quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 18 de novembro de 1855: Folhetim-livro


(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Desta vez estou de verve; vou escrever um livro.

Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.

Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e por isso quero hoje realizar essa nova transformação do Proteu da imprensa.

De fato o folhetim já por si é um livro; é o livro da semana, livro de sete dias, impresso pelo tempo e encadernado pela crônica; é um dos volumes de uma obra intitulada o Ano de 1855.

Neste volume a cidade do Rio de Janeiro faz as vezes de papel de impressão, os habitantes da corte são os tipos, os dias formam as páginas e os acontecimentos servem de compositores.

Mas não  é disto que se trata, e sim do projeto gigantesco que concebi de escrever hoje um livro-folhetim.

Há de ser um livro completo, precedido de um prólogo, dividido em capítulos, e escrito com toda a gravidade de um homem predestinado a visitar a posteridade envolvido em uma capa de couro e na companhia das traças, das teias de aranha e da poeira das estantes.

Preparem-se pois os meus leitores, limpem os vidros dos óculos, tomem a sua pitada de rapé, e... aí têm o livro.

por ora é apenas o título:

LIVRO DA SEMANA

ou

História circunstanciada do que se passou de mais importante

nesta
Cidade do Rio de Janeiro

desde
O dia 11 do corrente mês, em que subiu aos ares com geral admiração, o balão aerostático até o dia de hoje 18

compreendendo
todos os acontecimentos mais notáveis 
da semana, não só a respeito de
teatros e divertimentos,
como em relação à política, às artes
e ciências

OBRA CURIOSÍSSIMA
em todos os sentidos

escrita
no ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo
de 1855

por
UMA TESTEMUNHA OCULAR
RIO DE JANEIRO
MDCCCLV

Tipografia do Diário do
Rio de Janeiro.

Ao título segue-se a dedicatória.

Há certas obras em que a dedicatória é um simples luxo; em outras porém, como nesta, é de rigor.

Uma dedicatória deve ser simples e verdadeira.

por exemplo:

AOS MEUS RESPEITÁVEIS LEITORES.
O. D. C.

Em sinal de consideração e preguiça de escrever o folhetim de hoje.
O  AUTOR.

(Ora muito bem: quanto a título e dedicatória, estamos arranjados; passemos à terceira página, em que naturalmente deve vir o prólogo.

O prólogo é o bom dia de um escritor ao seu leitor, é o aperto de mão amigável de um sujeito que é apresentado a outro a quem não conhecia; é a cortesia do orador que cumprimenta o seu auditório antes de começar o discurso.

Vamos ver como nos saímos do prólogo: tenha o leitor a bondade de passar à outra página).

PRÓLOGO

Não é a ambição de glória que me faz dar hoje à luz este pequeno Livro da Semana, fruto de algumas horas de trabalho; é unicamente o desejo de tornar-me útil no meu país e de concorrer com um óbulo para a grande obra da nossa literatura pátria, que induziu-me a registrar os fatos importantes da semana que acabou ontem 1.

Se o público acolher bem este meu primeiro filho, talvez que animado pela sua benevolência me resolva a continuar na carreira encetada. Do contrário consolar-me-ei com a consciência de ter cumprido o meu dever.

Rio, 18 de novembro.
O AUTOR.

Depois do prólogo, o autor costuma fazer uma introdução, na qual apresenta o plano geral de sua obra, e prepara o espírito do leitor para seguir o desenvolvimento das idéias contidas na sua obra.

Passemos pois à

INTRODUÇÃO

Esta semana que acabou apresentou uma face curiosa pelo lado da insipidez.

Portanto o leitor não deve esperar uma descrição poética, nem mesmo essa variedade que encanta e deleita.

Omnis variatio delectat2.

Apenas procurarei fazer a narração fiel, não desses boatos sem fundamento que por aí correm, mas daquilo que eu próprio vi e ouvi3.

Começarei pelo começo.

Feita a introdução, passa-se ao primeiro capítulo, que é uma espécie de segunda introdução.

Alguns autores usam capítulos com sumários; outros apenas dão uma idéia geral daquilo sobre que vão tratar.

O meu autor é deste último sistema.

Eis o índice dos capítulos, que forma a 4ª página:

Cap. 1º - Em que o autor mostra por que feliz acaso lhe veio a idéia de escrever este livro.

Cap. 2º - Em que o autor, depois de refletir profundamente; resolve-se a começar pelo princípio e acabar pelo fim.

Cap. 3º - Que serve para mostrar como o domingo e a segunda-feira foram dois dias muito insípidos.

Cap. 4º - Como o autor foi ao teatro lírico terça-feira ouvir música, e voltou muito desgostoso por causa da chuva, que fez com que a casa estivesse inteiramente vazia.

Cap. 5º - No qual se contam duas viagens importantes que fez o autor esta semana, uma ao redor da baía no vapor Marques de Olinda, e outra ao redor de uma mesa de almoço ao vapor do champanha.

Cap. 6º - Em que o autor, não tendo mais nada que contar, começa a dar tratos à imaginação para descobrir alguma boa idéia e encher o resto das páginas que lhe faltam.

Cap. 7º - Como o autor, sempre à busca da sua idéia, começa a roer as unhas, indício certo de que a imaginação já vai se iluminando.

Cap. 8º - No qual o autor lembra-se finalmente que podia falar da Grua e da Charton; mas por fim resolve-se a fazer reticência.

Cap. 9º - Em que o autor trata de diversas coisas, e especialmente de encher papel.

Cap.10º - Que serve de conclusão à obra.

Agora, eu podia escrever todos estes capítulos: mas de que servia?

Todo o mundo sabe que um livro hoje em dia não é mais do que o título, o prólogo, a introdução, e o índice dos capítulos.

O leitor passa os olhos rapidamente, folheia o livro, e apenas de espaço a espaço encontra uma boa idéia, um trecho interessante.

O mais não vale a pena ler, porque reduz-se a uma meia dúzia de palavras, a uma caterva de citações.

Suponha portanto o leitor que, depois de ter lido o título, folheia o nosso livro, e lê unicamente os seguintes trechos:

Afonso Karr diz não sei onde que o elogio não tem merecimento, senão quando aquele que elogia podia dizer o contrário, e aquele que é elogiado podia consentir que se fizesse uma censura.

Eu, que não posso deixar de aceitar este preceito de mestre, que o acho muito justo e razoável, sempre que censuro é unicamente para dar valor ao elogio quando chegar a ocasião de faze-lo.

Quando censurar a Charton, é unicamente para mostrar que os elogios que lhe fizeram foram merecidos; quando fizer um reparo a respeito da Grua, é somente porque desejo ter ocasiões de lhe fazer todos os elogios.

Demais uma censura tem sua graça e seus chistes, enquanto que o elogio constante é de uma monotonia insuportável.

Quem poderia aturar um céu azul, um sol brilhante e um dia límpido e sereno, se não fosse a chuva e a temperatura de que lhe servem de contraste?

Quem admiraria as moças bonitas, se não fosse a quantidade de mulheres feias que existe neste mundo, e que se encontra a cada passo?

Quem apreciaria certas iguarias, se não fosse a pimenta, a mostarda, e o tempero de que são adubadas?

O mesmo sucede com o elogio; a censura é a pimenta que lhe dá o sainete, é a fome  que o faz saboroso, é a tempestade que quando se desfaz deixa o céu mais límpido e sereno.

Acho esta teoria tão boa que estou resolvido, pelo bem de todos, a sacrificar-me e a não elogiar a mais ninguém.

De agora em diante arrogo-me o direito de crítico, e começo a fazer censuras por conta dos elogios que já fiz e dos que possa vir a fazer.

E portanto comecemos.

Censuro em primeiro lugar os admiradores das cantoras que não admitem a menor observação, por mais delicada que seja.

Parece que a força de olharem para o sol ficaram deslumbrados, e não vêem por conseguinte aquilo que salta aos olhos.

Censuro depois as próprias cantoras, porque julgam que é, exagerando-se que hão de realçar o seu merecimento. 

Todos nós sabemos que isto nada vale; há bem pouco tempo que o céu mesmo nos deu uma lição mostrando-nos ao meio-dia uma estrela junto do sol.

O sol brilhava, mas a estrela derramava sua luz calma e serena.

Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.

Finalmente censuro-me a mim mesmo, porque não penso como os outros; e censuro ao meu leitor por não ter melhor empregado o seu tempo.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Gilberto Vaz de Melo (Caderno de Poemas I)

Gilberto Vaz de Melo nasceu em Mar de Espanha - MG,(1952). Sociólogo, com formação acadêmica na Universidade Federal de Juiz de Fora, escritor, poeta e pesquisador, tem como interesses principais: pesquisas sociológicas, literatura e música (MPB). É associado do Centro de Estudos Sociológicos de Minas Gerais, membro fundador da Casa do Poeta Belmiro Braga e ocupou por vários anos uma cadeira na Academia Juiz-forana de letras, de onde saiu por questões pessoais. Tem vários livros publicados, e uma coletânea, à qual deu o nome de "Versos Intemporais". Sempre atuante na área cultural e política de Juiz de Fora, até hoje empresta seus conhecimentos e formação musical, literária e sociológica a vários segmentos culturais de nossa cidade Juiz de Fora.
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SAUDADE

Uma triste janela
Entreaberta
Aguarda a presença
Da velhinha solitária
Que,
À meia luz
Sempre contempla ...incrédula,
Como foi possível
O tempo não lhe avisar
Que passaria-lhe tão depressa !!!

DOMINGO

De guarda-chuvas na mão
O velho caminha sorridente
Por entre os transeuntes
Que não leram os jornais.

As nuvens,
Em um complô de traição
Vão se embora!

O velho, em depressão profunda,
Se recolhe
E não mais assiste televisão

ESTRADA

Às vezes também duvido
Deste sentimento incontido
Que vaza do meu coração.
Se te causa espanto
A sonoridade de meu canto,
Não fuja, te peço...
Deste amor confesso
Que nos une tanto
Apesar do carinho distante
De nossas mãos!

Se a força de nossas palavras
Nos aproxima,
E coloca nossas almas
Em um mesmo corpo,
São frases do divino
Escritas na estrada do destino
De nós dois!

SONHOS

Ainda abrigo em meu peito
A emoção do nosso primeiro beijo.
Carrego as marcas de teus desejos,
Tatuadas em minha alma,
Que seguirão meus caminhos
Onde quer que eu vá!

Não guardo mágoas desse nosso amor,
Tão pouco condeno teu cárcere.
Se atraquei meu barco
Em um mar revolto
Não posso lamentar
As consequências da tempestade.

Sonhei,
E brutalmente fui despertado
Deste sonho acordado
Que vivi ao teu lado.

DE REPENTE TANTO

Este teu amor
Me encanta tanto
No mesmo tanto
Que a outros já encantou.

Desperta-me saudades tantas
No mesmo tanto
Que em outros corações já despertou.

Este nosso amor repentino
De juras secretas,
Cenas incertas,
Se repete no mesmo tanto
Tantas outras noites tantas...
De tantos desejos,
Ao certo
Que teu corpo absorveu!

Falo do meu sentimento tanto,
Um tanto ainda sem tamanho
Esperando o tanto necessário,
Que me abrigue de verdade
No espaço tanto
De dimensão exata
Onde caiba somente o meu tanto
Em teu coração.

DISTÂNCIA

Como quero acariciar teu rosto!
Com minha língua, esculpir teus seios
E no mais demorado dos abraços
Penetrar meu coração dentro de teu peito.

Tocar tua pele morena
Com minhas mãos em traço de pena
Tatuar minha alma em teu ventre materno.
Este aconchego eterno,
Sempre a espera
Do amor mais distante!

Como dói suportar tua ausência...
Esta saudade que se apresenta
Com odor de essência de momentos guardados
Para viver ao teu lado.

Como quero fazer verdade
A insignificância da maldade
Que é ter que me contentar
Tão somente com o teu retrato.

TEMPORAIS

Sobrevivi às tempestades...
Ao céu escuro de todas as bocas
Que um dia à minha mesa apresentaram-se
E saborearam de minhas inocentes palavras.

Sobrevivi aos tornados,
Aos furacões impiedosos
Que cruzaram minha estrada,
Empoeiraram minha visão e
Cegaram-me temporariamente
Para que eu não presenciasse
O tenebroso sorriso da falsidade.

Sobrevivi ao naufrágio
Em meu mar de lágrimas
Que por tantas noites
Inundaram meu travesseiro,
Meu amigo derradeiro,
Que me abraçava por inteiro
Tentando escutar-me.

Sobrevivi: e a ninguém cobro nada...
Fui filho da tempestade
E hoje o sol é minha cara-metade
Que iluminou meus passos
Na escuridão das sombras
Que me acompanhavam.

MAR DE GUARAPARI

Pobre mar que me assusta tanto
Quando aproximo-me de você.
E o grito feroz de suas ondas
Se cala na praia
Fulminadas por simples grãos de areia.
Pobre mar de Guarapari
Que me causa temor,
Quando à noite ponho-me a te contemplar...
E no silêncio infinito percebo
A indefesa força do homem.
Pobre mar...
Que oculta segredos e vidas distantes.
Pobre mar que me assusta tanto... tanto...
Mas nem tanto, pobre mar
Quanto a pequenos traços de água,
De idêntico sabor
Que correm pelas faces de uma determinada mulher.

ESPUMA

Quando penso
Em saborear o último gole de minha cerveja,
Inesperadamente
Me vem a lembrança de você,
E meus lábios na ânsia de seu sabor
Se molham na pronúncia de seu nome.
Mais uma vez,
Retorno ao primeiro copo...
E assim despercebidamente,
Minha saudade vai mergulhando
Na espuma amarga
De mais um inesperado porre.
Fontes:
Antonio Manoel Abreu Sardenberg.Poesias de Amigos.
http://www.sardenbergpoesias.com.br/poesias_amigos.htm
Gilberto Vaz de Melo
http://www.versosintemporais.com/apresentacao.htm

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 14

Carlos Porto Carreiro

(Carlos da Costa Ferreira Porto Carreiro)
(Recife/PE,24 setembro 1865 – Rio de Janeiro/GB, 11 janeiro 1932)

" CINZAS "


Cinzas... Poeira que ardeu, que arrefece e que esfria...
Cinzas... Que em tênue bloco um milagre sustenta,
e o vento desmorona e rola em tropelia
e anônimas desfaz na terra pardacenta...

Restos do que brilhou da vida na tormenta:
cinzas, que sois como eu, labareda vazia,
guardais no corpo inane do que ardia,
mas no âmago gelado a morte se apascenta.

Cinzas... Nesse conjunto em que esta alma se espelha
vejo a ruína do fogo, a escória da centelha
o cadáver da luz que o vento leva a esmo.

E eu, neste coração que em cinzas se esboroa,
- cinzas das ilusões - sinto levado, à toa,
o cadáver do amor que jaz dentro de mim mesmo...
–––––––––-
Carmen Cinira
(Cinira do Carmo Bordini Cardoso)
(Rio de Janeiro/GB, 16 julho 1905 – Rio de Janeiro/GB, 30 agosto 1933)

" DESASSOMBRAMENTO "


Que me aguarde, por pena, o mais triste dos fados,
e clamores hostis me sigam pela vida,
que floresçam vulcões nos montes sossegados
e trema de revolta a Terra adormecida . . .

Que se ergam contra mim os seres indignados
como um quadro dantesco em fúria desmedida,
e que, na própria altura, os astros deslocados
rolem numa sinistra e tremenda descida . . .

Hei de ser tua um dia e ofertar-te, sem pejo,
vibrante, ébria de amor, à chama de teu beijo,
esta alma virginal que há tanto assim te espera . . .

E então hei de sentir vaidosa, intensamente,
desabrochar em mim, num delírio crescente,
o instinto de mulher em ânsias de pantera!
HOLOCAUSTO

Punge-me uma ânsia sobrenatural,
ânsia de Perfeição e de Impossível
de quem tenta galgar o próprio ideal,
uma grande montanha inacessível...

Baldado esforço! Luta desigual!
- pois esquecendo tão mesquinho nível
tenho em meus pobres olhos de mortal
visões de um deus romântico e invencível. . .

Sonho, loucura ou não, dele me ufano!
Entanto, porque és frágil e és humano
tu, que eu amo, com cego, imenso ardor,

porque sem ti todo o universo é nada,
- eu sou como uma escrava revoltada
da gloriosa mentira deste amor!

INCANSÁVEL

Velho sonho de amor que me fascina,
causa das mágoas que me têm pungido
e que, entanto, conservo na retina
como a fonte dum bem inatingido...

Flama velada, cântico em surdina
de um'alma triste, um coração ferido,
nem pode haver linguagem que defina
o que eu tenho, em silêncio, padecido!

Mas, ainda que mal recompensado
meu amor há de sempre desculpar-te
humilde, carinhoso, devotado. . .

Bendito seja o dia em que te vi,
pois não há maior glória do que amar-te
nem melhor gozo que sofrer por ti!
=================
Carvalho Júnior
(Francisco Antonio Carvalho Júnior)
(Rio de Janeiro/GB, 11 março 1855 – Rio de Janeiro/GB, 3 maio 1879)

" NÊMESIS "


Há nesse olhar translúcido e magnético
a mágica atração de um precipício;
bem como no teu rir nervoso cético,
as argentinas vibrações do vício.

No andar, no gesto mórbido spleenético
tens não sei quê de nobre e de patrício,
e um som de voz metálico, frenético,
como o tinir dos ferros de um suplício.

És o arcanjo funesto do pecado,
e de teu lábio morno, avermelhado,
como um vampiro lúbrico, infernal,

sugo o veneno amargo da ironia,
o satânico fel da hipocondria
numa volúpia estranha e sensual.
===============

Cassiano Ricardo

(Cassiano Ricardo Leite)
(São José dos Campos/SP, 26 julho 1895 – Rio de Janeiro/RJ, 14 janeiro 1974)

" SONETO DA AUSENTE "


É impossível que, na furtiva claridade,
que te visita sem estrela nem lua
não percebas o reflexo da lâmpada
com que te procuro pelas ruas da noite.

É impossível que, quando choras, não vejas
que uma das tuas lágrimas é minha.
É impossível que com o teu corpo de água jovem,
não adivinhes toda a minha sede.

É impossível não sintas que a rosa
desfolhada a teus pés, ainda há um minuto,
foi jogada por mim com a mão do vento.

É impossível não saibas que o pássaro,
caído em teu quarto por um vão da janela,
era um recado do meu pensamento.
Fonte:
– J.G . de Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Haroldo Pereira Barboza (O Outro Lado do Natal)

Medalha de Bronze do II Concurso Oliveira Caruso

No rastro da estrela-guia
A noturna bala perdida
Ceifou mais uma vida.
Sonhou com o presente
Pedido a Papai Noel
Não ganhou nem o papel.
Dormiu tendo fé
Pela manhã sua meia
Só continha chulé.
Na vitrine, farta beleza
Dentro do barraco
“Farta” comida na mesa.
Quando ralou o joelho
Lembrou de Papai Noel
Manchado de vermelho.
Bochecha dourada e cheia
Na face do pobre menino
Ilusão do enfeite natalino.
A hipocrisia fere Papai Noel
O vermelho tinge sua roupagem
Mas não macula sua imagem.
Debaixo do pinheiro enfeitado
Deitou e tirou um soninho
Ganhou dejetos do passarinho.
Rasgou o saco vermelho
Imaginando o que iria ganhar
Só encontrou lixo hospitalar.
Fonte:
Comendador Oliveira Caruso.
http://reinodosconcursos.com/?page_id=220

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 779)

Uma Trova de Ademar  

O mar rendeu-se as tocaias
dos sussurros ofegantes,
vindos à noite, das praias,
nos gemidos dos amantes.

–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional

Quanto mais vivo, mais creio,
pelo que vejo na vida,
que só o amor conhece o meio
de curar alma ferida!

–Amilton Maciel/SP–

Uma Trova Potiguar


Que ironia tem a rima
na ponte que o rio cobre:
O carro do rico em cima,
em baixo a casa do pobre!!!

–Luiz Dutra Borges/RN–

Uma Trova Premiada

2012 - Cantagalo/RJ
Tema: ESPAÇO - 10º Lugar


Um casebre na favela...
o espaço ganhou fulgor,
quando alguém pôs na janela
um simples vaso de flor!

–Vanda Fagundes Queiroz/PR–

...E Suas Trovas Ficaram


Saudade, coisinha atoa
com que tanto me comovo,
lembrança de coisa boa
que se deseja de novo.

–Vicente Guimarães/RJ–

U m a P o e s i a


Não existe outra saída
do além não vem endereço,
por isso é que pela vida
todos têm um grande apreço;
mas pra quem vive na fé
vê que a morte é um recomeço.
Hélio Pedro/RN–

Soneto do Dia

ESTRELA DA MANHÃ.
–Hegel Pontes/MG–


Estrela da manhã que resplandece
no céu espiritual de minha vida,
vislumbro em seu olhar a mesma prece
que envolve ao longe a solitária ermida.

Brilha no azul. Porém quando escurece,
não passa de uma lágrima perdida
na imensidão da noite que aparece,
de estrelas fulgurantes, revestida.

E, levando meus sonhos noite afora,
eu posso vê-la ainda ao sol nascente,
quando as estrelas todas vão embora.

Pois só você, estrela entristecida,
não tem repouso e brilha suavemente
no céu espiritual de minha vida.

Nilto Maciel (Mestre Moreira Campos)

Estive com Moreira Campos em duas ocasiões, apenas. Apesar disso, desde antes do primeiro encontro já sentia por ele grande amizade e, acredito, ele me dedicava o mesmo sentimento.

Não lembro quando o li pela primeira vez. Possivelmente por volta de 1964, quando passei a ler suplementos literários de jornais de Fortaleza. Nesse tempo pontificavam nas Letras cearenses os nomes de Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro, Eduardo Campos, Francisco Carvalho, Fran Martins, Jáder de Carvalho, João Clímaco Bezerra, Milton Dias e outros. O nosso Moreira Campos estreara em livro, com o elogiadíssimo Vidas Marginais, em 1949. Contava 35 anos de idade. Não tinha nenhuma pressa em se mostrar ao público e à crítica. Escrevia e reescrevia, como outro ilustre contista, o mineiro Murilo Rubião. E ao final de sua longa vida havia publicado apenas 137 contos.

Até 1964, Moreira Campos havia publicado apenas três livros, porém já figurava como um dos melhores contistas cearenses. Na apresentação de Uma Antologia do Conto Cearense, de 1965, Braga Montenegro dizia: “Os contistas de maior renome do atual momento da literatura do Ceará são Eduardo Campos e Moreira Campos.”

Somente em 1978 adquiri e li Os Doze Parafusos e Contos Escolhidos. Anos depois, quando já nos correspondíamos, ele me ofertou outra seleção de seus contos, intitulada Dizem que os Cães Veem Coisas. E é de maneira carinhosa que afirma a sua amizade por mim: “Para Nilto Maciel, mestre do mesmo ofício, com a velha admiração e o abraço fraterno do Moreira Campos. Fortaleza, 6/XII/87." Pode parecer cabotinismo de minha parte o transcrever essas palavras. Porém, minha intenção é tão-somente falar dessa amizade dele por mim. Pois apenas uma grande amizade faria um mestre tratar assim um aprendiz.

Na verdade, ainda não nos conhecíamos pessoalmente, embora mantivéssemos correspondência havia algum tempo. Em 1982 enviei-lhe carta e exemplar de um de meus livros. É de 12/12/82 a sua primeira carta, que assim começa: “Recebi A Guerra da Donzela, que li numa tarde, entusi­asmado com a sua linguagem, e estrutura, suprarealista. Já o conhecia de Tempos de Mula Preta...” Não transcrevo a carta toda, porque aqui não quero falar de mim, mas dele.

Noutra missiva, de 11/2/83, ele anuncia uma viagem ao Rio, a São Paulo e a Brasília, “onde gostaria muito de encontrar-me com você.” E dias depois ele me visitou. Apresentou-se, embora já conhecesse de fotografias o seu rosto. Falou-me da viagem e de livros. Foram apenas alguns minutos de conversa.

Voltamos às correspondências alguns anos depois. E não sei explicar o motivo desse silêncio tão prolongado. Em 6/3/87 acusou o recebimento do meu Punhalzinho Cravado de Ódio. Comentou-o, elogiou-o. E anunciou a próxima edição do seu Dizem que os Cães Veem Coisas. É de 16/7/87 outra carta. Refere-se ao meu Estaca Zero.

Outro período de silêncio, e somente em 1992 voltou a me escrever. Desta vez para opinar sobre o tema “Ler ou não ler”, para a edição nº 3 da revista "Literatura". E lá está seu desabafo: “Sou hoje um desiludido com a literatura, embora a minha crença no seu valor perene.” E não poderia ser outro o seu sentimento, pois, sendo um contista maravilhoso, nenhuma grande editora se interessava pela publicação de sua obra.

A segunda vez em que nos vimos foi no dia da morte de meu pai, em 10/1/88. E mais uma vez ficava demonstrada a sua amizade por mim. Não quero me queixar de outros amigos, por não terem comparecido ao velório e sepultamento de meu genitor. Quero tão-somente lembrar o gesto amável de Moreira Campos. E a sua preocupação em me consolar.

Outra grande virtude dele era a modéstia. Pois, apesar de citado e estudado em diversos livros; apesar de traduzido para o alemão, o inglês, o francês, o italiano e o hebraico; apesar de ser um dos melhores contistas brasileiros do século XX; apesar disso tudo, não buscava elogios e tratava os mais novos como seus companheiros de ofício. Não se julgava mestre e não chamava os mais novos de aprendizes. Como se estivesse ele mesmo em contínuo aprendizado, lendo as novidades, comentando livros novos, sem nunca deixar de lembrar os grandes mentores do conto.

Sua última carta a mim é de 10/3/93. Nela anuncia a publicação de um livro seu de contos pela editora Siciliano. A seguir veio a doença. Amigos me falavam de seu estado de saúde. E das homenagens que a ele se preparavam no Ceará, por ocasião de seu 80º aniversário. Como a edição da dissertação acadêmica Moreira Campos, a Escritura da Ordem e da Desordem, do professor José Batista de Lima.

Em 7/5/94 José Maria Moreira Campos nos deixou.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/201

Mitos e Lendas (A Onça e a Chuva )

A onça e a chuva estavam discutindo. Cada uma delas achava que os homens tinham mais medo de uma que da outra. Dizia a onça:

— É de mim que os homens tem medo. Vá perto daquela cabana onde estão aqueles homens na porta e veja como eles têm medo.

A chuva foi e ficou esperando. A onça veio, berrando e os homens disseram:

— Uma onça. Amanhã vamos flechá-la e eu tirarei o couro para minha escarcela - E nem ligaram.

A onça foi encontrar-se de novo com a chuva e esta lhe disse o que ouvira. Depois acrescentou:

— Mas de mim eles têm medo. Quer ver? Vá lá e escute.

A onça foi, sentou perto da cabana e ficou ouvindo. Aí, a chuva veio chegando. E os homens, levantando-se para se recolher e disseram:

— Vamos fugir, que a chuva vem vindo.

E a onça viu que os homens têm mais medo da chuva do que da onça. E assim é até hoje. Eles atacam a onça, mas fogem da chuva.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (Boi Pintadinho)

Eu sou o boi Pintadinho

Boi corredor de fama
Que tanto corre no duro
Como na várzea de lama

Corro fora destes campos
Corro dentro da caatinga
Corro quatro, cinco léguas
De suor nem uma pinga

Corro fora nestes campos
Que o mesmo ar se arrebenta
Corro quatro, cinco léguas
Ninguém me vê dar a venta

Meu senhor Inácio Gomes
De mim já teve agravado
Porque onde eu estou
Não pode arrudiar gado

Ele fala com grande ira
E sente está magoado
Porque há mais de vinte vezes
Eu o tenho enrabado

Meu senhor Inácio Gomes
Fala com tanta ira
Que já dá vinte patacas
A quem me puser na embira

Eu darei tudo por nada
Pois dele, se não careço
Além da sua brabeza
Também tenho seu arremesso

O moço José de Almeida
Vagueiro do Clemente
Diz que nunca houve um cachorro
Que lhe pusesse o dente

E eu que o vi correr
Na lagoa das Mofadas
Deixou atrás o cavalo
E a sua cachorrada

Porque desde garotinho
Carreguei opinião
De não ter nenhum vaqueiro
Que me chegasse o ferrão

Estava eu certo dia
Na Carnaubinha maiado
Quando vi um cavaleiro
Em um tropel mui descansado

Estava seco de sede
E também morto de fome
Assim mesmo abri os olhos
Conheci Inácio Gomes

Saí logo na carreira
Não muito despedido
Porque Inácio Gomes
Já era meu conhecido

Ficou ele maginando
O que havia de fazer
Eu entrei bem para o centro
Bem pra dentro me esconder

No outro dia bem cedo
Saí a comer orvalho
Logo na volta que dei
Encontrei João Carvalho

Ele vinha bem montado
Bom cavalo e bom ferrão
E junto consigo trazia
O cabra Gonçalão

Traziam mais três cachorros
Que valiam três cidades
Que querendo matar um
Não se acha ruindade

Logo que avistei isto
Botei-me no catingão
A demora que tiveram
Foi gritar: arriba cão!

Corria de tal maneira
Que os ouvido me zunia
Na distância de três léguas
Três cachorros me gania

Tratei de me pôr em pé
Espiando pra confusão
Porém logo me enganei
Cada vez me foi pior

Porque eu estando em pé
Espiando pra confusão
Muito depressa chegou
O tal cabra Gonçalão

— Quer que vamos ao boi agora?
Ele está bem esbarrado...
Peguemos logo este boi
Enquanto ele está cansado

O cabra partiu a mim
Porém veio de meia-esgueia
Desviou-se da cabeça
Pressionou-me na sarneia

Eu com ardor do ferrão
A ele me encostei:
De debaixo de suas pernas
O cavalo lhe matei

O cabra se viu a pé
Ficou tão desesperado
Foi gritando logo ao outro:
— Matemos este malvado!

O cabra quando viu isto
Ainda mais se segurou
Puxou logo pela faca
Por detrás me rejeitou

Deram comigo no chão
Em riba de mim se escanchou
Logo o cabra Gonçalão
Bem depressa me sangrou

Ficaram muito contentes
De ter seu pleito vencido
Só assim Inácio Gomes
Aproveitaria o perdido

— Gonçalão tu vais à casa
Para buscar três cavalos
E mais alguma arrumação
E comeres alguma coisa
Que com certeza tens fome
Que vou pedir as alvissas
Ao compadre Inácio Gomes

Chegando ele então
Na fazenda Trucuinho
— As alvissas, meu compadre
Que é morto o Pintadinho!

— Venha me contar a estória
O que ele andava fazendo
Na lagoa das Mofadas
Bem cedo andando correndo

— Na lagoa das Mofadas
Naquele serrotinho de pedra
Bem na pontinha de cima
Fomos dar-lhe uma queda

Ou bicho forte! Correu
Correu mais de cinco léguas
E, se não são os cachorros
Ainda ninguém o pega

— Faça favor apeiar-se
Venha me contar a função
Se foi morto de chumbo
Ou a ponta de ferrão

— Sim, senhor, foi morto a chumbo
E a ponta de ferrão
Ajudado dos cachorros
E também do Gonçalão

Tenho agora três cachorros
Que vieram do Inhamuns
Que como estes três cachorros
Nesta terra não há nenhum

— Estão prontas as vinte patacas
Para lhe dar as alvissas
Tanto pelo seu trabalho
Como também pela notícia

Mande ver o Pintadinho
Aproveite ele todo
Faça dele matrutagem
Estimo que esteja gordo

Eu suponho que está capaz
De se comer com sossego
Porque julgo não terá carne
Tudo, tudo será sebo

Convide alguns amigos
Para bebermos um copinho
Principalmente celebrando
A morte de Pintadinho

* * *
Convidaram-se os amigos
Acudiu a gente toda
Receberam vinte mil réis
Comeram uma vaca gorda

Fonte:
Carvalho, Rodrigues de. Cancioneiro do norte. 3ª ed. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1967. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 8

Corri à varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno dos carros derrubados: os machados reluziam caindo sobre a tampa dos caixotes: o coiro das malas abria-se fendido à faca por mãos inumeráveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, numa dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao longe uivar os cães; e de todas as vielas desembocava, corria populaça, sombras ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...

Subitamente, na loja térrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas portas despedaçadas: decerto me procuravam, supondo que eu teria comigo o melhor do tesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambus para o lado do pátio. Demoli-a, saltei sobre uma camada de mato grosso, num cheiro acre de imundícies. O meu pónei, preso a uma trave, relinchava, puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre ele, empolguei-lhe as crinas...

Nesse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma horda com lanternas, lanças, num clamor de delírio. O pónei, espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um tijolo bate-me no ombro, outro nos rins, outro na anca do pónei, outro mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente às crinas, arquejando, com a língua de fora, o sangue a gotejar da orelha, vou despedido numa desfilada furiosa ao longo de uma rua negra... De repente vejo diante de mim a muralha, um bastião, a porta da vila fechada!

Então, alucinado, sentindo atrás rugir a turba, abandonado de todo o socorro humano – precisei de Deus! Acreditei n'Ele, gritei-Lhe que me salvasse; e o meu espírito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe oferecer, fragmentos de orações, de salve-rainhas, que ainda me jaziam no fundo da memória... Voltei-me sobre a anca do potro: de uma esquina ao longe surgiu um fogacho de tochas: era a corja!... Larguei de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma vasta fita negra furiosamente desenrolada: de súbito avisto uma brecha, um boqueirão eriçado de esgalhos de sarças, e fora a planície que sob a lua parecia como uma vasta água dormente! Lancei-me para lá, desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito tempo galopei no descampado.

De repente o pónei, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma lagoa Entrou-me pela boca água pútrida, e os pés enlaçaram-se-me nas raízes moles dos nenúfares... Quando me ergui, me firmei no solo, – vi o pónei, correndo, muito longe, como uma sombra, com os estribos ao vento...

Então comecei a caminhar por aquela solidão, enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do mato espinhoso. O sangue da orelha ia-me pingando sobre o ombro; à frialdade agreste, o fato encharcado regelava-se-me sobre a pele: e por vezes, na sombra, parecia-me ver luzir olhos de feras.

Enfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto negro, um daqueles montões de esquifes amarelos que os chineses abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre um caixão, prostrado: mas um cheiro abominável pesava no ar: e ao apoiar-me senti o viscoso de um líquido que escorria pelas fendas das tábuas... Quis fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me: e árvores, rochas, ervas altas, todo o horizonte começou a girar em torno de mim como um disco muito rápido. Faíscas sanguíneas vibravam-me diante dos olhos: e senti-me como caindo de muito alto, devagar, à maneira de uma pena que desce...

Quando recuperei a consciência estava estirado num banco de pedra, no pátio de um vasto edifício semelhante a um convento, que um alto silêncio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha. Um ar fresco circulava; a roldana de um poço rangia lentamente; um sino tocava a matinas: Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com janelinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo naquela paz de claustro católico como um recanto da pátria recuperada, o abrigo e a consolação, rolaram-me das pálpebras duas lágrimas mudas.

VII

De madrugada, dois padres lazaristas, dirigindo-se a Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como disse o alegre padre Loriot, «era já tempo»; porque em redor do meu corpo imóvel, um negro semicírculo desses grossos e soturnos corvos da Tartária, já me estava contemplando com gula...

Trouxeram-me sem demora para o convento numa padiola – e grande foi o regozijo da comunidade quando soube que eu era um latino, um cristão e um súbdito dos Reis Fidelíssimos. O convento forma ali o centro de um pequeno burgo católico, apinhado em torno da maciça residência como uma casaria de servos à base de um castelo feudal. Existe desde os primeiros missionários que percorreram a Manchúria. Porque nós estamos aqui nos confins da China: para além já é a Mongólia, a Terra das Ervas, imenso prado verde-escuro, lezírias sem fim, colorido aqui e além do vivo das flores silvestres...

Aí jaz a vasta planície dos nómadas. Da minha janela eu via negrejar os círculos de tendas cobertas de feltro ou de peles de carneiro; e por vezes assistia à partida de uma tribo, em filas de longas caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...

O superior lazarista era o excelente padre Giulio. A longa permanência entre as raças amarelas tornara-o quase um chinês: quando eu o encontrava no claustro com a sua túnica roxa, o rabicho longo, a barba venerável, agitando devagar um enorme leque – parecia-me algum sábio letrado mandarim comentando mentalmente, na paz de um templo, o Livro Sacro de Chu. Era um santo: mas o cheiro de alho que exalava – afastaria as almas mais doloridas e precisadas de consolação.

Conservo suave a memória dos dias ali passados! O meu quarto, caiado de branco, com uma cruz negra, tinha um recolhimento de cela. Acordava sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionários, vinha ouvir a missa à capela: e enternecia-me, ali, tão longe da pátria católica, naquelas terras mongólicas, ver à clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz bordada, curvando-se diante do altar, e sentir ciciar no fresco silêncio os Dominus vobiscum e os Cum spiritu tuo...

De tarde ia à escola, admirar os pequenos chineses declinando hora, horæ... E depois do refeitório, passeando no claustro, escutava histórias de longínquas missões, de viagens apostólicas ao País das Ervagens, as prisões suportadas, as marchas, os perigos, as crónicas heróicas da Fé...

Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras fantásticas: dei-me como um touriste curioso, tomando apontamentos pelo universo. E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, numa lassidão de alma, àquela paz de mosteiro...

Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse império bárbaro que eu odiava agora prodigiosamente!

Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Ocidente para trazer a uma província chinesa a abundância dos meus milhões, e que apenas lá chegara fora logo saqueado, apedrejado, frechado – enchia-me um rancor surdo, gastava horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria para me vingar do Império do Meio!

Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais prática, mais fácil! Demais, a minha ideia de ressuscitar artificialmente, para bem da China, a personalidade de Ti Chin-Fu, parecia-me agora absurda, de uma insensatez de sonho. Eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem os sábios daquela raça: que vinha pois fazer ali senão expor-me, pelo aparato da minha riqueza, aos assaltos de um povo que há quarenta e quatro séculos é pirata nos mares e traz as terras varridas de rapina?...

Além disso, Ti Chin-Fu e o seu papagaio continuavam invisíveis, remontados decerto ao Céu chinês dos Avós: e já o aplacamento do remorso visível diminuíra em mim singularmente o desejo da expiação...

Sem dúvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas regiões inefáveis para se vir estirar pelos meus móveis. Vira os meus esforços, o meu desejo de ser útil à sua prole, à sua província, à sua raça – e, satisfeito, acomodara-se regaladamente para a sua sesta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança amarela!...

E então mordia-me o apetite de me achar já tranquilo e livre, no pacífico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no bulevar, sorvendo o mel às flores da Civilização...

Mas a viúva de Ti Chin-Fu, as mimosas senhoras da sua descendência, os netos pequeninos?... Iria eu deixá-los barbaramente, na fome e no frio, pelas vielas negras de Tien-Hó? Não. Esses não eram culpados das pedradas que me atirara a populaça. E eu, cristão, asilado num convento cristão, tendo à cabeceira da cama o Evangelho, cercado de existências que eram encarnações de Caridade – não podia partir do Império sem restituir àqueles que despojara a abundância, esse conforto honesto que recomenda o Clássico da Piedade Filial.

Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga, sob as pedras da turba chinesa; o abrigo cristão que me dera a missão; o vivaz desejo de partir do Império do Meio. Pedia-lhe que remetesse ele à viúva de Ti Chin-Fu os milhões depositados por mim em casa do mercador Tsing-Fó, na Avenida de Chá-Cua, ao lado do arco triunfal de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.

O alegre padre Loriot, que ia a Pequim em missão, levou esta carta, que eu lacrara com o selo do convento – uma cruz saindo de um coração em chamas...

Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas setentrionais da Manchúria: e eu ocupava-me a caçar a gazela pela Terra das Ervas... Horas enérgicas e fortemente vividas, as dessas manhãs, quando eu largava à desfilada, no grande ar agreste da planície, entre os monteadores mongólicos que, com um grito ululado e vibrante, batiam o matagal à lançada! Por vezes, uma gazela saltava: e, de orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do vento... Soltávamos o falcão, que voava sobre ela, de asa serena, dando-lhe a espaços regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva no crânio. E íamo-la abater, por fim, à beira de alguma água morta, coberta de nenúfares... Então os cães negros da Tartária amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe, a ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...

Uma manhã o leigo da portaria avistou enfim o alegre padre Loriot, galgando à lufa-lufa pelo caminho íngreme do burgo, de volta de Pequim, com a sua mochila ao ombro e uma criancinha nos braços: tinha-a encontrado abandonada, nuazinha, morrendo à beira de um caminho: baptizara-a logo num regato com o nome de Bem-Achado: e ali a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que estugara o passo, para dar depressa à criaturinha esfomeada o bom leite da cabra do convento...

Depois de abraçar os religiosos, de enxugar as grossas bagas de suor, tirou da algibeira dos calções um envelope com o selo da águia russa:

– É isto que manda o papá Camilloff, amigo Teodoro. Ficou óptimo. E a senhora também... Tudo rijo.

Corri a um recanto do claustro a ler as duas folhas de prosa. Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como ele aliava tão originalmente ao senso fino de um hábil de chancelaria as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:

Amigo, hóspede, e caríssimo Teodoro:

Às primeiras linhas da sua carta ficámos consternados! Mas logo as seguintes nos deram um grato alívio, por nos certificar que estava com esses santos padres da missão cristã.... Eu partia para o yamen imperial a fazer uma severa reclamação ao príncipe Tong, sobre o escândalo de Tien-Hó. Sua Excelência mostrou um júbilo desordenado! Porque, se lamenta como particular a ofensa, o roubo e as pedradas que o meu hóspede sofreu, como ministro do Império vê a a doce oportunidade de extorquir à vila de Tien-Hó, em multa, em castigo da injúria feita a um estrangeiro, a vantajosa soma de trezentos mil francos, ou, segundo os cálculos do nosso sagaz Meriskoff, cinquenta e quatro contos de réis na moeda do seu belo país! É, como disse Meriskoff, um excelente resultado para o Erário imperial, e fica assim a sua orelha copiosamente vingada ... Aqui, começam a picar os primeiros frios, e já estamos usando peles. O bom Meriskoff lá vai sofrendo do fígado, mas a dor não lhe altera o critério filosófico nem a sábia verbosidade... Tivemos um grande desgosto: o lindo cãozinho da boa Madame Tagarieff, a esposa do nosso amado secretário, o adorável «Tu-Tu», desapareceu na manhã de 15... Fiz, na polícia, instâncias urgentes: mas o «Tu-Tu» não nos foi restituído – e o sentimento é tanto maior, quanto é sabido que a populaça de Pequim aprecia extremamente esses cãezinhos, guisados em calda de açúcar... Deu-se aqui um facto abominável e de consequências funestas: a ministra de França, essa petulante Madame Grijon, esse «galho seco» (como diz o nosso Meriskoff), no último jantar da Legação, deu, em desprezo de todas as regras internacionais, o braço, o seu descarnado braço, e a sua direita à mesa a um simples adido inglês, Lord Gordon! Que me diz a isto? É crível? É racional? É destruir a ordem social! O braço, a direita, a um adido, um escocês cor de tijolo, de vidro entalado no olho, quando havia presentes todos os embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem causado, no corpo diplomático, uma sensação inenarrável... Esperamos instruções dos nossos governos. Como diz Meriskoff, oscilando tristemente a cabeça – é grave... é muito grave! – O que prova (e ninguém o duvida) que Lord Gordon é o benjamim do «galho seco». Que podridão! Que lodo!... A generala não tem passado bem, desde a sua partida para a malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff não lhe percebe o mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa indolência que a conserva horas e horas imóvel sobre o sofá, no Pavilhão do Repouso Discreto, com o olhar vago e o lábio cheio de suspiros... Eu não me iludo: sei perfeitamente o que a mina: é a desgraçada doença de bexiga, que lhe veio das más águas, quando estivemos na Legação de Madrid... Seja feita a vontade do Senhor!... Ela pede-me para lhe mandar un petit bonjour, e deseja que o meu hóspede apenas chegue a Paris, se for a Paris, lhe remeta pela mala da Embaixada para São Petersburgo (daí virá a Pequim), duas dúzias de luvas de doze botões, número cinco e três quartos, da marca «Sol», dos Armazéns do Louvre; assim como os últimos romances de Zola, «Mademoiselle de Maupin», de Gautier; e uma caixa de frascos de «Opoponax»... Esquecia-me dizer-lhe que mudámos de padeiro: fornecemo-mos agora da padaria da Embaixada inglesa: deixámos a da Embaixada francesa, para não ter comunicações com o «galho seco»... Aí estão os inconvenientes de não termos aqui na Embaixada russa uma padaria – apesar de tantos relatórios, tantas reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito para a Chancelaria de São Petersburgo! Eles sabem bem que em Pequim não há padarias, que cada legação tem a sua própria, como um elemento de instalação e de influência. Mas quê! Na corte imperial desatendem-se os mais sérios interesses da civilização russa!... Creio que é tudo o que há de novo em Pequim e nas legações. Meriskoff recomenda-se, e todos desta Embaixada; e também o condezinho Arthur, o Zizi da Legação espanhola, o «Focinho Caído», e o Lulu; enfim todos; eu mais que ninguém, que me assino com saudade e afeição

General Camilloff

P. S. – Enquanto à viúva e família de Ti Chin-Fu, houve um engano: o astrólogo do templo de Faqua equivocou-se na interpretação sideral: não é realmente em Tien-Hó que reside essa família... É no Sul da China, na província de Cantão. Mas também há uma família Ti Chin-Fu para além da Grande Muralha, quase na fronteira russa, no distrito de Kao-Li. A ambas morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza... Portanto, esperando novas ordens, não levantei os dinheiros da casa de Tsing-Fó. Esta recente informação mandou-ma hoje Sua Excelência o Príncipe Tong, com uma deliciosa compota de calombro... Devo anunciar-lhe que o nosso bom Sá-Tó aqui apareceu, de volta de Tien-Hó, com um beiço rachado e leves contusões no ombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma litografia de Nossa Senhora das Dores, que, pela inscrição a tinta, vejo que pertencera a sua respeitável mamã... Os meus valentes cossacos, esses, lá ficaram numa poça de sangue. Sua Excelência o Príncipe Tong condescende em mos pagar a dez mil francos cada um, das somas extorquidas À vila de Tien-Hó... Sá-Tó diz-me que se o meu hóspede, como é natural, recomeçar as suas viagens através do Império em busca dos Ti Chin-Fu – ele considerar-se-ia honrado e venturoso em o acompanhar, com uma fidelidade canina e uma docilidade cossaca...
–––––––––––

Continua…
Fonte:
http://leituradiaria.com

Poesia nos 400 (Os Cabos de Guerra da Poesia da São Luís Contemporânea)

onde
um pequenino
ri
olhando
para o
céu
ali
está
Deus
(Antonio Aílton)

Muitos anos depois de dezenas de poetas-gênios e inventores, grandes mestres da poesia, diluidores, grandes escritores, bons escritores sem qualidade e cometedores de versos (não necessariamente nessa ordem), esta São Luís, que, de autodenominada “Atenas Brasileira”, não sem empáfia, e hoje está em fase de despedida de também ser Jamaica Brasileira para ser “Cidade de Deus”, insiste, todavia, em conservar nalgum beco de seu ventre a experiência do poético que se pode revelar numa esquina, na boca de um menino que toma para si um velho espírito, a qualquer momento.

A experiência do poético é, sem dúvida, um dos traços característicos que permanece em nós, sem exclusividade de grupos ou segmentos. Essa experiência, coletiva, não está apenas na chamada cultura erudita, a qual é agora rechaçada pelos dissimulados, pretensamente corretos, como cultura burguesa, de elite, de poucos. Que o é, realmente, embora isso não devesse ser assim, enviesado, e apesar de que muitos dos que fazem essa cultura venham das brenhas mais humildes. Mas os culpados pela mutilação cultural e pela sonegação da plena educação do povo são bem conhecidos.

E onde está essa experiência coletiva do poético? Dizem as cantigas de Bumba-meu-boi, de um lado: “se não existisse o luar, o homem viveria na escuridão” (Chagas da Maioba); e de outro lado, invocando a mesma lua da inspiração nativa, cantam: “Ô lua, (...) teu brilho, quando vem surgindo, vai transluzindo o couro do nosso Boi.” ((Humberto de Maracanã). E sob essa mesma lua, as coreiras incendeiam em roda, o corpo iluminando os tambores. Todos esses segmentos são vasos comunicantes que resultam no espírito do lugar, numa atmosfera que exulta e impregna, que é explorada politicamente, economicamente, turisticamente, midiaticamente, propaladamente, sem que haja políticas sérias de investimento que, ao invés de tratá-los como “retorno” ou “não retorno” de votos, como coisas contraditórias, “fundo perdido” (segmento literário), percebam o potencial para a cidade, em si, dos braços que se dão, do enredo, do entrecruzamento de todos os fios, como experiência coletiva nossa, singular, que faz crescer a todos.

É dentro dessa experiência que também se ordenam gerações e gerações que fazem a poesia e o ethos da cidade, São Luís, e do estado, o Maranhão. E, malgrado as opiniões em contrário, e apesar deste mergulho rápido e vertiginoso da sociedade no universo da imagem e da tecnologia, pressupostamente contrário à poesia conforme a conhecemos, ela permanece forte, e mais uma geração se estabelece sem alarde.

Há não muito tempo, alguns viam no embate com o passado a chave não só para estabelecer radicalmente uma nova arte, mas sobretudo para chamar a atenção para si, para demarcar seu espaço e sua existência no mundo: a castração ou degola do grande pai, para falar simbolicamente, mesmo quando o que mais importava era mostrar a novidade da festa.

Nas atuais condições a que chegamos com a literatura, da apropriação e do dialogismo contemporâneos, de hipertextos e redefinições, de instantaneidades, acessos espaciais e recuperação do remoto e do desconhecido, e em que se faz a todo instante, aqui e alhures, “movimentos de retorno e de transtorno” (Flora Sussekind), acentua-se o fato de que o movimento de escritura é também movimento de leitura e vice-versa (não significando aí, que fique claro, aceitação de discurso ou leitura passiva). À exceção de poucos que ainda pensam nalgum rapapé inaugural e elaboram manifestos pastichosos , muitos concordam que esse tipo de espetáculo faz parte hoje de um pensamento anacrônico, desde que a história já deglutiu as famosas vanguardas, do futurismo e do dadaísmo à pop art, exaustivamente. Assim, a turma que recebe o legado nesta culminância dos quatrocentos anos desta cidade de poetas se impõe não com trombetas e festins, ou com tapetes que lhe estendam.

Essa geração vem abrindo caminho com sua competência, com a qualidade do seu trabalho, com sua leitura, e com seu respeito pela experiência poética que outros vieram erguendo, com luta e suor, às vezes com desespero e desamparo.

Aí está a incompreensão que, com raios de maniqueísmo, gira em torno daqueles que estão deste lado do cabo de guerra, de muitos acharem que não se produz mais nada, que a luz se apagou, que não se escreve mais como antigamente, isto é, como “no tempo dos gênios”, e que a última grande poesia possível já se esvai com a luz gasosa dos lampiões, com os prédios deixados à mercê de seu esboroar. Ora, esta geração, chamada muitas vezes de austera, esta geração que, no geral, sem lastro econômico, é feita por aqueles que se enroscam na esquizofrenia do trabalho e arrancam das demandas cotidianas e familiares momentos para poder criar, avança ficando as estacas do seu talento, e há de ficar.

A experiência poética e a experiência do poético não é, nesse caso, uma questão de exclusividade nem de disputa de forças: não é o que nos separa, no cruel exílio desta Ilha, é o que nos une. O contrário disso não passa de ciúme besta. E, neste sentido, todos têm algo a dizer, porque um excelente poema, havendo condições para isso, pode ser feito em qualquer idade, a qualquer idade (disto não precisa levantar provas); neste sentido, todos temos o musgo das velhas galeras e a juventude de quatrocentos anos, agora, que navegar e viver ganham um novo e surpreendente sentido.

****

A responsabilidade declaradamente escamoteada deste texto é a de correr um tremendo risco, elencando nomes que engendram o cenário da poesia maranhense atual, ou, mais precisamente, da poesia maranhense contemporânea, e dele compartilham. Neste caso, toda lista padece do mesmo problema sempre por nós execrado: o de deixar de fora quem deveria, poderia, ou sente que teria que estar, uma vez que é feita por alguém que não conhece nem tem condições de conhecer todos. Por outro lado, quem é convidado não tem obrigação de permanecer... É preciso pensar, portanto, numa espécie de rol exemplar (ver páginas 4 a 6, seguintes), no qual, quem não é mencionado possa ao menos ser representado, e quem é listado sinta-se num elo que liga as possibilidades às fragilidades do ser humano.

Indubitavelmente, quatro grandes nomes têm sido mencionados como representantes da poesia maranhense mais recente, que têm fortes elos temáticos e formais com esta São Luís do Maranhão e que nos repassam sua experiência poética: Nauro Machado, José Chagas, Ferreira Gullar e Bandeira Tribuzi. Este último, dormindo já a paz do poeta justo. Eles determinaram em definitivo, conforme podem ser observados na leitura de sua obra, pelo menos três vetores para a nossa poesia: um lirismo másculo e visceral (Nauro); uma poética do memorial local aliado à interrogação da temporalidade existencial (Chagas, Tribuzi); a objetividade cosmopolita do cotidiano social atravessado pela contestação poética (Gullar, Tribuzi). Some-se a esses nomes, o de Lago Burnet, Déo Silva, José Maria Nascimento, Manuel Lopes, Manuel Caetano Bandeira de Mello e outros.

A poeta e romancista Arlete Nogueira da Cruz, a maior representante e mulher que contribuiu grandemente com a geração acima, aponta, em seu Nomes e nuvens (Unigraf, 2003), outra geração que se firma entre os anos 1970 e 1980, e que está na plenitude de sua produção, madura. Rica de nomes e de direcionamentos, mas todos respirando os novos confrontos impostos por circunstâncias e transformações radicais que vão do local e do nacional ao global: expansão e descentramento da cidade, derrocada e morte do militarismo, liberdade de pensamento, noção de uma “aldeia global”, tecnologização crescente, aumento da violência urbana e aparecimento da massa abandonada nas ruas. Luís Augusto Cassas, Cunha Santos, Raimundo Fontenele, Viriato Gaspar, Chagas Val, Rossini Correa, Alex Brasil, Roberto Kenard, Laura Amélia Damous, Lenita Estrela de Sá, Joe Rosa, Celso Borges, Fernando Abreu, Paulo Melo Sousa, Lúcia Santos, Eduardo Júlio, Ronaldo Costa Fernandes, Couto Correa Filho, Eudes de Sousa, Sônia Almeida, Dilercy Adler, César Willian, são alguns dos nomes cujo conjunto fazem uma poética não passível de redução: ora “marginal” e underground, concretista, neo ou semiconcretista, ora lírico-sentimental, ora metalinguística; poundiana; hierática; epigramática; hierofânica...

E esta outra geração (1990/2000...) que agora também exige com vigor seu lugar ao sol, começando com mais ou menos força sua obra, encontrando-se com outras, que hão de se encontrar com outras, sem que sejam necessariamente companheiros próximos ou que tenham a mesma origem, os mesmos fins, os mesmos meios, mas que são familiares às mesmas vozes e vivem mais ou menos as mesmas demandas socioculturais deste momento. Eclética, vai do telurismo existencial ao cosmopolitismo fragmentário, ou às neuroses íntimas e urbanoides.

Poetas, professores, artistas, ensaístas que surgiram em torno do Suplemento Literário Vagalume; em torno do bar do Adalberto; dos festivais de poesia falada ou do mundo acadêmico-universitário da UFMA, em torno das oficinas e recitais programados pelo poeta Paulo Melo; dos festivais do SESC; dos concursos da FUNC, em torno do Grupo Curare e do Carranca, que confluíram em riso na alegria dos domingos na da casa do jornalista Gojoba e do abraço gentil de sua esposa, Dona Graça; em torno do Concurso de Poesia Nascentes, da USP; do Poiesis ou da Vida é uma festa: Hagamenon de Jesus, Bioque Mesito, Natanílson Campos, Ricardo Leão, Dyl Pires, Antonio Aílton, Rosimary Rêgo, Jorgeana Braga, Geane Fiddan, José Neres, Dílson Junior, Mauro Cyro, Elias Rocha, Natinho Costa, Samarone Marinho, Jorge Leão, Danilo Araújo, Josualdo Rego, Reuben da Cunha Rocha, Bruno Azevedo, César Borralho, Mateus Gato e Daniel Blume, entre outros, e entre companheiros e companheiras que, não escrevendo, fizeram de sua companhia poesia pura.

Estas listas são, evidentemente, apenas listas, e têm um caráter relativamente didático, baseado mais ou menos nos círculos de produção, faixa de idade, etc. Na realidade, essa separação é muito tênue ou difusa. Exemplos claros disso são os casos de Couto Corrêa Filho, César Willian, Paulo Melo, para falar de alguns, que sempre estiveram também juntos com o último elenco.

“A cidade não está no homem/ do mesmo modo que em suas/ quitandas praças e ruas”, diz Gullar. A experiência coletiva do poético como experiência da liri-cidade e a experiência poética passada de geração a geração constituem-se num dos nossos maiores patrimônios imateriais que têm raízes no patrimônio material ludovicense, em sua atmosfera cultural e na fundação de uma tradição forte, que une, por um lado, a cultura popular que permaneceu pela força de muitos sacrifícios e, por outro, um lastro canônico ímpar, construído por intelectuais visionários, conforme aponta-nos Ricardo Leão em sua obra/tese Os atenienes: a invenção do cânone nacional (Paco Editorial,2012).

Neste espaço extraordinário, de velhos becos e ladeiras, azulejos e crepúsculos abissais, marinhos, nasce uma poesia única proporcionada por um lugar único, cujos habitantes se sentem tocados, invadidos pelo signo do poético. É nela que o poeta lamenta cada injúria, é nela que, como casa memorial de nossa linguagem, os poetas pedem em uníssono, com Tribuzi: “Ó minha cidade, deixa-me viver, que eu quero aprender tua poesia”.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano XI. Edição 281. 8 de setembro de 2012

Soares de Passos (Amor e Eternidade)

Repara, doce amiga, olha esta lousa,
E junto aquela que lhe fica unida:
Aqui dum terno amor, aqui repousa
O despojo mortal. sem luz, sem vida.
Esgotando talvez o fel da sorte,
Puderam ambos descansar tranquilos;
Amaram-se na vida, e inda na morte
Não pôde a fria tumba desuni-los.
Oh! quão saudosa a viração murmura
No cipreste virente
Que lhes protege as urnas funerárias!
E o sol, ao descair lá no ocidente,
Quão belo lhes fulgura
Nas campas solitárias!
Assim, anjo adorado, assim um dia,
De nossas vidas murcharão as flores...
Assim ao menos sob a campa fria
Se reunam também nossos amores!
Mas que vejo! estremeces, e teu rosto,
Teu belo rosto no meu seio inclinas,
Pálido como o lírio que ao sol posto
Desmaia nas campinas?
Oh! vem, não perturbemos a ventura
Do coração, que jubiloso anseia...
Vem, gozemos da vida enquanto dura;
Desterremos da morte a negra ideia!
Longe, longe de nós essa lembrança!
Mas não receies o funesto corte...
Doce amiga, descansa:
Quem ama como nós, sorri à morte.
Vês estas sepulturas?
Aqui cinzas escuras,
Sem vida, sem vigor, jazem agora;
Mas esse ardor que as animou outrora,
Voou nas asas de imortal aurora
A regiões mais puras.
Não, a chama que o peito ao peito envia
Não morre extinta no funéreo gelo.
O coração é imenso: a campa fria
E pequena de mais para contê-lo.
Nada receies, pois: a tumba encerra
Um breve espaço e uma breve idade!
E o amor tem por pátria o céu e a terra,
Por vida a eternidade!
Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Fanny Abramovich (Dona Licinha)

A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B...

Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos.

A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza!

Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...

Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante.

Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas.

Um abraço apertado,
cheinho de gostosuras, da
Ciça
Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio,11 de Novembro de 1855: Um Romance

(Folhetins do “Diário do Rio” – de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro de 1855)

Estou decidido a não escrever hoje a minha revista, e como os meus leitores não quererão dispensar o seu folhetim dos domingos, não há remédio; vou fazer um romance.

Um romance!

Não é qualquer coisa, é uma história dividida em capítulos, que principia rindo e acaba chorando, ou vice-versa; e na qual devem entrar necessariamente um namorado, uma moça bonita, um homem mau, e diversas outras figurinhas de menos importância.

Um romance em regra só pode começar de manhã ao romper do dia, de tarde ao rugido da tempestade, e de noite ao despontar da lua: excetuam-se os romances domésticos, que não têm hora certa, e que regulam-se pelo capricho do autor.

Ora, o romance que eu pretendo fazer está inteiramente fora da regra, porque não tem começo, nem fim; e quanto aos personagens limitam-se a dois unicamente.

Enfim, sem mais preâmbulo, vou contá-lo aos meus leitores, que lhe darão o apreço que entenderem.

Foi há muito tempo.

A Malibran, a bela e poética Malibran, cismava sozinha, com a cabeça indolentemente caída sobre o ombro, e os grandes olhos negros e melancólicos vagando no espaço.

A noite estava límpidas e serena; as estrelas cintilavam no azul do céu; o vento que suspirava na ramagem das árvores mal quebrava o silêncio das horas mortas.

De repente os lábios da artista se entreabriram num sorriso, e um gorjeio sonoro, um trilo brilhante começou a brincar nas covinhas da boca, e por fim foi aninhar-se no cálice de uma margarida que crescia num vaso.

Um momento depois, o olhar da Malibran animou-se, a graça e a faceirice do sorriso desapareceram com a expressão ardente e apaixonada que iluminou o seu semblante.

A voz desprendeu-se vibrante e profunda do seio que palpitava, e soltou-se numa dessas volatas magníficas, num desses gritos d’alma que não se exprimem.

A nota pairou um momento nos ares; depois oscilou ao sopro da brisa, e caiu entre as folhas de um botão de rosa, como uma gota do orvalho da noite.

Até aqui o meu romance é muito simples e nada tem que admire.

São duas notas gêmeas, filhas do mesmo sorriso, criadas pelo mesmo sentimento, duas irmãs que a sorte deste mundo separou, dando-lhes um destino diverso.

Mas o que segue é o mais interessante; agora é que o romance vai começar.

A Malibran, apesar de artista e de achar-se então na flor da idade, aborreceu-se de cismar, e teve sono; o sono, assim como a fome, é um dos prosaísmos deste mundo a que ninguém escapa, seja rei ou poeta.

Logo que sentiu que as pálpebras lhe pesavam, a bela artista lançou um último olhar às flores do céu e às estrelas da terra, e fechou a sua gelosia.

Houve um momento de silêncio.

Depois a brisa travessa roçou ligeiramente as suas asa pelas folhas; e uns dons maviosos, um canto trinado e argentino exalou-se do seio de uma flor.

Era o gorjeio da Malibran, que balouçando-se no cálice da margarida, trilava uma ária do Barbeiro de Sevilha, como se estivesse na avant-scène do teatro lírico.

Mal tinha ele começado, quando sentiu-se um farfalhar de folhas agitadas pelo vento, e viu-se a rosa erguer a fronte de princesa, volver a haste com um meneio altivo, e deixar cair do seio uma nota límpida, sonora e brilhante, que ofuscou inteiramente o pobre gorjeio.

Desta vez era a volata da Malibran, que adormecida entre as folhas da rosa despertava de repente e se lançara no espaço, julgando que ia fazer estremecer o salão da Ópera com a tríplice salva de aplausos do costume.

Mas, em lugar desses admiradores entusiastas, não havia ali senão dilettanti modestos que apenas sabiam aplaudir com o silêncio; e por isso a viração calou-se, e as águas nem sequer murmuraram.

Entretanto a margarida teve inveja da rosa; o gorjeio teve ciúme de seu irmão, e para vingar-se abandonou o seio da flor, e transformou-se num rouxinol.

Largou-se então a cantar, a trinar, a fazer arrulhos doces e mimosos, como sons de pérola que corressem entre os dedos afilados de uma menina graciosa; tudo para ele era um hino de prazer: de um som fazia um canto, de um canto um poema de harmonia.

Todos o admiravam; porém, quando julgava o seu triunfo certo, viu deslizando nas águas tranqüilas do lago o cisne da Itália, que modulava o seu último canto, essa criação poética imaginada para exprimir o canto d’alma que se despede da terra e cria asas para remontar ao céu.

O cisne soltou um ou dois harpejos, cheios de melancolia e de sentimento; e bastou isto para que o rouxinol batesse as asas e cortasse os ares num vôo rápido.

Aqui termina a primeira parte do romance. Se quereis saber o resto, continuai a ler; se não, voltai a folha, e lede os anúncios, que não deixam de ter o seu interesse, sobretudo para quem tem de alugar amas de leite.

Voltem, aos assunto.

O rouxinol voou, até que chegou a uma bela terra toda coberta de loureiros em flor e de fustes de colunas de mármore espalhadas a esmo.

Era a Grécia, se bem me lembro.

Corria perto, entre um montão de ruínas tapeçadas de hera e de musgo, o Rio Alfeu, o amigo e colega dos poetas da Arcádia.

A alguns passos destacava-se um grupo de estátuas, que pelo primor da carnação e pela delicadeza do perfil pareciam ter saído do buril de Fídias ou Praxíteles.

O rouxinol pousou num ramo de árvore, e olhou as estátuas batendo as asas de contente; mas voltando-se viu o cisne que ele tinha deixado na Itália, banhando-se nas águas do Alfeu.

Ambos lançaram-se ao grupo das estátuas: o rouxinol aninhou-se no seio de uma ninfa, cujo nome não me lembro; o cisne pousou no ombro de uma Safo.

De repente as duas estátuas animaram-se, estremeceram, e por um movimento instintivo, elas que tinham vivido sempre juntas, elas que eram irmãs de arte e de pensamento, elas que eram feitas do mesmo mármore, voltaram-se as costas e separaram-se.

Assim viveram muito tempo, até que um dia ouviu-se um hino de amor, e as duas estátuas foram-se aproximando a pouco e pouco, sorriram uma para a outra, e deram-se as mãos.

A música que se ouvia era o spartito de Romeu e Julieta; e as duas estátuas animadas pareceram-nos...

Adivinhem os leitores, ou antes esperem pelo dia 2 de dezembro, em que nos consta se representará Romeu e Julieta: aí acharão o fim deste romance, se é que ele tem fim.

Depois de ter escrito um romance, é duro fazer uma crônica, ainda mesmo de uma semana como esta, em que nada de bom há a dizer.

No teatro lírico tem-se representado o Nabuco, com geral aceitação. O Walter é um excelente artista, e tem um canto cheio de expressão e de elegância; quando se o ouve conhece-se que há nela mais do que bela voz e boa figura, há alma e sentimento.

A Grua canta perfeitamente, canta como ela costuma cantar, mas, com licença dos admiradores, e portanto com licença de mim mesmo, o folhetinista que viu o Otelo, a Norma, Sapho e Nabucodonosor, tem o que quer que seja a dizer sobre o desempenho desses diferentes papéis.

O artista é como o Proteu da fábula; deve ter o dom de metamorfosear-se a cada momento; deve mudar de figura, de sentimento, de expressão, assim como muda de vestuário.

Norma é uma mulher selvagem que ama com essa paixão violenta e profunda das naturezas primitivas, que sacrificou ao seu amor e crença de seus pais, a sua virgindade e os votos de sua religião; e tudo isto por um inimigo de sua pátria.

Norma é uma amante criminosa, desprezada, que procura vingar-se a todo o transe, que ameaça no seu desespero a sua rival, a seu amante, e a seus filhos; e que só à beira do túmulo, junto à fogueira, torna-se mulher, e perdoa.

Safo é um espírito cultivado, uma alma de poeta, que sente todos os extremos do amor, e que o desprezo leva à morte, não por uma vingança, mas por um sacrifício voluntário, por um desapego à vida.

A respeito de Abigail não falemos; caráter ambicioso, mais orgulho do que amor, condena-se à morte por despeito ou antes remorso.

Entretanto, mudado o vestuário, há na Safo o que quer que seja do ciúme da Norma, assim como em Abigail se reconhecem ainda uns longes da musa grega e da sacerdotisa druídica.

Faltava-me defender as Mulheres de Mármore de uma acusação injusta de imoralidade que se lhes tem feito.

Mas o público que tem concorrido ao Ginásio, e os diversos folhetinistas que elogiam constantemente o drama, me dispensam de gastar tempo e papel.

É preciso saber como entende-se essa imoralidade de que se trata; porque nós já não estamos no tempo em que as meninas de 20 anos ficavam com as faces em brasa quando um pai um pouco desbocado falava por descuido em amor ou casamento.

Hoje as moças de 10 anos geralmente discutem as diversas teorias do amor, e sabem o que é preciso para não ignorar coisa alguma; falam do casamento como de uma partida de prazer; lêem romances franceses, e riem-se com muito gosto quando se representam as proezas de Richelieu.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Antonio Augusto de Assis (Era Uma Vez...)


composição artística retratando a 
Igreja Matriz de São Fidélis
(menção honrosa do I Encontro Nacional de Poesia de São Fidélis/RJ)

 Era uma vez um lugar
 que se chamava Gamboa.
 Tinha um rio que passava
 juntando as águas da serra para levá-las ao mar.
 E os índios - os coroados, os garulhos e puris.

 Um dia a canoa trouxe, trazendo as bênçãos de Deus,
 dois fradinhos de capucho, um Ângelo, outro Victório,
 e a cruz ali se fincou.

 Fez-se a capela primeira, de pau-a-pique e sapé.
 Depois, belíssima, a igreja
 dedicada a São Fidélis, o mártir de Sigmaringa,
 padroeiro e protetor.

 Em volta se fez a aldeia, da aldeia se fez a vila,
 e a vila se fez cidade, que de tão florida e bela
 de Poema se chamou.

 São Fidélis, Cidade Poema
 Do morro do Sapateiro,
 das lendas e das laranjas que vêm da Bela Joana,
 do leite vindo da Ipuca, de Colônia e Cambiasca,
 da cachacinha gostosa moída no Grumarim,
 do açúcar branquinho da Usina Pureza,
 das barraquinhas na praça em volta da maxambombas.

 São Fidélis do Bar América e do Bar Orion,
 e do Jaime Coelho na porta do Cine Império.
 Do banacaxi, do requeijão, do pão tatu
 e das rosquinhas amanteigadas.
 São Fidélis das serestas e dos grandes bailes,
 dos banhos de rio e da bola de meia.
 E das festas da lagosta do Aloísio Abreu.

 São Fidélis das bandas tocando dobrado
 que hoje escuto redobrados na retreta da saudade.

Fonte:
http://www.sardenbergpoesias.com.br/200_anos_matriz_sao_fidelis/obras_vencedoras/obras_vencedoras.htm

Fátima Parente (“Mudaria o Natal ou Mudei Eu?… ”)


Medalha de Prata do II Concurso Oliveira Caruso

Quisera fechar os meus olhos e, quando os abrisse, 
já estar em um novo ano,
sem passar pela triste noite de um natal dos sem natais,
quando a noite é a mais longa e triste para tantos dos mortais…
De algum modo, era a noite dos ausentes…

A noite Santa é plena das lembranças e saudades daqueles que, outrora, ao redor da grande mesa preenchiam de amor o natal!

Quantas e tantas noites assim vividas, e tão pouco agradecidas… Não quero sem convivas minha mesa, pois de afetos, em pobreza bem mais forte, o é e com certeza, será o sentimento das partidas…Quisera, de um sonho bom, meu despertar e ainda estar à lareira da sua casa de infância, ao calor do crepitar das chamas de amor que se espalhavam, à volta pela cozinha… Ah, o cheiro doce da canela nas rabanadas , a aletria, o leite creme!… Delícias degustadas com tanto afeto!… O pai tão amado!…A mãe, em total azáfama, a cuidar de todos!… E, logo, o repicar de sinos para a missa do galo!… Era noite de natal!…Por essa razão, a neve comparecia em finos floquinhos de algodão que, peraltas, se divertiam a fazer carreirinhos nas janelas de correr…E, então, era o nunca acabar de primos, tios e tias a chegarem para o fraternal abraço na graça infinita do menino Deus, a renascer em todos os corações por se viver mais um natal. Quisera não acordar deste sonho tão sentido, de olhos fechados revivido, que, assim, viveria na ilusão de que o tempo não passou e nada mudou,

E é outra vez natal!…

Fonte:
Comendador Oliveira Caruso.
http://reinodosconcursos.com/?page_id=220