pois, se aos negros as eras deram fim,
que os grisalhos se estendam sobre mim,
ocultando do mundo as minhas dores!

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 4

Análise da Obra
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2012/04/eca-de-queiros-o-mandarim.html

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Eu revoltava-me contra este pedantismo retórico de pedagogo rígido: erguia alto a fronte, gritava-lhe numa arrogância desesperada:

– Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? O teu grande nome de Consciência não me assusta! És apenas uma perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com flor de laranja!

E imediatamente sentia passar-me na alma, com uma lentidão de brisa, um rumor humilde de murmurações irónicas:

– Bem, então come, dorme, banha-te e ama... Eu assim fazia. Mas logo os próprios lençóis de bretanha do meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lívidos de uma mortalha; a água perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pele, com a sensação espessa de um sangue que coalha: e os peitos nus das minhas amantes entristeciam-me, como lápides de mármore que encerram um corpo morto.

Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti Chin-Fu tinha decerto uma vasta família, netos, bisnetos tenros, que, despojados da herança que eu comia à farta em pratos de Sèvres, numa pompa de sultão perdulário, iam atravessando na China todos os infernos tradicionais da miséria humana – os dias sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...

Compreendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e dos seus lábios recobertos pelos longos pêlos brancos do seu bigode de sombra, parecia-me sair agora esta acusação desolada: «Eu não me lamento a mim, forma meio morta que era; choro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados num grupo expirante, entre leprosos e ladrões, na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terraços do Templo do Céu!»

Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa! Não podia levar à boca um pedaço de pão sem imaginar imediatamente o bando faminto de criancinhas, a descendência de Ti Chin-Fu, penando, como passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu paletó, era logo a visão de desgraçadas senhoras, mimosas outrora de tépido conforto chinês, hoje roxas de frio, sob andrajos de velhas sedas, por uma manhã de neve; o tecto de ébano do meu palacete lembrava-me a família do Mandarim, dormindo à beira dos canais, farejada pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arrepiar à ideia das longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro Inverno asiático...

O que eu sofria! – E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar para o meu palacete, comentando as felicidades inacessíveis que lá deviam habitar!

Enfim, reconhecendo que a Consciência era dentro em mim como uma serpente irritada – decidi implorar o auxílio d'Aquele que dizem ser superior à Consciência porque dispõe da Graça.

Infelizmente eu não acreditava n'Ele... Recorri pois à minha antiga divindade particular, ao meu dilecto ídolo, padroeira da minha família, Nossa Senhora das Dores. E, regiamente pago, um povo de curas e cónegos, pelas catedrais de cidades e pelas capelas de aldeia, foi pedindo a Nossa Senhora das Dores que voltasse os seus olhos piedosos para o meu mal interior... Mas nenhum alívio desceu desses Céus inclementes, para onde há milhares de anos debalde sobe o calor da miséria humana.

Então eu próprio me abismei em práticas piedosas – e Lisboa assistiu a este espectáculo extraordinário: um ricaço, um nababo, prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas frases da salve-rainha, como se visse na Oração e no Reino do Céu, que ela conquista, outra coisa mais que uma consolação fictícia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada... Eu pertenço à burguesia; e sei que se ela mostra à plebe desprovida um Paraíso distante, gozos inefáveis a alcançar – é para lhe afastar a atenção dos seus cofres repletos e da abundância das suas searas.

Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, para satisfazer a alma errante de Ti Chin-Fu. Pueril desvario de um cérebro peninsular! O velho Mandarim, na sua classe de letrado, de membro da Academia dos Han-Lin, colaborador provável do grande tratado «Khu Tsuane-Chu», que já tem setenta e oito mil e setecentos e trinta volumes, era certamente um sectário da doutrina, da moral positiva de Confúcio... Nunca ele, sequer, queimara mechas perfumadas em honra de Buda: e os cerimoniais do sacrifício místico deviam parecer à sua abominável alma de gramático e de céptico como as pantomimas dos palhaços no teatro de Hong-Tung!

Então prelados astutos, com experiência católica, deram-me um conselho subtil – captar a benevolência de Nossa Senhora das Dores com presentes, flores, brocados e jóias, como se quisesse alcançar os favores de Aspásia: e à maneira de um banqueiro obeso, que obtém as complacências de uma dançarina dando-lhe um cottage entre árvores – eu, por uma sugestão sacerdotal, tentei peitar a doce Mãe dos Homens, erguendo-lhe uma catedral toda de mármore branco. A abundância das flores punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraísos: a multiplicidade dos lumes lembrava uma magnificência sideral... Despesas vãs! O fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a igreja; mas, quando eu nesse dia entrei a visitar a minha hóspeda divina, o que vi, para além das calvas dos celebrantes, entre a mística névoa dos incensos, não foi a Rainha da Graça, loira, na sua túnica azul – foi o velho malandro com o seu olho oblíquo e o seu papagaio nos braços! Era a ele, ao seu branco bigode tártaro, à sua pança cor de oca, que todo um sacerdócio recamado de oiro estava oferecendo, ao roncar do órgão, a Eternidade dos louvores!...

Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era favorável ao desenvolvimento destas imaginações – parti, viajei sobriamente, sem pompa, com um baú e um lacaio.

Visitei, na sua ordem clássica, Paris, a banal Suíça, Londres, os lagos taciturnos da Escócia; ergui a minha tenda diante das muralhas evangélicas de Jerusalém; e de Alexandria a Tebas, fui ao comprido desse longo Egipto monumental e triste como o corredor de um mausoléu. Conheci o enjoo dos paquetes, a monotonia das ruínas, a melancolia das multidões desconhecidas, as desilusões do bulevar: e o meu mal interior ia crescendo.

Agora já não era só a amargura de ter despojado uma família venerável: assaltava-me o remorso mais vasto de ter privado toda uma sociedade de um personagem fundamental, um letrado experiente, coluna da Ordem, esteio de instituições. Não se pode arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilíbrio... Esta ideia pungia-me acerbamente. Ansiei por saber se na verdade a desaparição de Ti Chin-Fu fora funesta à decrépita China: li todos os jornais de Hong-Kong e de Xangai, velei a noite sobre histórias de viagens, consultei sábios missionários: – e artigos, homens, livros, tudo me falava da decadência do Império do Meio, províncias arruinadas, cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebeliões, templos aluindo-se, leis perdendo a autoridade, a decomposição de um mundo, como uma nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!...

E eu atribuía-me estas desgraças da sociedade chinesa! No meu espírito doente Ti Chin-Fu tomara então o valor desproporcionado de um César, um Moisés, um desses seres providenciais que são a força de uma raça. Eu matara-o; e com ele desaparecera a vitalidade da sua pátria! O seu vasto cérebro poderia talvez ter salvado, a rasgos geniais, aquela velha monarquia asiática – e eu imobilizara-lhe a acção criadora! A sua fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erário – e eu estava-a dissipando a oferecer pêssegos em Janeiro às messalinas do Helder!...

– Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um império!

Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me à orgia. Instalei-me num palacete da Avenida dos Campos Elísios – e foi medonho. Dava festas à Trimalcião: e, nas horas mais ásperas de fúria libertina, quando das charangas, na estridência brutal dos cobres, rompiam os cancãs; quando prostitutas, de seio desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados boémios, ateus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de champanhe erguida – eu, tomado subitamente como Heliogábalo de um furor de bestialidade, de um ódio contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...

Depois quis ir mais baixo, ao deboche da plebe, às torpezas alcoólicas do «Assommoir»: e quantas vezes, vestido de blusa, com o casquete para a nuca, de braço dado com «Mes-Bottes» ou «Bibi-la-Gaillarde», num tropel avinhado, fui cambaleando pelos bulevares exteriores, a uivar, entre arrotos:

Allons, enfants de la patrie-e-e!...
Le jour de gloire est arrivé...

Foi uma manhã, depois de um destes excessos, à hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora espiritual – que me nasceu, de repente, a ideia de partir para a China! E, como soldados em acampamento adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e formando coluna – outras ideias se foram reunindo no meu espírito, alinhando-se, completando um plano formidável... Partiria para Pequim; descobriria a família de Ti Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus milhões; daria àquela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao Mandarim, para lhe acalmar o espírito irritado; iria pelas províncias miseráveis fazendo colossais distribuições de arroz; e, obtendo do imperador o botão de cristal de mandarim, acesso fácil a um bacharel, substituir-me-ia à personalidade desaparecida de Ti Chin-Fu – e poderia assim restituir legalmente à sua pátria, se não a autoridade do seu saber, ao menos a força do seu oiro.

Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa rajada.

Anelei, suspirei por pisar a terra da China! – Depois de altos preparativos, apressados a punhados de ouro, uma noite parti enfim para Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o «Ceilão». E na manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o voo branco das gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborizavam as torres de Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro – pus a proa ao Oriente.

IV

O «Ceilão» teve uma viagem calma e monótona até Xangai.

Daí subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin num pequeno steamer da Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China numa curiosidade ociosa de touriste: toda a paisagem dessa província, que se assemelha à dos vasos de porcelana, de um tom azulado e vaporoso, com colinazinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me deixou sombriamente indiferente.

Quando o capitão do steamer, um yunkee impudente de focinho de chibo, ao passarmos à altura de Nanquim, me propôs parar ir percorrer as ruínas monumentais da velha cidade de porcelana, – eu recusei, com um movimento seco de cabeça, sem mesmo desviar os olhos tristes da corrente barrenta do rio.

Que pesados e soturnos me pareceram os dias de navegação de Tien-Tsin a Tung-Chu, em barcos chatos que o cheiro dos remadores chineses empestava; ora através de terras baixas inundadas pelo Pei-Hó, ora ao longo de pálidos e infindáveis arrozais; passando aqui uma lúgubre aldeia de lama negra, além um campo coberto de esquifes amarelos; topando a cada momento com cadáveres de mendigos, inchados e esverdeados, que desciam ao fio de água, sob um céu fusco e baixo!

Em Tung-Chu fiquei surpreendido, ao dar com uma escolta de cossacos que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heróico oficial das campanhas da Ásia Central, e então embaixador da Rússia em Pequim. Eu vinha-lhe recomendado como um ser precioso e raro: e o verboso intérprete Sá-Tó, que ele punha ao meu serviço, explicou-me que as cartas de selo imperial, avisando-o da minha chegada, recebera-as ele, havia semanas, pelos correios da Chancelaria que atravessam a Sibéria em trenó, descem a dorso de camelo até à Grande Muralha tártara, e entregam aí a mala a esses corredores mongólicos, vestidos de couro escarlate, que dia e noite galopam sobre Pequim.

Camilloff enviava-me um pónei da Manchúria, ajaezado de seda, e um cartão de visita, com estas palavras traçadas a lápis sob o seu nome: «Saúde! O animal é doce de boca!»

Montei o pónei: e a um hurra dos cossacos, num agitar heróico de lanças, partimos à desfilada pela poeirenta planície – porque já a tarde declinava, e as portas de Pequim fecham-se mal o último raio de sol deixa as torres do Templo do Céu. Ao princípio seguimos uma estrada, caminho batido do trânsito das caravanas, atravancado de enormes lajes de mármore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois passámos a ponte de Pa Li-Kao, toda de mármore branco, flanqueada de dragões arrogantes. Vamos correndo então à beira de canais de água negra: começam a aparecer pomares, aqui e além uma aldeia de cor azulada, aninhada ao pé de um pagode: – de repente, a um cotovelo do caminho, paro assombrado...

Pequim está diante de mim! E uma vasta muralha, monumental e bárbara, de um negro baço, estendendo-se a perder de vista, e destacando, com as arquitecturas babilónicas das suas portas de tectos recurvos, sobre um fundo de poente de púrpura ensanguentada...

Ao longe, para o norte, num vago de vapor roxo, esbatem-se, como suspensas no ar, as montanhas da Mongólia...

–––––––––––
Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

Revista Machado de Assis recebe obras voltadas para crianças e jovens

Até 20 de janeiro, estão abertas as inscrições para a terceira edição da Revista Machado de Assis – Literatura Brasileira em Tradução, que será dedicada exclusivamente à literatura para crianças e jovens. O objetivo é estimular a publicação internacional de autores brasileiros com obras nesse segmento. O lançamento ocorrerá em março, na Feira do Livro para Crianças de Bolonha, que homenageará o Brasil em 2014.

O conteúdo da revista da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), trimestral na versão online, encontra-se disponível no endereço www.machadodeassismagazine.bn.br. O terceiro número será publicado no site. A revista tem duas edições impressas por ano, que se baseiam nas versões online, e a primeira foi lançada em outubro, na Feira do Livro de Frankfurt. Participam do projeto o Itaú Cultural, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e o Itamaraty.

São aceitas inscrições de traduções para o inglês ou o espanhol de trechos de obras já publicadas no Brasil. Os textos devem ter no máximo 15 mil caracteres (sem contar os espaços) e formato Word. Além disso, será necessário enviar uma amostra de pelo menos três páginas escaneadas do texto visual, quando houver.

Deve vir junto uma declaração de liberação de direito de autor do original traduzido e do tradutor para a revista de circulação internacional (em formato impresso, digital e no site da publicação). É obrigatório indicar o título da obra original em português, sua editora e o ano de lançamento. Os autores dos textos visuais que enviarem material para a terceira edição também deverão autorizar a publicação na revista em diferentes formatos. Para participar da seleção, as liberações precisam ser assinadas pelos responsáveis e postadas por email, escaneadas, à FBN.

Em caso de aprovação, será necessário enviar pelo correio os documentos originais de liberação de direito de autor e tradutor à FBN (o endereço será divulgado aos selecionados). Também será necessário preencher um formulário de informações sobre a obra no idioma utilizado para a tradução do trecho (inglês ou espanhol). O autor do texto visual selecionado deverá enviar o trabalho completo, em formato a ser divulgado na ocasião.

Serão selecionados 20 trechos por um Conselho Consultor especializado na literatura para crianças e jovens, indicado pelos membros do Conselho Editorial da revista, designado pela FBN. O projeto envolve parceiros que participam do projeto tendo como base o edital de coedições de publicações da FBN (15/5/2012 – D.O.U.). Suas atribuições são as seguintes: o Itamaraty é responsável pela distribuição internacional; a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo cuida da impressão; e o Itaú Cultural, que sugeriu o projeto à FBN, realiza a edição e alimenta o site da publicação. A revista tem circulação internacional, voltada sobretudo para agentes literários e editores.

Nem a FBN, nem os demais envolvidos no projeto da revista terão algum tipo de ganho financeiro em caso de contratação da obra por editora estrangeira. Todas as traduções serão submetidas à revisão e poderão sofrer alterações de acordo com o critério dos editores. Não será exigida das traduções uma qualidade literária final. Em caso de contratação da obra por editora estrangeira, esta irá decidir o nome do tradutor definitivo, a ser escolhido sem o envolvimento da FBN ou demais participantes do projeto da revista.

Os textos e os documentos escaneados precisam ser dirigidos para o e-mail do Centro Internacional do Livro, o órgão da FBN responsável pelo projeto (cil@bn.br). Em caso de dúvidas, favor escrever para o mesmo email (cil@bn.br) ou telefonar para 5521-2220-2057 ou 5521 2220-1994.
Fontes:
http://www.bn.br/portal/index.jsp?nu_padrao_apresentacao=25&nu_item_conteudo=2120&nu_pagina=1
Http://concursos-literarios.blogspot.com

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Oswald de Andrade (Poesia, pois é, Poesia)

Fonte:

http://cartunistasolda.blogspot.com/

Nilto Maciel (Poemas Escolhidos 2)

MINHA CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra não tem nada,
palmeiras nem sabiás.

Minha terra é feia, é triste,
como tristes são seus filhos.

Minha terra tem ruelas,
por onde não passam carros.

Minha terra tem subidas,
tem calvários, tem descidas.

Minha terra é tão distante,
que nem sei onde ela fica.

Minha terra não tem nada,
a não ser minha saudade.

CANTIGA DO POEMA PERDIDO

O verso que não escrevi,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

O poema que se perdeu,
desbaratado pela fome
do despeito qualquer, sem nome.

Apenas pedaços de mim,
instantes fugidios, vãos,
mero abanar de minhas mãos.

Um verso a menos, nada mais,
poema desaparecido,
palavra sem nenhum sentido.

Serei o mesmo sonhador,
do mesmo jeito morrerei,
com a mesma dimensão irei.

Se o verso tal não rabisquei,
vivi o instante, o tempo, a vida
– e ela pra mim não foi perdida.

Ninguém nada perdeu com isso,
se o verso desapareceu
– coitado dele que morreu!

E quando eu desaparecer,
levado em bolhas pelo vento,
coitado do meu pensamento!

ACALANTO

Teus olhos me espreitam vazios
pelos punhos puídos da rede
- são aranhas tecendo teias
para o pesadelo de minha sede.

O range-range deste balanço
não me vem do pêndulo do corpo
- é teu desastre indo e vindo
no galho da velha mangueira.

E o medo que me acalanta
corre o espaço de tua loucura
- da cozinha, da fúria e da faca
ao sol de intensa brancura.

Em teus ombros cobertos de anos
pousavam as mesmas luzes
que te desenhavam gigante
ao chão repleto de cruzes,

e em tuas roupas esfarrapadas
o vento zunia o mapa e as eras
da terra dos antepassados,
das tribos, das matas e das feras.

És espantalho de muitas feições:
há das moscas da morte o rasto
enquanto voam por tua coroa
os nunca esperados urubus do repasto.

Primeiro a faca e a fúria comuns
com que iniciaste a terrível balada
- e já eras o predestinado que vai
para além da corda comprada.

Era uma faca de muito tamanho
com que se cortava o osso
da sopa de após o banho
e o mato que cobria o quintal.

E o peito que incendiaste
com ódios tão inclementes
era o mesmo que amamentava
o choro de teus descendentes.

Depois foi tua vez chegada
- a cozinha já não te cabia,
a faca já não te servia,
a fúria para ti se voltava.

A corda de fibra tesa
dos que morrem serenamente
- a alma como fogueira acesa
queimando os campos de junho.

E as mãos que a sustentavam
as mesmas das frutas colhidas
- a disposição de só se cansarem
depois de as forças perdidas.

Despedida nenhuma nos bolsos
pois que de fins sabias somente
o lado pobre e selvagem
- matar e morrer impunemente.

Agora me acordas e embalas
com teus olhos sanguinolentos
- as mãos rompendo os nós e os calos;
o corpo um pêndulo podre.

NAVEGADOR

Meus olhos cegos, que não veem naves,
navegam pelos mares das tormentas
– perdidos barcos, rotos, sem timão.

Meus olhos mudos só vislumbram vagas,
doida babel de tempestades feita,
monstros marinhos, oceano largo.

Meus olhos surdos só conseguem ver
cantos de dor, de morte e solidão,
a minha própria imensidão de ser.

SAUDADES

Tudo passa, tudo passa.
Até as paredes largas,
as janelas e as portas.

Passam porteiras, portais,
altas portas de madeira
e as calçadas cimentadas.

Escadas de musgo feitas,
de escorregadio verde,
lembranças de chuvas, ventos.

Passa a lâmpada na praça,
e o busto do herói exposto
ao sol e à solidão.

Jardins, flores e beleza,
margaridas, açucenas,
rosas vermelhas - perfumes.

Tudo passa, tudo passa.
Tempo de medo e espanto,
de crescer, ser gente grande.

Passa até essa tristeza,
passa até essa saudade
– quando eu nem sequer passava.

IMAGENS

Eu olhava para a Lua
e via São Jorge
e um dragão em luta.
Faz tanto tempo aquilo
que ate penso
ser nova a lua de agora.

Olho de novo para o céu.
Ha nuvens, muitas nuvens,
como se fosse desabar
uma tempestade.
E faz frio, muito frio,
ao meu redor.

É como se a lua fosse
uma imagem
dentro de outra imagem.
E eu a imagem
da grande imagem
de mim mesmo.

ASTRONOMIA


E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença.
Augusto dos Anjos


Morreu meu derradeiro sonho vão
naqueles olhos cor de tempestade,
naquele adeus que naufragou meu ser.

Minha ilusão partiu pela janela
e se perdeu nos céus da escuridão,
fugido pássaro de si criado,
anjo talvez, noturna sombra informe.

Agora sou apenas cidadão,
mero sujeito do objeto mundo,
olhos abertos para me viver.

Porém, persiste ao meu redor a noite
– escuro céu, estrelas apagadas –
e um som de dor ou de loucura vibra
nos meus ouvidos, sem nenhum sentido.

TESTAMENTO

Deixo meus teres, meus haveres todos,
minhas migalhas, trastes, bugigangas
para os museus de minha terra pobre.

Deixo meus livros, meus cadernos velhos
para as crianças, quem quiser viver
as emoções que a vida me ofertou.

Deixo meus versos, minhas rimas pobres
pros namorados mais apaixonados
e pros desesperados mais sinistros.

Deixo meu próprio desespero inútil
para abalar o dia-a-dia fútil
dos sossegados mais amordaçados.

Deixo o amor mais amoroso e puro
para a mulher mais bela e mais difícil
– a ninfa branca de meu bosque escuro.

Minha amargura deixo repartida
em cada taça reluzente ou baça
dos tristes seres que jamais gargalham.

A solidão mais minha deixo dada
para os que nunca sós viveram, foram;
para a ciranda, a festa, o carnaval.

Minha descrença lego piamente
aos pobres e iludidos pela santa
igreja madre do menino-deus.

E finalmente deixo minha vida
para os mortais iguais a mim, e aos vermes
– a doce vida amarga que adorei.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Navegador. Poemas. Brasília/DF: Ed. Códice, 1996.