sábado, 30 de março de 2013

Afonso Arinos (Assombramento) Parte 3

Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.

Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.

Era noite.

Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.

- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.

E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!

- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.

Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.

Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.

Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.

- Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria...

O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.

O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.

Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.

- É o vento, talvez, no sino da capela.

E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.

- Acaba aqui - murmurou.

Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.

- Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...

Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.

A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.

Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:

- Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.

Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.

No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.

Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casara-o escuro e a ventania - alcatéia de lbos rafados - investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.

Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.

Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.

Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez cm quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.

- Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não - exclamava o arrieiro para o invisível. - Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!

E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.

Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barra-o acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traia. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:

- Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!

De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.

Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.

Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:

- Traiçoeiras ! Eu queria carne para rasgar com este ferro ! Eu queria osso para esmigalhar num murro.

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de úgre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.

O arneiro rugiu:

- Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes. fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.

Manuel lá no fundo, ferido, ensangüentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: - "Eu mato ! Mato! Ma..." - e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.
–––––––––––-
continua…

Ditados Populares do Brasil (Letra P)

Pagar o pato
Paga o justo pelo pecador.
Pagar o pato.
Pago chorando o que prometi sorrindo.
Pancada de amor não dói mas cria calo.
Panela em que muitos mexem é sempre mal temperada.
Para cuspir rosas é preciso saber engolir espinho.
Para que seu marido não acorde com a macaca… Depile-se.
Para que tanta pose se o cemitério é o teu fim.
Pato e parente só serve para sujar a gente.
Para ser feliz basta ser bom.
Pensa no bem para ser feliz.
Perca um minuto na vida, mas não perca a vida num minuto.
Perto de quem ama, sem poder amar.
Peru quando faz roda quer comer minhoca.
Plantei amor e colhi saudade.
Pobre é como pneu; quanto mais trabalha, mais liso fica.
Pobre quando ganha ovo, está podre.
Pobre quando mete a mão no bolso só tira os cinco dedos.
Poeira é minha penicilina.
Por onde eu passo deixo saudade.
Por três coisas sou perdido: mulher, cavalo e baralho.
Precisa-se de uma empregada que durma neste emprego.
Precisa-se de uma empregada para o que der e vier.
Preferível ser covarde cinco minutos a ser defunto em um minuto.
Prefiro amar quem me odeia a odiar quem me ama.
Prego que levanta a cabeça, martelo nele.
Preguiçoso é o dono da sauna, que vive do suor dos outros.
Prestação e mini saia, quanto mais curta melhor.
Promessa de candidato não enche a barriga.
Pai rico, filho nobre, neto pobre.
Palavra de rei não volta atrás.
Palestra de cachorro é em porta de açougue.
Pancada grande é que mata cobra.
Panela no fogo, barriga vazia.
Panela que muitos mexem, não toma tempero
Panela velha é que faz boa comida
Pão de pobre só cai de manteiga para baixo.
Papagaio come milho, e periquito leva fama.
Papagaio velho não aprende a falar.
Para bom entendedor, meia palavra basta.
Para cavalo velho, somente milho novo.
Passado três, um gato vira tigre
Passar de cavalo a burro.
Passar manteiga em venta de gato.
Passarinho que come pedra bem sabe o cu que tem
Passarinho, que acompanha morcego, dorme de cabeça pra baixo.
Pau que nasce torto morre torto.
Pedra que rola não cria limo.
Peito lavado, nariz enxugado.
Peixe morre pele boca.
Pela boca morre o peixe
Pelo dedo se conhece o gigante.
Pelo rodar da carruagem, se sabe quem nela vem.
Pelos santos se beijam as pedras.
Pequena nuvem tapa um sol.
Perder o fio da meada.
Perder o latim.
Perder vela com mau defunto.
Perdido como cego em tiroteio.
Perdido por um, perdido por mil.
Perguntar não ofende.
Perto de quem come, longe de quem trabalha.
Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Pimenta nos olhos dos outros não doi
Pior a emenda que o soneto
Pior cego é aquele que não quer ver.
Pobre como Jó.
Pobre é que nem cachimbo, nasceu pra levar fumo.
Pobre só enche a barriga quando morre afogado.
Pode-se levar o burro à água, mas ele só bebe se quiser.
Poleiro de pato é no chão.
Pôr as cartas na mesa.
Pôr as mangas de fora.
Por causa de um grito se perde uma boiada.
Por cima de queda, coice.
Por fora bela viola, por dentro pão bolorento
Por fora como umbigo de vedete.
Pôr suspensórios em cobra.
Pra baixo todo santo ajuda
Pra burro velho, capim novo
Pra quem é, bacalhau basta
Praga de urubu magro não pega em cavalo gordo.
Praga de urubu não mata cavalo gordo
Prego batido, ponta virada.
Prejuízo pouco é tiquinho.
Presunção e óleo bento, cada qual toma a contento.
Pretensão e água benta cada um tem quanto quer
Primo e pinto são quem sujam a casa.
Promessa de feijão não dá para encher barriga.
Promessas não pagam dívidas.
Promessas, só santo ajudam.
Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Pular da brasa pra cair na labareda.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Pedro Emílio (Falecimento)


Pedro Emílio (1936– 2013)

Pedro Emílio de Almeida e Silva nasceu em Campo Alegre (Distrito de Cantagalo), no estado do Rio de Janeiro,em 09 de junho de 1936, filho de Jonas de Almeida e Silva e Austrealina Silva.

Formou-se como Bacharel em Direito.

Casou-se com Maria Paulina Sardenberg Silva, com quem teve 3 filhos.
 
Trabalhou no rádio e no jornal.

Foi Inspetor Seccional da Fazenda, cargo no qual aposentou-se em 1960.

Trovador e poeta, ocupava a cadeira nº 04 da Academia Fidelense de Letras, tendo por patrono Jayme Coelho.

Pedro Emílio, um dos baluartes da trova em São Fidélis, era um dos raros trovadores reminiscentes dentre os que conviveram com Luiz Otávio, J. G. de Araújo Jorge e Aparício Fernandes.

Faleceu em São Fidélis/RJ, ontem, 28 de março de 2013.

Pedro Emílio (Versos Diversos)

TROVAS

Ai, quem me dera morrer
à mercê dos meus desejos
– apertado nos teus braços,
afogado nos teus beijos!

A minha mãe se enternece
me embalando com o olhar,
compondo terços em prece
sem ser preciso rezar".

Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo o bem!

Das esperanças que tenho,
duas não posso alcançar:
são as que vivem pousadas
no verde do teu olhar...

Desejar mulher alheia
é pecado sem perdão?
Mas... e se ela nos deseja,
comete pecado ou não?...

Eu não troco a minha vida
pela vida de ninguém,
que nenhuma é mais florida
que a minha, junto ao meu bem.

No cantar de uma cigarra
há tanta melancolia,
que parece ser a tarde
chorando a morte do dia!...

O destino, minha amada,
nos impõe coisas assim:
- Eu não te esqueço por nada!
Por nada... esqueces de mim...

O outono as árvores deixa
despidas completamente...
– Vontade de ser outono
no corpo de muita gente!

Planta um beijo em meu jardim,
meu amor, quando te fores,
que, ao ver teu beijo florir,
murcharão as outras flores!

"Que Deus te ajude!" - assim disse
um mendigo em minha porta.
- Quem dera que Deus te ouvisse,
infeliz que me conforta!

 POEMA PARA EMBALAR JOANA

Quando Joana nasceu,
todas as estrelas
acordaram com ela
e em ciranda cantaram:

“Existe Bela-Joana
Existe Joana-Bela!”

Duas gotinhas de céu
pingaram nos olhos dela,
Joana tem cor de alvorada
e cabelos de luar.

Duas résteas de manhã
disseram nos lábios dela:
“Bela-Joana”  é serra
“Joana-Bela” é mulher.

Quando Joana sorriu,
todas as cores sorriram,
sorriram todas as flores,
até a tristeza sorriu.

Quando Joana andou
pisou leve, mansinho,
mas a primavera acordou
e os passarinhos cantaram:

“Existe Bela-Joana
existe Joana-Bela
Bela-Joana é serra
Joana-Bela é mulher!”

Quando Joana falou,
Um poema estava mudo
Joana acordou o verso
E as palavras rezaram:

- Joana cheia de graça!
- Joana cheia de luz!
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SÃO FIDÉLIS
CANTIGA PARA TRÊS TEMPOS


Chuva amarela na Gamboa:
- O I T I S -
Na avenida, chuva doce:
- S A P O T I S -
Tapetes coloridos nas manhãs
Sob os pés de flamboiãs.
LUCAS e CAMBIASCA
- Freis pioneiros -
no silêncio do bronze
FIDÉLIS
- Santo Padroeiro -
na inércia da massa unicolor.
1840 .....1870 .......1970 ........
Vila ..... Cidade ... Saudade...
Maria
Cheia de graça
que passa.
na praça:
- cadência de passos
no espaço.
Dilma ..... Dilce...... Dilza.....
Diva....... Dolores ...... dores:
Verso pobre,
canto roucos.
Tudo é nada,
muito é pouco.
O que eu digo,
o que eu sinto
no canto pobre
no verso rouco
para dizer donde vens
para dizer o que tens,
é muito pouco,
é muito pouco.
Cajá, café, caju,
Casa, cachaça, .....Cacilda.
No leito,
o rio,
o estio,
dorme
ouvindo cantigas
de lendas antigas.
Lampião sem gás,
coreto sem "Jazz",
porto
morto.
Hinos, sinos, Banda.
Bogos, jogos, fogos.
A araponga gonga,
Fere fogo na forja
e aguça o agudo gume
perfuro - cortante,
do comerciante
especialista
- e até tratadista
em robalo.
Cores, flores,
gente, cachorro quente.
Vila!
Cidade!
Saudade.
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MADRUGADA

Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada
O meu e o teu cigarro
Uma tragada um beijo, um beijo uma tragada:
- Teu braço é o meu travesseiro quente e macio
Dois pássaros que a tempestade da noite separa
E se juntam em manhã dourada de estio
- Preciso partir, mas antes que eu diga mais nada
prende-me nos braços e entre beijos e abraços
pede-me para ficar
E como num delírio louco de amor
Começa a falar: Não, não vá embora
Deixe que o sol desponte e os pássaros comecem a cantar lá fora
Deixe que a névoa adormecida no colo azul das montanhas distantes
Desapareçam ao toque sutil da aurora.
-Que será do resto da manha se te fores,
não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esqueça a vida querido e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido
Somente agora o sol debruça em nossa janela
Com ar de malícia vem nos dar bom dia
Beijar nosso amor em eterna poesia
Louvar nosso amor nessa manhã tão bela
- Esqueça a vida querido e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido.
O que será do resto do dia se te fores,
Não vês que ficarei morrendo de amores?
Esqueça a vida querido...
O que será da tarde se te fores,
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Deixe que a tarde caia serena
A encher de sombras e odores o caminho
Por onde há de passar sozinho
Esqueça a vida querido...
Somente agora a lua vem nascendo
Como um pintor em fina tela
Imagens vem tecendo...
Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada
O meu e o teu cigarro…

O SAPO E A LUA

Os sapos, despertos,
saíam do mato
perto, com espanto,
da linha do trem.
Enquanto da noite,
logo após a chuva,
Penetrava o manto.

Na esquina a lua
na poça d’ água
boiava disforme...
A canção da rua
( que mágoa: )
a voz dos sapos
espiando a lua
afogada n’ água.

FLOR DE MARÇO

Floresces no outono
Rosa - de – Março
pálida e inocente?

Pequena flor de março
fria e sem cor
pendida num galho
solitário e triste...

Por que chegas, agora,
Fora do tempo
(do meu e do teu)
Rosa – de – Março
tímida e nervosa?

Só não sabes
o bem que tanto trazes
a um Jardim – de – Outono
solitário e triste…

QUERO-QUERO

À tarde nos campos
Dizem os quero-queros aos bandos
Quero-quero!...
Quero-quero!...
Quero-quero!...

Que “querem-querem”
Os quero-queros?
Pobres pedintes das beiras dos brejos!
Se eu soubesse
O quê o quê
Juro-juro
Dava-dava

 Pobre-pobre dos quero-queros
Sou estribilho
Um eco...
Eu também quero...
Também quero...
Também quero…

ROSA

Flor ou espinho?
- Um nome na lembrança
plena de solidão!
- imagem entalhada
pelo esquecimento!

( Rosa um espinho na garganta. )

Musa ou mulher?
-Um verso na boca
cheia de coração!
Uma canção emudecida
Morta de emoção

( Rosa uma cantiga de roda na rua:
Que se chama solidão...
Que roubou me coração... )

- O último ópio!

CACHOEIRA DO SALTO

Nas mãos do leito
Desce suave o rio.

Sussurra num jeito brisa
Nas copas das árvores centenárias.

Segue solene.

Teclas agudas, rotundas, disformes
Das submersas falésias ancestrais...

Cortam-se as águas,
Dilaceram-se, entrelaçam – se:
Murmúrios polissonoros freqüentes!

Elevam-se, embaraçam-se em tranças louras e disformes!

Seguem suaves e brandas
Os cabelos longos e serenos
Das águas milenares
Penetrando o oceano.
( até quando? )

VALENÇA
(poema dedicado à minha irmã Ana ao completar 80 anos)
Jardim de cima
Jardim de baixo...

Quando te encontro
É que me acho!

Do verso a rima
Da flor o Cacho!

Vale de cima
Vale de baixo...

Quando te encontro
É que me acho!

Do verso a rima
Da flor o cacho!

Na manhã de cinzas
Fênix ressurge...

Entre névoa que se evapora
Esplêndida aurora!

Cheia de amor, uma crença
Valei - me Valença!

CANÇÃO FINITA

Do primeiro canto da primavera
serão teus:
- o pássaro e a canção

Da primeira flor da primavera
serão teus:
- a cor e o perfume

Do primeiro verso da primavera
serão teus:
- o poeta e o poema.

Do último canto da primavera
de quem serão:
- o pássaro e a canção?

Da última flor da primavera
de quem serão:
- a cor e o perfume?

Do último verso da primavera
de quem serão:
- o poeta e o poema?

Murcha a flor...
quieto o pássaro...
morto o verso...

De quem será a primavera?

GAMBOA DE OUTRORA

Gamboa é a rua triste da cidade
Triste na expressão das árvores
Triste na expressão dos pássaros!

Gamboa rua da chegada,
Gamboa rua da partida ...

Quando chego é rua do abraço
Que me estende o peito úmido de saudade,
Quando parto é rua do adeus
Que me acena na primeira curva do caminho

Gamboa é a rua das lágrimas amarelas dos oitis
Choradas das calçadas ...
Rua das casas antigas debruçadas no tempo ...
Lamento das rezas dos pardais em tardes de cinzas,
Sombras das casas antigas debruçadas no tempo ...

Gamboa é a rua triste de minha cidade,
Triste só para mim, quem sabe ?

Lá, a gente chega na partida ...
Lá, a gente parte na chegada …

Fontes:
www.sardenbergpoesias.com.br
http://poeticasfulinaimicas.blogspot.com.br
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quinta-feira, 28 de março de 2013

A. A. de Assis (A Trova na Imagem 10)


Alberto Caeiro (Caravela da Poesia XXI)

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

SE EU MORRER NOVO

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

SE DEPOIS DE EU MORRER

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

SE O HOMEM FOSSE

Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais.
Animal directo e não indirecto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar tini sentido às cousas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do "conjunto";
Um sentido como ver e ouvir do "total" elas cousas
E não, como temos, um pensamento do "conjunto";
E não, como temos, uma idéia, do "total" das cousas.
E assim — veríamos — não teríamos noção do "conjunto" ou do "total",
Porque o sentido do "total" ou do "conjunto" não vem de um total ou de um
conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.

TAMBÉM SEI FAZER CONJETURAS

Também sei fazer conjeturas.
Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é urna ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma cousa que o corpo.

TODAS AS OPINIÕES

Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.

TU, MÍSTICO

Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.

Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.

UM DIA DE CHUVA

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.

ÚLTIMA ESTRELA


Última estrela a desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trêmulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim;
Alegre pelo critério (?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim está em existires
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.

UMA GARGALHADA

Uma Gargalhada de rapariga soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem não vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: não, os montes, as terras ao sol o sol, a casa aqui,
E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois
lados da cabeça

VERDADE, MENTIRA

Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.

VIVE

Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Fonte:
Poemas Inconjuntos (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/inconjuntos.htm)
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Isaac Leib Peretz (Bontsha, o Silencioso)

(1852-1915 - Polônia)
Judeu polonês que escrevia em iídish, lsaac Leib Peretz deixou uma enorme influência em inúmeros escritores judaicos contemporâneos, pelo mundo todo. Seus contos constam em várias antologias mundiais, principalmente publicados nos Estados Unidos. Histórias como As Três Prendas, Dois Moribundos e este Bontsha, o Silencioso, retrato de um ser humano que nunca sentiu ódio e que nunca se queixa de Deus ou dos outros homens, são contos consagrados. De amor pela vida e de um humor (quase) pungente.
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Aqui, neste mundo, a morte de Bontsha, o Silencioso, não causou nenhuma impressão. Pergunte a qualquer um: quem foi Bontsha? Como viveu? Como morreu? Suas forças pouco a pouco o abandonaram, seu coração, com o tempo, desistiu de bater ou foram seus ossos que cederam debaixo do peso de seu fardo? Quem sabe? Talvez, por não comer, tenha morrido de fome.

Um cavalo, que caísse morto, puxando uma carroça pelas ruas, chamaria mais atenção. Curiosos viriam de longe para ver a carcaça. O local do acidente ficaria marcado. Os jornais noticiariam o fato. Mas se os cavalos fossem tão numerosos como os seres humanos não mereceriam tal honra. Afinal, quantos cavalos existem? Já os homens, são tantos - deve haver bilhões!

Bontsha era um ser humano. Viveu desconhecido, no silêncio, e no silêncio morreu, depois de passar pela vida como uma sombra. No dia em que Bontsha nasceu, ninguém ficou alegre, ninguém tomou um copo de vinho. Na sua confirmação, não houve discurso nem celebração. Viveu como o grão de areia na beira do grande oceano, entre milhões de outros, grãos como ele. E quando o vento, enfim, o levantou e levou com seu sopro para a outra margem, ninguém notou.

Durante sua vida, seus pés não deixaram marcas no pó da estrada; depois de sua morte, o vento derrubou a tabuleta que marcava sua sepultura, e quando a mulher do coveiro encontrou aquele pedaço de madeira, já longe do seu túmulo, usou-o para acender o fogo embaixo de uma panela de batatas. Três dias depois da morte de Bontsha ninguém mais, nem mesmo o coveiro, se lembrava onde fora enterrado. Se houvesse uma lápide no túmulo, alguém poderia, mesmo muitos anos depois, ler seu nome na pedra e Bontsha, o Silencioso, não teria desaparecido da memória dos homens como uma sombra.

Solitário viveu e solitário morreu. Não fosse a pressa e o barulho infernal em que vivem os homens, talvez alguém notasse que Bontsha também era um ser humano, que seus ossos se quebravam sob o peso das tarefas diárias, que ele tinha dois olhos assustados, que era trêmula sua boca silenciosa, que mesmo quando não tinha um pesado fardo nas costas ele caminhava curvado, olhando para o chão, como se já estivesse procurando a sepultura.

Quando o levaram para o hospital, dez miseráveis disputaram seu canto estreito que logo encontrou um inquilino. Quando foi para o necrotério, havia vinte doentes que só esperavam que ele morresse e vagasse seu leito na enfermaria. Eram quarenta os mortos a serem sepultados, quando o levaram para o cemitério. Quem sabe quantos esperam para roubar dele até mesmo aquele pedacinho de chão?

Silencioso quando nasceu, silencioso na vida, silencioso quando morreu, mais silencioso ainda foi seu enterro. Mas no outro mundo foi diferente. Ali a morte de Bontsha foi uma sensação. O som da trombeta messiânica ecoou pelos sete céus, anunciando: Bontsha, o Silencioso, morreu! Os anjos mais importantes voaram, com suas asas imponentes, para contar uns aos outros: Sabe quem chegou? Bontsha! Bontsha, o Silencioso, morreu.

Os anjinhos, com suas asas de ouro e seus sapatinhos prateados, os olhos brilhando e rindo de felicidade e de alegria, correram, cantando, para receber Bontsha. O rumor que fizeram com suas asas, o bater de seus pequenos sapatos e seu riso cristalino correram por todo o Paraíso, de forma que até Deus soube que Bontsha, o Silencioso, havia chegado.

Nosso pai Abraão esperava por ele no portão, com braços estendidos para abençoar e acolher:

- A paz esteja contigo! - disse com o rosto, patriarcal e vincado, iluminado por um doce sorriso.

Mas o que está acontecendo no céu? Dois anjos trazem um trono dourado para que Bontsha se sente nele e sobre sua cabeça colocam uma coroa de pedras preciosas.

- Mas por que o trono e a coroa? Antes mesmo que ele seja julgado? - se perguntam os santos com uma pontinha de inveja.

Os anjos respondem que aquele é Bontsha e que seu julgamento será apenas uma formalidade. Quem poderia dizer alguma coisa contra ele? Imaginem, Bontsha, o Silencioso!

Quando se viu recebido por um coro de anjinhos e abraçado pelo patriarca Abraão como se fossem velhos amigos, quando viu preparado para si um trono e sua cabeça coberta por uma coroa, quando ouviu que em seu julgamento final nada seria dito contra ele, Bontsha, como fazia em vida, ficou em silêncio. Ficou em silêncio de medo. Com o coração apertado e o sangue correndo gelado; sabendo que tudo isto só podia ser um sonho ou um terrível engano.

Ele estava acostumado às duas coisas, sonhos e enganos. Quantas vezes não sonhara ser rico, com muito dinheiro! Apenas para acordar na mesma cama de sempre e um pouco mais miserável. Quantas vezes alguém lhe dissera uma palavra gentil com um sorriso! Apenas para afastar-se com nojo e irritação ao perceber o engano.

Não ousava levantar os olhos, fazer um movimento, como não ousara responder à saudação do patriarca (seus lábios não conseguiram formar a palavra "paz"). Tinha medo que um gesto seu fizesse o sonho se dissipar e que ele acordasse num ninho de cobras. Medo que uma palavra o denunciasse por quem não era, e descoberto o engano fosse expulso dali. Medo que o impedia de ouvir o coro angelical e de ver dançar em volta dele os querubins. Quando o conduziram, enfim, diante de Deus no Tribunal do Juízo, não foi, ao menos, capaz de dizer "bom dia". Estava paralisado de medo.

Olhando para o chão belíssimo, que só fazia aumentar seu terror quando via que eram seus pés que pisavam ali, tudo que conseguia pensar era: "Quem sabe com que ricaço importante ou sábio rabino me confundem? Ele aparecerá e será o meu fim E fechou os olhos para não ver.

Não conseguiu entender o que diziam quando chamaram seu próprio nome. Ouvia as vozes como quem houve um instrumento musical sem dar sentido às palavras. Uma voz de anjo dizia:

- Bontsha, o Silencioso, um nome que o cobre de glória como nem o mais rico e elegante dos mantos jamais cobriu um príncipe...

"O que será que estão dizendo? De quem estarão falando?", pensava Bontsha, a quem parecia ter ouvido seu nome, enquanto outra voz interrompia seu anjo defensor:

- Rico manto! Príncipe! Poupe-nos as metáforas e o tempo.

- Nunca reclamou - continuou a defesa - nem de Deus nem da vida; em seus olhos nunca se viu traço de mágoa ou despeito. Nunca um protesto aos céus.

Bontsha continuava sem entender do que falavam quando outra vez ouviu a voz do promotor:

- Deixemos, por favor, a retórica!

- Seus sofrimentos foram indescritíveis, temos aqui um homem que padeceu mais que Job!

"Quem?" - pensava Bontsha - "Quem será este homem?"

- Fatos! Fatos! Deixe de lado os floreios e atenha-se, por favor, aos fatos! disse o juiz.

- No oitavo dia foi circuncidado...

- Tanta riqueza de detalhes é desnecessária.

- Fizeram um talho mal feito e nem ao menos lhe estancaram o sangue...

- Desnecessária e de mau gosto.

- Desde criança sempre silencioso. Não chorava sua dor, nem mesmo quando perdeu sua mãe e foi entregue à víbora, à bruxa, que era sua madrasta!

"Será que falam de mim?" - pensou Bontsha.

- Não é a madrasta quem está sendo julgada - advertiu o juiz.

- Eram contados os pequenos pedaços de pão bolorento e duro que lhe dava. Enquanto ela mesma tomava seu café com creme. A única coisa que Bontsha teve com abundância foram maus tratos. Equimoses e cicatrizes ficavam à vista de todos, através dos rasgos, nos trapos que lhe dava para vestir. No inverno fazia-o cortar lenha descalço no frio quintal coberto de neve. Suas mãozinhas eram fracas e se feriam nos troncos pesados demais para elas. Tantas vezes seus pés congelaram. Mas ele sempre em silêncio, sem nunca uma queixa, nem mesmo ao seu pai...

- Aquele bêbado? Imaginem queixar-se a ele! - a voz do promotor era cheia de escárnio enquanto o corpo de Bontsha tremia com a memória do medo antigo.

- Nunca reclamou e sempre tão só. Jamais teve um amigo, um companheiro. Jamais foi a uma escola. Nunca viu uma muda de roupa nova. Nunca soube o que era um momento
de liberdade.

- Objeção! Objeção! - gritou irritado o promotor. - Ele está apenas apelando para o sentimentalismo da Corte, com esses vôos de retórica.

- Silencioso! Mesmo quando seu pai, completamente embriagado, atirou-o para fora de casa, na neve fria de uma noite de inverno, ele não disse nada. Levantou-se em silêncio e andou para onde o levaram seus passos.

- Vagou pelo mundo na miséria e em silêncio; mesmo passando fome, ele implorava apenas com o olhar. Finalmente, numa noite chuvosa de início de primavera seus passos o levaram (como o vento transporta uma folha) para uma grande cidade. Lá entrou sem ser visto nem ser ouvido, mas, mesmo assim, o jogaram numa prisão. Sempre em silêncio não protestou nem perguntou: "Por quê?" "Que foi que eu fiz?" Quando as portas da prisão se abriram, ele saiu, como havia entrado, sem dizer uma palavra. Procurou um trabalho e deram-lhe o mais pesado e o que pagava menos. Ele aceitou em silêncio! Mais terrível que o trabalho era procurar por trabalho, suando frio, com o estômago torturado pela fome. Sempre em silêncio! Enlameado e sujo, era, com desprezo, expulso das calçadas e obrigado a andar pela rua, entre as bestas e os carros, com sua carga. Ele mesmo uma besta de carga, arriscando o pescoço a cada passo. Em silêncio.

- Nunca se preocupou em saber quantos quilos de carga devia carregar, .nem quantas viagens devia fazer, tropeçando a cada passo para ganhar uma moeda. Nunca levantou a voz para reclamar sua paga. Como um mendicante, esperava que lhe dessem o que de direito era seu. Esperava na porta em silêncio; se lhe diziam: "Volte mais tarde", desaparecia como uma sombra, e mais tarde voltava como uma sombra para esperar. Nunca reclamou quando lhe pagavam menos ou davam-lhe, misturada às outras, uma moeda falsa. A tudo suportava em silêncio.

- Uma vez - continuou o anjo defensor - sua sorte pareceu mudar. Que milagre aconteceu? Quando cruzava a rua, Bontsha viu uma carruagem que vinha em disparada com os cavalos sem governo. Seu cocheiro estava caído lá atrás com a cabeça sangrando. Dentro dela um homem mais morto que vivo de pânico. Os cavalos assustados espumavam pela boca e em seus olhos selvagens brilhava uma luz que era como o fogo numa noite escura. Bontsha atirou-se às rédeas e conseguiu parar os cavalos. O homem a quem salvara era rico e generoso e não foi ingrato, pôs nas mãos dele o chicote do cocheiro morto e fez de Bontsha seu novo cocheiro. Um cocheiro! Não mais um carregador! Melhor ainda, seu benfeitor conseguiu-lhe uma esposa na qual, com grande generosidade, fez ele mesmo um filho para que Bontsha criasse. E Bontsha, em silêncio ainda desta vez, não reclamou.

"É de mim que falam" - pensou Bontsha - "é realmente de mim!" - Mas ainda assim não teve coragem para abrir os olhos e olhar seus juizes.

- Resignou-se em silêncio - prosseguiu o anjo - quando, falido, seu benfeitor deixou de pagar-lhe todos os salários atrasados. Aceitou sem uma queixa quando sua esposa o abandonou deixando-lhe seu filho, ainda pequeno, para que ele cuidasse. E permaneceu em silêncio, quando, quinze anos mais tarde, aquele mesmo menino que ele criara estava crescido e forte o bastante para botá-lo para fora de sua própria casa.

"É de mim que estão falando" - pensou Bontsha, ainda com medo - "é de mim mesmo!"

- Ficou em silêncio até mesmo quando - continuou o anjo que o defendia - o benfeitor, tendo resolvido seus problemas econômicos e novamente rico, pagou a todos seus credores e não se lembrou de pagar a ele. E, mais ainda, contratou um novo cocheiro para sua bela carruagem enquanto Bontsha trabalhava outra vez como carregador pelas ruas. E, quando foi atropelado, por esta mesma carruagem com seus belos cavalos, suas rodas de borracha e seu novo cocheiro, nem então, Bontsha, agonizando na rua, teve uma palavra amarga. Nem mesmo à polícia ele disse quem o havia atropelado e abandonado na rua. No hospital, onde todos têm o direito de gemer, Bontsha continuou em silêncio; quieto em seu leito, abandonado por médicos e enfermeiros, que não perdem tempo com quem não pode pagar. Sempre assim, sem um murmúrio! Quando a morte chegou, ele a esperava em silêncio. Nunca um protesto contra os homens, nunca um protesto contra Deus!

A defesa havia terminado e o pânico voltou a tomar conta de Bontsha; agora, ele sabia, viria a fala do promotor. Como o defensor, que o fizera lembrar de tantos detalhes de sua vida na Terra, seria agora a vez da acusação de tirar do passado seus pecados e faltas e trazê-los todos de volta à memória. Deus sabe o que ele iria lembrar!

- Senhores! - começou o anjo acusador, com uma voz seca e dura, mas logo fez uma pausa como se não soubesse como continuar. - Senhores! - começou outra vez e finalmente disse - Senhores, como Bontsha, que passou toda a vida em silêncio, eu também ficarei em silêncio.

Sobre o Tribunal caiu um grande silêncio que foi quebrado por fim por uma voz nova. Uma voz que vinha do mais alto trono. Uma voz terna e amorosa:

- Bontsha, meu filho! Bontsha - a voz era como música -, filho do meu coração!

Bontsha foi tocado, pela voz de Deus, no mais íntimo de seu ser. Sua alma começou a chorar. E era tão doce chorar. Nunca Bontsha pensara que chorar pudesse ser tão doce.

- Meu filho...

Nunca, desde que sua mãe morrera, ninguém o chamara assim. Com uma voz assIm.

- Meu filho - ele continuou ouvindo -, você sofreu tanto e nunca se queixou. Não existe um lugar em seu coração que não tenha sido ferido. Não existe lugar no seu corpo que não tenha sangrado. Nenhum lugar em sua alma que não fosse ofendido. Sem um protesto, sempre em silêncio.

- Em vida ninguém o compreendeu. Você mesmo não se compreendeu. Que não era necessário suportar tanto. Que tinha o direito de se lamentar. Que seu lamento chegaria ao céu. Que um gemido seu poderia chamar um exército de anjos vingadores e o próprio fim do mundo. Nunca entendeu o poder adormecido que havia em você. Lá, naquele mundo de ilusões, seu silêncio nunca foi recompensado, mas aqui no Paraíso, é tudo seu. Não apenas uma parte, não uma cota, mas tudo. O Paraíso é seu! O que você quiser, é tudo seu!

Então, Bontsha, ousou finalmente levantar os olhos. A luz o cegava. A luz esplendorosa que estava em tudo e em toda parte. Os anjos brilhando na luz, o trono iluminado.

Ele baixou novamente os olhos, ofuscados:

- Verdade? - Perguntou incrédulo e um pouco embaraçado.

- Sim, de verdade! - respondeu o Todo Poderoso, e com ele, numa só voz, todo o coro celestial - É tudo seu! Tudo no Paraíso é seu! Escolha! Tome! É tudo seu! Você estará tomando daquilo que já é seu!

- Nesse caso - disse Bontsha, sorrindo pela primeira vez -, nesse caso, Excelência, eu gostaria de ter todos os dias, no café da manhã, um pãozinho quente com bastante manteiga.

Um silêncio terrível tomou conta do Tribunal, mais terrível ainda do que tinha sido o silêncio de Bontsha durante toda sua vida. E Deus e os anjos baixaram a cabeça, envergonhados de terem criado na Terra tanta e tão desnecessária humildade.

Então o silêncio foi quebrado pela gargalhada amarga do anjo acusador.

(Tradução de Octávio Marcondes)

Fonte: Os 100 melhores contos de humor da literatura universal / Flávio Moreira da Costa (org.).Rio de Janeiro: Ediouro, 2001

Afonso Arinos (Assombramento) Parte 2


Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.

Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:

- Ché, povo! Tá chegando a hora!

O último estribilho:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:
Rio Preto há de dar vau

Té pra cachorro passar!

- Tá chegando a hora!

- Hora de que, Joaquim?

- De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.

Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.

- Gente ! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.

- Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?

- Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.

- O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.

- Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.

A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.

E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.

- Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida - e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.

Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.

Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.

Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:

- Até aí vou eu, gente ! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.

E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.
–––––––––––––-
continua…

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 27. Justiça

Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária -o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.

Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.

-"Foi esse negrinho estúpido," dizia um, indigitando o chauffeur.

-"O culpado é esse louco desse portuga," asseverava outro, referindo-se ao motorista.

-"Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer."

-"Qual! só a pau."

-"Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."

-"Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma."

-"Mas o bonde podia bem ter parado a tempo."

-"Não podia, aqui é um declive."

-"Seu guarda, o culpado é o chauffeur."

-"Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."

E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.

Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranqüilamente:

-"Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."

Fonte:
Domínio Público