terça-feira, 5 de março de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XIII)

Primeiro Fausto
Terceiro Tema
A Falência do Prazer e do Amor

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas [...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.
Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.
Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente —
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.

II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n'alma essa alegria!
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
Acabemos com esta vida assim!
Acabemos! o modo pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei —
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo [...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.

III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.

IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser...
Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.
Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto... Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere [...]
Sinto como um insulto esta alegria
— Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.

VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito Que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII
Tua inconsciência alegre é uma ofensa
Para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
Escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas...
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte. roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos! [...]

VIII
Triste horror d'alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co'a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.
Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.
Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.
Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza [...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.
Mas a dor é maior!

IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa ...
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.
Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.

X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!

XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.

XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém...
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a idéia
De gastar e gastar inutilmente —
Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.
Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.
Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino. —
De raivas contra a essência do viver.

XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo [...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.
Do mais. Pensar em dizer "amo-te"
E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.

XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]

XX
É isto o amor? Só isto? [...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.
Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva [...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.
Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos...

XXI
— Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.
Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas [...]
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.

XXIII
Reza por mim! A mais não me enterneço.
Só por mim mesmo sei enternecer-me,
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.
Reza por mim, por mim! Eis a que chega
A minha tentativa [em] querer amar.

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Ditados Populares do Brasil (Letra A)

A BOA notícia tem pernas curtas.
A CARA de um é o focinho do outro.
A CARA do pai, escarrada e cuspida. Com certeza deturpação do antigo adágio: A cara do pai, em carrara esculpida.
A COISA é mansa mas atropela.
A MÃO que alça o copo não deve segurar o volante.
AS MULHERES perdidas são as mais procuradas.
ADEUS, cinco letras que me faz sofrer.
ADORO as rosas, mas prefiro as trepadeiras.
ALGUM dia a terra cobrirá o teu orgulho.
A LUZ dos teus olhos ilumina o meu caminho.
A MAIOR riqueza do homem é a sinceridade da mulher.
A MAIOR vingança é o desprezo.
ANTES sonhava. Hoje, não durmo…
AMAR sem ser amado é ser castigado sem ter pecado.
AMAR-TE sempre; implorar-te nunca.
A MEDICINA não cura a dor da separação.
AMOR e dinheiro não querem parceiro.
AMOR é fumaça, sufoca e passa.
AMOR só de mãe.
A MORTE é um bem quando a vida se torna um mal.
A MULHER é como rosa: formosa, mas tem espinho.
A MULHER ri quando pode e chora quando quer.
ANTES causar inveja do que dó.
ANDO todo arranhado, mas não largo minha gata.
ANTES de apontar os defeitos do outro, conte até dez… dos seus.
ANTES de falar de mim, pensa no teu passado.
ARTIGO nacional, a mulher é o melhor.
A SAUDADE é companheira de quem não tem companhia.
A SAUDADE não mata, mas sepulta o coração em vida.
A SAUDADE torna presente o passado.
A SUSPEITA é o veneno da amizade.
AS GRANDES almas sofrem em silêncio.
A TERRA cobrirá o teu orgulho.
A VIDA começa aos 40 anos, e a morte aos 80 kms.
A VIDA é uma ilusão, passo por ela e não a vejo.
A VIDA só tem uma porta de entrada, mas várias de saída.
A VIDA é um barato, o povo é que acha caro.
A VIDA é dura pra quem é mole.
A TUA inveja é a minha felicidade.
A CALÚNIA é como fogo, destrói em horas a construção de anos.
A CÓLERA não aceita a presença da razão.
A CÓLERA principia pela loucura e acaba pelo arrependimento.
A ESTRADA é o meu lar.
A FÉ é quem vence sempre.
AJUDE a acabar com os letreiros de caminhão.
AMOR de mãe é imortal.
A MULHER é Maria, o carro é Ford e o homem sou eu.
A DÚVIDA é o travesseiro do sábio.
A EMENDA saiu pior que o soneto.
A GENTE nunca se esquece de quem se esquece da gente.
A GENTE pensa que se benze e quebra as ventas.
A IGNORÂNCIA e a candeia a si queimam, e aos outros “alumeiam”.
A MEDIDA de encher nunca transborda.
A NATUREZA não vai aos saltos.
A OCASIÃO faz o ladrão.
A PALAVRA é de prata, o silêncio é de ouro.
A PALAVRA própria e sensata, pomo de ouro é marchetado a prata.
A PREGUIÇA é a chave da pobreza.
A QUEM tem dinheiro, não lhe falta companheiro.
A VOZ do povo é a voz de Deus.
ABRAÇAR o mundo com as pernas.
ACENDER uma vela a Deus, outra ao diabo.
ÁGUA mole em pedra dura tanto bate até que fura.
ÁGUAS passadas não movem engenho.
AÍ é que a porca torce o rabo.
ALEGRIA de palhaço é ver o circo pegar fogo.
AMARRAR o burro onde o burro do dono manda.
AMIGOS, amigos, negócios à parte.
AMOR com amor se paga.
ANTES calar que com doidos altercar.
ANTES só que mal acompanhado.
ANTES tarde do que nunca.
AO INSENSATO, dá-lhe logo a fúria, quem é prudente dissimula a injúria.
AO RICO, mil amigos lhe aparecem, ao pobre, seus irmãos o desconhecem.
APÓS a tempestade vem a bonança,
AQUI se faz, aqui se paga.
ARARUTA tem seu dia de mingau.
ARRASTAR a mala.
AS APARÊNCIAS enganam.
AS GRANDES essências estão nos pequenos frascos.
ÀS VEZES pequena nuvem esconde o sol.
ATIROU no que viu, matou o que não viu.

Soares de Passos(O Mosteiro da Batalha)

Pulsemos a lira, que além se levanta
Padrão de vitória que imenso reluz!
Um templo e altares à Mãe sacrossanta;
Um templo, um poema que altivo descanta
Grandezas da pátria nos átrios da cruz.

Grandezas da pátria quem traz à memória
Que o peito não sinta d'orgulho bater?
Pulsemos a lira! do livro da história
Volvamos as folhas, que a musa da glória
Em nuvens etéreas sentimos descer!

Eis já d'Aljubarrota nas campinas
Se encontram as hostes contendoras.
Daqui tremulam portuguesas quinas:
Dalém as castelhanas invasoras.
Daqui é João primeiro, cuja lança
A coroa defende e a pátria cara:
Dalém o estranho rei, pedindo a herança
Da princesa Beatriz que desposara.

Refulge o sol nas armas, os cavalos
Rincham fogosos, escarvando a terra;
Dum lado e doutro os chefes a intervalos
Correm as alas animando à guerra.
Pouco avultam as hostes portuguesas;
Tremendo é de Castela o poderio;
Mas quem à pátria negará proezas
D'alto valor, e generoso brio!

A véspera é do dia consagrado
À Assunção gloriosa de Maria;
Os olhos levantando, o rei soldado:
«Senhora, exclama, nosso esforço guia!
«Se vencermos, um templo majestoso
«Te erguerei sobre o campo de batalha!»
Diz, e esporeando seu corcel fogoso
Brios em todos com sua voz espalha.

Soam trombetas; o sinal é dado;
Flutuam soltos os pendões na frente:
– São Tiago! – brada o castelhano ousado;
– São Jorge e avante! – a portuguesa gente.
Rédeas soltando, os esquadrões galopam,
E dão em cheio com furor insano,
Como torrentes que no vale se topam,
Ou como as ondas no revolto oceano.

Retine o ferro, a multidão se agita;
As achas d'armas, os broquéis lampejam;
Peões, ginetes, com medonha grita,
Num mar de sangue em turbilhão pelejam.
O sol já desce a mergulhar no oceano,
E inda referve a encarniçada lida;
Eis redobra d'esforço o lusitano,
E o estrangeiro leva de vencida.

Foge o rei castelhano espavorido;
Fogem os seus em debandada solta;
Persegue-os João primeiro, e destemido
A gozar do triunfo ao campo volta.
Já se erigem troféus, já resplandece
O céu da pátria co fulgor da glória;
Faltava o monumento que dissesse:
– Foi aqui! eis o campo da vitória!
*

E ei-lo aí que se levanta
Com majestosa grandeza,
Daquela gentil proeza
Sublime recordação:
Fi-lo aí aos céus erguido,
Como um colosso gigante
Apontando ao caminhante
O sítio da grande acção.

Altos pórticos, lavores
D'ostentosa arquitectura,
Coruchéus d'imensa altura
Roçando a fronte nos céus;
Dentro, a nobre majestade
Do santuário profundo,
Onde, extinta a voz do mundo,
Só lembra o passado, e Deus.

Sobre os góticos pilares
Brilham trémulos fulgores,
Que das vidraças de cores
Entorna a mística luz.
Tudo cala, mas, se o órgão
Por entre as naves ressoa,
Tudo se anima, e apregoa
O santo Verbo da cruz.

Então a mente se enleva
Nas torrentes da harmonia
Que da abóbada vazia
Retumbam pela multidão;
E, abrasada nos fulgores
Dos vivos, sagrados lumes,
Sobre as asas dos perfumes
Revoa à etérea mansão.

Se tudo cai em silêncio,
Cai em si mesma, e medita,
Recordando a data escrita
Nesses góticos umbrais.
Pensa então nos heroísmos,
E crenças de meia idade,
Combatendo a escuridade
Daqueles tempos feudais;

Pensa nos vultos heróicos
Dos antigos cavaleiros,
E em nossos feitos guerreiros
Pela pátria e pela cruz;
Pensa na grande vitória
Que nos fez independentes,
E que aos olhos dos presentes
Nesse moimento reluz;

Pensa num povo pequeno
Mas esforçado e guerreiro,
Triunfando do estrangeiro
À voz do rei popular;
Pensa no mestre valente;
E sua sombra gigante
Parece às vezes distante
Entre as colunas vagar.

E pensa também no artista,
Nesse arquitecto inspirado,
Que um poema sublimado
Ali traçou a cinzel;
Que cego da luz dos olhos
Acendeu a luz do engenho,
E consumou seu empenho,
Ao grande assunto fiel.

E Afonso Domingues surge
Nesse padrão sobranceiro
Ao lado de João primeiro,
Seu imortal fundador;
Reis ambos: um pelo berço,
Que lhe deu sua nobreza:
Outro, rei pela grandeza
Do seu génio criador.

Lá dormem! um rodeado
Dos brasões da sua glória,
Como depois da vitória,
Sob a tenda a descansar;
Outro à sombra desses tectos
Em campa singela e nua,
Como querendo a obra sua
Dalém da tumba guardar.
*

E lá dormem também outros que a morte
Juntou à sombra do lugar sagrado,
D'infantes e de reis alta corte,
Servindo de cortejo ao rei soldado.

Reunidos enfim no chão funéreo,
Fernando, Pedro, e Henrique, os três infantes;
Henrique, o sábio audaz que outro hemisfério
Primeiro abriu aos lusos navegantes.

Duarte e João segundo descansando
D'altas vitórias na mansão tranquila;
Afonso quinto cos lauréis sonhando
D'Alcácer, Tânger, e da forte Arzila.

E no sopro do vento que perpassa,
E lhes roça nas frias sepulturas,
Parecem murmurar em voz escassa,
E agitar suas ferozes armaduras.

E lá quando o luar pelas janelas
Lhes escoa nas lápides marmóreas,
Talvez erguidos se recostam nelas
A falar entre si de nossas glórias.

Dormi em paz, ó chefes do passado,
Heróico fundador, prole valente;
Dormi em paz no túmulo calado,
Recordando os lauréis da vossa gente.

Enchei em roda os penetrais divinos
De vossos gloriosos esplendores;
E se tendes poder sobre os destinos,
Defendei-os do tempo e seus furores.

Que as gerações passando reverentes
Possam, volvendo as páginas da história,
Largas eras saudar, curvando as frentes,
Esse padrão d'imorredoira glória!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Gregório de Matos (“Discreta e Formosíssima Maria” : Análise estilística do poema)

Gregório de Matos
    Gregório de Matos Guerra nasceu em 20 de dezembro de 1636 cidade de salvador. Por conta das dificuldades que a cidade vinha passando, Gregório de Matos foi obrigado a continuar seus estudos em Lisboa aos 14 anos. Dois anos depois ingressou na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1661 aos 25 anos no curso de Direito. O autor mais expressivo do barroco faleceu aos 59 anos de idade no Recife.

    Graças a linguagem maliciosa e ferina com que criticava pessoas e instituições da época (não dispensava palavras de baixo calão), recebeu o apelido de Boca de Inferno, tendo que se exilar-se por algum tempo em Angola, perseguido  pelo filho do governador Antônio da Câmara Coutinho o qual era vítima constante das sátiras. Suas Obras geralmente dividem-se em poesia lírico-amoroso, poesia religiosa e poesia satírica.

    Com exceção de Gregório de Matos, nenhum outro escritor se destacou no Barroco brasileiro. O padre Antônio Vieira, embora tenha escrito boa parte de sua obra no Brasil, pertence mais  à literatura portuguesa do que à nossa.

    Gregório de Matos constrói seus poemas baseados nas principais idéias barrocas. As principais características barrocas são: culto do contraste, consciência da transitoriedade da vida, gosto pela grandiosidade frases interrogativas, cultismo e conceptismo.

Agora nos detendo a análise do Poema “Discreta e formosíssima Maria”:

Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.
(Gregório de Matos)

    O poema está estruturado em soneto composto por 14 versos distribuídos em 4 estrofes , sendo os dois primeiros quartetos e os dois últimos são tercetos. As rimas estão distribuídas da seguinte forma 1º quarteto ABBA, 2º quarteto ABCA, 1º terceto DEF e o ultimo terceto DEF, é rico em metrificação.

    Neste soneto dedicado a sua esposa Maria percebemos o dualismo (característica do Barroco) entre a juventude e a velhice, observe o verso 3 da 1º estrofe verso que exprime a beleza da juventude, enquanto que no verso 1ao 3 da última estrofe o autor fala que a madura idade ou velhice leva a formosura da juventude. Observemos ainda o 2 verso da 2 quarteto na qual Gregório de Matos coloca Adônis, o deus grego da agricultura e vegetação para expressar e realçar a juventude de sua esposa. Com isso o autor reforça que enquanto possui juventude a mulher pode despertar paixões até nos deuses, mas quando chega a madura idade tudo se perde, tudo se torna em nada.

    O soneto também ressalta muito a questão da brevidade da juventude, que esta passa rapidamente e por isso deve ser aproveitada antes que se vá, pois o autor tem consciência que o tempo tudo consome tudo leva consigo, conduzindo inevitavelmente à morte, todo poema á marcado pela idéia da efemeridade da vida, mas tomaremos como base o 1º terceto para exemplificar a transitoriedade da vida.

“Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.”

    Observa que o autor utiliza os verbos no modo imperativo como forma de advertência, “aproveita a mocidade porque ela passa o tempo não espera e ainda deixa marcas profundas.”

     Vejamos um trecho de outro poema de Gregório de Matos no qual é latente a questão da transitoriedade da vida:

“Nasce o sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz, se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em continuas tristezas a alegria.”
   
É evidente o dualismo o contraste enfim traços característicos do barroco assim como no poema “ Discreta e formosíssima Maria”.

    Podemos incluir este soneto de Gregório de Matos na tendência conceptista e cultista do barroco. Ou seja, Gregório de Matos exagera no uso de raciocínio engenhosos fazendo um jogo intelectual de paradoxos e sutilezas lógicas, essa é a tendência conceptista, vejamos um exemplo deste artifício no soneto.

“Enquanto com gentil descortesia”

    Observe neste verso que Gregório de Matos utiliza o oxímoro fazendo uma combinação de palavras incoerentes com objetivo de promover a ambigüidade. Já no que concerne ao cultismo, ou seja, no exagero da dimensão sensorial o autor utiliza-se de vários tipos de figuras de linguagem tornando o texto mais estilístico.

    No 1º quarteto a partir dos 2 verso por exemplo temos um exemplo de assonância, a repetição de vogais no inicio de cada verso. No 2º quarteto a partir do 1º verso há oximoro o qual já foi citado anteriormente. Ainda no segundo quarteto verso dois temos o uso da personificação atribuição de características, sentimentos e atitudes a animais, vegetais ou seres inanimados, no caso do verso “O ar que fresco Adônis te namora”, Gregório de Matos personifica o ar na figura do deus grego da agricultura e vegetação, do mesmo modo que Adônis expressa também a juventude de Maria.

    Ainda no 1º quarteto temos o exemplo de sinestesia ( fusão dos sentimentos humanos numa só impressão) “Em tuas faces a rosa Aurora em teus olhos e boca, o sol e o dia”.

    No 1º terceto temos a metáfora(substituição do significado de uma palavra) “que o tempo trata a toda ligeireza e imprime em toda flor sua pisada...”

    O tempo cuida de que as coisas mudem repentinamente e deixa marcas com sua passagem (verso três do 2º terceto). O poeta ainda singulariza a flor comparando -a com Maria.

    As metáforas utilizadas no 1º terceto traz o ideal do “Carpe Diem” horaciano tão comum aos poetas barrocos “goza, goza da flor da mocidade”. Ainda neste terceto temos o uso da aliteração na repetição da consoante “t” tempo trata, toda. No último terceto temos três tipos de figuras de linguagem no 1º verso, por exemplo, temos o uso da apóstrofe, ou seja, exclamação que interrompe o fluxo poético ou narrativo, dirigida a uma pessoa, coisa real ou fictícia. “o não aguardes...” A metáfora mais uma vez é utilizada no 2º verso do ultimo terceto, o autor faz menção da juventude metaforizando com o vocábulo flor. E no último verso temos um exemplo de amplificação (o desdobramento de uma palavra ou de uma idéia, desenvolvendo todos os seus aspectos. As técnicas utilizadas para a amplificação são a enumeração e a gradação). No caso do poema temos o exemplo de gradação no ultimo verso do último terceto veja “Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada”. Perceba que os elementos estão organizados numa ordem decrescente que é a característica da gradação.

    Dessa forma Gregório de Matos constituiu o mais importante poeta brasileiro do Barroco e um dos exemplos mais expressivos do comportamento da época. Ele contrapõe assim a idéia de que o barroco não pode ser considerado arte, mas expressão de uma sociedade retrógada como afirmou Diogo Mairnadi no texto Santos Ridículos.

GREGÓRIO DE MATOS E O SUJEITO LÍRICO E INFLUÊNCIAS NA SUA OBRA.

    No soneto “À sua mulher antes de casar”o sujeito lírico se coloca como alguém consciente da efemeridade da vida, que tudo passa tudo se transforma em nada com o tempo.

    O eu-liríco apresentado no texto se vê diante de uma situação inevitável o fim da juventude o fim da beleza. Entretanto não demonstra tristeza nem melancolia diante de tal fato, muito pelo contrário o sujeito lírico ciente da condição humana, fragilidade e mortalidade, incita que a mulher a quem se dirige o poema aproveite os primeiros anos e não despreze a mocidade que é breve e efêmera. Para tanto o autor utiliza-se das figuras de linguagem, do dualismo barroco juventude-velhice, dos ideais conceptista e cultista.

    No que diz respeito à influência sofrida na composição de suas obras temos os escritores espanhóis D. Luiz Góngora o maior representante do cultismo e D. Francisco de Quevedo o mais representativo e influente autor do estilo conceptista, graças as influências desses autores espanhóis que Gregório de Matos se tornou o poeta barroco de maior destaque na literatura brasileira. Entretanto há autores como Emília Carrila e Sílvio Júlio que criticam as obras de Gregório, entre os mais contundentes críticos da obra de Gregório de Matos temos Silvio Júlio que teve a facilitar- lhe a tarefa a familiaridade na convivência com autores espanhóis e latinos americanos em geral, cujas literaturas pesquisaram e ensinou, busca eliminar, de saída, o argumento-muito freqüente entre os admiradores de Gregório de Matos segundo o qual a autoria controversa beneficia a imagem do poeta baiano.

    Sílvio Júlio apresenta “como claramente plagiado por Luís de Gôngora três sonetos deste último, dois dos quais teriam sido astuciosamente fundidos para disfarçar o processo de apropriação: aos quartetos do soneto “Ilustre e Hermosíssima”, Gregório teria acrescentado os tercetos do soneto gongórico” Mientras por competer com tu cabello”. Veja em seguida os dois quartetos do soneto de Gôngora “ Ilustre e Hermosíssima Maria”, verso, aliás, que o autor das soledades que de acordo com Silvio Júlio copio por completo da Ecloga III de Gracilaso de la veja”:

Ilustre e hermosíssima Maria
Mientras se dejan ver a cualquer hora
En tus mejellas la rosada aurora
Febo en tus ojos, y en tu frente el dia

Mientras con gentil descortesia
Mireve ele viento la hebra voladora
Que la Arabia en sus venas atesora
Y el rico tajo en sus arenas cria (...)

    Agora veja a transcrição dos tercetos do outro soneto “Mientras por competer com tu cabello com o qual Gregório realizou a fusão:

(...) Goza Cuello, cabelo, lábio y frente antes que lo que fué en tu donda oro, lírico, clave, cristal, luciente,
No solo em plata o viola troncada se vuelva, mas tu y ello juntamente
En tierra, en humo, en polvo, em sombra, em nada.

    Digamos, de passagem, que o último verso dos tercetos acima dos mais famosos de toda a literatura espanhola foi largamente definido e imitado nos séculos XVIII não só na Espanha como em Portugal e Brasil, Júlio afirma que Gregório de Matos, “após a aplicação das duas quadras do primeiro, tomou para os dois tercetos” do segundo soneto do que resultou este outro igualmente tocado pelo tema do “carpe diem” que já citamos anteriormente. Segundo Silvio Júlio poema de nossa análise é uma cópia dos poemas de Gongora.

    Quantos aos supostos plágios relativos a acusação é bem mais ampla e detalhada: Sílvio Júlio recenseou treze procedimentos imitativos na poesia de Gregório de Matos sobre os textos.Divulga, ainda, uma versão castelhana do famoso soneto “Pequei, senhor, mas não porque hei pecado”, tradicionalmente atribuído ao poeta baiano e encontrado em seus apógrafos, como sendo da autoria de Sá de Miranda, segundo informação colhida em Teófilo Braga, sem comprovação da veracidade . Vejamos o exemplo: A verdade é que Gregório de Matos não publicou em vida nenhuma edição de sua obra, o que deixa dúvidas sobre a autenticidade de muitos textos a ele atribuídos. De fato Gregório de Matos com sua poesia ora satírica, ora religiosa, ora amorosa deixou sua marca na literatura brasileira.

Referência Bibliográfica

Português, volume único: Livro do professor ( João Domingues Maia_ São Paulo, Editora Ática 2002).
Novas Palavras: Português, volume único livro do professor (Emília Amaral. Etal_ 2 edição_ São Paulo: FTD,2003).
Outros autores: Mauro Ferreira, Ricardo Leite, Severino Antônio.
Gregório de Matos “O Boca de Brasa, Gomes, João Carlos Teixeira- Petrópolis, 1985.

Fonte:
Carla Valéria de Souza Sales. Evanilda Jesus Pereira. (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia _ UESB. – Departamento de Ciências Humanas e Letras_ DCHL). Campus de Jequié, 25 de novembro de 2008.

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte V – Le Roi S'Amuse

D. Pedro tinha razão. Para o seu caráter independente, era afinal uma verdadeira humilhação aquela constante necessidade de recorrer aos serviços do Satanás. O que ele mais desejava, havia muito, era um amor que pudesse satisfazer o seu orgulho de homem. Aquilo rebaixava-o diante de si mesmo; parecia-lhe, ao receber um beijo, que não era o homem, forte e apaixonado, que o recebia, vencedor pela força e pela paixão, mas o príncipe, vencedor pelo nome e pelo prestígio da posição.

E esse amor, que ele sonhava no íntimo, essa esperada paixão desinteressada e nobre, apareceu-lhe (nem o podia imaginar o Satanás!) no mesmo dia em que Branca deixara que o seu coração se dependurasse cativo dos belos bigodes negros de Paulo de Andrade.

Quando a procissão passara, um ano antes, pelo lugar em que estavam Branca e d. Emerenciana, naquela tarde radiante em que a moça pela primeira vez sentira o coração bater sob o domínio de um olhar de homem, o príncipe, que empunhava uma das varas do pálio, viu de relance a filha do seu alter ego.

Dessa tarde em diante, houve para ele a ansiedade indizível de rever e de possuir aquela criatura loura, cujos olhos refletiam a mais pura inocência e toda a ingenuidade de uma criança... Ah! o príncipe já andava farto de mastigar frutos maduros: o que ele agora queria, era o sabor excitante dos pêssegos verdes, ainda não cobertos de penugem.

Viu-a de novo na festa de S. Sebastião, viu-a nos Te-Deuns solenes dos dias de gala, viu-a a passeio, viu-a no largo do Paço, onde naquele tempo as famílias iam tomar fresco, pelas tardes abrasadas do verão. E privado até então de uma ocasião própria para lhe falar, o príncipe ardia em impaciência e em febre: entre duas conquistas fáceis das que lhe arranjava o Satanás, aparecia-lhe sempre a loura imagem de Branca, dominando tudo, apagando tudo com o seu brilho e a sua pureza de estrela inacessível.

Na ocasião em que, por basófia, d. Pedro atirou ao Satanás aquela frase orgulhosa em que vinha explodir, despeitada, a sua altivez, estavam as cousas nesse pé...

O príncipe, sem que uma só palavra pudesse trair as suas ocultas intenções, não falou mais, ao Satanás na aventura em que se tinha empenhado.

Não que esse escrúpulo natural de cavalheiro o retivesse, não querendo magoar na parte mais sensível da alma o seu fiel servidor; ele não sabia que Branca era filha de Pallingrini. O que lhe retinha a indiscrição, era o desejo de poder um dia, mostrando-lhe e provando-lhe que os seus serviços não eram indispensáveis, dizer-lhe:

- Vês? Possuo esta, que é melhor do que todas as outras; e não foste tu que ma deste. Não me foi dada pela tua dedicação, nem pelo meu nome, nem pelo meu prestígio. Amou-me, porque me achou belo, porque me achou forte e valente, porque satisfiz o seu ideal, porque encontrou em mim o homem que lhe devia rasgar diante dos olhos o horizonte ilimitado da vida e do amor! Já vês que os teus serviços não são indispensáveis...

E redobrou de vigilância e de esforços. Afinal, conseguiu saber onde morava a sua desconhecida: seguiu-a de uma vez que a encontrou, embuçado, à saída de uma novena do Parto.

E começou todas as noites a rondar a casa da rua do Conde, na esperança de ver sair alguém cuja conivência pudesse comprar a peso de ouro, na esperança de que um acaso providencial viesse inesperadamente em seu auxílio.

Uma noite, acreditou ter conseguido O que queria. Estava à espreita, num terreno que havia em frente à casa, e onde se estavam fazendo obras, quando viu um embuçado chegar, olhar demoradamente a varanda verde, por cujas janelas passava a luz do interior, bater três vezes com os copos da espada e entrar, depois de longamente ter escrutado todo o arredor com um olhar cuidadoso.

Que poderia dizer aquilo? Um homem...

Mas não esperou muito. Viu o homem sair pouco depois, com as mesmas precauções com que entrara. Deixou-o seguir um pouco, e acompanhou-o depois, até que o viu entrar na tasca do Trancoso. Foi aí que se convenceu de que o homem que gozava a felicidade, até então inacessível para ele, de entrar naquela casa, que se lhe afigurava uma fortaleza inespugnável, era o Satanás.

Procurou a princípio descobrir que relações podia haver entre ele e a sua desconhecida. Mas, desistiu:

- Se é amante dela, melhor! Mais completa será a lição.

Empregou pessoas dedicadas para auxiliá-lo a espionar a casa. E ao cabo de alguns dias soube que a menina chamava-se Branca e vivia em companhia de uma velha espanhola. A obra de sedução prosseguiu. D. Emerenciana, a todas as ofertas de dinheiro, opôs uma resistência inabalável; só obteve como resultado excitar a impaciência e o desejo do príncipe, que se resolveu a empregar os meios violentos.

Organizou-se o plano de ataque. Uma noite, o príncipe escondeu-se nas obras que se faziam na rua do Conde, com dous homens dispostos a tudo. Todos armados, todos cautelosamente embrulhados em compridos capotes.

Das dobras do capote de um dos homens que acompanhavam o príncipe o mais alto e mais magro, o que parecia um grande ponto negro de admiração - via-se emergir uma durindana formidável. Era d. Bias. O momento não se fez esperar; por volta da meia noite viram chegar à casa o vulto do Satanás.

- Por São Tiago de Compostela! - ganiu d. Bias - temos mouro, senhor, temos mouro! Vou a ele?

O príncipe impôs-lhe silêncio. Como de costume, a demora do Satanás foi curta. Pouco depois saiu e desapareceu no alto da rua, para o lado da rua do Piolho. Os três homens saíram então do esconderijo, e d. Pedro bateu à porta as mesmas três pancadas do Satanás.

A porta abriu-se. Naturalmente d. Emerenciana pensara que era o Satanás que voltava a fazer-lhe qualquer recomendação, de que se esquecera. Mas, em menos de um minuto, agarrada de surpresa mal teve tempo de dar um grito, a velha viu-se solidamente amarrada e amordaçada, e entregue à guarda de d. Bias. O outro homem ficou de guarda à porta, e o príncipe subiu, levando o lampião que d. Emerenciana trouxera.

D. Bias sentou-se filosoficamente a um degrau, pousou a durindana nos joelhos e sacou da profundidade de uma das algibeiras do gibão uma naca de presunto.

- Sinto muito, sinto muito, respeitável dama, não lhe poder oferecer um pouco desta parca refeição. Desculpe...

E continuou esmoendo o presunto com um grande barulho de queixos, que soava na treva da escada como uma tempestade.

Mas, de cima, começou a chegar um barulho de passos e de vozes. Ah! bem que a boa Emerenciana distinguia a voz aflita de Branca. E desesperava-se a velha espanhola, sem poder acudir à sua querida filha, ali amarrada, diante daquele fantasma que comia. Por fim, ouviu-se um grito: e nenhum outro rumor chegou de cima.

Mas o homem que estava à porta, bradou:

- Quem vem lá?

E d. Bias engasgou-se com um pedaço de presunto, compreendendo que o companheiro batia-se lá fora com alguém, ouviu tinir de ferros, ouviu passos de quem fugia, viu a porta abrir-se e um homem entrar, tropeçando no corpo da velha.

Era Paulo de Andrade, que ouvira o grito e a quem a presença do homem armado à porta causara suspeitas. Ao esbarrar no corpo, abaixou-se e reconheceu-o.

D. Bias esgueirou-se como uma sombra pela parede, saltou à rua, disparou, tropeçou na espada, caiu, levantou-se, e foi cair extenuado à porta do Trancoso, de onde o Satanás vinha saindo.

Paulo de Andrade, preocupado em desamarrar a velha, nem dera por ele. Subiu a escada a quatro e quatro, de espada em punho, viu deserta a sala da frente, entrou como um cego no quarto de Branca.

Todo o quarto estava em revolução, cadeiras caídas, roto o cortinado do leito, onde Branca jazia estendida, sem dar acordo de si. O príncipe, vendo entrar o capitão, teve apenas tempo de apanhar a espada e pôr-se em guarda. Paulo arremeteu contra ele:

- Miserável!

Mas estacou de repente, e veio recuando até a parede, com um grande espanto na fisionomia alterada... Reconhecera o príncipe.

Lia-se então na face do moço capitão a luta que dentro dele se travava. Por duas vezes, pareceu atirar-se contra o seu rival. Mas d. Pedro esperava-o, sereno, com o olhar fito no dele. E Paulo, deixando cair a espada, cravou no peito o punhal, indo bater com a fronte na borda do leito, onde Branca continuava sem sentidos.

Quando d. Bias, à porta do Trancoso, conseguiu recuperar o uso da fala, começou a contar o caso ao Satanás, preparando-se para mentir à vontade.

- Ai! imagina, ó Satanás! eu amava, ele amava, elas nos amavam. Tudo pronto já, quando de repente vemos a casa invadida por duzentos homens armados... Duzentos? espera... não! não eram duzentos, mas eram cem. Caem sobre nós. Bati-me, como sabes que me bato sempre! mas...

Mas, onde isso? onde isso?

- Na casa, homem...

- Em que casa?

- Na casa da rua do Conde; ora ouve... Mas o Satanás não quis ouvir mais nada.

Aquele nome de rua do Conde encheu-o de um pressentimento terrível. D. Bias nada dissera mas o escultor ouvia uma voz secreta a gritar-lhe que era a filha quem corria perigo.

Não ouviu mais e correu, deixando em meio da narração o bravo fidalgo de Espanha, que entrou para a taverna, a afogar no seio de um pichel a sua sede de sangue.

O Satanás encontrou a porta aberta. Ah! era verdade! era verdade! Um rugido surdo lhe saiu da garganta, voou pela escada acima, louco de raiva e de terror. E parou à porta, sem movimento e sem voz, diante daquele quadro terrível.

Branca desmaiada ainda. Paulo, estendido no chão, sobre uma poça de sangue, e a velha rezando, ajoelhada diante do oratório.

O Satanás sentiu que a razão lhe ia fugir. Mas compreendeu. Sim! a sua filha fora desonrada por aquele miserável que ali estava estendido. Desonrada! desonrada a sua vida, manchado o seu único amor, calcada aos pés toda a sua felicidade!

Uma nuvem de sangue lhe cresceu diante dos olhos. Ah! era a velha a culpada. E, louco, trôpego, alucinado, embebeu a sua espada até aos copos entre as duas espáduas da espanhola.

O sangue jorrou de repente e borrifou de gotas vermelhas o manto de Nossa Senhora.

Nesse momento, uma gargalhada longa, sinistra, angustiosa, repercutiu no quarto. Branca assistira ao assassinato.

E de pé, cercada pelo véu de ouro dos cabelos, torcia as mãos, e ria, e ria, e ria. Enlouquecera.
–––––
continua…

Joyce Cavalcante (Lançamento de "A Literatura das Mulheres da Floresta")

Alexandra Magalhães Zeiner
Ana Cristina Costa Siqueira
Ana Heloisa Rodrigues Maux
Angela Ramalho
Beatriz Alcântara
Betty Silberstein
Camila Mossi de Quadros
Cássia Vicente
Célia Lamounier de Araújo
Christina Hernandes
Claudia Carvalho
Clevane Pessoa de Araújo Lopes
Cristina Ramos
Cybele Valente Pontes
Dalva Agne Lynch
Denise Parma
Diva Pavesi
Dora Dimolitsas
Dulce Auriemo
Dyandreia Valverde Portugal
Eliana Wissmann Alyanak
Eliane Accioly
Eliane Rocha
Fatima Diógenes
Flávia Assaife
Gilma Limongi Batista
Gisela Morais
Graça Neves
Graça Roriz Fonteles
Grecianny Carvalho Cordeiro
Hebe C. Boa-Viagem A. Costa
Helena Arruda
Isa Magalhães
J. T. Lourens
Jacilene Brataas
Jacqueline Aisenman
Janete Santos
Jô Mendonça Alcoforad
Josane Mary Barcelos Amorim
Joyce Cavalccante
Kacianni de Sousa Ferreira
Karin Massaro
Kátia Bobbio
Kaz Martinelli
Leda Edna de Souza Aragão
Lêda Maria Feitosa Souto
Lina Vianna
Lúcia Amélia Brüllhardt
Lucy Nakamura
M. J. Nóbrega
Mara de Freitas Herrmann
Mara Gabrilli
Márcia Meira Basto
Maria (Nilza) de Campos Lepre
Maria Lúcia Pinheiro Sampaio
Maria Neuma Pereira
Mariana Brasil
Marilu F. Queiroz
Marluce Alves Ferreira Portugaels
Miranda May
Mirian Menezes de Oliveira
Mônicka Christi
Neide Galli
Neide Maia
Neta Mello
Norália de Mello Castro
Odyla Paiva
Onã Silva
Renata Normanha
Rita de Cássia
Rosa Peres
Rosemari Boccardo
Rosilane do Carmo Rocha
Rosy Feros
Rozelene Furtado de Lima
Sandra Mara Bettonte
Sandra Mello
Simone Athayde
Telma Brilhante
Terezinha Guimarães
Thereza Kolbe
Val Beauchamp
Valdice Neves Pólvora
Vania de Castro Moreira
Vânia Ribeiro de Andrade
Vera Lucia Fávero Margutti
Vera Márcia Milanesi
Verônica Maria Cavalcanti-Esaki
Waldete Di Alves
Walnélia Corrêa Pederneiras
Wilma Lima
Yara Regina Franco


Fonte:
REBRA

domingo, 3 de março de 2013

Jacinta Passos (Caldeirão Poético da Bahia)

CANÇÃO DA ALEGRIA

 Urupemba
 urupemba
 mandioca aipim!
 peneirar
 peneirou
 que restou no fim?

 Peneira massa peneira,
 peneira peneiradinha,
 (Ai! vida tão peneirada)
 peneira nossa farinha.

 Olhe o rombo
 olhe o rombo
 olhe o rombo arrombou!
 olhe o cisco
 olhe o cisco
 urupemba furou!

 Eh! Sai espantalho
 da ponta do galho!

 Escorra! Escorra!
 Tirai essa bôrra!

 Urupemba
 urupemba
 mandioca aipim”
 peneirar
 peneirou
 que restou no fim?

 Farinha fininha
 peneiradinha!

 Ai! vida, que vida
 nuinha! Nuinha!

 ESTRELA DO ORIENTE

           (para Bem Ami)

I
Levantai-vos, párias de todo o mundo!
 Não vedes? Ela vem vindo, a Estrela do Oriente,
 alta, bela, imponente, os pés plantados no chão,
 traz o fogo no olhar e uma foice na mão.

 II
 Canta, Jacinta, teu hino,
 louva a Estrela do Oriente,
 Mariana, Guiomar,
 venham, venham me ajudar.

 Não sei a cor de seus cabelos,
 não posso saber,
 não as linhas do seu corpo,
 não posso saber.

 Não posso vê-la à distância
 como vejo o meu vizinho,
 serei o seu sexo ou seu dedo mindinho?

 Mariana! Guiomar!
 Só na voz da própria Estrela,
 podemos cantar.

METAMORFOSE

    (a Dias, João, Divaldo, Miranda, Luiz Rogério, Almir Matos, Osvaldo Pereira)

Fui moleque,
 jornaleiro,
 nunca tive opinião,
 ajudante de pedreiro,
 fui chofer de caminhão,
 trabalhei na Plataforma,
 operário de sabão,
 já morei
 oi!
 já morei no Taboão.

 Carneirinho! Carneirão!
 Olha pro céu! Olha pro chão!

 Céu é Barra, é Avenida,
 outra vida!
 nunca a gente foi lá não.

Nem eu sei como foi isso,
 foi feitiço,
 arte do Cão,
 mas um dia fiquei rico
 que nem o rei Salomão.

 Chave do mundo,
 tenho na mão.
 Desceu o céu!
 Subiu o chão!

 Minha gente venha ver
 coisa que nunca se viu,
 um mulato virou branco,
 subiu! Subiu!
 A formiga criou asas,
 o pato passou a ganso,
 lagarta virou besouro,
 de repente virei tudo,
 virei até um rei mouro,
 virei sábio, virei gentleman,
 meu cabelo virou louro,
 virei genro, industrial,
 tabu, ministro, escritor,
 quase viro ditador. 

 Agora cheguei em cima,
 agora vi que eu sou dois.

 Quem sois?

 Minhas senhoras:
 Meus senhores:

 O meu drama começou.

 Serei moleque e rei mouro,
 serei dentro e serei fora,
 serei ontem e serei hoje,
 serei noite e luz da aurora?
 Quem sois?
 Serei eu e serei tu,
 serei Sancho e D. Quixote,
 serei Deus e Belzebu?
 Não posso viver assim!
 Serei Pierrot e Arlequim,
 serei anjo e homem carnal,
 serei o ser e o não-ser,
 serei o bem e o mal?
 Serei foice e serei sigma?
 Enigma!
 Que serei eu afinal?
 Ai de mim!
 Serei o princípio e o fim?

DIÁLOGO NA SOMBRA

— Que dissestes,  meu bem?

Esse gosto,
 Donde será que ele vem?

 Corpo mortal.
 Águas marinhas.

 Virá da morte ou do sal?
 Esses dois que moram no fundo e no fim.

 — De quem falas amor, do mar ou de mim?
                             
 CANÇÃO DA LIBERDADE

Eu só tenho a vida minha.
 Eu sou pobre, pobrezinha,
 tão pobre como nasci,
 não tenho nada no mundo,
 tudo o que tive, perdi.
 Que vontade de cantar:
 a vida vale por si.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

 Eu sou planta sem raiz
 que o vento arrancou do chão,
 já não quero o que já quis,
 livre, livre o coração,
 vou partir para outras terras,
 nada mais eu quero ter,
 só o gosto de viver.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

 Sem amor e sem saúde,
 sem casa, nenhum limite,
 sem tradição, sem dinheiro,
 sou livre como a andorinha,
 sua pátria é o mundo inteiro,
 pelos céus cantando voa,
 cantando que a vida é boa.

           Nada eu tenho neste mundo,
           sozinha!
           Eu só tenho a vida minha.

CANÇÃO DO AMOR LIVRE

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.

CANTIGA DAS MÃES
(Para minha mãe)

"Fruto quando amadurece
cai. das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou,
Não foi a morte, não foi,
Oi!.
Foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
multiplicaram por cinco
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
Oi!
foi a vida que roubou.

 Foram viver seus destinos,
 sempre, sempre foi assim.
 Filhos juntinho de mim,
 berço, riso, coisas puras,
 briga, estudos, travessuras,
 tudo isso já passou.

Não foi a morte, não foi,
 oi!
 foi a vida que roubou.

O INIMIGO

A Coluna descansou
da marcha, na noite fria.

Ficaram olhos acesos
e a fogueira, de vigia.

 Su su su

 menino mandu
dorme na lagoa
sapo-cururu

Soldados dormem quietos
Debaixo deste telheiro

em cima pia a coruja
com seu piado agoureiro.

Su su su
menino mandu

Soldados dormem quietos
no bivaque de improviso

até as armas descansam
que este descanso é preciso.

Dorme na lagoa
sapo-cururu

Soldados dormem quietos
na barraca e na varanda,

eis de repente o inimigo
- Depressa, levanta e anda!

Depressa, são feras,
depressa ou quiseras
nas mãos do inimigo
cair, que o perigo
de perto ameaça
de morte ou mordaça
cadeia ou degredo.

 Galopa sem medo!

Legalista do Inferno! .
donde o Governo -
tais feras tirou?

Ah! raiva que eu sou.

Depressa e a trote
esporas, chicote,
as crinas revoltas,
de rédeas bem soltas
e bridas também
(Que medo não tem!)
depressa e a trote
mão no cabeçote
o pé na estribeira
encilha e carreira!
esquipa montado
depressa, soldado
que medo não tem.

Legalista do inferno
não vale um vintém!

A Coluna descansou
da marcha na noite fria.

Picaram olhos acesos.
E de repente partia.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/bahia/jacinta_passos.html

Jacinta Passos (1914-1973)

Escritora nascida em Cruz das Almas, Bahia, em 1914, Jacinta Passos foi autora de quatro livros de poemas — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958) —, elogiados por críticos do porte de Antonio Candido, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Roger Bastide, entre outros. Seu livro mais importante, Canção da partida, foi ilustrado pelo artista Lasar Segall.

Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto.

Foi casada com o escritor e jornalista James Amado, com quem teve uma filha, Janaína. A partir de 1951, sofreu crises nervosas periódicas, com delírios persecutórios, tendo recebido o diagnóstico de esquizofrenia paranóide, doença considerada progressiva e incurável. Apesar de internada em diversos sanatórios, jamais deixou de escrever, tanto poesia quanto prosa. Sua obra poética, fundada nas tradições populares da Bahia, contém fortes componentes líricos e apelo ao público contemporâneo, mas permanece pouco conhecida, pois seus livros, publicados por editoras de pequeno porte, tiveram tiragens muito reduzidas, sendo que apenas um deles, Canção da partida, foi reeditado, isso em 1990. 

Fonte:
http://www.jacintapassos.com.br/

Caldeirão Poético 2

Eny Santos Júdice
(S. Fidélis/ RJ)


" CARTA PARA O AMOR AUSENTE "
Nesta manhã nevoenta de fumaça
estou morrendo de saudades tuas;
há na minha alma convulsões de luas,
há no meu peito a angústia que amordaça.

Amor, estou sorvendo a amarga taça,
a taça amarga das verdades cruas;
e busco em vão no retinir das ruas,
sufocar este amor que me desgraça.

Inútil! . . . E a obsessão dos teus abraços?!
Sinto em mim ainda as mãos do teu carinho,
dedilharem as cordas dos meus braços,

e a tua ausência, e o teu silêncio enorme,
vivem cantando para mim baixinho,
ninando esta saudade que não dorme!

Enoch Lins
(dados biográficos desconhecidos)

" VOCÊ "
Você é para mim a síntese da vida!
O espírito que eleva; a matéria que prende,
o gozo que nos põe em perenal subida
e as nossas ilusões pelo infinito estende.

É o tédio que caminha á trágica descida
e o orgulho do prazer impiedoso que ofende;
você é para mim essa lição comprida
que a gente, sem saber, rapidamente aprende.

Só você me faz bem e é todo o meu encanto!
Só você, quem de longe o meu pesar ouvindo
vem depressa e num beijo aniquila o meu pranto.

Só você quem me espera os minutos contando...
Só você, quando eu chego, abre a porta sorrindo,
só você quando eu vou... fecha a porta chorando!
==============

Esmarágdo De Freitas
(Floriano/PI)


" NEVER MORE ! "

Em que mundo encantado, em que dor, em que laço,
paira o teu sonho agora, alma que eu tanto quis?
Em que mundo encantado, em que ambiente feliz,
o teu corpo floresce, esquivo ao meu abraço?

Vivas para outro amor embora, como Tasso
ou Dante, hei de seguir-te, Eleonora ou Beatriz!
Na minh'alma este amor tem profunda raiz:
procuro desfazê-lo embalde, e não desfaço...

Em que dia essa carne opulenta e sadia
sentirá minha febre? Em que dia? Em que dia
hei de te possuir, minha estátua de Sais?

Torturo-me a cismar, na ânsia do meu tormento...
Grasna em meu coração atroz pressentimento,
ave negra de Poe: - "Nunca mais! Nunca mais!"
==================

Euclides Dias
(Belém/PA)


" VIVER DORMINDO "

Beijava-te. . . e beijando-te na face
oh! que doce prazer então sentia...
Se, assim, feliz, eu sempre assim sonhasse...
Se, assim, sonhando me passasse o dia...

Apertava-te ao peito em doce enlace,
com suave e terníssima alegria...
Se assim, sonhando, eu sempre te abraçasse
oh! que noites felizes eu teria!

E se eu te visse, assim, sempre a meu lado,
pálpebras roxas, colo perfumado,
lânguida, terna, e boa, e feiticeira,

eu quisera sonhar sempre, dormindo,
e, se sempre, a sonhar, te visse rindo,
passar dormindo a minha vida inteira.
==========

Ezequias da Rocha
Major Izidoro/AL

" O ELOGIO DE NÓS TRÊS "


Eu sou tu. Tu és eu. Nós dois, portanto,
somos, seremos uma só pessoa,
de forma que, quando algo te magoa
meu coração magoa-se outro tanto.

Se está cheia de um céu tua alma boa,
que ri se rio, ou chora com o meu pranto,
a vida é para mim um doce encanto,'
- um paraíso o peito me povoa.

E todas essas coisas que sentimos,
nosso Fernando, em quem nos confundimos,
sente-as , mais do que nós, logo depois;

é que o nosso bom filho, sem defeito,
perfeito como tu, como eu, perfeito,
é a soma certa, exata, de nós dois.

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Raquel Ordones (As Vezes um Abraço é Tudo)


Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 16. Rufina (4)

Se eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bonde, enquanto um céu muito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e um grande desejo de amor e ventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro desconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado com infinito carinho daquele homem tão corajoso e tão tímido, e teria refletido que por força ele devia ter um grande coração e uma alma adolescente.

Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os homens casados não são assim tão solícitos, ou pelo menos tão tímidos com as damas. Pensaria que ele devia viver só e melancólico, habitando uma pensão inóspita, ou uma casa de família onde ansiasse rodeado de intimidades e ternuras que não eram para ele. E tanta coisa mais!

Entretanto, quem sabe lá o que Rufina àquela hora pensaria! Pensaria nalgum namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvez estivesse com ele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba e me desalenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem na minha, ossuda e pilosa! Aquele braço torneado encaixaria tão deliciosamente ao redor do meu pescoço! E eu me sentiria tão ufano e pacificado, como um gato no borralho, ao calor do seu corpo e do seu coração! Poderíamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente um pano de mesa, uma almofada, ou lá o que lhe desse, e eu, quieto, a esta secretária, bordando as notas felizes de um memorial de venturas brandas, a interrompê-lo de quando em quando para dar um ósculo à minha gata.

Mas aquela pestinha é lá capaz de sonhar por esta mesma partitura!

Fonte:
Domínio Público

Soares de Passos (Tristeza)

Extingue-se o ano, são findos os dias
Que os vales encheram de próvida luz;
O inverno c'roado de névoas sombrias,
Seus pálidos gelos à terra conduz.

O rio em torrentes inunda as campinas,
As veigas perderam seu flóreo matiz,
Pesada tristeza reveste as colinas,
E as selvas que há pouco sorriam gentis.

Em tudo a meus olhos avulta uma imagem
De triste abandono, de mística dor:
Apraz-me este luto que veste a paisagem,
Apraz-me esta cena d'extinto verdor.

Como estas campinas outrora florentes,
Meus dias formosos floriram também;
Como elas agora, meus dias cadentes,
Despidos d'encantos, já viço não tem.

Quão rico de gozos o tempo corria!
Quão triste o presente, quão pobre ficou!
Só resta a saudade, qual vaga harmonia
Que uma harpa nocturna de longe soltou.

Mas essa que vale, perdida a esperança?
Que vale um passado que já não é meu?
à flor desbotada que importa a lembrança
Da aurora suave que aroma lhe deu?

Um dia outra quadra mais bela e mais pura
Virá de boninas ornar os vergéis;
Mas vós, ó meus tempos d'amor e ventura
Sois findos pra sempre, jamais voltarei.

Sondando o futuro, minha alma conhece
Que os ermos do mundo já rosas não tem:
Já tudo sucumbe, já tudo fenece,
O sol da ventura, e a esp'rança também.

Té mesmo em meu peito vacila agitada
A chama da vida perdendo o calor;
Meus dias declinam qual luz desmaiada
Que doura as montanhas com tíbio fulgor.

Se tudo, ah! se tudo findou no passado,
Se as trevas se estendem nos céus do porvir,
Que esperas, minha alma? do livro do fado
São negras as folhas: só resta partir.

Ao longe, quem sabe? sulcando as alturas,
Jardins mais formosos verás na amplidão,
De flores eternas, d'eternas verduras
Que os gelos da terra jamais secarão.

Temendo os rigores do outono vizinho,
As aves adejam buscando outros céus:
Tu és, ó minha alma, qual ave sem ninho, –
Procura outros climas, rasgando os teus véus!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Machado de Assis (Alberto de Oliveira: Meridionais)

QUANDO EM 1879, na Revista Brasileira, tratei da nova geração de poetas, falei naturalmente do Sr. Alberto de Oliveira. Vinha de ler o seu primeiro livro, Canções Românticas, de lhe dizer que havia ali inspiração e forma, embora acanhadas pela ação de influências exteriores. Achava-lhe no estilo coisa flutuante e indecisa; e quanto à matéria dos versos, como o poeta dissesse a outros, que também sabia folhear a lenda dos gigantes, dei-lhe este conselho: "Que lhe importa o guerreiro que lá vai à Palestina? Deixe-se fixar no castelo com a filha dele... Não é diminuir-se o poeta; é ser o que lhe pede a natureza, Homero ou Mosco". Concluía dizendo-lhe que se afirmasse.

Não trago essa reminiscência crítica (e deixo de transcrever as expressões de merecido louvor), senão para explicar, em primeiro lugar, a escolha que o poeta fez da minha pessoa para abrir este outro livro; e, em segundo lugar, para dizer que a exortação final da minha crítica tem aqui uma brilhante resposta, e que o conselho não foi desprezado, porque o poeta deixou-se estar efetivamente no castelo, não com a filha, mas com as filhas do castelão, o que é ainda mais do que eu lhe pedia naquele tempo. Que há de ele fazer no castelo, senão amar as castelãs?

Ama-as, contempla-as, sai a caçar com elas, fita bem os olhos de uma para ver o que há dentro dos olhos azuis, vai com a outra contar as estrelas do céu, ou então pega do leque de uma terceira para descrevê-lo minuciosamente. Esse Leque, que é uma das páginas características do livro, chega a coincidir com o meu conselho de 1879, como se o poeta, abrindo mão dos heróis, quisesse dar às reminiscências épicas uma transcrição moderna e de camarim: esse Leque é uma redução do escudo de Aquiles. Homero, pela mão de Vulcano, pôs naquele escudo uma profusão de coisas: a terra, o céu, o mar, o sol, a lua e as estrelas, cidades e bodas, pórticos e debates, exércitos e rebanhos. O nosso poeta aplicou o mesmo processo a um simples leque de senhora, com tanta opulência de imaginação no estilo, e tão grego no próprio assunto dos quadros pintados, que fez daquilo uma parelha do broquel homérico. Mas não é isso que me dá o característico da página; é o resumo que ali acho, não de todo, mas de quase todo o poeta; imaginoso, vibrante, musical, despreocupado dos problemas da alma humana, fino cultor das formas belas, amando porventura as lágrimas, contanto que elas caiam de uns olhos bonitos.

Conclua o leitor, e concluirá bem, que a emoção deste poeta está sempre sujeita ao influxo das graças externas. Não achará aqui o desespero, nem o fastio, nem a ironia do século. Se há alguma gota amarga no fundo da taça de ouro em que ele bebe a poesia, é a saudade do passado ou do futuro, alguma coisa remota no tempo ou no espaço, que não seja a vulgaridade presente. Daí essa volta freqüente das reminiscências helênicas ou medievais, os belos sonetos em que nos conta o nascimento de Vênus, e tantos outros quadros antigos, ou alusões espalhadas por versos e estrofes. Daí também uma feição peculiar do poeta, o amor da natureza. Não quero fazer extratos, porque o leitor vai ler o livro inteiro; mas o soneto "Magia Selvagem" lhe dará uma expressão enérgica dessa paixão dos espetáculos naturais, ante os quais o poeta exclama:

Tudo, ajoelhado e trêmulo, me abisma
Cego de assombro e extático de gozo.

Cegueira e êxtase: o limite da adoração. Assim também o "Conselho", página em que ele receita para uma dor moral o contato da floresta; e ainda mais a anterior, "Falando ao Sol", em que caracteriza a intensidade de um grande pesar, que então o oprime, afirmando que para esse, nem mesmo a natureza — "a grande natureza" — pode servir de remédio.

A maior parte das composições são quadros feitos sem outra intenção mais do que fixar um momento ou um aspecto. Geralmente são curtos, em grande parte sonetos, forma que os modernos restauraram, e luzidamente cultivam, pode ser até que com excessiva assiduidade. Os versos do nosso poeta são trabalhados com perfeição. Os defeitos, que os há, não são obra do descuido; ele pertence a uma geração que não peca por esse lado.

Nascem, — ora de um momento não propício, — ora do requinte mesmo do lavor; coisa esta que já um velho poeta da nossa língua denunciava, e não era o primeiro, com esta comparação: " o muito mimo empece a planta". Mas, em todo caso, se isto é culpa, felix culpa; a troco de algumas partes laboriosas, acabadas demais, ficam as que o foram a ponto, e fica principalmente o costume, o respeito da arte, o culto do estilo.

"Manhã de Caça", "A Volta da Galera", "Contraste", "Em Caminho" , "A Janela de Julieta", e não cito mais para não parecer que excluo as restantes, darão ao leitor essa feição do nosso poeta, o amor voluptuoso da forma. Não lhe pergunteis, por exemplo, na "Manhã de Caça", onde é que estão as aves que ele matou. O poeta saiu principalmente à caça de belos versos, e trouxe-os, argentinos e sonoros, um troféu de sonetos. Assim também noutras partes. Nada obsta que os versos bonitos tragam felizes pensamentos, como pintam quadros graciosos. Uns e outros aí estão. Se alguma vez, e rara, a ação descrita parecer que desmente da estrita verdade, ou não trouxer toda a nitidez precisa, podeis descontar essa lacuna na impressão geral do livro, que ainda vos fica muito: — fica-vos um largo saldo de artista e de poeta, — poeta e artista dos melhores da atual geração.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia XII)

Primeiro Fausto.
 
Segundo Tema
O Horror de Conhecer
I

O inexplicável horror
De saber que esta vida é verdadeira,
Que é uma coisa real, que é [como um] ser
Em todo o seu mistério
Realmente real.
II
Do horror do mistério são, talvez guerreiros
Símbolos esses horrendos
Gorgona e Demogorgon fabulosos,
Fatais um pelo aspecto o outro no nome.
Neles se vê a ávida ansiedade
De ter, em concepção que torturasse
De terror, isso que de vago e estranho,
Atravessando como um arrepio
Do pensamento a solidão, integra
Em luz parcial [...] a negra lucidez
Do mistério supremo. É conhecer,
O erguer desses ídolos de horror,
A existência daquilo que, pensando
A fundo, redemoinha o pensamento
Por loucos vãos [recantos], delírios da loucura,
Despenhadeiros [íngremes], confusos
To.rturamentos, e o que mais de angústia
E pavor não se exprime, sem que falhe
Na própria concepção o conceber.
III
Por que pois buscar
Sistemas vãos de vãs filosofias,
Religiões, seitas, [voz de pensadores],
Se o erro é condição da nossa vida,
A única certeza da existência?
Assim cheguei a isto: tudo é erro,
Da verdade há apenas uma idéia
A qual não corresponde realidade.
Crer é morrer; pensar é duvidar;
A crença é o sono e o sonho do intelecto
Cansado, exausto, que a sonhar obtém
Efeitos lúcidos do engano fácil
Que antepôs a si mesmo, mais sentido,
Mais [visto] que o usual do seu pensar.
A fé é isto: o pensamento
A querer enganar-se-eternamente
Fraco no engano, [e assim] no desengano;
Quer na ilusão, quer na desilusão.
IV
Quanto mais fundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar...
V
Só a inocência e a ignorância são
Felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber? Ser, como a pedra,
Um lugar, nada mais.
VI
Quando às vezes eu penso em meu futuro
Abre-se de repente [um largo] abismo
Perante o qual me cambaleia o ser.
E ponho abre os olhos as mãos da alma
Para esconder aquilo que não vejo.
— Oh, lúgubres gracejos de expressão
VII
Às vezes passam
Em mim relâmpagos de pensamento
intuitivo e aprofundador,
Que angustiadamente me revelam
Momentos dum mistério que apavora;
Duvidosos, deslembrados, confrangem-me
De terror, que entontece o pensamento
E vagamente passa, e o meu ser volve
À escuridão e ao menor horror.
VIII
A loucura por que é
Mais que sã a falta dela...
Qual a íntima razão
Que a crença e o sonho sejam necessários
E tudo o mais funesto?...
Ironia suprema do saber:
Só conheço isso que não entendo,
Só entendo o que entender não [posso]!
E eu cambaleio
Pelas vias escuras da loucura
Olhos vagos de susto, pelo [horror]
De haver realidade e de haver ser,
De haver o fato da realidade.
Tremo, e de repente
Uma sombra da noite pavorosa
Inunda-me o gelado pensamento
Vou caindo
Num precipício cujo horror não sei
Nem a mim mesmo [logro] figurar,
Que só calculo quando nele estou.
IX
A sonhar eu venci mundos
Minha vida um sonho foi.
Cerra teus olhos profundos
Para a verdade que dói.
A Ilusão é mãe da vida:
Fui doido, e tudo por Deus.
Só a loucura incompreendida
Vai avante para os céus.
X
Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
E não pouca
Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.
XI
Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!
XII
Montanhas, solidões [...], desertos todos,
[Inda] que assim eu tenha de morrer
Revelai-me a vossa alma, isso que faz
Que se me gele a mente ao perceber
Que realmente existis e, em verdade,
Que sois fato, existência, coisa, ser.
Desespero ao ouvir-me assim dizer
Isso que n'alma tenho. Sinto-o, sinto-o,
E só falando não me compreendo.
Sentir isto, eis o horror que não tem nome!
Mas senti-lo a sentir, intimamente,
Não com anseios ou suspiros d'alma
Mas com pavor supremo, com o gelado
Inerte horror da desesperação!
XIII
Não tenho, não, já dúvida ou alegria;
Mas nem regresso mais a essa dúvida
Nem a essa alegria regressava,
Se possível me fosse; tenho o orgulho
De ter chegado aqui, onde ninguém,
Nem nas asas do doido pensamento
Nem nas asas da louca fantasia,
Chegou. E aqui me quedo. Consolado
Nesta perene desconsolação.
Esta
Diferença contra a diferença
Entre o vazio cepticismo antigo
Mudo adivinhador, não compreendendo
A força toda do que adivinhou —
Entre isto e o meu pensar. Cheguei aqui.
Nem daqui sair quero, nem queria
Aqui chegar. Mas aqui cheguei e fico.
XIV
Horror supremo! E não poder gritar
A Deus — não há — pedindo alívio!
A alma em mim se ironiza só pensando
Na de pedir ridícula vaidade
Tenho em mim
A Verdade sentida e incompreendida
Mas fechada em si mesma, que não posso
Nem pensá-la. (Senti-la ninguém pode.)
Como eu desejaria bem cerrar
Os olhos — sem morrer, sem descansar,
Não sei como — ao mistério e à verdade
E a mim mesmo — e não deixar de ser.
Morrer talvez, morrer, mas sem na morte
Encontrar o mistério face a face.
Sinto-me alheio pelo pensamento,
Pela compreensão e incompreensão.
Ando como num sonho. Confrangido
Pelo terror da morte inevitável
E pelo mal da vida, que me faz
Sentir, por existir, aquele horror
Atormentado sempre.
Objetos mudos
Que pareceis sorrir-me horridamente
Só com essa existência e estar ali;
Odeio-vos de horror. Eu quereria...
Ah! pudesse eu dize-lo — não o sei —
Nem viver nem morrer [...]
Nem sentir, nem ficar sem sentimento...
Não posso mais, não posso, suportar
Esta tortura intensa, o interregno
Das existências que me cercam... Vamos,
Abramos a janela... Tarde, tarde...
É tarde... E outrora amava a tarde
Com seu silêncio suave e incompleto
Sentido além
Da base consciente do meu ser...
Hoje... não mais, não mais, me voltarão
As inocências e ignorâncias suaves
Que me tornavam a alma transparente.
Nunca mais, nunca mais eu te verei
Como te vi, do sol da tarde, nunca,
Nem tu, monte solene de verdura,
Nem as cores do poente desmaiado
Num respirar silente... E eu não poder
Chorar a vossa perda (que eu perdi-vos)
[Nem mesmo] as lágrimas poder achar —
Por amargas que fossem — com que outrora
Eu me lembrava que vos deixaria.
Oh, minha alma amarga
Cheia de fel, e eu não poder chorar!
Quem sente chora, mas quem pensa não.
Eu, cujo amargor e desventura
Vem de pensar, onde buscarei lágrimas
Se elas para o pensar não foram dadas?
Já nem sequer poder dizer-vos: Vinde,
Lágrimas, vinde! Nem sequer pensar
Que a chorar-vos ainda chegarei!
XV
[Já oiço o impetuoso
Circular ruído de arrastadas folhas,
E, num vago abrir de olhos, na luz sinto
As amarelidões e palidezes
[Mal] o outono sopra [novamente].
Deixá-lo que assim seja — que me importa?
Como um fresco lençol eu quereria
Puxar sombra e silêncio sobre mim
E dormir — ah, dormir! — num deslizar
Suave e brando para a inconsciência,
Num apagar sentido docemente.
XVI
Não sei de que maneira a sucessão
Nos dias tem achado este meu ser
Que a si mesmo se tem [desconhecido].
Não sei que tempo vago atravessei
Nos breves dias de febril ausência
De parte do meu ser. Agora
Não sei o que há em mim, que sobrenada
A ignorada cousa que perdi.
Sinto pavor, mas já não é o mesmo
Pavor, nem é a mesma solidão
Doutrora, a solidão em que me sinto.
Queimei livros, papéis,
Destruí tudo por ficar bem só,
Por que não [sei], não sabê-lo desejo.
Resta-me apenas um desejo ermo
De amar e de sentir [...]
Pesado fardo da grandeza! Amor!
Não a reis nem a príncipes lhes pesa
E o responsável ânimo [...]
Como a mim a existência.
Neste atordoamento nasce em mim
Qualquer coisa de negro e estranho e novo
Que pressinto com medo [...]
Aureolado de mim dentro em minha alma.
Como a linha de negro [no horizonte]
Se ergue em negra nuvem e enegrece
E cresce levantando-se e [escurece]
O firmamento, sinto despontar
Prenúncios de tormenta e confusão
Num silêncio que existe dentro em mim.
XVII
Quanto mais claro
Vejo em mim, mais escuro é o que vejo.
Quanto mais compreendo
Menos me sinto compreendido. Ó horror
paradoxal deste pensar...
XVIII
O decorrer dos dias
E todo o subjetivo e objetivo
Envelhecer de tudo, não me dói
Por sentido, mas sim por ponderado;
Nem ponderado dói, mas apavora.
Tudo tem as [razões] na treva
Do mistério e eu sou disso sempre
Demasiado consciente, muito
Atento ao substancial do existir
E à [consciência] do mistério em tudo.
Cada coisa p'ra mim é porta aberta
Por onde vejo a mesma escuridão;
Quanto mais olho, mais eu compreendo
De quanto é escura aquela escuridão;
E quanto mais o compreendo, mais
Me sinto escuro em o compreender.
Desde que despertei para a consciência
Do abismo da noite que me cerca,
Não mais ri nem chorei, porque passei
Na monstruosidade do sofrer
Muito além da loucura, da que ri
E da que chora monstruosamente
Consciente de tudo e da consciência
Que de tudo horrorosamente tenho.
Todas as máscaras que a alma humana
Para si mesma usa, eu arranquei —
A própria dúvida, trementemente,
Arranquei eu de mim, e inda depois
Outra máscara [...]
Mas o que vi então — essa nudez
Da consciência em mim, como relâmpago
Que tivesse uma voz e uma expressão,
Gelou-me para sempre em outro ser [...]
Só compreendi
Que não há forma de pensar ou crer,
De imaginar, sonhar ou de sentir,
Nem rasgo de [...] loucura
Que ouse pôr a alma humana frente a frente
Com isso que uma vez visto e sentido
Me [mudou], qual ao universo o sol
Falhasse súbito, sem duração
No acabar [...]
Oh horror! Oh horror! Sinto outra vez
Essa frieza precursora n'alma
Da suprema intuição. Ah, não poder
Fora do ser e do sentir esconder-me!
Ah não poder gritar, pedir, deixar-me,
Oh, qualquer coisa mais do que uma luz
Vou sentindo que vai breve raiar...
Morte! Treva! a mim! a mim!
XIX
Ah, não poder dormir (eu não sei como,
verdade o quero) eternamente,
Acabar não comigo, nem com isto,
Mas com tudo — causa, efeito, ser...
Idéias [vãs] que a imaginação
Vazia dum momento
Gera sem ilusão, como criança
Embriagando-se indolentemente
Do cheiro transitório duma flor.
XX
[Ah, qualquer coisa
Ou sono ou sonho, sem doer isole
O meu já isolado coração,
Se as palavras que eu diga nunca podem
Levar aos outros mais do que o sentido
Que essas palavras neles têm, e [existe]
[Por] fora do que digo, oculto nele
Como o esqueleto nesta carne minha,
Invisível estrutura do visível
Diferente essencial...
Cai sobre mim, apagamento meu!
Querer querer, inútil pedra ao mar!
Saco p'ra colher vento, cesto de água,
Caçador só do uivar dós lobos longe...
XXI
Não é o vício
Nem a experiência que desflora a alma,
É só o pensamento. Há inocência
Em Nero mesmo e em Tibério louco
Porque há inconsciência. Só pensar
Desflora até ao íntimo do ser.
Este perpétuo analisar de tudo,
Este buscar de uma nudez suprema
Raciocinada coerentemente
É que tira a inocência verdadeira,
Pela suprema consciência funda
De si, do mundo [...]
Pensar, pensar e não poder viver!
Pensar, sempre pensar, perenemente,
Sem poder ter mão nele. Ah, eu sorrio
Quando [por] vezes noto o inconsciente
Riso vazio do bandido
Rindo-se da inocência! Se ele soubesse
O que é perder a inocência toda ...
O tédio! O tédio, quem me dera tê-lo!
XXII
Tudo o que toma forma ou ilusão
De forma, nas palavras, não consegue
Dar-me sequer, cerrado em mim o olhar
Do [pensamento], a ilusão de ser
Uma expressão disso que não se exprime,
Nem por dizer que não se exprime. Vida
Idéia, Essência, Transcendência, Ser,
Tudo quanto de vagor e [sombra]
Possa ocorrer ao sonho de pensar,
Inda que fundamente concebido,
Nem pelo horror desse impossível deixa
Transver sombra ou lembrança do que é.
Com que realidade o mundo é sonho!
Com que ironia mais que tudo amarga
Me não confrange, fria e negramente,
Esta inquieta pretensão a ser!

Fonte:
Fernando Pessoa . Primeiro Fausto. http://www.cfh.ufsc.br/~magno/fausto.htm

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte IV - Ele

Naquela noite o Satanás não tinha muita pressa em encontrar-se com o seu real discípulo de armas. Sabia-o sossegadamente em lugar seguro, em uns amores desses que só fazem correr perigo à bolsa dos galantes.

História escandalosa de momento, grandemente comentada pela corte, onde a Domitila intrigava, a tal paixão do príncipe era, entretanto, cousa muito honesta.

Ficava para longe, para o Valongo.

Fora ali que uma companhia de saltimbancos, recentemente chegada da Europa, erguera a sua tenda, uma grande barraca de lona sobre sarrafos de pinho. A companhia compunha-se do velho saltimbanco Vampa, que se apregoava muito entendido nessas cousas de teatro e chegava até a compor pantomimas lisonjeiras e bajuladoras, em homenagem a qualquer fidalgo endinheirado. Compunha-se mais de Zabanila, esposa de Vampa, cigana nostálgica das suas terras do Oriente, onde a brisa tinha o perfume do sândalo e o beijo dos homens tinha mais volúpia, mas em todo o caso sempre obediente ao marido e pronta a aceitar o rendoso amante que este lhe indicava. Compunha-se também de seis cavalos, um elefante e três comparsas.

O Vampa, empresário da companhia e autor dramático nas horas vagas, como Shakespeare, Moliêre e Gil Vicente, era um tipo bem falante, vocalizando as sílabas, arteiro e manhoso, cheio de invenções para atrair o público, e gostando de se acercar das rodas de fidalgos onde encontrava os amantes para a mulher e os parceiros para a jogatina.

Chegado aqui ao Rio de Janeiro, fez logo grande escândalo com uns anúncios nunca vistos, que só ele seria capaz de imaginar: sujeitos de zabumba com o letreiro do espetáculo a zabumbar por todas as ruas da cidade. O povo não entendia o letreiro, porque não sabia ler, mas isto não fazia mal porque adivinhava. E o circo do Valongo tornou-se logo o rendez-vous noturno da gente alegre que lá ia, principalmente para aplaudir a Zabanila. Ela resistia, porém, a todas as aclamações. Fazia-se muito séria. E os despeitados souberam em pouco que a requestava e possuía quem muito alta e poderosamente mandava naquele tempo.

Por isso o Satanás não se apressava muito em ir buscar o jovem discípulo governante. Por isso, e porque desprezava o Vampa que, ao em vez de procurá-lo para intermediário tivera o arrojo de meter o d. Bias no negócio.

Vagaroso de andar por aquela lama das ruas, ele chegou, entretanto, e bateu três pancadas maçônicas na porta traseira.

- Entre! gritaram-lhe.

Levantou a aldraba, empurrou a porta e achou-se num pequeno aposento com paredes de tábuas mal juntas, onde d. Pedro bebia com Zabanila e Vampa, e ria-se a bom rir de umas cousas que lhe dizia uma esquálida cigana feiticeira, com um corpo de pergaminho enrugado sobre os ossos.

- Vieste a propósito. A Mãe Velha estava aqui dizendo que eu havia de ser duas vezes rei e de morrer envenenado, sem cetro, nem coroa, como um qualquer pobre diabo!

E acrescentou:

- Pergunta-lhe pelo teu destino. Talvez ela nos diga o teu futuro e pelo menos metade desse misterioso passado, que tu gostas de esconder. Eu gosto de rir.

- Pois fala, velha feiticeira! disse o Satanás, sentando-se e estendendo a mão esquerda à cigana.

Esta debruçou-se sobre a mesa, gastou uma longa pausa no exame, e depois, fitando alternativamente o príncipe e o escultor, sentenciou:

- Para quê? sabem melhor vocês dous, porque um, não sei qual, tem de morrer pelas mãos do outro.

- Ora!

E d. Pedro levantou-se em toda a altura robusta do seu porte elegante, senhoril e belo.

- Tolices de velha! disse. E, voltando-se para o Satanás, acrescentou: - Vamos.

Partiram.

Pela noite escura e chuvarenta, seguiram os dous, um ao lado do outro, silenciosos, quase apreensivos com a lúgubre profecia da velha feiticeira, que o Vampa, entretanto, surrava lá no Valongo para que ela não fosse em outras vezes dizer cousas desagradáveis aos visitantes, que pagavam bem e não deviam gostar de semelhantes asneiras.

- Envenenado! Sem cetro e sem coroa! rosnou o príncipe como que a concluir uma meditação. E acrescentou: - Tu acreditas em feitiçaria, e pensas acaso que a previsão humana pode rasgar o tenebroso véu do futuro?

O escultor teve um gesto incerto de dúvidas, e murmurou um - talvez.

- Eu acredito, preciso acreditar, afirmou d. Pedro.

E, ali no campo de Santana onde estavam, parou em compostura elegante de homem que posa para estátua.

- Escuta! ordenou violentamente numa grande voz vibrante de comando. - Eu sou um infeliz. Não nasci para estes tempos sossegados de agora. Pela minha imaginação perpassam de constante os vultos desses heróis antigos que fizeram o mais nobre da minha ascendência. E eles fizeram tanto que nada mais tenho a fazer. Entretanto eu quisera ser o construtor de um grande povo...

E, depois de uma longa pausa, durante a qual, de braços cruzados, ele parecia a sombra de Napoleão, visitando a sepultura de Santa Helena, acrescentou:

- Vês, Satanás! Fervilha-me dentro das artérias o sangue dos heróis. É preciso acreditar no horóscopo das feiticeiras porque elas me predizem sempre um desses futuros tenebrosos, tão cheios de desgraças, que só podem pertencer aos valentes lidadores do progresso humano.

E disse mais, visionariamente:

- A história - o sagrado tribunal da inquisição, onde comparecem as sombras dos reis - há de me julgar. Pouco me importa a sentença. Eu quero ser julgado. Ela dirá que eu fui despótico e brutal. Mas a mim nunca deram educação. Deixaram-me crescer como esses animais bravios da floresta que só conhecem a lei de seus apetites e para quem a luta é a própria vida. Não posso ser melhor do que me fizeram. Tenho, preciso ter, essa independência selvagem do leão que a nada se curva e triunfa sempre. E sinto-me bem, assim como sou. Hei de cumprir o meu destino todo inteiro de homem que nasceu para as altas empresas legendárias!

E mais baixo, confidencialmente e quase triste:

- Ouve-me, Satanás! Eu sou um infeliz.

Fez-se então um longo silêncio, merencório e fúnebre como a antítese dos grandes que se confessam pequeninos.

- E tu? falou o príncipe galhofeiramente. - Lembra-te que um de nós duos tem de morrer pela mão do outro, conforme disse a feiticeira.

- Elas mentem às vezes. Em todo caso mais vale morrer de mão de amigo.

- E tu és de verdade meu amigo?

- Que pergunta!

- Sim. Faço-te confidente de todos os meus planos. Melhor do que ninguém tu sabes o que eu penso sobre as cortes. Tu sabes que não posso aturar essa canalha de pairadores letrados, que quer deitar leis ao meu orgulho e a quem meu pai se entrega com toda a moleza do seu caráter. Mas...

- Eu o traio, porventura?

- Não. Mas tu me aborreces, porque te fazes necessário demais. A tua dedicação enfarta-me como a festa insistente dos rafeiros.

- Ora. O príncipe bem sabe que Zabanila é minha inimiga. Não deve, pois, ligar importância no que ela diz, nem permitir que esta cigana de mau olhar queira torná-lo o instrumento das suas vinganças pessoais.

- Sim. Falemos de Zabanila. Todo o ódio que dedicas à pobre rapariga consiste em não seres tu o descobridor daquela pérola.

- Pérola rachada!

- Que importa! Eu insubordino-me e quero emancipar-me da tutela que tens exercido sobre todos os meus amores.

- Revolta de criança que prefere o pão preto das estrebarias ao repasto das mesas do castelo!

- Não, Satanás! É o meu orgulho. Eu quero conquistar uma mulher por mim mesmo. E posso garantir-te que vou em bom caminho.

- Faz bem. Eu velarei, entretanto, sobre os seus dias, como esse cão rafeiro de que falou há pouco, e que tanto o incomoda com as suas carícias.

- Não. Ordeno-te que me deixes só nesta aventura. E, olha, ela não será muito prolongada. Daqui a três dias partiremos para Santos. São, pois, três dias de liberdade que te peço apenas.

- O príncipe ordena.

- Pois bem, então separemo-nos.

E os dous se despediram um do outro, mergulhando nas trevas os seus nobres vultos fidalgos.
-----------
continua