domingo, 3 de março de 2013

Machado de Assis (Alberto de Oliveira: Meridionais)

QUANDO EM 1879, na Revista Brasileira, tratei da nova geração de poetas, falei naturalmente do Sr. Alberto de Oliveira. Vinha de ler o seu primeiro livro, Canções Românticas, de lhe dizer que havia ali inspiração e forma, embora acanhadas pela ação de influências exteriores. Achava-lhe no estilo coisa flutuante e indecisa; e quanto à matéria dos versos, como o poeta dissesse a outros, que também sabia folhear a lenda dos gigantes, dei-lhe este conselho: "Que lhe importa o guerreiro que lá vai à Palestina? Deixe-se fixar no castelo com a filha dele... Não é diminuir-se o poeta; é ser o que lhe pede a natureza, Homero ou Mosco". Concluía dizendo-lhe que se afirmasse.

Não trago essa reminiscência crítica (e deixo de transcrever as expressões de merecido louvor), senão para explicar, em primeiro lugar, a escolha que o poeta fez da minha pessoa para abrir este outro livro; e, em segundo lugar, para dizer que a exortação final da minha crítica tem aqui uma brilhante resposta, e que o conselho não foi desprezado, porque o poeta deixou-se estar efetivamente no castelo, não com a filha, mas com as filhas do castelão, o que é ainda mais do que eu lhe pedia naquele tempo. Que há de ele fazer no castelo, senão amar as castelãs?

Ama-as, contempla-as, sai a caçar com elas, fita bem os olhos de uma para ver o que há dentro dos olhos azuis, vai com a outra contar as estrelas do céu, ou então pega do leque de uma terceira para descrevê-lo minuciosamente. Esse Leque, que é uma das páginas características do livro, chega a coincidir com o meu conselho de 1879, como se o poeta, abrindo mão dos heróis, quisesse dar às reminiscências épicas uma transcrição moderna e de camarim: esse Leque é uma redução do escudo de Aquiles. Homero, pela mão de Vulcano, pôs naquele escudo uma profusão de coisas: a terra, o céu, o mar, o sol, a lua e as estrelas, cidades e bodas, pórticos e debates, exércitos e rebanhos. O nosso poeta aplicou o mesmo processo a um simples leque de senhora, com tanta opulência de imaginação no estilo, e tão grego no próprio assunto dos quadros pintados, que fez daquilo uma parelha do broquel homérico. Mas não é isso que me dá o característico da página; é o resumo que ali acho, não de todo, mas de quase todo o poeta; imaginoso, vibrante, musical, despreocupado dos problemas da alma humana, fino cultor das formas belas, amando porventura as lágrimas, contanto que elas caiam de uns olhos bonitos.

Conclua o leitor, e concluirá bem, que a emoção deste poeta está sempre sujeita ao influxo das graças externas. Não achará aqui o desespero, nem o fastio, nem a ironia do século. Se há alguma gota amarga no fundo da taça de ouro em que ele bebe a poesia, é a saudade do passado ou do futuro, alguma coisa remota no tempo ou no espaço, que não seja a vulgaridade presente. Daí essa volta freqüente das reminiscências helênicas ou medievais, os belos sonetos em que nos conta o nascimento de Vênus, e tantos outros quadros antigos, ou alusões espalhadas por versos e estrofes. Daí também uma feição peculiar do poeta, o amor da natureza. Não quero fazer extratos, porque o leitor vai ler o livro inteiro; mas o soneto "Magia Selvagem" lhe dará uma expressão enérgica dessa paixão dos espetáculos naturais, ante os quais o poeta exclama:

Tudo, ajoelhado e trêmulo, me abisma
Cego de assombro e extático de gozo.

Cegueira e êxtase: o limite da adoração. Assim também o "Conselho", página em que ele receita para uma dor moral o contato da floresta; e ainda mais a anterior, "Falando ao Sol", em que caracteriza a intensidade de um grande pesar, que então o oprime, afirmando que para esse, nem mesmo a natureza — "a grande natureza" — pode servir de remédio.

A maior parte das composições são quadros feitos sem outra intenção mais do que fixar um momento ou um aspecto. Geralmente são curtos, em grande parte sonetos, forma que os modernos restauraram, e luzidamente cultivam, pode ser até que com excessiva assiduidade. Os versos do nosso poeta são trabalhados com perfeição. Os defeitos, que os há, não são obra do descuido; ele pertence a uma geração que não peca por esse lado.

Nascem, — ora de um momento não propício, — ora do requinte mesmo do lavor; coisa esta que já um velho poeta da nossa língua denunciava, e não era o primeiro, com esta comparação: " o muito mimo empece a planta". Mas, em todo caso, se isto é culpa, felix culpa; a troco de algumas partes laboriosas, acabadas demais, ficam as que o foram a ponto, e fica principalmente o costume, o respeito da arte, o culto do estilo.

"Manhã de Caça", "A Volta da Galera", "Contraste", "Em Caminho" , "A Janela de Julieta", e não cito mais para não parecer que excluo as restantes, darão ao leitor essa feição do nosso poeta, o amor voluptuoso da forma. Não lhe pergunteis, por exemplo, na "Manhã de Caça", onde é que estão as aves que ele matou. O poeta saiu principalmente à caça de belos versos, e trouxe-os, argentinos e sonoros, um troféu de sonetos. Assim também noutras partes. Nada obsta que os versos bonitos tragam felizes pensamentos, como pintam quadros graciosos. Uns e outros aí estão. Se alguma vez, e rara, a ação descrita parecer que desmente da estrita verdade, ou não trouxer toda a nitidez precisa, podeis descontar essa lacuna na impressão geral do livro, que ainda vos fica muito: — fica-vos um largo saldo de artista e de poeta, — poeta e artista dos melhores da atual geração.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XII)

Primeiro Fausto.
 
Segundo Tema
O Horror de Conhecer
I

O inexplicável horror
De saber que esta vida é verdadeira,
Que é uma coisa real, que é [como um] ser
Em todo o seu mistério
Realmente real.
II
Do horror do mistério são, talvez guerreiros
Símbolos esses horrendos
Gorgona e Demogorgon fabulosos,
Fatais um pelo aspecto o outro no nome.
Neles se vê a ávida ansiedade
De ter, em concepção que torturasse
De terror, isso que de vago e estranho,
Atravessando como um arrepio
Do pensamento a solidão, integra
Em luz parcial [...] a negra lucidez
Do mistério supremo. É conhecer,
O erguer desses ídolos de horror,
A existência daquilo que, pensando
A fundo, redemoinha o pensamento
Por loucos vãos [recantos], delírios da loucura,
Despenhadeiros [íngremes], confusos
To.rturamentos, e o que mais de angústia
E pavor não se exprime, sem que falhe
Na própria concepção o conceber.
III
Por que pois buscar
Sistemas vãos de vãs filosofias,
Religiões, seitas, [voz de pensadores],
Se o erro é condição da nossa vida,
A única certeza da existência?
Assim cheguei a isto: tudo é erro,
Da verdade há apenas uma idéia
A qual não corresponde realidade.
Crer é morrer; pensar é duvidar;
A crença é o sono e o sonho do intelecto
Cansado, exausto, que a sonhar obtém
Efeitos lúcidos do engano fácil
Que antepôs a si mesmo, mais sentido,
Mais [visto] que o usual do seu pensar.
A fé é isto: o pensamento
A querer enganar-se-eternamente
Fraco no engano, [e assim] no desengano;
Quer na ilusão, quer na desilusão.
IV
Quanto mais fundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar...
V
Só a inocência e a ignorância são
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber? Ser, como a pedra,
Um lugar, nada mais.
VI
Quando às vezes eu penso em meu futuro
Abre-se de repente [um largo] abismo
Perante o qual me cambaleia o ser.
E ponho abre os olhos as mãos da alma
Para esconder aquilo que não vejo.
— Oh, lúgubres gracejos de expressão
VII
Às vezes passam
Em mim relâmpagos de pensamento
intuitivo e aprofundador,
Que angustiadamente me revelam
Momentos dum mistério que apavora;
Duvidosos, deslembrados, confrangem-me
De terror, que entontece o pensamento
E vagamente passa, e o meu ser volve
À escuridão e ao menor horror.
VIII
A loucura por que é
Mais que sã a falta dela...
Qual a íntima razão
Que a crença e o sonho sejam necessários
E tudo o mais funesto?...
Ironia suprema do saber:
Só conheço isso que não entendo,
Só entendo o que entender não [posso]!
E eu cambaleio
Pelas vias escuras da loucura
Olhos vagos de susto, pelo [horror]
De haver realidade e de haver ser,
De haver o fato da realidade.
Tremo, e de repente
Uma sombra da noite pavorosa
Inunda-me o gelado pensamento
Vou caindo
Num precipício cujo horror não sei
Nem a mim mesmo [logro] figurar,
Que só calculo quando nele estou.
IX
A sonhar eu venci mundos
Minha vida um sonho foi.
Cerra teus olhos profundos
Para a verdade que dói.
A Ilusão é mãe da vida:
Fui doido, e tudo por Deus.
Só a loucura incompreendida
Vai avante para os céus.
X
Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
E não pouca
Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.
XI
Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!
XII
Montanhas, solidões [...], desertos todos,
[Inda] que assim eu tenha de morrer
Revelai-me a vossa alma, isso que faz
Que se me gele a mente ao perceber
Que realmente existis e, em verdade,
Que sois fato, existência, coisa, ser.
Desespero ao ouvir-me assim dizer
Isso que n'alma tenho. Sinto-o, sinto-o,
E só falando não me compreendo.
Sentir isto, eis o horror que não tem nome!
Mas senti-lo a sentir, intimamente,
Não com anseios ou suspiros d'alma
Mas com pavor supremo, com o gelado
Inerte horror da desesperação!
XIII
Não tenho, não, já dúvida ou alegria;
Mas nem regresso mais a essa dúvida
Nem a essa alegria regressava,
Se possível me fosse; tenho o orgulho
De ter chegado aqui, onde ninguém,
Nem nas asas do doido pensamento
Nem nas asas da louca fantasia,
Chegou. E aqui me quedo. Consolado
Nesta perene desconsolação.
Esta
Diferença contra a diferença
Entre o vazio cepticismo antigo
Mudo adivinhador, não compreendendo
A força toda do que adivinhou —
Entre isto e o meu pensar. Cheguei aqui.
Nem daqui sair quero, nem queria
Aqui chegar. Mas aqui cheguei e fico.
XIV
Horror supremo! E não poder gritar
A Deus — não há — pedindo alívio!
A alma em mim se ironiza só pensando
Na de pedir ridícula vaidade
Tenho em mim
A Verdade sentida e incompreendida
Mas fechada em si mesma, que não posso
Nem pensá-la. (Senti-la ninguém pode.)
Como eu desejaria bem cerrar
Os olhos — sem morrer, sem descansar,
Não sei como — ao mistério e à verdade
E a mim mesmo — e não deixar de ser.
Morrer talvez, morrer, mas sem na morte
Encontrar o mistério face a face.
Sinto-me alheio pelo pensamento,
Pela compreensão e incompreensão.
Ando como num sonho. Confrangido
Pelo terror da morte inevitável
E pelo mal da vida, que me faz
Sentir, por existir, aquele horror
Atormentado sempre.
Objetos mudos
Que pareceis sorrir-me horridamente
Só com essa existência e estar ali;
Odeio-vos de horror. Eu quereria...
Ah! pudesse eu dize-lo — não o sei —
Nem viver nem morrer [...]
Nem sentir, nem ficar sem sentimento...
Não posso mais, não posso, suportar
Esta tortura intensa, o interregno
Das existências que me cercam... Vamos,
Abramos a janela... Tarde, tarde...
É tarde... E outrora amava a tarde
Com seu silêncio suave e incompleto
Sentido além
Da base consciente do meu ser...
Hoje... não mais, não mais, me voltarão
As inocências e ignorâncias suaves
Que me tornavam a alma transparente.
Nunca mais, nunca mais eu te verei
Como te vi, do sol da tarde, nunca,
Nem tu, monte solene de verdura,
Nem as cores do poente desmaiado
Num respirar silente... E eu não poder
Chorar a vossa perda (que eu perdi-vos)
[Nem mesmo] as lágrimas poder achar —
Por amargas que fossem — com que outrora
Eu me lembrava que vos deixaria.
Oh, minha alma amarga
Cheia de fel, e eu não poder chorar!
Quem sente chora, mas quem pensa não.
Eu, cujo amargor e desventura
Vem de pensar, onde buscarei lágrimas
Se elas para o pensar não foram dadas?
Já nem sequer poder dizer-vos: Vinde,
Lágrimas, vinde! Nem sequer pensar
Que a chorar-vos ainda chegarei!
XV
[Já oiço o impetuoso
Circular ruído de arrastadas folhas,
E, num vago abrir de olhos, na luz sinto
As amarelidões e palidezes
[Mal] o outono sopra [novamente].
Deixá-lo que assim seja — que me importa?
Como um fresco lençol eu quereria
Puxar sombra e silêncio sobre mim
E dormir — ah, dormir! — num deslizar
Suave e brando para a inconsciência,
Num apagar sentido docemente.
XVI
Não sei de que maneira a sucessão
Nos dias tem achado este meu ser
Que a si mesmo se tem [desconhecido].
Não sei que tempo vago atravessei
Nos breves dias de febril ausência
De parte do meu ser. Agora
Não sei o que há em mim, que sobrenada
A ignorada cousa que perdi.
Sinto pavor, mas já não é o mesmo
Pavor, nem é a mesma solidão
Doutrora, a solidão em que me sinto.
Queimei livros, papéis,
Destruí tudo por ficar bem só,
Por que não [sei], não sabê-lo desejo.
Resta-me apenas um desejo ermo
De amar e de sentir [...]
Pesado fardo da grandeza! Amor!
Não a reis nem a príncipes lhes pesa
E o responsável ânimo [...]
Como a mim a existência.
Neste atordoamento nasce em mim
Qualquer coisa de negro e estranho e novo
Que pressinto com medo [...]
Aureolado de mim dentro em minha alma.
Como a linha de negro [no horizonte]
Se ergue em negra nuvem e enegrece
E cresce levantando-se e [escurece]
O firmamento, sinto despontar
Prenúncios de tormenta e confusão
Num silêncio que existe dentro em mim.
XVII
Quanto mais claro
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo.
Quanto mais compreendo
Menos me sinto compreendido. Ó horror
paradoxal deste pensar...
XVIII
O decorrer dos dias
E todo o subjetivo e objetivo
Envelhecer de tudo, não me dói
Por sentido, mas sim por ponderado;
Nem ponderado dói, mas apavora.
Tudo tem as [razões] na treva
Do mistério e eu sou disso sempre
Demasiado consciente, muito
Atento ao substancial do existir
E à [consciência] do mistério em tudo.
Cada coisa p'ra mim é porta aberta
Por onde vejo a mesma escuridão;
Quanto mais olho, mais eu compreendo
De quanto é escura aquela escuridão;
E quanto mais o compreendo, mais
Me sinto escuro em o compreender.
Desde que despertei para a consciência
Do abismo da noite que me cerca,
Não mais ri nem chorei, porque passei
Na monstruosidade do sofrer
Muito além da loucura, da que ri
E da que chora monstruosamente
Consciente de tudo e da consciência
Que de tudo horrorosamente tenho.
Todas as máscaras que a alma humana
Para si mesma usa, eu arranquei —
A própria dúvida, trementemente,
Arranquei eu de mim, e inda depois
Outra máscara [...]
Mas o que vi então — essa nudez
Da consciência em mim, como relâmpago
Que tivesse uma voz e uma expressão,
Gelou-me para sempre em outro ser [...]
Só compreendi
Que não há forma de pensar ou crer,
De imaginar, sonhar ou de sentir,
Nem rasgo de [...] loucura
Que ouse pôr a alma humana frente a frente
Com isso que uma vez visto e sentido
Me [mudou], qual ao universo o sol
Falhasse súbito, sem duração
No acabar [...]
Oh horror! Oh horror! Sinto outra vez
Essa frieza precursora n'alma
Da suprema intuição. Ah, não poder
Fora do ser e do sentir esconder-me!
Ah não poder gritar, pedir, deixar-me,
Oh, qualquer coisa mais do que uma luz
Vou sentindo que vai breve raiar...
Morte! Treva! a mim! a mim!
XIX
Ah, não poder dormir (eu não sei como,
verdade o quero) eternamente,
Acabar não comigo, nem com isto,
Mas com tudo — causa, efeito, ser...
Idéias [vãs] que a imaginação
Vazia dum momento
Gera sem ilusão, como criança
Embriagando-se indolentemente
Do cheiro transitório duma flor.
XX
[Ah, qualquer coisa
Ou sono ou sonho, sem doer isole
O meu já isolado coração,
Se as palavras que eu diga nunca podem
Levar aos outros mais do que o sentido
Que essas palavras neles têm, e [existe]
[Por] fora do que digo, oculto nele
Como o esqueleto nesta carne minha,
Invisível estrutura do visível
Diferente essencial...
Cai sobre mim, apagamento meu!
Querer querer, inútil pedra ao mar!
Saco p'ra colher vento, cesto de água,
Caçador só do uivar dós lobos longe...
XXI
Não é o vício
Nem a experiência que desflora a alma,
É só o pensamento. Há inocência
Em Nero mesmo e em Tibério louco
Porque há inconsciência. Só pensar
Desflora até ao íntimo do ser.
Este perpétuo analisar de tudo,
Este buscar de uma nudez suprema
Raciocinada coerentemente
É que tira a inocência verdadeira,
Pela suprema consciência funda
De si, do mundo [...]
Pensar, pensar e não poder viver!
Pensar, sempre pensar, perenemente,
Sem poder ter mão nele. Ah, eu sorrio
Quando [por] vezes noto o inconsciente
Riso vazio do bandido
Rindo-se da inocência! Se ele soubesse
O que é perder a inocência toda ...
O tédio! O tédio, quem me dera tê-lo!
XXII
Tudo o que toma forma ou ilusão
De forma, nas palavras, não consegue
Dar-me sequer, cerrado em mim o olhar
Do [pensamento], a ilusão de ser
Uma expressão disso que não se exprime,
Nem por dizer que não se exprime. Vida
Idéia, Essência, Transcendência, Ser,
Tudo quanto de vagor e [sombra]
Possa ocorrer ao sonho de pensar,
Inda que fundamente concebido,
Nem pelo horror desse impossível deixa
Transver sombra ou lembrança do que é.
Com que realidade o mundo é sonho!
Com que ironia mais que tudo amarga
Me não confrange, fria e negramente,
Esta inquieta pretensão a ser!

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte IV - Ele

Naquela noite o Satanás não tinha muita pressa em encontrar-se com o seu real discípulo de armas. Sabia-o sossegadamente em lugar seguro, em uns amores desses que só fazem correr perigo à bolsa dos galantes.

História escandalosa de momento, grandemente comentada pela corte, onde a Domitila intrigava, a tal paixão do príncipe era, entretanto, cousa muito honesta.

Ficava para longe, para o Valongo.

Fora ali que uma companhia de saltimbancos, recentemente chegada da Europa, erguera a sua tenda, uma grande barraca de lona sobre sarrafos de pinho. A companhia compunha-se do velho saltimbanco Vampa, que se apregoava muito entendido nessas cousas de teatro e chegava até a compor pantomimas lisonjeiras e bajuladoras, em homenagem a qualquer fidalgo endinheirado. Compunha-se mais de Zabanila, esposa de Vampa, cigana nostálgica das suas terras do Oriente, onde a brisa tinha o perfume do sândalo e o beijo dos homens tinha mais volúpia, mas em todo o caso sempre obediente ao marido e pronta a aceitar o rendoso amante que este lhe indicava. Compunha-se também de seis cavalos, um elefante e três comparsas.

O Vampa, empresário da companhia e autor dramático nas horas vagas, como Shakespeare, Moliêre e Gil Vicente, era um tipo bem falante, vocalizando as sílabas, arteiro e manhoso, cheio de invenções para atrair o público, e gostando de se acercar das rodas de fidalgos onde encontrava os amantes para a mulher e os parceiros para a jogatina.

Chegado aqui ao Rio de Janeiro, fez logo grande escândalo com uns anúncios nunca vistos, que só ele seria capaz de imaginar: sujeitos de zabumba com o letreiro do espetáculo a zabumbar por todas as ruas da cidade. O povo não entendia o letreiro, porque não sabia ler, mas isto não fazia mal porque adivinhava. E o circo do Valongo tornou-se logo o rendez-vous noturno da gente alegre que lá ia, principalmente para aplaudir a Zabanila. Ela resistia, porém, a todas as aclamações. Fazia-se muito séria. E os despeitados souberam em pouco que a requestava e possuía quem muito alta e poderosamente mandava naquele tempo.

Por isso o Satanás não se apressava muito em ir buscar o jovem discípulo governante. Por isso, e porque desprezava o Vampa que, ao em vez de procurá-lo para intermediário tivera o arrojo de meter o d. Bias no negócio.

Vagaroso de andar por aquela lama das ruas, ele chegou, entretanto, e bateu três pancadas maçônicas na porta traseira.

- Entre! gritaram-lhe.

Levantou a aldraba, empurrou a porta e achou-se num pequeno aposento com paredes de tábuas mal juntas, onde d. Pedro bebia com Zabanila e Vampa, e ria-se a bom rir de umas cousas que lhe dizia uma esquálida cigana feiticeira, com um corpo de pergaminho enrugado sobre os ossos.

- Vieste a propósito. A Mãe Velha estava aqui dizendo que eu havia de ser duas vezes rei e de morrer envenenado, sem cetro, nem coroa, como um qualquer pobre diabo!

E acrescentou:

- Pergunta-lhe pelo teu destino. Talvez ela nos diga o teu futuro e pelo menos metade desse misterioso passado, que tu gostas de esconder. Eu gosto de rir.

- Pois fala, velha feiticeira! disse o Satanás, sentando-se e estendendo a mão esquerda à cigana.

Esta debruçou-se sobre a mesa, gastou uma longa pausa no exame, e depois, fitando alternativamente o príncipe e o escultor, sentenciou:

- Para quê? sabem melhor vocês dous, porque um, não sei qual, tem de morrer pelas mãos do outro.

- Ora!

E d. Pedro levantou-se em toda a altura robusta do seu porte elegante, senhoril e belo.

- Tolices de velha! disse. E, voltando-se para o Satanás, acrescentou: - Vamos.

Partiram.

Pela noite escura e chuvarenta, seguiram os dous, um ao lado do outro, silenciosos, quase apreensivos com a lúgubre profecia da velha feiticeira, que o Vampa, entretanto, surrava lá no Valongo para que ela não fosse em outras vezes dizer cousas desagradáveis aos visitantes, que pagavam bem e não deviam gostar de semelhantes asneiras.

- Envenenado! Sem cetro e sem coroa! rosnou o príncipe como que a concluir uma meditação. E acrescentou: - Tu acreditas em feitiçaria, e pensas acaso que a previsão humana pode rasgar o tenebroso véu do futuro?

O escultor teve um gesto incerto de dúvidas, e murmurou um - talvez.

- Eu acredito, preciso acreditar, afirmou d. Pedro.

E, ali no campo de Santana onde estavam, parou em compostura elegante de homem que posa para estátua.

- Escuta! ordenou violentamente numa grande voz vibrante de comando. - Eu sou um infeliz. Não nasci para estes tempos sossegados de agora. Pela minha imaginação perpassam de constante os vultos desses heróis antigos que fizeram o mais nobre da minha ascendência. E eles fizeram tanto que nada mais tenho a fazer. Entretanto eu quisera ser o construtor de um grande povo...

E, depois de uma longa pausa, durante a qual, de braços cruzados, ele parecia a sombra de Napoleão, visitando a sepultura de Santa Helena, acrescentou:

- Vês, Satanás! Fervilha-me dentro das artérias o sangue dos heróis. É preciso acreditar no horóscopo das feiticeiras porque elas me predizem sempre um desses futuros tenebrosos, tão cheios de desgraças, que só podem pertencer aos valentes lidadores do progresso humano.

E disse mais, visionariamente:

- A história - o sagrado tribunal da inquisição, onde comparecem as sombras dos reis - há de me julgar. Pouco me importa a sentença. Eu quero ser julgado. Ela dirá que eu fui despótico e brutal. Mas a mim nunca deram educação. Deixaram-me crescer como esses animais bravios da floresta que só conhecem a lei de seus apetites e para quem a luta é a própria vida. Não posso ser melhor do que me fizeram. Tenho, preciso ter, essa independência selvagem do leão que a nada se curva e triunfa sempre. E sinto-me bem, assim como sou. Hei de cumprir o meu destino todo inteiro de homem que nasceu para as altas empresas legendárias!

E mais baixo, confidencialmente e quase triste:

- Ouve-me, Satanás! Eu sou um infeliz.

Fez-se então um longo silêncio, merencório e fúnebre como a antítese dos grandes que se confessam pequeninos.

- E tu? falou o príncipe galhofeiramente. - Lembra-te que um de nós duos tem de morrer pela mão do outro, conforme disse a feiticeira.

- Elas mentem às vezes. Em todo caso mais vale morrer de mão de amigo.

- E tu és de verdade meu amigo?

- Que pergunta!

- Sim. Faço-te confidente de todos os meus planos. Melhor do que ninguém tu sabes o que eu penso sobre as cortes. Tu sabes que não posso aturar essa canalha de pairadores letrados, que quer deitar leis ao meu orgulho e a quem meu pai se entrega com toda a moleza do seu caráter. Mas...

- Eu o traio, porventura?

- Não. Mas tu me aborreces, porque te fazes necessário demais. A tua dedicação enfarta-me como a festa insistente dos rafeiros.

- Ora. O príncipe bem sabe que Zabanila é minha inimiga. Não deve, pois, ligar importância no que ela diz, nem permitir que esta cigana de mau olhar queira torná-lo o instrumento das suas vinganças pessoais.

- Sim. Falemos de Zabanila. Todo o ódio que dedicas à pobre rapariga consiste em não seres tu o descobridor daquela pérola.

- Pérola rachada!

- Que importa! Eu insubordino-me e quero emancipar-me da tutela que tens exercido sobre todos os meus amores.

- Revolta de criança que prefere o pão preto das estrebarias ao repasto das mesas do castelo!

- Não, Satanás! É o meu orgulho. Eu quero conquistar uma mulher por mim mesmo. E posso garantir-te que vou em bom caminho.

- Faz bem. Eu velarei, entretanto, sobre os seus dias, como esse cão rafeiro de que falou há pouco, e que tanto o incomoda com as suas carícias.

- Não. Ordeno-te que me deixes só nesta aventura. E, olha, ela não será muito prolongada. Daqui a três dias partiremos para Santos. São, pois, três dias de liberdade que te peço apenas.

- O príncipe ordena.

- Pois bem, então separemo-nos.

E os dous se despediram um do outro, mergulhando nas trevas os seus nobres vultos fidalgos.
-----------
continua

sábado, 2 de março de 2013

A. A. de Assis (Revista Vrtual de Trovas "Trovia" - março 2013)

Meu amor por ti (que mágoa!)
se evaporou de repente,
tal que fosse um pingo d’água
caído num ferro quente...
Américo Falcão
Meu lenço, na despedida,
tu não viste, em movimento:
lenço molhado, querida,
não pode agitar-se ao vento.
Carlos Guimarães
Quem diz moço diz loucura;
quem diz velho, sensatez.
Mas eu queria a esta altura
enlouquecer outra vez.
Ildebrando Sisnando

Meu Deus, abençoa o espinho,
a raiz, o fruto, a flor,
o galho que embala o ninho
e o ninho – berço do amor
Iracy do Nascimento e Silva
Duas vidas todos temos,
muitas vezes sem saber:
a vida que nós vivemos
e a que sonhamos viver.
Luiz Otávio

De gota em gota, pingando,
sem ver que a chuva parou,
goteira é a casa chorando
porque você não voltou.
Rubens de Castro

Mais criatividade. Mais fraternidade. Menos competição.

– Esse biquíni agarrado...
Meu bem, o que aconteceu?
– Foi na água que, molhado,
rapidinho se encolheu...
Gasparini Filho – SP

Não botem fogo na cana,
peço ecologicamente –,
que a cana boa e bacana
é que põe fogo na gente...
Héron Patrício – SP

No seu biquíni, apertado,
Maria me deixa mudo,
pois nunca vi “tanto nada”
cobrindo tão pouco... “tudo”...
Izo Goldman – SP

Depois de fazer a ronda,
o galo ficou danado:
a galinha, tão redonda,
quis botar ovo quadrado!
Luiz Carlos Abritta – MG

Depois de um beijo molhado,
sentiu algo diferente...
Perguntou ao namorado:
– Onde foi parar meu dente?
Mª Lúcia Godoy Pereira – MG

Meu cãozinho, eu sempre achei-o
um tanto ou quanto esquisito:
– O talzinho era tão feio,
que chegava a ser bonito...
Osvaldo Reis – PR

Faz regime... e, por fazê-lo,
se desespera a coitada,
pois sempre tem pesadelo
com rodízios... de salada!...
Pedro Mello – SP

Palpite não é dinheiro,
mas se fosse eu estava bem...
Pois o que há de palpiteiro,
só me enchendo, como tem!
Roberto Acruche – RJ

Num mundo onde tantos agem
deixando em seu rastro a dor,
louvada seja a coragem
dos que ainda creem no amor!
A. A. de Assis – PR

Que bom, chegando aos sessenta,
saber, revendo os meus passos,
que é o bom Deus que me sustenta
e me carrega em Seus braços...
Almir Pinto de Azevedo – RJ
De bom exemplo um só grama
vale muito, muito mais,
que uma arenga que se inflama
com mil conselhos banais.
Amilton Maciel – SP

Quantos sonhos e ilusões
tecemos na mocidade;
mas, nas cinzas das paixões,
nos resta apenas saudade!
Angela Stefanelli – RJ

Na velha casa vazia,
onde entrei, com ansiedade,
só o silêncio respondia
ao chamado da saudade...
Angelica Villela Santos – SP

Na escuridão em que sigo,
no meu passo caracol,
aquele que vai comigo
é meu imenso farol.
Antonio Cabral Filho – RJ

Se houver alguém precisando
de que você faça um bem,
não se importe com o “quando”,
nem o “como”, nem “a quem”.
Antonio Colavite Filho – SP

Mãos tristes, temendo ausências,
se despedem com revolta...
– Nosso adeus tem reticências
que acenam gritando: – Volta!
Carolina Ramos – SP
O que eu vibrei em teus braços
minha alma vibra agora...
ouvindo o som dos teus passos,
mais que depressa, indo embora!
Clenir Neves – Austrália

Transformei em lindo adorno
os ritos do meu sonhar...
Andei, vaguei sem retorno,
me acampei no teu olhar.
Conceição Abritta – MG

Senhor, neste amanhecer,
louvo a tua criação:
da aurora ao entardecer,
eu te encontro em meu irmão.
Cônego Telles – PR

Prego o bem por onde passo,
paz e amor semeio ao léu
e em cada trova que faço
chego mais perto do céu.
Dáguima Verônica – MG
Contendo ideia completa
e pregando o bem geral,
um só verso de um poeta
pode torná-lo imortal!
Dari Pereira – PR

Boca amarga! Tudo gira...
Brindei com vinho, e em excesso,
à dolorosa mentira
que seria o teu regresso...
Darly O. Barros – SP
A trova, de qualquer jeito,
chega forte e vai bem fundo:
em seu contexto perfeito
já percorre todo o mundo!
Diamantino Ferreira – RJ

Com as “notas” da alegria
ou “dissonância” sofrida,
Deus compõe a melodia
da partitura da vida,
Domitilla B. Beltrame – SP

Paixão, fina taça cheia
de champanhe borbulhante;
fascínio que nos tonteia
e se esvai no mesmo instante.
Dorothy Jansson Moretti – SP

A paixão com hora incerta
e urdida de angústias lentas
é feito um mar que desperta
em dolorosas tormentas!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Quantas bênçãos recebidas
quando se caminha aos pares:
um ideal, duas vidas,
dois corações similares.
Eliana Jimenez – SC

Eu sou guerreira e não nego
meu instinto lutador,
mas renuncio e me entrego
se a luta for por amor!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Essa lágrima sentida
que nos teus olhos aflora
é uma prova enternecida
de que um homem também chora!
Ercy Marques de Faria – SP

Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
Francisco Garcia – RN

Paciência traz virtude,
que vem aninhar-se na alma
de quem domina a atitude
quando a vida exige calma.
Gabriel Bicalho – MG

Deus reprova os arrogantes,
pois, para o espanto de alguns,
sempre esconde os diamantes
entre as pedras mais comuns!
Gerson Cesar Souza – PR

Passa a brisa e satisfeito
sentindo-a relembro quando
tu repousada em meu peito
fechava os olhos sonhando...
Gilvan Carneiro – RJ
Vejo a tua silhueta
na sombra, bem definida,
e abro, em meu peito, a gaveta
de uma saudade escondida!
Gislaine Canales – SC

A tristeza que atordoa
não esquecemos jamais.
Vem de leve, chega à toa,
e do peito não sai mais.
Humberto Del Maestro – ES

Enorme sabedoria
vem nesta simples lição:
doar afeto e alegria,
pra driblar a solidão.
Jeanette De Cnop – PR

Cansado de tanto errar,
nessa procura infeliz,
já nem sei se ao te encontrar
eu me sentirei feliz.
João Costa – RJ

Meu pai me ensinou: "Reflita".
Nunca esqueci a lição:
"A velhice não se evita,
maturidade é opção!"
J.B. Xavier – SP

Faça pelo menos uma trova por dia. É bom até para a saúde.

Mesmo se é pobre a mobília
e às vezes falta alimento,
é na casa da família
que a esperança encontra alento.
Jorge Fregadolli – PR

Ontem…Florestas…Encanto…
Flores a desabrochar.
Hoje pinheiros em pranto,
um grito parado no ar.
José Feldman – PR

Aqui, neste mundo incréu,
chamam pobreza castigo,
e Deus faz festa no céu
pra receber um mendigo!
José Lucas de Barros – RN

No refúgio enclausuradas,
as mágoas choram quietinhas,
por tanto amor de mãos dadas
e as minhas mãos... tão sozinhas!
José Messias Braz – MG
 

Depois de uma certa idade
fui te esquecendo, meu bem;
chega um tempo em que a saudade
perde a memória também!
José Ouverney – SP
 

Chego a perder a esperança,
vendo ao relento, a dormir,
uma sofrida criança
sem lar, sem paz, sem porvir!
José Valdez – SP
O que você faz pela trova é tão importante quanto as trovas que você faz.

Quando criança, eu ficava
olhando o céu, a cismar:
– quem, tão alto, a luz ligava
para acender o luar!
Lisete Johnson – RS

Pode ir embora, querida...
que eu guardo a dor compulsória
de ter que arrancar da vida
quem tatuei na memória...
Manoel Cavalcante – RN

Fecho os meus olhos e sinto
a alma inundada de luz.
É Deus presente ao destino
nesta fé que me conduz!
Mª Luíza Walendowsky – SC

À espera do teu regresso,
deixei a vida passar...
Envelheci, mas... confesso:
– Valeu a pena esperar!!!
Mª Madalena Ferreira – RJ

Há um momento em que a bondade
forja a mentira bonita,
porque sente que há verdade
que jamais pode ser dita!...
Maria Nascimento – RJ
 

Não há no mundo distância
que faça um dia esquecer
a terra de nossa infância,
o sol que nos viu nascer!
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Um romântico poeta
tem seu dia, sim senhor,
e por ser do amor esteta,
com certeza é um Trovador!
Maurício Friedrich – PR

A flor caiu dos cabelos
da jovem que ali passava
e levada foi sem zelos
para o mar que a cobiçava.
Mifori – SP

A trova é a poesia do século 21: moderna, enxuta,
difícil de fazer mas fácil de entender e de memorizar.


Não choro, não xingo, eu luto!
Caso a tristeza me oprima,
o meu coração, astuto,
dá logo a volta por cima.
Nélio Bessant – SP
Faça chuva ou faça sol,
barro ou poeira na estrada,
se você for meu farol,
continuo a caminhada.
Olga Agulhon – PR

Nasceu no campo, algodão...
Virou fio... foi tecido...
Ganhou cor e confecção...
Está pronto o seu vestido!
Renato Alves – RJ

Quanta angústia se reparte
no momento da partida,
se a renúncia de quem parte
parte o sonho de uma vida!...
Thereza Costa Val – MG

Tantas juras... de mãos dadas.
Mas a vida, em seus desvãos,
ao namoro armou ciladas
e separou nossas mãos!
Therezinha Brisolla – SP

Juraste-me ser fiel;
desse nosso amor, contudo,
hoje resta o velho anel
num estojo de veludo.
Vanda Alves – PR

Ao raiar de um novo dia,
quantas razões de viver!
A esperança se irradia
nas brumas do amanhecer!
Wagner Lopes – MG
 

Já não sei se nos dói mais,
na estrada de tantos trilhos,
soltar-se da mão dos pais...
ou soltar a mão dos filhos.
Wandira F. Queiroz – PR

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 15. Canudo-de-Pito

A manhã, hoje, era uma festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas e frescas de paredes claras, telhados vermelhos, jardins verdes, morros azulegos e violáceos a derreterem-se na distância como caramelos, me divertia como uma paisagem refletida numa bola de cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto o bonde corria. "Corre mais devagar, bonde do diabo! que assim como vais se me atrapalha tudo. -Corre mais depressa, bonde do inferno! que assim lentamente a desfilada das coisas mal se liberta da rigidez e do peso."

De repente, do meio da grande nuvem escura de um velho bosque, saltou como de um capulho, uma nuvem amarela, a fronde arredondada de uma árvore de ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesário da Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho deu uma olhadela e informou friamente: "Canudo-de-pito".

O fato de se tratar de um canudo-de-pito, e não de ipê, madeira de lei, influía decisivamente na reação da sua sensibilidade ante aquele quadro fugente e alucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a uma coleção de conceitos, ou a um dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com as coisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo e surpreendente aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos triste do que o Além por onde vagam os Fabianos.

A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato e regenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam de longe e de viés, através dos tipos, modelos, noções, definições, poeira brumosa de abstração, sob a qual a intimidade fluente e jovial do mundo se desvanece, e a alma encantada da criação foge como um Ariel zombeteiro. Diante de uma paisagem, não vêem a paisagem, mas uma coleção de objetos e de efeitos conhecidos e explicados, formando um conjunto visual de acordo com meia dúzia de normas laboriosas. Diante de um ser vivo, desarticulam as partes, (como se um ser vivo, como se as coisas tivessem na realidade partes) examinam, medem, subdividem, espedaçam, e cada ato desses decorre de uma idéia feita, de um critério preconcebido, de uma prefiguração normativa, de uma série de operações mentais anteriores ou presentes. A grande descoberta instantânea tornou-se impossível. O delicioso milagre só se revela a quem confia, franciscanamente, na luminosa estupidez do seu instinto e dos seus sentidos, e ingenuamente se lhes abandona, como o pássaro se deixa librar nas suas asas.

Por isso, um imenso repositório de beleza jaz inexplorado e ignorado no mundo e na vida. Quanta mulher feia por definição não é por natureza uma coisa formosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não guarda, um poucochinho mais além desses acidentes, dissimulado como um seixo branco no fundo de um rio, uma harmoniosa, surpreendente disposição fundamental de linhas, de relevos e de contornos! E a quantidade de beleza que não se vê porque o objeto em si mesmo é desprezível ou repugnante! Um charco é uma imagem intelectual e oratória de dissolução, de paralisia, de morte, de decadência; é um foco pestilento, uma chaga aberta na terra, tapada de moscas, de vermes, de batráquios: um horror "por conseqüência". Uma cobra -puh! medonha! Entretanto, olhemos para isso tudo como uma criança, com a atenção e a curiosidade nuas de uma criança que não conhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio de azul, como um buraco da terra sobre um abismo sem fundo, todo lavado de claridade e povoado de numes joviais. A superfície da água, aqui lisa, ali borbulhante, além com placas e refegos de nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por um bicho que se mexeu, toda betada de sombras movediças e de reflexos morrentes, golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, -como se andasse ali a dissolver-se uma taxada de luminosidades, de negruras e de cores, pode ser um retalho fresco e maravilhoso de beleza arrancado ao monturo da realidade intelectiva.

A cobra, essa é positivamente um objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se é apreender a nitidez perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente à cambiante contínua. Vê-la caminhar é ter a impressão de um liquido que se solidificou conservando a propriedade de escorrer.

Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que se diria que a cobra não existe, é um simples movimento ondulatório do solo, um fragmento funiforme de sismo, uma estilha perdida e deslizante de terremoto. Esse corpo sem membros parece também não ter ossos, e apenas se percebe que é formado de anéis ou forma anéis à medida que se move, e que esses anéis se desmancham, mal se desenharam em outros que vão desvanecer-se de igual maneira: um devaneio maluco objetivado.

É um pau que se fez cipó e um cipó que parece querer voltar aos enlaces e aos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapidez e a fatalidade mecânica de um galho seco atirado pela raiva súbita da rajada. Como se tivesse barbatanas e asas invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra, e, quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela dentro.

Vejamo-la em repouso: é uma obra esquisita de tapeçaria, com desenhos tão bem arabescados e cores tão bem distribuídas, que os nossos olhos se espreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nas suas próprias roscas, e sonha.

Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre:

Il n'est pas de serpent ni de monstre odjeur,
Qui, par l'art imité, ne puísse plaire aux yeux,


-mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? não têm ódios nem amores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo, tudo é necessário, tudo é expressão da multiplicidade sem fim na unidade substancial do infinito mistério e da infinita beleza.

No meio desse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos um tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios, nos pátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental. Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões, todos alheios à magia do espetáculo colorido e móbil do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos de um triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.

Fonte:
Domínio Público

Antonio Virgilio de Andrade (Poesias)

POETAR

A fotografia
É um momento ímpar
Capturado pelo olho mágico
Do fotógrafo.

A poesia,
Um momento inesquecível
Imortalizado nos versos
Do poeta.

LEMBRANÇAS

A Fernando Pessoa

Eu lembro,
Partiste num ontem;
Mas há quanto tempo sofro.

No refúgio da minha “Ribatejo”,
Tua lembrança quebra a frieza da minh’alma
E ascende o fogo do desejo.

Como dizer que nosso amor é findo,
No lenço guardo teu cheiro,
E nele vou me consumindo.

Beijos nunca dados sinto.
São doces lembranças,
Fantasias e instinto.

SIMPLES

Amar é simples
Quando se ama simplesmente

São aromas, sons, cores e gestos simples
Que ficam com a gente,
Como aquele olhar cúmplice
Ou um desolhar simplesmente.

Ela cruzou o meu caminho
E foi me possuindo, possuindo-me simplesmente

Ofertou-me sua candura
E com jeitos indecentes,
Levou-me a fazer toda sorte de loucuras
Ser feliz simplesmente.

Mas o tempo passou naquele lugar simples
Foi passando, passando simplesmente

Um dia ... meu mundo ruiu,
Foi tudo tão de repente!
Como veio, partiu...
Abandonou-me simplesmente.

A MOÇA DO DÉCIMO PRIMEIRO

À musa do Palácio do Desenvolvimento, Brasília
Por onde andará a moça
A moça do décimo primeiro;
Que me flechou com sorrisos e beijos
E se escondeu por trás do espelho.

Por onde andará a moça
A moça do décimo primeiro;
Que dançando na retina do meu olho
Verticalizou minha caneta tinteiro.

Será que ela não vem
Será que é pra nunca mais?
O mundo encobertou-se em sombras
Negrou o sonho de um bom rapaz.

Seu corpo exala cheiro dos campos
Dos campos das Minas Gerais;
A tez cor da cor de pequi maduro
Colhido nas terras do Goiás.

Não, mais sei se ela é mineira
Ou baiana como seus pais;
Ouvi dizer que é “Candanga”
Foi manchete nos jornais.

Será que ela não vem
Será que é pra nunca mais?
Será que partiu naquele novo trem (da alegria)
Pro paraíso dos deuses congressionais?

NO VÁCUO DA PAIXÃO
Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

Você foi audaz e veloz
Foi fugaz com seu bólido cor de vinho;
Deixou no vácuo um cálido perfume atroz
Tristeza e solidão no meu caminho.

Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

Espero na “lombada eletrônica” te encontrar
-Aquela que teima em engarrafar o “Eixinho”-;
Que me revele o número do celular
E escreva seu nome no meu colarinho.

Você avançou o sinal
Não deu seta;
Te procurei pelas ruas da capital
A cidade ficou deserta.

PROMÍSCUA

Quando me comes com teus olhos de menino pidão
Prazerosamente, deixo-me comprazer;
Se o calor obsceno domina minh’alma
Sinto o corpo entorpecer.

Tu me enlouqueces quando sopras um beijo inocente
Quando se faz de ausente, respiro a acidez do teu cheiro;
Meu olhar indiscreto desnuda um desejo cúmplice
Te possuo de corpo inteiro.

Quando a noite cai, invades meus sonhos
Desatinada e trôpega me deixo possuir;
Se teus úmidos lábios besuntam meu corpo
Do teu, sorvo licor e perfume.

BELEZA MORTA

A Jorge Viera Eschriqui
Química
Suor,
Formas em criação.

Cores
Fragrâncias,
Folhas e pétalas em harmonia.

Emoção
Fascínio,
Sentidos em confusão.

PLÁSTICO?!

NÁUFRAGO
Ainda corro contra o tempo,
Ele me é implacável...
Ainda navego sentimentos,
Ele me é indomável...
Ainda choro enquanto você sorri.

Ontem me fiz pranto,
Acordou-se em mim uma dor antiga...
Hoje me pego cantando,
Escondendo tristezas da vida...
Ainda me confortam pedaços de nostalgia.

Na parede um retrato adolescente envelhece
No cabideiro as traças devoram a casimira
No espelho entrevejo um rosto pálido
No travesseiro sinto o hálito forte de bebida.
Ainda descaminho no meu caminho.

DE CADENTE

Zuni um verso na escuridão;
Desenhou uma parábola
E despencou na noite fria.

O noctívago que contava estrelas
Descortina o facho de fogo.
Era um meteoro que caía.

Ébrio nas curvas do paralelepípedo
Acorda um resto de esperança;
Vislumbra sua estrela guia.

EM QUATRO ESTAÇÕES

Já se faz verão
Minhas folhas caem;
Já se foram tantos anos
Que nem me lembro mais.

Você foi a flor que alegrou a minha vida,
Postes minha eterna primavera
E minha melhor amiga.

Não nos frutificamos em nosso outono
Não germinaram as sementes no teu ovário;
Foram contidas em eterno sono
Sob a foice do lavrador cesáreo.

Nunca foi tão frio nosso inverno
Sempre nos sobrou um pouco de calor;
Hoje aquecemos ilusões e um outro cobertor.

DESEJOS

Quantos suspiros a suspirar;
Nossas mãos a se tocar.

Quantos arquejos a arquejar;
Nossos corpos a bailar.

Quantos orgasmos a sentir;
Nossos corpos a se fundir.

Quantas energias consumidas
Neste gozo da vida.

Quantos pecados a se pecar;
Se ela se casar.

Quanta dor irei guardar;
Se ela me abandonar.

Quantos sonhos a se sonhar;
Se cruzarmos um distante olhar.

Quantos versos irão compor
Ao viver seu desamor.

QUARESMEIRAS
Às vezes me faço abelha
Para colher o néctar da tua flor.
Às vezes me faço borboleta
Outras, beija flor.

AGUERRIDA

Já faz tempo que o sol não acorda,
É tudo um negro anoitecer.
Há quanto tempo nesta trincheira
Não se faz um amanhecer.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que não te olho,
Com meus olhos de bom rapaz.
Há quanto tempo não te vejo
Nas páginas dos jornais.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que não te toco, não te ouço,
Carícias tuas, não me trás.
Há quanto tempo sem teu corpo
Que a sua lembrança não me satisfaz.
Já faz tempo, já faz tempo...

Já faz tempo que semeiam bombas,
Cultivando o ódio do passado.
Há quanto tempo neste jardim de sombras
Colho corpos mutilados.
Já faz tempo, já faz tempo...

Fonte:
Antônio Virgílio de Andrade. Rastilho de Prosas. Ed. Virtual Books.2002.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte III

III
O PARAÍSO DE SATANÁS

O Satanás seguiu toda a Rua do Piolho e enveredou pela do Conde Lourenço da Cunha. Quase ao chegar ao campo de Santana, parou à porta de uma casinha modesta, de varanda pintada de verde, e bateu três vezes com os copos da espada.

Era ali, desconhecido e afastado, que fulgurava para o Satanás, o que ele chamava - o seu paraíso: era ali que o escultor escondia, como um avarento esconde o seu tesouro, a filha adorada única afeição pura da sua vida.

Ângelo Pallingrini, o Satanás, como mestre d'armas do príncipe, dedicara-se a guiar-lhe e fortificar-lhe o pulso; e quando o príncipe se fez homem, quando o seu altivo temperamento cavalheiresco se desenvolveu, ávido de amores e de façanhas, o Satanás passou sem transição do ofício de mestre d'armas ao ofício de alcoviteiro, e depois de guiar-lhe o pulso, começou a guiar-lhe o coração. Dentro do bolso do seu gibão havia sempre a certeza de se encontrar pelo menos um bilhetinho amoroso do real conquistador. O Satanás desbravava o caminho, aplanava-o, desembaraçava-o de todas as dificuldades.

Quando o príncipe chegava, estava tudo feito: via e vencia - e, logo perto, ficava o servidor fiel, de espada em punho, vigiando os amores do seu amo, para não deixar que os fosse perturbar a fúria de um pai rebarbativo ou a inconveniência de um marido indignado.

Desse lodo de todos os dias, purificava-se à noite o escultor, indo beijar a filha que ali vivia, guardada por uma velha espanhola, dona Emerenciana.

Assim que conseguia deixar o príncipe entretido nos braços de alguma rapariga condescendente, lá ia, embuçado na sua capa, pedir ao seu anjo da guarda um beijo purificador. Via-a, beijava-a, e voltava a correr aventuras com d. Pedro.

Na cidade, rosnava-se que o Satanás tinha amores ocultos com uma criatura divina que o amava até à loucura; porque, por mais precauções que tomasse o escultor para esconder as visitas noturnas à casinha colonial já começavam a fazer sobre o caso um tecido caprichoso de suposições. D. Bias, que todos sabiam muito amigo do Satanás, tomava uns ares misteriosos quando a esse respeito o interrogavam.

- Então?! diga cá, d. Bias: são amores, heim?

- E que é que tem a arraia-miúda com os amores de um cavalheiro digno? Pois, que sejam amores... E então? O que não se pode dizer, é como a bela se chama. É uma senhora que conhece de cor os nomes gloriosos de cinqüenta avós, e cujo nome não deve, portanto, andar na boca do populacho! Sim! que nós cá, fidalgos de raça, não nos sujamos com mulheres de meia-tigela: queremos sedas e jóias, e beijos fidalgos como nós!

Mas o Satanás deixava que a bisbilhotice de todos se perdesse em conjeturas, e redobrava de precauções.

Naquela noite, foi d. Emerenciana quem lhe veio abrir a porta. O Satanás, seguido pela espanhola, subiu a escada estreita e escura que levava ao sobrado, e entrou na sala, onde a filha, assim que o viu, atirou sobre a mesa o bordado e correu a dependurar-se-lhe do pescoço, num grande abraço carinhoso. Pela dura face do espadachim rolaram duas lágrimas silenciosas e os seus olhos embeberam-se, úmidos e sôfregos, nos dous céus azuis dos olhos da filha.

Branca teria quando muito 16 anos. Era já uma deliciosa mulher, esbelta, talhe gracioso de palmeira, seios tufados provocadoramente e grandes olhos azuis, dando uma encantadora expressão de ternura a sua face pálida e doentia de moça educada com rigor, sem distrações, sem grandes passeios ao ar livre. Mas o que a tornava mais bela, o que constituía o seu maior encanto, eram os cabelos cor de ouro, longos e finíssimos, cabelos que, quando soltos, cobriam-lhe todo o corpo, da cabeça aos pés, como um grande manto tecido de raios de sol.

Educada pela velha Emerenciana, com uma severidade terrível, Branca aos 15 anos ainda tinha uma alma de criança ingênua, que não sabe o que é a vida. Os seus grandes olhos azuis abriam-se curiosamente para o mundo, sem compreendê-lo.

Emerenciana cumpria fielmente as ordens do Satanás, que não queria que Branca chegasse à janela nem saísse à rua, muito cioso da virtude da filha, muito receoso da depravação dos fidalgos portugueses que d. João VI deixara no Brasil com o príncipe regente. De maneira que Branca se fizera mulher entre quatro paredes, tendo como únicas distrações os seus bordados e a conversa com d. Emerenciana, que, apesar do seu papel de vigilante rigorosa, tinha pela moça verdadeira afeição de mãe.

Foi mesmo a instâncias de Emerenciana que o Satanás consentiu que a filha, depois dos 15 anos, desse alguns passeios, raros e curtos, pela cidade. De um desses passeios nasceu para Branca uma nova era de sensações nunca até então experimentadas nem sonhadas pela sua inocência de reclusa.

Foi justamente um ano antes da noite cujos sucessos se estão desenrolando aos olhos do leitor. Era o dia da procissão de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Toda a cidade escovara os fatos, sacudira as sedas, brunira as arrecadas, e abalara para o Outeiro, que às duas horas da tarde, apresentava o mais pitoresco aspecto que é possível imaginar.

Desde o adro da ermida que em 1671 a piedade do ermitão Caminha erigira no alto do Outeiro, até à pequena praça em que vinha alargar a rua da Glória, toda a ladeira se apendoava de arcos de folhagens e bandeirolas. As famílias sentavam-se em bancos toscos, em um grande espalhafato de sedas novas, enquanto, de pé, os moleques e as negrinhas, vestidos de branco, muito sérios, carregavam cestos cheios de pão e galinha assada. Porque a gente daquele tempo sofrera a influência de d. João VI, que não podia ir a festa nenhuma sem fartas provisões de viveres.

Branca fora também ver a procissão, com a velha Emerenciana. E estava muito contente, com vontades infantis de bater palmas, gozando aquele grande prazer do contato da multidão, saciando-se de vida, de barulho, de agitação. Fez-se um movimento no povo. Era a procissão que descia.

Primeiro, um padre trazia o crucifixo entre dous acólitos, que empunhavam grandes varas de prata, em cuja extremidade uma vela de cera ardia no meio de um tufo dê rosas artificiais. Depois vinha a irmandade, precedendo o andor vagarosa, fazendo cair ao chão as grandes lágrimas brancas das tochas acesas. Todos se ajoelharam. Nossa Senhora passava, muito branca e muito serena, guirlandada de raios de prata, de mãos cruzadas ao peito, de olhos erguidos ao céu radiante daquela tarde formosa, sobre o andor dourado, transbordante de flores. Depois, o pálio, oscilando... Ouviam-se já, no couce do préstito, os acordes da banda militar.

Branca admirou o talhe esbelto de d. Pedro, que vinha fardado, empunhando uma das varas... Por um acaso qualquer, o batalhão parou mesmo diante de Branca.

E Branca sentiu de repente que o sangue lhe galopava à face e que o coração lhe batia no peito, vendo o capitão que comandava a tropa, cravar-lhe na face dous olhos negros e ávidos, que a abrasavam toda no primeiro rubor amoroso.

Paulo de Andrade, capitão das guardas do príncipe regente d. Pedro, era um belo moço de 27 anos, desempenado e forte, belo exemplar de homem e soldado. Foi desse cruzamento instantâneo do seu olhar com o de Branca que nasceu a paixão que o devia para sempre unir a ela e que o devia matar: paixão nascida num minuto, dessas paixões que, por aparecerem muitas vezes nos romances, parecem hoje absurdas e incríveis na vida real.

Branca seguiu-o com os olhos, até vê-lo desaparecer numa volta da ladeira. E já ele tinha desaparecido e ainda ela o via, alto e bonito, na farda abotoada, com a espada ao ombro, fulgurando à frente dos soldados.

Quando entrou em casa, a moça ia triste, de uma tristeza cuja causa ela mesmo não compreendia bem. Nessa noite, nem os beijos do pai a alegraram. Retirou-se para o seu quarto, onde, em frente à cama virginal, uma Nossa Senhora da Conceição abria os braços, num pequeno oratório de vinhático. Ajoelhou-se para rezar. Mas as palavras da reza confundiam-se-lhe na cabeça. O que ela via ali, no pequeno oratório de vinhático, não era a Senhora da Conceição: era outra, a da Glória, precedida da irmandade, seguida do príncipe e de um belo capitão, cujos olhos ainda agora a abrasavam.

Despiu-se e deitou-se. Mas embrulhou-se muito, com muito pudor, como se receasse que alguém a estivesse vendo. Quis dormir: o sono não veio.

Dentro dela, alguma cousa cantava, alguma cousa gemia, alguma cousa gritava. Ouvia sair de dentro de si um grande clamor de exigências e de desejos: parecia que o sangue lhe rufava nas veias, entre estridores frenéticos de clarins, o hino vitorioso da sua puberdade despertada. E estremecia, julgando sentir na boca ansiosa o contato rude dos grandes bigodes negros do capitão das guardas. Por fim, um grande pranto lhe subiu aos olhos: e ela enterrou a cabeça no travesseiro, sacudida por soluços que não podia reprimir, com um grande medo do amor, que sentia nascer dentro de si e que só agora começava a compreender.

Com o correr dos dias, Branca e Paulo de Andrade viram-se de novo. O acaso, que é o maior alcoviteiro do mundo, arranjou meios de os aproximar cada vez mais. E, d. Emerenciana, seduzida pela simpatia que lhe soube inspirar o capitão e pelo grande afeto que tinha à moça, prestou-se a auxiliar-lhes o amor.

De modo que, nessa noite em que o Satanás ao sair da bodega do Trancoso foi à casa da rua do Conde, já havia muito tempo que o capitão tinha entrevistas com Branca mas eram entrevistas puras, a que sempre a velha assistia. E estavam todos à espera da primeira ocasião oportuna em que a velha pudesse contar tudo ao Satanás e em que Paulo pudesse pedir-lhe a mão da filha em casamento.

O Satanás, depois de abraçar a filha, chamou a velha de parte. Era assim todas as noites: queria saber de tudo que tinha havido, se nenhum vulto suspeito tinha aparecido a rondar a casa, se a filha tinha estado à janela.

Emerenciana tranqüilizou-o: a velha não achava conveniente referir-lhe as pretensões do capitão - preferia esperar e levá-lo com jeito, receosa que o gênio arrebatado e brigalhão do Satanás deitasse tudo a perder.

O Satanás retirou-se. Voltava para o lodo, depois de curta parada no céu. Ia de novo encontrar o amo, que deixara ocupado a encher de consolo a noite de uma formosa cigana, que morava para as bandas do Valongo.

E apertando muito a filha nos braços, o escultor beijou-a na fronte, fez novas recomendações a d. Emerenciana, e, descendo a escada, tornou a mergulhar de novo nas trevas da noite o seu vulto misterioso.
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continua

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XI)

Primeiro Fausto

Primeiro Tema
O Mistério do Mundo
I
Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó Dor, aonde me irei?
II
O mistério de tudo
Aproxima-se tanto do meu ser,
Chega aos olhos meus d'alma tão [de] perto,
Que me dissolvo em trevas e universo...
Em trevas me apavoro escuramente.
III
O perene mistério, que atravessa
Como um suspiro céus e corações...
IV
O mistério ruiu sobre a minha alma
E soterrou-a... Morro consciente!
V
Acorda, eis o mistério ao pé de ti!
E assim pensando riu amargamente,
Dentro em mim riu como se chorasse!
VI
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.
VII
Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto ser
E compreendo que te sinto ser
Até às fezes da compreensão.
Bebi a taça [...] do pensamento
Até ao fim; reconhecia pois
Vazia, e achei horror. Mas eu bebi-a.
Raciocinei até achar verdade,
Achei-a e não a entendo. Já se esvai
Neste desejo de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar com seres e absolutos,
O que em mim, por sentir, me liga à vida
E pelo pensamento me faz homem.
E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.
VIII
Cidades, com seus comércios...
Tudo é permanentemente estranho, mesmamente
Descomunal, no pensamento fundo;
Tudo é mistério, tudo é transcendente
Na sua complexidade enorme:
Um raciocínio visionado e exterior,
Uma ordeira misteriosidade —
Silêncio interior cheio de som.
IX
Já estão em mim exaustas,
Deixando-me transido de terror,
Todas as formas de pensar [...]
O enigma do universo. Já cheguei
A conceber, como requinte extremo
Da exausta inteligência, que era Deus...
Já cheguei a aceitar como verdade
O que nos dão por ela, e a admitir
Uma realidade não real
Mas não sonhada, [como o] Deus Cristão.
Falhados pensamentos e sistemas
Que, por falharem, só mais negro fazem
O poder horroroso que os transcende
A todos, [sim,] a todos.
Oh horror! Oh mistério! Oh existência!
X
O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns dentro de outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante
De [Deus] e Deuses: essa, a luz incerta
Da suprema verdade.
XI
Nos vastos céus estrelados
Que estão além da razão,
Sob a regência de fados
Que ninguém sabe o que são,
Ha sistemas infinitos,
Sóis centros de mundos seus,
E cada sol é um Deus.
Eternamente excluídos
Uns dos outros, cada um
É universo.
XII
Num atordoamento e confusão
Arde-me a alma, sinto nos meus olhos
Um fogo estranho, de compreensão
E incompreensão urdido, enorme
Agonia e anseio de existência,
Horror e dor, [agonia] sem fim!
XIII
Fantasmas sem lugar, que a minha mente
Figura no visível, sombras minhas
Do diálogo comigo.
XIV
Não, não vos disse ... A essência inatingível
Da profusão das coisas, a substância,
Furta-se até a si mesma. Se entendesses
Neste ou naquele modo o que vos disse,
Não o entendesses, que lhe falta o modo
Por que se entenda.
XV
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que [exprime] na alma que ousa,
É sempre nome, sempre linguagem,
O véu e capa de uma outra cousa.
Nem que conheças de frente o Deus,
Nem que o Eterno te dê a mão,
Vês a verdade, rompes os véus,
Tens mais caminho que a solidão.
Todos os astros, inda os que brilham
No céu sem fundo do mundo interno,
São só caminhos que falsos trilham
Eternos passos do erro eterno.
Volta a meu seio, que não conhece
os deuses, porque os não vê,
Volta a meus braços, melhor esquece
que tudo só fingir que é.
XVI
Ondas de aspiração [...]
Sem mesmo o coração e alma atingir
Do vosso sentimento; ondas de pranto,
Não vos posso chorar, e em mim subis,
Maré imensa, numerosa e surda,
Para morrer da praia no limite
Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas
De algum mar alto aonde a praia seja
Um sonho inútil, ou de alguma terra
Desconhecida mais que o eterno [amor]
De eterno sofrimento, e aonde formas
Dos olhos de alma não imaginadas
Vogam essências [...]
Esquecidas daquilo que chamamos
Suspiros, lágrimas, desolação;
[Ondas] nas quais não posso visionar
Nem dentro em mim, em sonho, [barco] ou ilha,
Nem esperança transitória, nem
Ilusão nada da desilusão;
Oh, ondas sem brancuras nem asperezas,
Mas redondas, como óleos, e silentes
No vosso intérmino e total rumor —
Oh, ondas das almas, decaí em lago
Ou levantai-vos ásperas e brancas
Com o sussurro ácido da esperança ...
Erguei em tempestades a minha alma!
Não haverá,
Além da morte e da imortalidade,
Qualquer coisa maior? Ah, deve haver
Além da vida e morte, ser, não ser,
Um inominável supertranscendente,
Eterno incógnito e incognoscível!
Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo.
Pr'a que pensar, se há de parar aqui
O curto vôo do entendimento?
Mais além! Pensamento, mais além!
XVII
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse
Alguns há, outros universos, outras
Formas do Ser com outros tempos, 'spaços
E outras vidas diversas desta vida...
O espírito é outra estrela. . . O Deus pensável
É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos
De outras essências de Realidade ...
E eu precipito-me no abismo, e fico
Em mim... E nunca desço ... E fecho os olhos
E sonho — e acordo para a Natureza
Assim eu volto a mim e à Vida
Deus a si próprio não se compreende.
Sua origem é mais divina que ele,
E ele não tem a origem que as palavras
Pensam fazer pensar...
O abstrato Ser [em sua] abstrata idéia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério — face a face...
XVIII
No meu abismo medonho
Se despenha mudamente
A catarata de sonho
Do mundo eterno e presente.
Formas e idéias eu bebo,
E o mistério e horror do mundo
Silentemente recebo
No meu abismo profundo.
O Ser em si nem é o nome
Do meu ser inenarrável;
No meu mudo Maëlstrom
O grande mundo inestável
Como um suspiro se apaga
E um silêncio mais que infindo
Acolhe o acorrer do vago
Que em mim se vai esvaindo.
Por mais que o Ser, que transcende
Criatura e Criador,
Se esse Ser ninguém entende
Ele, a mim e ao meu horror,
Menos. Vida, pensamento,
Tudo o que nem se adivinha,
É tudo como um momento
Numa eternidade minha.
XIX
Abre-me o sonho
Para a loucura a tenebrosa porta,
Que a treva é menos negra que esta luz.
O terror desvaria-me, o terror
De me sentir viver e ter o mundo
Sonhado a laços de compreensão
Na minha alma gelada.
XX
A qualquer modo todo escuridão
Eu sou supremo. Sou o Cristo negro.
O que não crê, nem ama — o que só sabe
O mistério tornado carne.
Há um orgulho atro que me diz
Que Sou Deus inconscienciando-me
Para humano; sou mais real que o mundo,
Por isso odeio-lhe a existência enorme,
O seu amontoar de coisas vistas.
Como um santo devoto
Odeio o mundo, porque o que eu sou
E que não sei sentir que sou, conhece-o
Por não real e não ali.
Por isso odeio-o —
Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira!
XXI
Sou a Consciência em ódio ao inconsciente,
Sou um símbolo incarnado em dor e ódio,
Pedaço de alma de possível Deus
Arremessado para o mundo
Com a saudade pávida da pátria...
Ó sistema mentido do universo,
Estrelas nadas, sóis irreais,
Oh, com que ódio carnal e estonteante
Meu ser de desterrado vos odeia!
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro,
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo.
Sou o saber que ignora,
Sou a insônia da dor e do pensar
XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.
Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo
XXIII
Ah, que diversidade,
E tudo sendo. O mistério do mundo,
O íntimo, horroroso, desolado,
Verdadeiro mistério da existência,
Consiste em haver esse mistério.
XXIV
Essa simplicidade d'alma
Possuída não só dos inocentes
Mas até dos viciosos, criminosos...
essa simplicidade
Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso
Que o pensamento friamente ocupa.
XXV
Tremo de medo:
Eis o segredo aberto.
Além de ti
Nada há, decerto,
Nem pode haver
Além de ti,
Que [só] tens essência
Nem tens existência
E te chamas [...] Ser.
XXVI
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um ser, uma existência, um existir —
Um qualquer, que não este, por ser este —
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir — não nós ou o mundo
Mas existir em si?
XXVII
Não é a dor de já não poder crer
Que m'oprime, nem a de não saber,
Mas apenas [e mais] completamente o horror
De ter visto o mistério frente a frente,
De tê-lo visto e compreendido em toda
A sua infinidade de mistério.
É isto que me alheia, que me [traz]
Sempre mostrado em mim como um terror
E maior terror há-o?
XXVIII
Para mim ser é admirar-me
de estar sendo.
XXIX
Há entre mim e o real um véu
A própria concepção impenetrável.
Não me concebo amando, combatendo,
Vivendo com os outros. Há, em mim,
Uma impossibilidade de existir
De que [abdiquei], vivendo.
XXX
Tornei minha alma exterior a mim.
XXXI
Tarde! Não poder
Adivinhar o teu segredo
E o teu mistério ilúcido. Ignorar
Esta emoção,
Vaga desesperança quase amarga,
Da sensação que dás.
XXXII
Qu'importa? Tudo é o mesmo. A mim quer seja
Manhã inda d'orvalho arrepiada,
Dia, ligeiro ao sol, pesado em nuvens,
A tarde,
A noite misteriosa,
Tudo, se nele penso, só me amarga
E me angustia.
XXXIII
Acordado, abro os olhos.
Vivo! Sou vivo ainda! Torno a ver-te,
Pálida luz, silente luz da tarde,
Que ora me [enches] de um cálido horror!
Onde estou? Onde estive? Ferve em mim,
Numa quietação indefinida,
Um eco de tumultos e de sombras
E uma coorte como de fantasmas
[Gritantes]. E luzes, cantos, gritos,
Desejos, lágrimas, chamas e corpos,
Num referver [tumultuoso] e misturado,
Numa esvaída confusão noturna —
Como tendo piedade de deixar-me —
Sinto passar em mim, como visões.
Nem com esforço recordar-me posso
Se são fantasmas ou vagas lembranças;
Não me lembro de vida alguma minha
E o necessário esforço, desejado
P'ra recordar-me, não o posso ter.
Acabar. Nem desejo nem espero
Nem temo, n'apatia do meu ser.
Para que pois viver? Quero a morte,
E ao sentir os seus passos
Alegremente e apagadamente
Me voltarei lento para o seu lado,
Deixando enfim cair sobre o meu braço
Minha cabeça, olhos cerrados, quentes
Do choro vago já meio esquecido.
Mas onde estou? Que casa é esta? Quarto
Rude, simples — não sei, não tenho força
Para observar — quarto cheio da luz
Escura e demorada, que na tarde
Outrora eu... Mas que importa? A luz é tudo.
Eu conheço-a.
XXXIV
Basta ser breve e transitória a vida
Para ser sonho. A mim, como a quem sonha,
E escuramente pesa a certa mágoa
De ter que despertar — a mim, a morte,
Mais como o horror de me tirar o sonho
E dar-me a realidade, me apavora,
Que como morte. Quantas vezes [quantas],
Em sonhos vazios conscientemente
Imerso, me não pesa o ter que ver
A realidade e o dia!
Sim, este mundo com seu céu e terra,
Com seus mares e rios e montanhas,
Com suas árvores, aves, bichos, homens,
Com o que o homem, com translata arte,
De qualquer construção divina, fez
— Casas, cidades, coisas, modas [...] —,
Este mundo, que [nunca] reconheço,
Por sonho amo, e por ser sonho o [quero]
Ou [tenho] que deixá-lo e ver verdade,
— Me toma a gorja, com horror de negro,
O pensamento da hora inevitável,
E a verdade da morte me confrange.
Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente
Alheio ao verdadeiro ser do mundo,
Viver sempre este sonho que é a vida!
Expulso embora da divina essência,
Ficção fingindo, vã mentira eterna,
Alma-sonho, que eu nunca despertasse!
Suave me é o sonho, e a vida [...] é sonho.
Temo a verdade e a verdadeira vida.
Quantas vezes, pesada a vida, busco
No seio maternal da noite e do erro,
O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho
Uma perfeita vida me parece
[...] ..., e porventura
Porque depressa passa. E assim é a vida.
XXXV
E o sentimento de que a vida passa
E o senti-la passar
Toma em mim tal intensidade,
De desolado e confrangido horror,
Que a esse próprio horror, horror eu tenho
Por ele e por senti-lo,
E por senti-lo como tal.
XXXVI
Aborreço-me da possibilidade
De vida eterna; o tédio
De viver sempre deve ser imenso.
Talvez o infinito seja isso...
Já o tédio de o pensar é horroroso.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Padre Antonio Vieira (Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda)

O sermão do Padre Antônio Vieira, intitulado Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, trata-se de um texto religioso redigido pelo sacerdote, com vistas à pregação que realizou no Brasil, no ano de 1640, na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia.

Pela leitura do sermão, observa-se que seu tema se relaciona com a época da turbulência social vivida pelo país. Era em 1640; a Baía estava a ponto de cair sob o jugo holandês. Arrebatado por uma inspiração patriótica, Vieira quis reanimar os brios dos Brasileiros e fazer ao Céu uma santa violência. Num sublime transporte de génio compôs essa obraprima, verdadeiramente única no seu género, repleta das sublimes audácias de Moisés e dos Profetas. Seja qual for a idéia que façamos da pregação, é impossível não sentir a grandeza e a originalidade de tal eloquência.

Motivado pelo firme propósito de tentar impedir o jugo holandês, o Padre Antônio Vieira constrói seu sermão e dirige-o ao povo que fomentou o projeto expansionista, povo católico, impregnado de religiosidade, fiéis dominados pelas virtudes da fé, em nome da qual ampliavam suas conquistas e, conseqüentemente, suas riquezas.

Convém observar que a pretensão de dominar o desconhecido vigorou em sua plenitude por ocasião das grandes navegações. O temor de navegar por mares "virgens" foi superado pela audácia dos portugueses. Corajosos, ambiciosos, arrostaram perigos e não hesitaram em pôr em risco suas vidas, conforme as próprias palavras de Vieira:

Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastámos os ventos e as tempestades com tanto arrojo (...).

Mas a primazia ora alcançada pelos desbravadores estava sob ameaça. À fartura suceder-se-ia, devido à falta da infra-estrutura necessária para a manutenção do império conquistado, uma perda inominável: o Brasil se vê na iminência de passar à propriedade dos holandeses. Eis o motivo que propicia a alegação de Vieira de estar o Brasil passando para as mãos dos "hereges", ao redigir seu sermão.

Assim posicionado, o sacerdote prega o sermão argumentando com Deus e repreendendo-O, a fim de que Ele conceda aos portugueses a vitória que engrandecerá a glória divina:

(...) Pequei, que mais Vos posso fazer? E que fizestes vós, Job, a Deus em pecar? Não Lhe fiz pouco; porque Lhe dei ocasião a me perdoar, e perdoandome, ganhar muita glória. Eu dever-Lhe-ei a Ele, como a causa, a graça que me fizer; e Ele dever-me-á a mim, como a ocasião, a glória que alcançar. (...). Em castigar, vencei-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, vencei-Vos a Vós mesmo, que sois todo-poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de Vós, porque só vossa justiça pode pelejar com armas iguais contra vossa misericórdia; e sendo infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor. (...). (VIEIRA, 1959, p. 322-323).

Entretanto, não se pode perder de vista que esse sermão se destinava a "reanimar os brios dos brasileiros", entendidos aqui como os brasileiros nascidos no Brasil, os colonos portugueses e o corpo de milícias que defendia a Bahia de todos os Santos.

Estes são, pois, o auditório universal de Vieira. Contudo, havia um auditório "intermediário" composto por um único ser e interlocutor virtual: Deus, pois Vieira não fala diretamente aos fiéis; ao contrário, dirige-se a Deus, que é seu "interlocutor": “Não hei-de pregar hoje ao povo, não hei-de falar com os homens, mais alto hão-de sair as minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito divino se há-de dirigir todo o sermão.” (VIEIRA, 1959, p. 301).

A cena se passa como se o pregador estivesse em um grande palco: ele dirige-se indiretamente à platéia – os brasileiros – e “contracena” com Deus – o “ator” imaterial. Após estruturar as bases da analogia entre o seu próprio discurso e o do Profeta Rei, o padre passa a apresentação dos argumentos propriamente ditos, construindo o sermão.

No Sermão da Sexagésima, Vieira pretendia ensinar aos colegas sacerdotes um meio eficaz de seduzir os fiéis e atraí-los para a seara do Cristo e no sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, Vieira pretende seduzir Deus e atraí-lo para a sua própria “seara”, a dos portugueses.

No sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, as Sagradas Escrituras são o meio de prova dos argumentos arrolados por Vieira
e também o veículo que aproxima o orador do seu auditório real para assegurar a fidelidade deste, pois a Bíblia, por representar a palavra de Deus, consubstancia
os anseios do orador e do seu auditório, naquele momento histórico.

Como pode-se observar, a tese a ser defendida por Vieira está explícita no próprio título do sermão; o sacerdote advoga que Deus retome a aliança com os portugueses para que estes possam derrotar os holandeses.

Notas importantes

1. A formação discursiva, por excelência persuasiva, se faz presente no referido texto, pois o contexto deixa claro que Portugal está perdendo o Brasil para os holandeses e Vieira pretende incitar os brasileiros à luta armada; para isto, prega o sermão Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda. Para persuadir os brasileiros, Vieira dirige-se diretamente a Deus e “repreende-O” pelo que Ele está “permitindo” que aconteça com os portugueses.

2. O sermão constitui o lugar onde se instalam todas as condições para o exercício de dominação pela palavra, pois, ao “argumentar” com um interlocutor do plano espiritual, Vieira está, na verdade, monologando, uma vez que Deus não vai “contra-argumentar” com o padre. Assim, em nenhum momento, Vieira terá um “opositor”.

3. O texto se caracteriza como um discurso exclusivista por não haver espaço para mediações ou ponderações. Assim, os signos são fechados e o discurso fixa-se em um jogo parafrásico. Repete-se uma fala já sacramentada pela instituição, neste caso a Igreja, e é à sua interpretação da Bíblia Sagrada que Vieira recorre para compor o seu discurso. Nele não há espaço para mediações ou ponderações porque a voz da Bíblia é universalmente aceita como o fundamento do pensamento cristão e o instrumento de acesso a Deus e a Seu Filho. Qualquer “ponderação” que se fizesse, conforme demonstramos no decorrer desta tese, seria
considerada herética, já que, por ser fruto do raciocínio, discordaria do discurso do sacerdote.

4. O texto se apresenta como o lugar do monólogo, em detrimento do diálogo, pelo fato de o padre argumentar com um ser do mundo espiritual. E ainda que assim não fosse, só por basear-se na Bíblia, o pregador eliminou qualquer possibilidade de diálogo, uma vez que a Bíblia Sagrada é a “palavra de Deus” e contra ela ninguém haverá de se levantar, sob pena de incorrer em pecado grave e correr o risco de “arder nas chamas do Inferno”, de acordo com a crença difundida entre os fiéis pela própria Igreja Católica.

5. O"tu" se transforma em mero receptor e, por conseguinte, não tem nenhuma possibilidade de interferir ou modificar o que está sendo dito. Essa característica pode ser comprovada pelo fato de ninguém poder se insurgir contra a “palavra de Deus”. Para os receptores reais do discurso de Vieira, isto é, os brasileiros, o padre intermedeia a mensagem divina e, portanto, é um representante de Deus, o que bloqueia as comunicações desses fiéis e cria uma “ilusão de reversibilidade”.

Fonte:
Cláudia Assad Álvares, Doutora em Filologia e Língua Portuguesa. Disponivel em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/s/sermao_pelo_bom_sucesso_das_armas

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Lourenço do Rosário (Conto Moçambicano: O Coelho e o Macaco)

O coelho e o macaco eram muito amigos.

Um dia, o coelho disse: "Amigo, vamos abrir uma machamba de amendoim". "Está bem", respondeu o macaco.

Havia muita fome na povoação.

Quando começaram a abrir o campo, o macaco ria, saltava, brincava e trabalhava pouco. O coelho tirou o capim, cavou, semeou quase toda a machamba praticamente sozinho.

Chegou a altura da colheita. O coelho tirava o amendoim e punha no saco. O macaco tirava-o e comia imediatamente.

O coelho ficou furioso e resolveu castigar o companheiro porque se continuassem daquela forma, estava a ver que não tiraria qualquer proveito do seu trabalho. Aproveitou então uma altura em que o macaco estava a saborear uma grande quantidade de amendoim e enterrou-lhe a cauda de forma a que não pudesse tirá-la.

Na altura de largar o trabalho, disse o coelho: "Ó amigo macaco, hoje tenho para o jantar amendoim com carne. Aparece".

O coelho fingiu que tinha muita pressa e foi-se embora logo daí. O macaco tentou também ir-se embora e viu que estava preso pela cauda.

O macaco gritou chamando por ajuda. Passado algum tempo, apareceu o coelho todo ofegante. "O que foi, amigo macaco?" "Tira-me daqui", pediu o macaco. O coelho fingiu que o ajudava, fez algum esforço. De repente, desistiu: "Paciência, amigo macaco, não há nada a fazer, eu tenho pressa, o jantar está à espera. A cauda está muito enterrada, só cortando-a, senão ficas aí toda a noite e nunca se sabe quando é que passa por aqui o leopardo..." Quando o macaco ouviu o nome do leopardo, pôs-se aos gritos e suplicou ao coelho que lhe cortasse a cauda. "Prefiro viver sem a cauda do que ser comido..." Era o que o coelho queria. Cortou-lhe a cauda e levou-a consigo.

Quando chegou a casa, cozeu-a juntamente com o amendoim que ia oferecer ao macaco. Este, apesar das dores, como era comilão, apresentou-se em casa do coelho para o jantar.

Começou a comer com sofreguidão até verificar que aquela carne não passava da sua própria cauda. Ficou furioso, quis agredir o coelho; este fugiu. A lamentar-se com as dores, foi-se embora.

Desde esse dia que o macaco e o coelho não cultivam juntos.

Fonte:
Lourenço Joaquim da Costa Rosário. Contos moçambicanos do vale do Zambeze. Moçambique: Editora Texto/Leya, 2001.