quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Quinta de São Romualdo

Compre chácara quem quiser; eu, por mim, estou farto, e jurei nunca mais!...

Cansado de viagens e de caçadas, e desejando repousar, comprei uma bonita quinta, com muito arvoredo frutífero, boas águas, casa cômoda. Uma pechincha! Pra não estar debalde, resolvi fazer uma plantação de abóboras, para vender as pevides, que, informaram-me, é remédio infalível para a solitária.
 
Cada abóbora produz mais de cento e cinquenta pevides; e bastam três destas para expelir uma solitária; cada uma destas a cinco mil-réis, eram duzentos e cinqüenta mil-réis que eu apurava, só em solitárias, afora a massa das abóboras... de que eu faria goiabada.
 
Era ou não era negócio?... Ora bem:
 
Comprei - não me lembro bem - se sete ou quinze sacos de semente, da melhor; virei as terras, encanteirei-as e semeei as minhas solitárias, digo, as minhas abóboras, numa lua nova, para grelarem com força.

Pois, passado um mês... a lavoura era pura barba-de-bode!... Dura, empenachada, parecia uma plantação de vassouras de piaçava, verdes!.... Briguei, e forte, com o vendedor das sementes, que desculpou-se dizendo ter havido troca de volumes: a semente de barba-de-bode era para um armazeneiro, que vendia-a - e caro - como tempêro estrangeiro, de luxo; que o homem tinha-se dado ao diabo, quando pelo engano tinha recebido as pevides de abóbora, mas que afinal agradou-se e havia já pedido segunda remessa, para jorrar e misturar ao café, para dar-lhe mais gosto de café.
 
Não achei graça nenhuma à esfarrapada explicação; o que era certo é que estava com a minha lavoura perdida,inçada daquela praga. Ensinaram-me então que para destruir barba-de-bode, para nunca mais nascer, o único remédio era... a preá.
 
Comecei pois a comprar preás a torto e a direito; mandei preás a todos os rumos, escrevi a amigos e conhecidos, encomendando preás. Foi então unia chuva dos tais bichinhos, recebia-os em sacos, em gongás, em caixões, e até tocados por diante, como tropa.
 
Contava, pagava e soltava, logo, na lavoura. Realmente:uma maravilha!
 
Ao cabo de duas semanas não havia mais um fio de barba-de-bode.
 
E eu, satisfeitissimo!
 
Mas logo em seguida, as preás, acossadas pela fome, deram na roça do milho e do feijão; foram-me as hortaliças, aos alegretes do jardim; treparam às laranjeiras, tudo devoraram - menos marmelos. Uma devastação!
 
Refleti um momento; e para extinguir as preás, resolvi meter... gatos.
 
Nova trabalheira; vieram-me gatos de todos os tamanhos e sexos e idades, gatos mimosos - roubados - e gatos ladrões - escorraçados - e rabões, pelados e peludos, e desorelhados, queimados, gordos, sarnentos. Foi um jorro, uma inundação de gatos, sobre a minha quinta.
 
Contava, pagava e soltava-os, logo, às preás.

Efetivamente, um assombro!

Em menos duma semana não havia mais uma preá, para remédio. Liquidadas. E eu, esfregando as mãos. Mas - nem tudo lembra! - os bichanos, já sem pitança, miavam que era um desespero... e quando menos eu sonhava...

Olha a gatalhada no galinheiro E não me ficou viva uma só ave, desde os pintos até os galos de rinha!

Uma calamidade!

Nem por isso dei parte de fraco; pensei, e para acabar com os gatos, resolvi soltar-lhes... cachorros!

E vá! Na estrada!

A peonada andava numa contradança, trazendo cachorros e logo voltando a buscar mais; pelas estradas só se via passarem andantes conduzindo matilhas, e trelas de até vinte cachorros. Apareceram-me perdigueiros, veadeiros, paqueiros, onceiros, rateiros, tatuzeiros; e galgos, d'água, terras-novas, crespinhos; e grandes e pequenos, brigadores, ranhentos.

Eram centos e centos de cachorros!

Contava, pagava e soltava-os logo, aos gatos!

Indiscutivelmente: um sucesso.

Em poucos dias não se acharia nem mais um único gato, um só que fosse, para salvar um condenado da forca!

E eu, assobiando, satisfeito.

Mas - é que andei precipitado... - a cachorrada sem mais gatos... gania de jeito, que só a chumbo! E como eu não tivesse mais gatos. -. os cães, uma bela noite, atiraram-se às ovelhas, e com tal gana, que nem as maçarocas ficaram!

Um cataclismo!

Aí, meio que desanimei; mas depois de coçar-me forte, durante uns minutos largos pensei, e para acabar com os cachorros, resolvi contratar gringos, tocadores de realejo!...

Custou-me um pouco a organizar o batalhão: mas a notícia de que a paga era boa correu, e começaram a aparecer-me gringos, vindos até de onde o diabo perdeu as botas!...

Cachorro tem um terror doudo pelo realejo; é tocar-se um desses moinhos de música e o cão, mesmo preso na corrente, uiva, chora, apavora-se..., e não bá nada que o detenha na fuga; nem água fervendo, nem tição de fogo, nem comida, nem pau... só outro realejo, que o faça mudar de rumo!

Quando botei a gringalhada a manobrar os realejos, toda ao mesmo tempo, marchas, polcas, funerais, o miserere, o caranguejo, a Esteia confidente, o bitu, valsas, o solo Inglês... o maxixe quando tudo isso estrondeou nos ares... Oh! Deus do céu!...

Senhor S. Pedro!... Meu anjo da Guarda!... cachorro houve, que tão desnorteado de horror ficou, que até sobre os próprios gringos atirou-se... atirou-se..., e caiu, estrebuchando, espumando, rilhando os dentes, como danado! ...

O cachorrio pegou numa uivaçada tão espantosa que chegou a abafar o barulho dos realejos: mas logo desatou a disparar... a disparar... a disparar... e foram-se, campo fora, para os lados da rosa-dos-ventos, como assombrados!

Inegavelmente: soberbo!

E eu, cheguei a fazer uns passos de gavota, rejubilando-me; sim, senhor! Mas - e aqui tive um baque no coração.. - os gringos, sem mais cachorros para espantar, pediam comida. E eu, que não contava com a rapidez do negócio, havia-os contratado por três dias, calculando que com três dias de realejo não haveria cachorro - nem morto! - capaz de resistir...

E errei feio, porque os próprios buldogues não chegaram a agüentar nem uma hora...

E eles a pedirem comida!

E a chegarem mais gringos, que pelas estradas tinham tido notícias do meu anúncio; outros que eram ainda mandados expressamente pelos meus amigos e conhecidos e comissionados!

E cada desgraçado que chegava, como saudação, tocava-me uma peça de realejo; e quando foi de noite, todos eles, de combinação - eram cento e cinqüenta e três - resolveram fazer-me uma surpresa, e todos a um tempo, como um furacão que desaba, manobraram uma serenata sem fôlego, que durou da uma às três horas da madrugada.

Comecei a deitar sangue pelo nariz, pelos ouvidos, pelas gengivas, e desmaiei.

Ao clarear do dia recobrei os sentidos; chamei os capatazes, a peonada, uns hóspedes que tinha, e armei-os de revólveres, de davinas, de pistolas, de bacamartes; meti em quadrado os gringos, com os realejos; todos nós, armas engatilhadas, facas reluzindo, prontos a matar, tocamo-los porteira fora, aos gritos imperiosos de - silêncio! silêncio! silêncio!

Passei então um dia delicioso; sesteei regaladamente!

Mas - sempre aparece cada uma! - logo começaram a aparecer-me em casa advogados, escrivães, meirinhos, autoridades.

Ora dá-se! Um homem quieto na sua quinta, sem se preocupar da vida alheia e a vida alheia atrapalhando a sua! ...

Eram os vizinhos, queixosos, que me processavam, pediam indenizações, reclamavam contra prejuízos de que eu era causante!

Estes, porque as preás que conseguiram escapar-se haviam-se-lhes entocado nas plantações; aqueles, porque, gatos danados - dos meus - tinham-lhes mordido as criações; outros, porque os cachorros corridos comiam-lhes os rebanhos.., e até um violento protesto do cônsul, acusando-me de tentativa de morte sobre trezentos e sete gringos e meio!...

E eram citações, requerimentos, autos, contrafes, termos, inquirições.., um inferno!

Chamei advogados para a minha defesa, estes pegaram-se a discutir com os contrários: então é que a complicação complicou-se mesmo!

Os peões despediram-se medrosos os capatazes foram saindo, por causa das dúvidas...

Fiquei sozinho, na quinta solitária.

Então adoeci.

Veio um doutor para salvar-me. Mostrei-lhe a língua, tateou o pulso, rufou-me na barriga e... chamou um colega. Depois os dois chamaram um terceiro, os três, um outro; os quatro, um quinto... Já era uma dúzia deles; vieram mais ainda: cheguei a contar um quarteirão!

Desde a nuca até a sola dos pés, o meu corpo era um mapa geográfico de manchas e vergões; estava todo sanado e empolado de ventosas, inflamado dos sinapismos, lambuzado dos ungüentos, queimado dos vesicatórios, encorrilhado das embrocações, cruzado das pinceladas...

Na casca consenti tudo: no miolo, nada. Engolir, isso sim, isso é que nem à mão de Deus-Padre nenhum deles foi homem para me obrigar!

Certo dia, por doze votos fui considerado ainda vivo, e por treze dado por morto.

Venceu o um da maioria: passaram atestado de óbito e foram-se... e veio o defunteiro tomar as medidas do caixão... Que cena, esta, da tomada das medidas ... que cena!..

Dormi... até acordar-me; depois levantei-me, fiz um churrasquinho, chupei dois mates e pitei um cigarro de fumo crioulo. Sol alto montei a cavalo, para ir-me embora, de vez.

Tinha vencido sete pragas: bastava de combate.

Mas, ao sair a cancela do terreiro, vi o que nunca imaginei mais ver! ...

Vi a barba-de-bode renascendo na lavoura, algumas preás roendo ervas, três gatos em cima do telhado; dois cachorros coçando as pulgas; um gringo de realejo à sombra de um moirão, um meirinho que chegava a trote..., e um doutor que apeava-se da carriola!...

Amigo!

Cerrei pernas ao baio e só parei... quando vendi a quinta.

Pagas as contas, sobraram-me três patacas, em cobre: comprei as espoletas, pólvora e balas, e ganhei, outra vez, no sertão!

Tenha chácara quem quiser: eu, Romualdo, é que nunca mais!

Nem atado!
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continua… mais casos

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/III

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 18 – 13 de maio de 1887

Não neguei Bahia ou Minas,
Nem nunca fora capaz
De negar Crato ou Campinas...
Neguei, é certo, Goiás.

Pois que Goiás eu supunha
Uma simples convenção,
Sem existência nenhuma,
Menos inda que ilusão.

E achava uma prova disto
Naquele caso sem par,
Nunca dantes, nunca visto,
Nem por terra nem por mar:

O caso do presidente
Que por dez anos ficou
Presidenciando... Ó gente!
Dez anos! Quem tal sonhou?

Dez meses, vá; é costume,
E ninguém pode exigir
Que um homem perca o chorume
A trabalhar e a delir...

Ou, se é lícito em matéria
De tanta ponderação
Tão avessa ao chasco e à léria,
Ter alguma opinião,

Digo que nem dez semanas...
Dez dias podia ser.
Traduziria em bananas
O chegar, ver e vencer.

Não se impõe aos nossos climas
Ars longa... É abreviar,
Como eu abrevio as rimas;
Não coser, alinhavar.

Quem podia, em nossa terra,
A não ser entre galés,
Como os comuns de Inglaterra?
Trabalhar dez horas, dez?

Os nossos comuns gastaram
Três dias em eleger
Mesa e comissões; e andaram
Perfeitamente, a meu ver.

Não vamos crer, porque temos
Sistema parlamentar,
Que só copiar devemos
Os costumes de além-mar,

Mas, voltando à vaca fria...
Que vaca? Onde íamos nós?
Que diabo é que eu dizia?
A digressão, vício atroz.

Não era a dívida, creio,
Lamberti chamada, uns mil
Contos de papo e recheio,
Contos ou contões com til.

Também não era o desfalque
Do Recife... ai, uma flor
De esperanças... ai, não calque,
Não calque nisso, leitor!

Eu, que tinha o meu bilhete,
Pronto para enriquecer,
Estou como se um cacete
Me houvesse dado a valer.

Mas, com todos os diabos,
Que era então? Não eras tu,
Nariz dos grandes nababos;
Nem tu, céu de Honolulu.

Ah! Goiás... Goiás existe;
E tanto que, a vinte e dois
De março, saiu um triste
E longo bando de grous,

Como os de que fala o Dante,
Que van cantando lor lai;
Mas cá o pio ora ovante,
Era só: quebrai, quebrai!

Um dos grous é delegado,
Outros dizem que juiz;
E tudo foi arrasado,
Ou ficou só por um triz.

Defuntos, lavras do Abade,
Mulheres, que ora gemeis
De dor e necessidade,
Justiça esperar deveis.

Mas eu daquela ocorrência
Tiro uma lição vivaz:
Goiás tem certa a existência,
Goiás existe, Goiás.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Nilto Maciel (Restos de Feijoada)

Depois do almoço, Alexandre dormiu. E logo se viu rei. Sim, rei de verdade, rei negro, rei ardente. Seu corpo ardia como nunca, mais do que nos dias de muito calor, de muita febre. Punha a mão no espaldar da cadeira real e logo os súditos gritavam: tire a mão daí, rei nosso, senão o trono pega fogo. Por onde passava, tudo se queimava. O chão se fazia vermelho, feito brasa. Ninguém ousava se aproximar dele. A rainha se esquivava a todo momento. Longe do pai, os príncipes corriam pelos campos, aos gritinhos. Alexandre se irritava com tanto medo. “Têm medo de morrer, desgraçados?” Furioso, agarrava até a morte os súditos mal-educados, mentirosos, impiedosos, desleixados, vaidosos... Aos prantos, os mais covardes se ajoelhavam aos seus pés, pedindo misericórdia. E mais ele os abraçava, ardorosamente. Amarrados pelos pés, os inimigos tremiam ao vê-lo. “Aproximem-se de mim.” Eles não saíam do chão, como se pregados. Os algozes os arrastavam. Os inimigos choravam, berravam, pediam clemência. Porém, o rei os atraía e, vagarosamente, os ia queimando. Os inimigos viravam montes de carne assada. “Joguem tudo nas panelas. Hoje teremos feijoada para todo o reino.” Os cozinheiros do castelo haviam posto à sua frente panelões de água temperada. Para que isto, majestade? Para cozinhar os perversos, os maus, os inimigos do nosso reino. Fabricassem grandes caldeirões. Cozinharia todos os inimigos. Faria grandes feijoadas. Plantassem mais feijão preto, engordassem os porcos. Trouxessem feijão, água, toucinho, linguiça, paio, orelhas e pés de porco, todos os ingredientes da melhor feijoada. E ria, gargalhava, bebia, enchia-se de cachaça, água, ardente como sempre. Súbito alguns de seus melhores amigos, conselheiros e parentes o agarraram e ameaçaram lançá-lo ao fogo ou dentro de um dos caldeirões. Iriam comê-lo com arroz, farofa e cachaça. E gargalhavam.

Então Alexandre acordou, aos gritos, o corpo em brasa. Assustada, Maria correu para junto dele, mãos na cabeça, olhos esbugalhados. Estava doido? Parasse de gritar. Talvez estivesse doido mesmo. Porém, sentia muita febre, o corpo em chamas. Assim desde o começo do dia. Havia acordado tarde, a cabeça doendo, o corpo moído. Então voltasse a dormir. “Vou fazer um chá.” Não, não podia ficar em casa, enquanto o carnaval fervilhava na cidade. “Eu sou sambista, minha negra.” E pôs-se a cantar um samba medonho. Maria se irritou. Só podia ser a bebida. Andava bebendo muito. “Eu queria ser jogador de futebol, negra. Queria ser outro Pelé. Jogar no Flamengo. Virar estrela no Maracanã. Não deu certo, não me quiseram.” E os meninos? Ora, os meninos não comiam, não brincavam, não estudavam? Mal, muito mal. “E eu mais mal ainda.” Vivia fazendo faxinas nas casas das grã-finas, por uma ninharia. E ele se embriagando, sambando, sonhando com samba e fama. Acordasse enquanto era tempo. Os meninos se chegaram, chorando.  Alexandre se meteu no banheiro. Somente um banho frio, gelado, para aplacar o fogo do corpo. Sentiu tonturas. Febre, muita febre. Maria se apavorou. Nunca um banho. Queria morrer? Fosse direto para a cama. E Alexandre se abraçou aos lençóis. E logo se viu rei. Por onde passava, tudo se queimava.

Um bloco de sujos desfilava pelos becos. Vamos, Alex. É carnaval, negrão. Ele pulou da cama e saiu porta fora. E gritava: eu sou o rei do fogo, eu sou o rei do fogo. Os foliões não paravam de pular, dançar, cantar. Maria gritava: volta, Alexandre, volta, você está doente. Ele dançava, se retorcia, se requebrava. E subitamente caiu, a contorcer-se no chão. Os foliões se puseram a dançar ao redor dele, como num ritual macabro. A mulher e os meninos acorreram e agarraram-lhe pernas e braços. Os dançarinos sumiram. Maria e seus filhos depuseram o corpo no chão da sala. O rei morria, a vomitar pequeninas cabeças, minúsculas mãos, despedaçados corações humanos – restos de feijoada.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Geraldo Markan

Geraldo Markan Ferreira Gomes (Fortaleza, 1929 - 2001) é autor dos livros de conto O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro, Edições Siriará, 1979, e Canoa Quebrada – Oniricrônicas, 1980, além de peças de teatro. Reuniu-se a outros contistas em O Talento Cearense em Contos, com “Primeira Rosa para Norma Jean”, e Antologia Literária (1.º Prêmio Domingos Olímpio de Literatura, 1998, Sobral), com “Quem Resiste ao Tango?” (2º. lugar).

Dias da Silva, no artigo de título igual ao do livro, integrante do volume III de Da Pena ao Vento (2001), enuncia: “De começo, devo dizer que não é tão simples determinar-se o gênero da obra. Livro de contos? Livro de crônicas? Momentos de puros devaneios da imaginação sensível? Textos fantásticos? De gênero maravilhoso? De gênero estranho?”

Uma das características da prosa de Markan é a diluição do enredo. Os dramas se desenrolam ao longo de dias e dias. O narrador onisciente manipula os personagens e acompanha seus passos, como se fossem bonecos, ou conduzisse ele uma câmera, um gravador e um aparelho de captar pensamentos e emoções. Alberto, na peça que dá título à coleção, caminha por ruas, entra em lojas, vai para casa, segue o irmão. No entanto, a locomoção do personagem é mero pretexto para a narração de ações interiores nele. Assim, os verbos de ação (“saiu do cinema”, “tomou uma condução”, “viu um rosto”) assumem nele posição subalterna, enquanto os verbos inativos ou neutros conduzem o fluxo das frases. Às vezes os próprios verbos de ação se vestem de inatividade: “Fugia da realidade, buscava um signo que a revelasse diferente”. Em “Deborah” a protagonista fala para si mesma e não se movimenta. Ou suas ações são apenas imaginadas: “Súbito chegara àquela conclusão”; “Deu uma importância ciclópica ao conteúdo da frase” (...); “Um novo susto a percorreu” (...). A trama é toda “imaginada”. Em razão disso, não há diálogo. Entretanto, há composições em que predominam as falas, como em “Suzana, o Gramophone e a Comunhão dos Santos ou A Reinvenção do Amor”. Em diversos quadros, Suzana e Alberto, tia e sobrinho, dialogam. Entre um quadro e outro, o narrador onisciente faz uso do flashback e de comentários a fatos.

Na maioria das composições as cenas são fragmentadas, mas unidas entre si. Em “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp” (prejudice, inglês, e preconceito, se escritas ao contrário), o narrador aciona os irmãos Cristina e Lula. No primeiro quadro desenha os dois protagonistas e apresenta outros personagens. No segundo, os irmãos mantêm curto diálogo, seguido de comentário do narrador, que pode ser entendido também como monólogo interior dela. Segue-se outra cena com falas. E assim até o desenlace, composto de três linhas: “Um dia ele disse sério: – Cristina, que vida louca a nossa. – A deles. Ecidujerp. Ou seja, otiecnocerp”.

Geraldo Markam é escritor urbano. Entretanto, a urbe é apenas o palco de seus dramas. E o espaço é secundário, porque essenciais são os personagens e seus dramas interiores. Os seres fictícios de suas obras têm as mais diversas origens. Uns vêm da velha aristocracia rural nordestina, como Suzana. Rica, solteirona, vive numa fazenda perto de Sobral, a tomar leite mugido, bater bolo, enfeitar os santos, levar mangas para a vaca Flor do Campo e a sonhar com o jovem sobrinho em estudos na capital. Cristina mora em Recife; Lula, no Rio de Janeiro. A família de Alberto também vive na antiga capital federal. Mas há ainda os mais pobres, como Fogoió, o de cabelos de fogo, ajudante de mecânico, “independente, doido, sozinho no mundo”, em São Luís, Maranhão. Ou Manuel, o empregado doméstico de “Os Angorás ou Uma noite, talvez, em Alexandria”. Retirante do sertão, torna-se tratador de jardim, limpador de piscina de mansão. Faz-se personagem, interlocutor de doutor, de ricaço. Acostumado a beber cachaça, é convidado a beber uísque com o patrão. E a ouvir confidências.

Raras vezes, um diálogo menos artificial ou uma narração de fatos. Talvez porque o interlocutor está sempre indo embora, fugindo, escorregadio ou inacessível. E o protagonista termina só, ruminando seu desespero. Isso se reflete no próprio corpo das narrativas. Nas peças menores, Geraldo Markan faz poesia ou crônica leve, apesar de se dizer o nunca-poeta. Termina fazendo markanices, ele também personagem.

O Mundo Refletido nas Armas Brilhantes do Guerreiro é título poético e metafórico, porque, na verdade, o mundo refletido naquilo que simboliza o poder: à época de Alexandre e companhia, as armas brilhantes do guerreiro; hoje, o ouro, a moeda, o carro, a piscina – adereços e o próprio ser, a um só tempo. O mundo refletido no ouro do burguês.

Passeiam, pelas páginas quase sempre de uma delicadeza e uma pureza clássicas, personagens de voz amena, alguns falando inglês ou citando Baudelaire, Fernando Pessoa e o lírico Camões. Remoendo seus vazios, tateando os muros escuros de seus labirintos pegajosos. Vez por outra, um deslize imperdoável ante a poesia a minar de cada palavra. E surge quase uma historinha de fotonovela: “Ecidujerp, ou seja, Otiecnocerp”. Apesar disso, um ranço bom de naturalismo ainda inexplorado – a nostalgia do domínio holandês no Nordeste.

Geraldo Markan não se satisfaz com as aparências, os perfis, as biografias. Interessam-lhe muito mais o oculto, a invisível, o impalpável, o incontável. Em vez de olhar para a topografia e a arquitetura, prefere ouvir/sentir as emoções, os sentimentos, os pensamentos dos seres. Glória, de “Plict”, atravessa o “longo subterrâneo, impaciente, como se este fosse sua própria vida”. Solitária, “virgem por vício”, anda pelas ruas à procura de corpos e almas. Os narradores, se é que narram, de algumas peças mais parecem ascetas, místicos. O de “Beta Splendens ou O Sétimo Dia” faz elocubrações, diante de um aquário, um peixe. Em razão disso, não há desfechos, pelo menos os tradicionais.

Markan não permanece na superfície. Seus personagens são muito mais do que cidadãos: são seres que voam ou se afundam no chão. Vão às nuvens e descem aos abismos de si mesmos. Sondam-se, como se se martirizassem ou buscassem a salvação. O insondável, o incognoscível, o fundo do abismo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Titina Palmieri Brandão (Mistérios)

Fontes:
CÁPUA, Cláudio de (editor). Itinerário Poético II (coletânea). SP: EditorAção, 1996.
Formatação do poema com imagem obtida em http://lysminhalma.zip.net, por J.Feldman

Jangada de Versos do Ceará (3)

NATÉRCIA ROCHA
(Natercia Carmen de Sales Rocha)
Fortaleza, 1971
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Carcará

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 Um Pássaro Azul me visitou esta noite.

Displicente, em minha janela,
Cantou dos campos por onde tem voado:

Entoou a força das flores
O mel das marés
A larva das matas
A grandeza dos vulcões

E cantarolou mistérios de serenos e tempestades.
Voou para perto da cama, a certa altura da madrugada.
E, de sua cabeça perfumada,
Refletiam cores em arco-íris.
Entrei em seus olhinhos redondos, encantados
E fui embora por sua retina dourada
Passear pelo elo do tempo que nunca acaba.
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MAVIGNIER DE CASTRO
(Antonio Mavignier de Castro)
(1895 - 19721 )
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Luar Amazônico

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 Verão, Rio em deflúvio. A lua cheia
alonga  perspectivas pela mata;
só a fauna da noite ali vagueia
à sombra errante que o luar dilata...

Álgido, estreito igarapé serpeia,
Qual sinuosa lâmina de prata...
Que melopeia o urutauí flauteia
Na solidão lunar da terra grata!

Amanhece; mas imitando um rito
Sobre a mata flutua um véu de neve...
E o sol – pátena de ouro do infinito.

Espera que no altar da selva nua,
O Sacerdote imaterial eleve
A imagem eucarística da lua!
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DIMAS MACEDO
Lavras de Mangabeira,1956
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Mistério

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 Não sei por que destino vago
ou se vegeto.
Minha vida é qual um livro aberto
que atravesso a nado.
Minha solidão tem bases de concreto
e as minhas ânsias claras intenções.
Com as lições da dor eu teço
uma canção ao vento
e reinvento a vida.
A morte é um vendaval e em tudo
o cosmos é uma interrogação.
Meu corpo a fuga. Meu prazer o medo.
E a minha dúvida uma alucinação.
Se vago ou se vegeto, escrevo:
Minha vida é qual um livro aberto.
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DOM HELDER CÂMARA
(Helder Pessoa Câmara)
Fortaleza 1909 – 1999 Recife
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Escuridão Total

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 A noite estava tão escura,
tão sem um ponto de luz,
tão noite,
que cheguei a me angustiar,
apesar do amor profundo
que sempre tive à noite...

Foi quando ela me segredou:
quanto mais noite é a noite,
mais bela costuma ser
a aurora
que ela carrega no seio!

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/ceara/ceara.html

Folclore do Rio Grande do Sul (Lenda Obirici)

Augusto Porto Alegre, na sua história da "Fundação de Porto Alegre", recolheu esta lenda da formação do Passo da Areia, IBICUIRETÃ, que significa "rio de areia", ou seja, um pequeno arroio que corria nos arredores da capital do Rio Grande.

Nos tempos em que os brancos não haviam ainda penetrado até o Rio Grande do Sul, habitavam a região, os índios Tupi-mirins, da nação de Tapes. Como o amor sempre constituiu uma singela tradição indígena, houve, ali, uma contenda amorosa que ficou na recordação dos silvícolas, chegando até nossos dias sob a forma de uma encantadora lenda:

Conta-se que um belo cacique chamado Abaetê, em pleno apogeu da mocidade, foi alvo de grande amor, por parte de duas irmãs índias: Paraí e Obiricí, ambas filhas do poderoso feiticeiro Guaporé.

Abaetê gostou mais de Paraí, mas não tinha coragem de contar a ninguém, pois não queria magoar Obiricí. Um dia, o guerreiro suplicou a Tupã que lhe desse muito entendimento, para que facilmente pudesse resolver o difícil caso.

Então, durante o sono, recebeu a visita da graciosa Sumá, uma deusa guerreira, que envolvida em leve manta tecida de cipó imbé, deu a Abaetê todos os conselhos necessários, por ordem de Tupã.

Na manhã seguinte, foi imediatamente falar com as jovens e disse:

-"Foi Tupã que me mandou, desejo avisar que todas as duas serão submetidas a uma prova com arco e flechas. Quem acertar o alvo, será minha esposa."

As índias apaixonadas recebendo o aviso de sua resolução, imediatamente se prontificaram a iniciar a disputa. O cacique desejado muito belo e forte, era o grande incentivo.

Obirici, a mais ardente das duas índias, ficou muito nervosa, com medo de perder a competição e ficar sem o amor da sua vida, não teve a mesma destreza da outra. Errou o alvo. Foi portanto, vencida e viu-se obrigada a deixar que a vitoriosa levasse para as terras de Jatobá o jovem príncipe cacique. Ficou só no local onde ocorreu a contenda, a olhar o par abraçado e feliz que se distanciava.

Sufocando soluços, amargurando-se, não teve ânimo de abandonar aquele pedaço de terra, onde ocorrera sua desventura. Em vão desceram as Parajás, deusas da piedade, do alto do Ibiapaba, para consolar a bela guerreira. A divina Paré, deusa da fé veio na forma humana para dar-lhe alegres conselhos e suave esperança.

-"Pobre de mim abandonada"", dizia ela, e nenhuma palavra mais lhe saiu do peito em profundos soluços.

O próprio Tolori, deus da coragem, mas inimigo das mulheres, tão compadecido ficou, que veio dizer algumas palavras de consolo para a índia.

Abatida e tristonha, coração sangrando, alma voltada para o infortúnio e para a morte, hora a hora, pedia que Tupã lhe cortasse os dias de sua vida tão amargurada. E a formosa indígena, com a desventura a povoar-lhe a mente, só implorava o fim, como repouso que lhe era necessário, estendia seus braços de cintilações de bronze, para o céu, mudo ante suas súplicas sinceras e ardentes...

No desespero da dor, as lágrimas brotaram dos olhos de Obirici em uma abundância desoladora. O choro abriu-lhe fundos sulcos no rosto e as lágrimas de suas pálpebras continuaram dia e noite a cair cristalinas e luminosas e, correndo por terra, deixaram nela, para sempre cravado o regato chamado Passo da Areia ou Ibicuiretã...

Decorridos alguns dias, Deus Tupã, apiedando-se da pobre índia, veio buscá-la. As águas de suas lágrimas, porém continuaram a rolar, marcando para sempre na terra dos pampas, a angústia infinita de sua dor.

O Ibicuiretã, esse córrego de lágrimas, não existe mais, pois o Passo da Areia, hoje é um bairro urbanizado da cidade de Porto Alegre. As obras de urbanização canalizaram o riachinho que a princípio, tornou-se um valão. Depois, foi soterrado para construção do Shopping Center da zona norte.

Mas, a bela Obirici não foi apagada do coração dos gaúchos e em sua homenagem, próximo a um viaduto que leva seu nome, foi imortalizada em uma escultura, que a representa com os braços estendidos aos céus, pedindo em imprecações que Tupã acabe com seus dias de tão intensa dor...

Bibliografia:
LESSA, Barbosa. Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul. SP: EDIGRAF. 

Fonte:
http://clerioborges.com.br/sirleikaszuba.html

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) IX

COVARDIA

Cada vez que troco
A timidez pela arrogância
Mato em mim a criança.

MANHÃ

Teus cabelos dourados
Raios de sol
Encaracolados.

SABER

Livro fechado
Pássaro morto
Aberto, vôo certo.

ADÃO

Sou terra, barro
Lama e argila
Com sopro de sonho nas narinas.

SURDA MUSA

Não sei porque
Ainda sussurro Chopin
Aos teus ouvidos Bethoveen!

SCORPIONS

O mundo é uma roda de fogo
Onde provamos
Do nosso próprio veneno.

SAUDADE

A noite ladra pelas ruas
Tua lembrança espanta o sono
Escrevo.

PLUG & PLAY

À noite
Conectados
Ascendemos estrelas.

FESTA

Quando corpos
Nus convida
É hora de celebrá-la, Viva!

BRAZIL S/A

Nesta sociedade anônima
Vive-se melhor
Em companhia limitada.

CIDADANIA

Criança brinquei absorto
Adulto rejeito
Ser tratado como aborto.

ETERNIDADE

Eterna...
Inspiração-vida-expiração
...Idade.

SORTE

Escrevo
Como quem acha
Um trevo.

DELEITE

Indo ou vindo
Teu corpo
É um delicioso sorriso.

MAKTUB

Olhando alguém que morreu
Não gosto do que vejo nele
Eu!

DEUSAS

Deus rascunhou o homem até
Chegar à perfeição
Num corpo de mulher.

CHORINHO

Lamento de cordas
Em harmonia com as batidas de um coração
Que choraminga feliz.

PLEBEU

Que nobre que nada!
Felicidade é caminhar anônimo
E livre pelas calçadas.

FRAQUEZA

Solidão é coisa imposta
Para quem acredita
Que a vida é uma bosta.

NIETZSCHE

Nada além da arte
Nada aquém
Nada à parte.

CONSTRUÇÃO

Palavra a palavra
Vou erguendo
Meu edifício invisível.

PINGENTE

Na tua orelha
Falo língua
Diamante.

AMAZÔNIA

Sobre árvores mortas inútil espera
Das borboletas
Pela primavera.

PRAZER

Teus olhos brilhantes
Dois simultâneos instantes
De cumplicidade.

RISO POLUÍDO

Sempre rio triste
Apesar da alegria
Da nascente.

CANETA

Não sou o príncipe de Gales
Mas trago sempre comigo
O sangue azul dos poetas.

MONGE

Meu rumo é o passo
Na direção que estou
Sou tempo espaço e não sou.

MAESTRO

Nosso som
Só é bom
Se o Tom for Jobim.

OLHAR NUBLADO

Janelas abertas
Tempo nublado
Chuva dentro de mim.

QUEBRA-CABEÇA

Palavra difícil esquema
Monto me desmonto
A cada poema.

ZEN

Passo ponte incerta
Indefeso caminho
A meta.

ESPELHO

Em ti mulher a beleza
Torna-se consciente
De si mesma.

SINA

Abunda em mim
Todo mal comum aos homens...
Sou mais um canalha útil.

MERCADÃO

Aqui vejo, ouço, cheiro
Toco, provo exercíto
Todos os meus sentidos.

FEELING
 

Só o amor faz assim
A estrada dessa vida
Não ter fim.

VOAR

Os pássaros
planam
nossos sonhos.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Aparecido Raimundo de Souza (Caminho sem volta)

ANA ANGÉLICA SENTIA SUA ALMA RÉS AO CHÃO.

A cabeça rodopiava por fronteiras indistintas numa bagunça incontrolável. Parecia cindida em mil pedaços. As vistas estavam enfermas embaixo dos óculos de grau vencido. No peito, o coração teimava acelerar descompassado como se alguma coisa anormal o agitasse. As pernas bambeavam, os dedos dos pés doíam apertados dentro dos sapatos de coriáceo vagabundo. Até as roupas que lhe cobriam a nudez pesavam sobre o corpo magro. Atrelado a isso, estranho mal súbito insistia dominar o ambiente como se o universo conspirasse contra e fosse acabar no próximo minuto.

Perguntas sem respostas objetivas afloravam em sua mente como água jorrando em nascente. Por que a modorra apática, o medo, a insegurança e a desagradável sensação de fadiga lhe transformando a carcaça em estrupício? Se fosse alguém de idade bastante avançada, até  se entenderia... Mas ela, só contava poucos anos de idade...

Desde a manhã o dia transcorrera pesado e frio, com a mesma miscelânea circense de sempre. As horas lhe enterraram num sepulcro hostil e inviolável, tal como se a vida lhe tivesse tamponado num buraco fundo e sem retorno. E aquele maldito quarto de pensão desgraçadamente iluminado completava o quadro dantesco da triste e malfadada sina. Tentara, por diversas vezes, dominar o astral e escapar da turbulência repulsiva que pesava sobre seus costados. Pensara fugir da alienação inconcebível e poderosa, mas o espírito perturbado a colocava em inferioridade estrema, deixando-a totalmente sem forças e carente de carinho e aconchego. Queria colo, atenção e amor. Uma gota de ternura seria o bastante para lhe devolver a felicidade entristecida. As outras ninfetas, nesse meio tempo, zombavam da sua cara, escarneavam pontos frágeis, motejavam de sua posição ridícula. Na verdade, todas elas aguardavam pacientemente a sua entrada nos labirintos obscuros da neurastenia.

Com os pensamentos embaralhados e em tumulto desordenado, se questionava aflita, como caíra tão rapidamente naquela incúria, se deixando levar pelo injustificado das incertezas e das horas tediosas da solidão? Onde ficara a vontade de vencer os obstáculos, transpor barreiras e saltar infortúnios inesperados?

Sem réplica à altura dessas indagações, Ana Angélica lamentava ter deixado uma nuvem negra pairar sobre sua cabeça, a ponto de dominar sua existência e vegetar ao deus-dará. Afinal de contas, qual o motivo, ou melhor, o que ensejou toda aquela transformação meteórica em sua tão curta jornada?

Pôs-se, de repente, a lembrar o passado. Fazia pouco tempo, seu pai lhe colocara no olho da rua. Motivo? Uma indesejável gravidez. Até então, Ana Angélica era a melhor filha do mundo. Com a revelação do exame laboratorial feito às pressas, perdeu a posição de “princesa” para aquele cidadão que gozava de elevada reputação na cidade. Na verdade, a autoridade máxima do judiciário local: o juiz!

Como representante da lei, o cidadão precisava dar exemplo. Assim, ao tomar conhecimento da prenhez, o velho genitor virou-lhe as costas mostrando a porta da rua e escancarando a crueldade que começava do portão que se abria para os infortúnios e contratempos da sorte. A decadência se tornou maior, se agigantou no exato momento em que decidiu procurar abrigo na casa do namoradinho que lhe jurara amor eterno. Contudo, Leandro, descendente de tradicional família na cidade, ao saber da novidade (para ele cruel novidade), jogou para o alto a medicina, o consultório, a clínica cardiológica e o comodismo de viver às expensas paternas. Na calada da noite o doutorzinho deixou o lugarejo a horizontes ignorados.

Em povoados de extensão limitada não é preciso muito esforço para cair na boca do povo. Envergonhada, sem comida e teto, e, ainda, com a agravante da fuga inesperada do pai da criança, a solução plausível foi embarcar no primeiro trem. Aportou, então, em São Paulo, ou mais precisamente na Estação da Luz. Sem condições de sobrevivência, não demorou a encontrar os guetos do submundo da prostituição. E neles, Ana mergulhou de cabeça, num voo cego.

Bonita, formosa e gentil, não lhe faltavam noitadas regadas a cervejas e bebidas baratas. Os fregueses variavam: ora saia com um marginal, outra carregava para a cama um gringo desses bem nojentos. Às vezes dormia com almofadinhas elegantes, casquilhos vestidos a rigor ou efeminados. A maioria deles drogados e viciados em crack, maconha e cola de sapateiro. O espaço que mediava entre a concepção e o nascimento não interrompia a hora derradeira, ao contrário, diminuía, diminuía, diminuía...

Nessa pressa de vida fácil o tempo sempre corre com rapidez impossível. Voava, para Ana Angélica como um Pégaso desgovernado, trotando atabalhoadamente na direção do precipício fatal. Atiçada pela elevada valorização do corpinho esbelto e garboso, a matrona, dona do bordel, não perdia clientes. Longe disso, multiplicava o conjunto de paroquianos como fieis num culto religioso.

Os que frequentavam a casa só queriam desfrutar daquela elegante bem proporcionada e sensual, caída dos céus, como um anjo em forma de gente. Por essa razão, a cafetina, conhecida pela alcunha de “Maria Padilha”, em menos de três semanas adquiriu dois bons apartamentos quitinetes num edifício do tipo “balança mas não cai”, quase ao lado da antiga rodoviária e, de lambuja, comprou  um carro novo para desfilar com uma dezena de pupilos que bancava em busca de prazeres carnais.

Com a mente ainda em desalinho, e sem um policiamento ostensivo para conter a avalanche de desgraças que atormentava, Ana Angélica continuava a se questionar dessas mudanças bruscas, quando, entrementes, lembrou da arma que a colega de quarto guardava numa cômoda do tempo do ronca. Resoluta, caminhou até ela. Precisava agir rapidamente. Logo a parceira chegaria do programa que saíra para fazer.

Abriu a gaveta. Um trinta e oito cano curto, cabo em madre pérola, municiado, descansava entre as calcinhas, sutiãs e uma caixa de sapatos cheia de preservativos. Apanhou o revolver, decidida, firme, resoluta, feições contraídas, o coração quase a saltar peito a fora. Lentamente se acomodou na banqueta diante do espelho com um pedaço de vidro faltando numa das extremidades:

— Adeus, mundo — disse entre palavras entrecortadas de solidão e agonia. — Adeus, vida. Pai, mãe, me desculpem!..

Num envolvente ímpeto materno alisou a barriga de modo carinhoso. Cinco meses. Cinco longos meses...

Seria um menino ou uma menina? Sem assistência médica e condições de visitar um ginecologista, o feto sobrevivia a trancos e barrancos. Que nome lhe daria? Como seria o rostinho? Com quem pareceria? Talvez, quem sabe, com ela, ou...

Nesse instante amargo, dos seus olhos de menina mulher, rolaram rosto abaixo, lágrimas ligeiras. Lembrou-se do pai, e da ultima conversa que tiveram antes de acontecer toda essa bagunça em sua vida: — Filha, — disse ele a certa altura — “aequam memento rebus in arrudas servare   mentem”(*).    E,  em  seguida,  concluiu:  — Aconteça o que acontecer jamais entregue os pontos. Seja forte, lute pela vida, brigue, esperneie, mesmo que todo seu eu interior transpire solidão e agonia...

Todavia, agora, era tarde demais. Das palavras sábias do velho pai, só recordações distantes agonizando no peito despedaçado.

— Perdoe a mamãe, meu neném querido, seja você quem for. Não é certo o que pretendo fazer. Sei que não tenho o direito de decidir pela sua vida. Sei que você não vai entender esse gesto, mas... Será melhor... Será melhor que você não conheça esse lado mau e negro. Saiba que mamãe ama você... Mamãe ama você... Mamãe aaa...

O tiro ecoou forte. A bala viajou certeira em busca do alvo fácil. Num instante dolorido, o estampido se assemelhou a uma espécie de míssil teleguiado, ao explodir tremendamente perverso dentro do aposento parcamente iluminado. Pessoas danaram a gritar. “Maria Padilha” esmurrou a porta com vigor. Um cliente que chegava na hora berrou para que alguém acionasse a polícia.

Lá  dentro, dobrada sobre si mesma, deixando escapar desejos mal resolvidos e envolta numa enorme possa de sangue, Ana Angélica, a querida e desejada dama da noite, metida, agora, numa via de mão única e sem retorno, soltava o derradeiro e lancinante grito de estertor.
––––––––––––-
(*) “Lembra-te de manter o ânimo justo nos momentos difíceis”.
Nota do autor


Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 17 – 6 de abril de 1887

Temos nova passarola,
De grandes asas escuras,
Mexidas por certa mola
Que dá sono às criaturas.

Chama-se — não sei maneira
De pôr este nome em verso...
Palavra, é grande canseira,
Tão duro é ele e reverso.

Deito sílabas de lado,
De outro sílabas arranco,
Trabalho desesperado
E fica o papel em branco.

Vá lá: medicina hipnótica,
Custou, mas saiu... Parece
A cousa um tanto estrambótica,
E mais se a gente adoece.

Notem bem — é medicina,
Posto a sugestão opere;
Cá o meu bestunto opina
Que um nome de outro difere.

Há em sugestão um jeito
Teórico feio, enigmático;
Mas medicina é perfeito,
Perfeito, rápido e prático.

Quando aqui há poucos anos,
Já me não lembra em que dia,
Deu entrada entre os humanos
A exata dosimetria,

Disse eu: “Invenção potente!
Perfeição do formulário!
Consolação do doente!
Fortuna do boticário!”

Mas daí a pouco ouvia
(Outro inimigo da métrica)
Em vez de dosimetria,
Medicina dosimétrica.

E isso que cuidava que era
Farmácia, era uma doutrina.
Uma escola em primavera
Contra a velha medicina.

Não digo que o sugestivo
Hipnotismo também seja
Ária sobre outro motivo,
Nem igreja contra igreja.

Digo... Não sei como diga...
Não sei como diga... Ai, musa
Do diabo e de uma figa!
Você ri! você abusa!

Digo (vá) digo que, quando
Cuidava que esta matéria,
Da qual não estou mofando,
Que é séria, três vezes séria,

Não pelas razões do grave
Apóstolo, que cogita
Não fazer dela uma chave
P'ra prender moça bonita;

Como se amor não tivesse
Outra sugestão nativa,
Que, quando menos parece,
Faz arder o esquivo e a esquiva.

Quando (como ia dizendo)
Supunha que a academia,
Por sua vez, lendo e vendo,
Ia explicar a teoria;

Que visse os graves problemas
Envoltos na descoberta,
E como antigos sistemas
Passam a questão aberta;

Que, como órgão da ciência,
Examinasse, estudasse
A vontade e a consciência
Pela novíssima face;

Que visse como a pessoa
Humana se multiplica,
Vai a Túnis e a Lisboa,
E cá reside, e cá fica;

Em vez disso,a academia
Dá-lhe duas passadelas
De escova, e manda a teoria
Curar as nossas mazelas.

Isto é que me põe os braços
Caídos, e a boca aberta...
E já daqui vejo os passos
Desta nova descoberta.

Atrás dos homens sabidos
Virão os que nada sabem,
E gritarão desabridos
Até que os astros desabem.

Chegaremos aos cartazes
E aos anúncios de vinhetas,
Pílulas Holloway capazes
De dar beleza às caretas.

Ora, há trinta anos havia
Xarope que se chamava
Do Bosque, e tanto valia,
Que tudo e algo mais curava.

Hoje, esse licor exótico
Não tem uso, interno ou externo ...
Receio que o sono hipnótico
Chegue a tudo... e ao sono eterno.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Irmãos Grimm (A Noiva do Ladrão)

Era uma vez um moleiro que tinha uma filha muito linda, e quando ela cresceu, ele queria que nada lhe faltasse e que fosse bem casada. Ele pensava: — “Se algum pretendente aparecesse e pedisse a sua mão, eu ficaria muito feliz.”

Não muito tempo depois, um pretendente apareceu, e que parecia ser muito rico, e como o moleiro nada encontrou que o desabonasse, então ele prometeu sua filha ao pretendente.

A jovem, contudo, não tinha a menor inclinação por ele, assim como uma garota deve gostar de um homem a quem ela foi prometida, e nem confiança lhe inspirava o rapaz. Quando ela o via, ou pensava nele, ela sentia uma aversão profunda.

Uma vez ele disse a ela: — “Tu és a minha prometida, — “no entanto, jamais me fizeste uma visita.”

A jovem respondeu: — “Não sei onde fica a tua casa.”

Então, o noivo respondeu — “Minha casa fica lá longe na floresta escura.”

Ela tentou se desculpar, e disse que não sabia o caminho até lá. O noivo respondeu: — “Domingo que vem, tu deves ir lá me fazer uma visita — “já chamei os convidados, e eu jogarei cinzas para que possas encontrar o caminho pela floresta.”

Quando chegou o domingo, e a donzela se pôs a caminho, ela ficou apreensiva, mas não sabia exatamente porque, e para garantir de que não se perderia na volta, ela encheu seus dois bolsos com ervilhas e lentilhas. Cinzas foram espalhadas na entrada da floresta, servindo de caminho para ela, porém, a cada passo, ela espalhava algumas ervilhas no chão.

Ela caminhou quase o dia todo até que ela chegou no meio da floresta, onde era mais escura, e lá ficava uma casa solitária, que ela não gostou a princípio, porque ela parecia tão escura e sombria. Ela entrou na casa, mas não havia ninguém dentro dela, e o mais absoluto silêncio reinava ali. Subitamente uma voz gritou:

— “Volte, volte, minha querida donzela,”

— “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

A jovem olhou e viu que a voz vinha de um passarinho, que estava pendurado numa gaiola na parede. E o passarinho gritou novamente:

— “Volte, volte, minha querida donzela,”

— “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

Então a jovem continuou andando de um cômodo da casa para outro, e caminhou por toda a casa, mas ela estava totalmente vazia e não havia sequer um ser humano ali. Finalmente ela chegou num lugar, onde uma velhinha de idade avançada estava sentada, que não parava de chacoalhar a cabeça. — “Será que a senhora poderia me dizer,” disse a donzela, — “ se o meu pretendente mora aqui?”

— “Ai, pobre criança! Respondeu a velhinha, — “onde você está se metendo? Tu estás no esconderijo de um matador. — “Pensas que és uma noiva que logo vai se casar, mas será com a morte que irás se casar. Veja, eu fui obrigada a colocar uma grande chaleira aqui, com água dentro dela, e quando estiveres em poder dele, você será cortada em pedacinhos sem misericórdia, serás cozida e te comerão, porque aqui se come carne humana. Se eu não tiver compaixão por você e te salvar, estarás perdida.”

Diante disso, a velhinha a levou para trás de um grande tonel onde ela não poderia ser vista. — “Fique quietinha como um rato,” disse ela, — “não faça nenhum barulho, nem se mova, do contrário não haverá salvação para ti. A noite, quando os ladrões estiverem dormindo, nós fugiremos; há muito tempo que estou esperando por uma oportunidade.”

Mal haviam feito isto, quando o bando de desalmados chegou em casa. Eles tinham arrastado com eles uma outra garota. Estavam bêbados, e não ligavam para os gritos e lamentos que ela dava. Eles deram a ela vinho para beber, três copos bem cheios, um copo de vinho branco, um de vinho tinto e um copo de vinho amarelo, e diante disso o coração dela explodiu.

Em seguida, eles arrancaram o delicado vestido dela, colocaram-na sobre a mesa, cortaram seu lindo corpo em pedaços, e espalharam sal sobre ele. A pobre noiva, que estava atrás do barril tremia e se sacudia toda, pois ela via muito bem que destino que os malvados reservavam para ela. Um deles notou um anel de ouro no dedo mínimo da garota que fora assassinada, e como o anel não queria sair de imediato, ele pegou um machado e arrancou o dedo fora, mas o dedo pulou no ar, por cima do barril, e caiu direto no peito da noiva.

O bandido pegou uma vela e foi procurar o anel, mas não conseguiu encontrá-lo. Então, um outro do bando disse: — “Você já procurou atrás do tonel grande?

Mas a velhinha gritou: — “Venham comer alguma coisa, e deixem para procurar amanhã de manhã, o dedo não vai fugir de vocês.”

Então os ladrões disseram: — “A velha tem razão,” e desistiram da busca, e se sentaram para comer, e a velhinha colocou uma pílula de dormir no vinho deles, de modo que logo eles se deitaram na cela, e dormiram e roncavam.

Quando a noiva ouviu isso, ela saiu de trás do tonel, e teve de passar por cima dos ladrões, porque eles estavam deitados em fileiras no chão, e ela ficou com muito medo porque ela poderia acordar um deles.

Mas Deus a ajudou, e ela conseguiu sair sã e salva. A velhinha saiu com ela, abriu as portas, e elas correram do covil dos bandidos com toda a velocidade que podiam. O vento havia dispersado as cinzas, mas as ervilhas e as lentilhas haviam brotado e crescido, e mostrava a elas o caminho sob a luz do luar. Elas caminharam a noite toda, até que de manhã elas chegaram ao moinho, e então a jovem contou ao seu pai tudo
exatamente como tinha acontecido.

Quando chegou o dia quando o casamento havia de ser celebrado, o noivo apareceu, e o moleiro havia convidado todos os seus parentes e amigos. Quando eles se sentaram à minha, cada um tinha que contar uma história. A noiva sentou em silêncio e não disse nada.

Então o noivo disse para a noiva: — “Venha, querida, não tens nada para contar? Conte-nos uma história assim como eles fizeram.”

Ela respondeu: — “Então, eu vou contar um sonho. Eu estava caminhado sozinha pela floresta, quando finalmente cheguei a uma casa, onde não havia nenhuma alma viva, mas na parede havia um pássaro dentro de uma gaiola que gritava:”

— “Volte, volte, minha querida donzela,” — “É na casa de um matador que você está entrando agora.”

E o passarinho gritou isso mais de uma vez.

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Então, eu caminhei por todos os cômodos da casa, e todos estavam vazios, e alguma coisa horrível havia naquele lugar!

Finalmente, cheguei até um lugar, onde uma mulher, muito muito velha, estava sentada, e ela sacudia a cabeça, quando lhe perguntei:

— “O meu noivo mora nesta casa?” Ela respondeu: — “Oh, pobre menina, entraste no covil de um matador, teu noivo mora aqui, e ele te cortará em pedaços, e te matará, depois ele irá cozinhá-la e irá comê-la.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Mas a velhinha me escondeu de trás de um tonel grande, e mal havia me escondido, quando os ladrões chegaram em casa, e arrastavam uma donzela com eles, para a qual eles ofereceram três tipos de vinhos para beber, branco, tinto e amarelo, e depois o coração dela estourou.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. Tiraram-lhe então, o seu lindo vestido, e cortaram o belo corpo da garota em pedaços em cima da mesa, e derramaram sal nele.”

— “Querido, é só um sonho que eu tive. E um dos ladrões viu que havia um anel no dedo mínimo da garota, e como era muito difícil removê-lo, ele pegou um machado e cortou fora o dedo dela, mas o dedo pulou no ar, e saltou por cima do tonel grande, e caiu dentro do meu peito! E lá estava o dedo com o anel!” E depois que disse estas palavras, tirou o dedo para fora, e mostrou para os que estavam presentes.

O ladrão, que durante esta história ficou branco que nem cera, levantou-se e quis fugir, mas os convidados o dominaram, e o entregaram para a justiça. Então, ele e todo o seu bando foram executados por seus crimes infames.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/w/index.php?oldid=245618

Vladimir Queiroz (Poemas Avulsos)

Canto da terra
-
A terra do rouxinol
é roxa,
rocha exposta emergida
ferida - roncha.

A terra do curió
é branca,
sanca de amor brando
soando manca.

A terra da saracura
é muito escura,
faz cócegas num córrego
e dura.

A terra no canto,
canta
em pranto.

Chuva na serra
-
Após a chuva na serra
sopra aquele vento,
penetra no osso e gela a alma.

Mas a paz e a calma são sublimes
e transcendem.
Invade-me um vazio,
uma sensação de flutuar,
e por mais que te pegue,
sinta a pele e o braço,
é como se estivesse no ar
pétala por pétala.

A neblina deixa-me ver unicamente
um contorno de serra,
uma indefinição curvilínea...
Defronte a mim só uma imagem,
uma moldura impressionista,
e nada mais.

Emoção
-
Solta e rebelde vai a emoção
voa
visita estes recônditos mundos
inesperados e fascinantes
desperta a vontade
cria insanidades
e se desmancha pela cria
(que chora e esperneia);
mancha o papel de cores
combina amores
curte dissabores
e ronda a madrugada.
Solta e rebelde vai a emoção
não impõe limites
nada teme
sofre de tensão
sorri
sente calor
e calafrios.

Formas
-
A inércia que constrói o tédio
precisa ser vencida
e do atrito louco se desvencilha
entrando em erupção o vulcão
de formas e cores.

Formas ainda não concebidas
do objeto retraído
nas reentrâncias vastas,
do vasto mundo cerebral, incongruente;
que indolente, o Homem, ignora.

Misticizada e lírica
do prazer contrito
a magia oculta
se solta.

E a forma estranha, para o ser
despercebida, algures repousa
e surge mais tarde
no fim da tarde, talvez!

Global
-
Tem um apelo global junto a mim,
mas a minha pele ainda é local,
aninha-se numa árvore conhecida
onde crescem musgos após a chuva.

Quer suar no Saara e sonhar por miragens;
desfrutar os Fiordes, ser um lorde britânico,
mas não dispensa o balançar de rede
o vento soprando frio em noite de lua cheia.

Tem um mundo global que me faz chorar na Namíbia,
deixa-me distante, ouvindo circunspecto um som mongol,
sou oriental por um instante,
sinto-me repleto de Mahatmas:
transcendo,
mas tem um mundo local que a mim traz bem cedo
o cantar de um pintassilgo,
e a minha cama enche-se de êxtase.

Tem um mundo global que imanta os pólos
e desmancha os sonhos,
mas tem um mundo local que me toca de repente
deixa-me carente de você, cheio de amor.

Hábito
-
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
não é porque vá viajar
nem tampouco tenha compromisso;
ninguém me chamou,
não tocou o telefone.
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
é porque adoro ver o sol nascer
sentir aquela calma matinal
ouvir o curió que canta na casa ao lado;
ver as primeiras pessoas que passam:
o vendedor
o jornaleiro.
Se acordo cedo nas manhãs de domingo
é por força do hábito.

Lamparina
-
A lamparina acesa
clarão de choupana
brasa
incendiando o silêncio.

Filete de luar balançando ao vento
mil marionetes negras:
fantasmas das trevas.

O nada reintegrado ao pensamento:
carícia de tempo, carência de voz
dissolvendo a escuridão
sob o relento lento.

Mestre
-
O ancinho na mão do mestre
recolhe as folhas caídas
ao chão agreste.
Consumidas pelo tempo,
vencidas por um ciclo de vida
que as fez nascer.
O mestre olha cada folha e
reconhece o broto tenro de outrora,
que viçoso e verde despontara.

E segue o mestre na sua faina diária,
centenária!

Zunido
-
O guarda apitou no sinal;
os paralelepípedos sentiram o zunido
e trepidaram:

passaram homens correndo de tênis
velocípedes
quadrúpedes;
passaram cigarros, chapéus e menestréis
poetas e guerrilheiros
aves de arribação;
passaram peruas (quase nuas)
vozes
beijos;
passaram aos solavancos
saltimbancos
avós de quarentena
tamancos das mil e uma noites;
passaram carroças e troças
tigres de dente de sabre
(tigres de “bengala”)
jacas maduras;
passaram gatunos
diversos e unos;
passaram...

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Mário Pontes

Mário Pontes (Nova Russas, 1932), autodidata, fez-se tipógrafo e depois jornalista, em Fortaleza. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi, por décadas, editor de cadernos de cultura do Jornal do Brasil. Além de centenas de artigos sobre livros e autores, publicou Milagre na Salina, 1977 (traduzido para o russo); Ninguém ama os náufragos; Andante com morte, 1999, Canta, violão, novela para leitores jovens; Doce como diabo, ensaios sobre poesia popular, e, em 2003, Um Homem Chamado Noel. Sua peça para adolescentes, As minas do Rei Aurino, permaneceu seis meses em cartaz no Teatro Cacilda Becker, Rio. Mario Pontes já traduziu 25 livros de ficção de autores como Camilo José Cela (Prêmio Nobel); Júlio Cortázar e Isabel Allende; e obras filosóficas, como O saber grego (66 autores europeus); Voltaire e os intelectuais, de Pierre le Pape e A razão no século XX, de Bertrand Saint-Sernin, professor da Sorbonne.

            Seus contos estão publicados em dois volumes: Milagre na Salina e Um Homem Chamado Noel. O primeiro lembra a estrutura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e de Jorge Medauar Conta Estórias de Água Preta. Os capítulos do romance podem ser lidos como pequenas histórias. Já as “estórias” de Medauar constituiriam romance, na opinião de Fernando Góes, porque os episódios narrados estão centrados na cidade de Água Preta. Também as composições de Mario se localizam em um só ambiente, Salina. No entanto, ambos são mesmo coleções de contos. Na segunda obra Salina é deixada para trás ou, pelo menos, não é mencionada. Aliás, em nenhuma narrativa a ação se desenvolve na mesma localidade, à exceção das duas primeiras, quando Lucas ainda é criança. O protagonista está sempre em viagem pelo Brasil afora. As únicas cidades mencionadas são Leonardópolis e Brasília.

Em Milagre na Salina é perfeita a pintura do ambiente, dos personagens e das ações. Salina é a parte mais pobre de qualquer cidadezinha do Nordeste brasileiro. Teofânio, Antonio Profeta, Chico Pé-de-Valsa, Francalino, Situba, delegado Ermírio, dona Toinha, Manoel de Rosa, Zacarias, Cardoso, Campeão, Xandu, Mino e outros são nordestinos sob todos os aspectos. Os crimes, as safadezas, as intrigas praticadas pelos seres fictícios parecem relatadas por cantadores de feiras. Tudo é como se estivesse o leitor vivendo aquela bruta vidinha da cidade miúda da terra de secas e enchentes.

O espaço geográfico em que se movimentam os seres fictícios é o mesmo. Vez por outra, protagonistas de um capítulo surgem às escondidas em outros. É o caso de Teofânio, o dono da bodega aonde quotidianamente os bêbados da Salina vão se embriagar e contar as novidades. E nem mesmo ele consegue sobrelevar-se à categoria de primeiro personagem, apesar de quase todos os contos serem narrados em sua bodega.

Em Um Homem Chamado Noel a armação da estrutura do livro é semelhante à de Milagre na Salina: um personagem, Lucas (nas três primeiras narrativas aparece com o nome de Mino, apelido de infância), amarra uma peça a outra, ora como narrador, ora protagonista e, às vezes, testemunha ou deuteragonista. O drama se desenrola em diversas localidades ou cidades ou por onde anda Lucas. Os demais seres fictícios atuam uma só vez, isto é, não reaparecem em outras células dramáticas. Assim, Noel, personagem principal da obra que dá título ao livro, não é encontrado nas demais. Por isto, o melhor título para a coleção talvez fosse outro, como Ícaro. Pois o herói grego é o próprio Mino ou Lucas em sua luta pela sobrevivência, em seus voos ao longo da vida, em suas buscas de liberdade. Ou A Morte Vermelha, pela presença constante da “indesejada das gentes” em todos os episódios.

                O grande ser fictício do livro é Mino ou Lucas. Se se tratasse de novela ou romance, seria o protagonista. As histórias se sucedem ao longo de sua vida. Em “Ícaro”, “mal acabava de completar nove anos”. Em “A Morte Vermelha”, mestre Aldo, seu pai, recrimina mulher que não parava de falar de tragédias: “Olhe meu filho, é quase uma criança!”. Nos demais contos Lucas é adulto: em “Não olhe para trás” realiza o sonho de sair de casa, fugir para longe, aventurar-se pelo mundo, viver a própria vida (e a dos outros).

O tempo vivido pelo protagonista pode ser apreendido aos poucos: no início o pai fumava cigarro Colomy e vestia paletó de caroá; o padre misturava latim (Dominus vobiscum) ao português, nos sermões. Num segundo momento, havia estrada de ferro, trens de passageiros, e ainda não se falava em rodoviária e ônibus. Na terceira peça, há uma estação ferroviária e uma tipografia onde se imprimia um jornalzinho. Em “O Dia de Tudo” há um velho major da antiga e extinta Guarda Nacional, a dar vivas ao Estado Novo. Em “O Rapto de Sabina” Lucas diz haver nascido pela mão de uma parteira. Em “Um Homem Chamado Noel” a ação decorre em 1949, como se pode ver em trecho da narração em que Noel aciona “isqueiro em casca de bala de metralhadora: uma das modas criadas pela guerra já velha de quatro anos”. O episódio derradeiro da última narrativa do volume se desenvolve depois de 1964, numa Brasília ainda calma, “calma demais, rígida como se a houvessem nocauteado”.

As dez histórias da obra são todas longas para os padrões de hoje, ocupando a mais curta oito páginas, e a mais longa, vinte. Sete delas têm narrador em terceira pessoa e as demais em primeira pessoa, Mino ou Lucas. Na última, o leitor não encontrará referência ao nome do narrador, mas logo no início lerá: “Ia encontrar meu pai carpinteiro” (...). Na primeira peça o pai de Mino é mestre Aldo, marceneiro, e contracena com o protagonista. No segundo também tem papel fundamental e a sua profissão é mostrada com orgulho pelo garoto, embora os ricos da cidade não admitissem que um carpinteiro residisse na Praça da Matriz, “quadrilátero” nobre, onde moravam “o prefeito, o juiz, o delegado de polícia, o primeiro tabelião e alguns dos mais abastados comerciantes da cidade”. Nos demais contos Aldo desaparece.

O ponto de vista às vezes passa da terceira pessoa para a primeira, mas de maneira sensata, premeditada, como em “Os Loucos de Jamal”. Os personagens são de duas categorias: uma narradora e um interlocutor, de um lado ou no presente, e o sírio Jamal, seus amigos espíritas, os loucos, o oficial de justiça Adel e outros de menor importância, no passado ou como personagens de Helu. Ou seja, há dois narradores: um onisciente, não-personagem, e outro também onisciente, mas personagem. O segundo inicia a narrativa: “Naquele tempo a cidade era uma rua e uma praça”. É interrompido pelo primeiro (por travessões): “– Helu contou a Lucas, exagerando a beleza de sua voz, não menor que a de seu rosto –”. Este, na verdade, só se manifesta para passar a voz da narradora para o interlocutor e fazer comentários à beleza da jovem, a quem chama de “fada narradora”.

As histórias de Mario Pontes são realistas, embora de um realismo mais próximo do exotismo. Uma das mais belas, “A morte vermelha”, é envolta pela atmosfera da narrativa macabra, como num desfile funéreo, numa dança da morte, a arrastar os vivos. Também “Os loucos de Jamal”, uma das mais estranhas do volume, na qual se mesclam espiritismo, loucura, intolerância, violência. O desfecho é de uma crueza digna dos mestres do conto de horror, a lembrar Edgar Poe. Estranha é ainda “Felismende, ourives”, de enredo intocável. “O dia de tudo” chega a ser burlesca ou bufa. O burlesco também se apresenta em “Revelações noturnas”. Já “O Rapto de Sabina” é outra história exótica, numa mistura de aventura com crime. A composição que dá título ao livro pode também ser posta nesse rol, pela singularidade do protagonista, misterioso em seus atos e sua fala. “Sancho e a Rainha” segue a mesma linha de mistério, aventura, crime, como nas boas obras do gênero policial.

As peças de Mario Pontes têm a estrutura do conto dito tradicional, com começo, meio e fim, embora aqui e ali utilize o flashback, como em “Felismende, ourives”, “O rapto de Sabina” e, sobretudo, em “Sancho e a Rainha”. A narrações minuciosas se sucedem diálogos alongados. As descrições não chegam a enfadar o leitor e até engalanam a prosa: “um poste de ferro, fundido e floreado”; “um sujeito muito magro, levemente recurvo”; “rosto estreito como um machado, terminando em um nariz fino, uma lâmina” (“Não olhe para trás”).

São raros os contos de flagrante; quase todos têm suas tramas desdobradas ao longo de meses e anos, com o surgimento e o desaparecimento de personagens. Num deles, Lucas caminha por longas horas, para se afastar da cidade onde vive; à noite chega “a um pequeno povoado”; no dia seguinte alcança uma cidade maior; passa-se uma semana; “ao cabo de seis meses” decide retomar a estrada...

Mario Pontes é escritor vocacionado para a novela e o romance. Entretanto, isto não menospreza as suas composições, que não podem ser vistas como rascunhos de obras de maior envergadura. A sua vocação é a de criador de personagens ricos e enredos substanciosos, de manipulador de tempos e espaços amplificados e de apóstolo de um realismo exótico.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.