sábado, 23 de novembro de 2013

Zé Lucas (Outros Versos)

Pintura de Salvador Dali
MEL NA POESIA

No trabalho das colmeias
me inspiro em meu dia-a-dia,
eu e a abelha laboramos
numa intensa parceria:
ela tira o mel das flores
e eu ponho em minha poesia.

AS GARÇAS

Voam longe as garças brancas
formando bonito véu,
como um lençol de morim
que o vento sacode ao léu...
Será que a paz criou asas
e está voando no céu?

A VIAGEM

-Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora.
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

MEU JEITO DE OLHAR A VIDA

Sou menino do campo, sem vaidade;
vivi longe das sedas e dos linhos;
em vez das fantasias da cidade,
me entreguei à aventura dos caminhos.

Fui ao céu, imitando os passarinhos...
Nas asas do meu sonho, a imensidade
ficou pequena, e na canção dos ninhos
embalei toda a minha mocidade.

Minha alma se elevou no azul dos montes,
onde volto a beber, nas mesmas fontes,
a água doce da infância cristalina.

Deus não me nega paz nem agasalho:
se nos bosques da noite me atrapalho,
logo mais vem a aurora e me ilumina!

HUMILDE NAVEGANTE

Meu amigo, não peça o que não tenho
nem me dê o que eu sei que não mereço;
Não precisa ampliar o meu desenho,
basta que não me vire pelo avesso!

Não é para ser grande que me empenho,
mas para ser tratado com apreço.
Sou fraco, mas, o peso do meu lenho,
carrego sem negar meu endereço.

Quero só navegar no mar da vida
sem me tornar um navegante louco
pra deixar minha vela preferida

abandonada na ilusão do cais.
Sabe Deus que mereço muito pouco,
mas é tão bom que até me dá demais!

“AS ESTRELAS SÃO NÍTIDOS FARÓIS”

As estrelas são nítidos faróis
quando o céu anoitece mais bonito;
para nós, os poetas sonhadores,
a beleza da Lua é quase um mito
na distância da cósmica jornada
em que a voz de um trovão é quase nada
e o silêncio de Deus corta o infinito.

MENINICE

Cada dia, mais distância,
cada instante, mais saudade...
Como ficou longe a infância!

Amigos da mocidade,
agora não mais os vejo
em nossa velha cidade!

Meu coração sertanejo
bate ao compasso do sino
das festas do lugarejo.

Se eu fosse outra vez menino,
mesmo assim pouco faria
pra reverter o destino.

Pra meus pais, mais alegria
pediria, com certeza,
a Deus e à Virgem Maria,

e um grande alívio à pobreza
que os perseguiu duramente.
Quanto a mim, não é surpresa

afirmar, de boa mente,
que quase tive o que quis,
no meio de minha gente.

Botando os pontos nos is,
fui moleque bom de estrada,
fui menino, fui feliz!

Assim, digo a minha fada:
pode manter meu destino!
Não precisa mudar nada.

Basta, na vida futura,
que não me falte a ternura
de um coração de menino!

VAQUEIRO

Há registros em prosa e poesia,
Aqui pelo Nordeste brasileiro,
Mas ninguém descreveu, como devia,
A grandeza da saga do vaqueiro.

Quando um touro se torna barbatão,
Escondido na mata de espinheiro,
Não há nada que o enfrente no sertão,
A não ser a coragem do vaqueiro.

Cavaleiro de tanta valentia,
Esquecido por esses pés de serra,
Nosso herói nordestino merecia
Uma estátua de bronze em sua terra!

O DIA DAS MULHERES

Hoje cumpro o mais justo dos misteres,
Como poeta e amigo da beleza:
Dou parabéns a todas as mulheres,
Vendo nelas, do amor, a realeza!

Às rainhas do lar e deste mundo,
Que, sem elas, pra nada serviria,
Eu desejo, com o apreço mais profundo,
Um reinado de paz e de alegria!

Que haja flores na rota da existência
De toda mãe, que é nosso amor primeiro,
E nunca mais a mão da violência
Baixe sobre a mulher, no mundo inteiro!

O TEMPO

Quando menino, eu queria
Ser homem com rapidez,
Depois, contabilizando
Tudo que o tempo me fez,
Hoje morro de vontade
De ser menino outra vez.

EXCERTOS DA PELEJA EM MARTELO AGALOPADA
um diálogo entre Zé Lucas e Prof. Garcia

Pra o poeta encontrar a poesia,
basta o canto febril de um rouxinol,
ou os raios de ouro do arrebol,
registrando o nascer de um novo dia;
um olhar nas belezas que Deus cria
também deixa um poeta motivado;
uma grata lembrança do passado
tanto acorda a saudade como inspira;
mais o som peregrino de uma lira,
e está pronto o martelo agalopado!
(…)
No remanso tranquilo da gamboa,
cai no rio e se anima o pescador,
na esperança de um peixe lutador
que, na linha do anzol, puxe a canoa;
remo solto, segura-se na proa,
porque sabe os segredos de seu rio
e não foge jamais ao desafio,
visto que água no chão é mão na luva...
Essas cenas ocorrem quando a chuva
cai na terra do sol e espanta o estio.

(…)
Vi a cana espremida na moenda,
vi os bois sonolentos na almanjarra,
na qual já trabalhavam quando a barra
da manhã lourejava na fazenda;
e o engenho, que há muito virou lenda,
tinha cheiro de mel e rapadura,
mas o tempo mudou... Já não se apura
uma simples batida, ou alfenim.
No sertão, isso tudo levou fim,
mas a dor da saudade ninguém cura!

(…)
Não me esqueço do som da cantoria
nos alpendres de antigos casarões,
com sextilhas, martelos e mourões
recheados de nítida magia;
era um mundo encantado de poesia
que abracei desde minha tenra idade,
tradição nordestina de verdade
que não pode morrer nem fraquejar
porque é muito querida e popular,
mas mudou-se do campo pra cidade!

(…)
Quem trabalha precisa de repouso
pra suprir os efeitos do cansaço,
pois o esforço medido a cada passo
nunca pode tornar-se tão penoso;
nosso tempo é tesouro precioso,
como o próprio bom senso nos revela...
Desperdício das horas, sem cautela,
leva a perdas e danos sem medida
e ao desgaste das dádivas da vida,
desta vida que é curta, mas é bela.

(…)
No sertão, uma linda fiandeira
foi Maria Isabel, minha vovó,
que viveu no calor do Seridó
comandando uma roca de madeira;
punha os pés pequeninos numa esteira
fabricada com arte e paciência;
sempre estava na pobre residência
dando a bênção a adultos e guris...
Viveu quase cem anos, tão feliz,
com o novelo dos fios da existência!

(…)
No Nordeste, o mais duro cangaceiro,
Virgulino Ferreira, o Lampião,
assombrou todo o povo do sertão
com seu rifle temível e certeiro;
tinha fama de bravo bandoleiro,
pois, de fato, era intrépido e valente,
açoitava e matava cruelmente,
mas entrou pelo cano em Mossoró:
correu tanto, que as pernas davam nó;
mesmo assim, é um herói pra muita gente!

SETILHAS DIVERSAS

Aqui, se instala o verão
quando as nuvens vão embora;
inverno, prá nós, é chuva
que veste de verde a flora.
Quase todo o tempo é quente,
e o frio é como um presente,
mas, quando vem, não demora.
* * * * * * * *

Com a derradeira missa,
partimos pra eternidade,
depois das dores da morte,
eis a dura realidade!
Morrer é nosso destino,
mas, com gripe de suíno,
meu Deus, que infelicidade!
**************

Bom poeta vende os frutos
Na feira da honestidade;
No entanto sabemos de um
Que tem medo da verdade,
Porque, em vez de bons decretos,
Assinou “atos secretos”
Com tinta de improbidade.
******************

Quem mata um pezinho de erva
que prometia uma flor,
suja o rio ou cala a voz
de um canário cantador,
pratica um ato covarde
e algum dia, cedo ou tarde,
paga, seja como for!
********************

Existe uma estrela acesa,
sempre linda e radiante,
inspirando nossos versos
que descem do céu distante,
para que o mundo tristonho,
órfão de poesia e sonho,
um dia se alegre e cante.
********************

Minha vida em Pirangi
é fazer verso e sonhar,
conversar com as estrelas,
tomar banho de luar
e colher, durante o dia,
os retalhos de poesia
que a Lua deixa no mar.

Zé Lucas (1939)

José Lucas de Barros nasceu no município de Condado, na Paraíba, em 12 de março de 1939, mas registrou-se civilmente em Serra Negra-RN, terra de seus pais.

    Trabalhou no campo, no comércio, no Banco do Brasil e,  finalmente, exerce a advocacia, tem atividades literárias, sociais e religiosas.

    É advogado, poeta, trovador e pesquisador de literatura popular.

    José Lucas escreveu seus primeiros versos na adolescência e é, hoje, nome conhecido e admirado no mundo trovista. Escreve poesia em suas variadas modalidades, destacando-se em trovas e cordel. Suas criações primam pela inspiração e criatividade.

    Publicou em 1973, um livro de trovas, intitulado ”Cantigas do meu Destino”.

    Em 1985, o livro “Caminhada” com lindos conjuntos de trovas, sonetos, glosas e poemas de forma livre.

    Foi professor de Português e Literatura por dez anos.

    Participa em “O TROVADOR”, Órgão Oficial da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte, com a coluna: “Questões Simples de Linguagem”.

    Entidades a que pertence:
Academia de Trovas do Rio Grande do Norte
Associação Estadual de Poetas Populares – RN
Academia Curraisnovence de Letras
União Brasileira de Trovadores, seção de Natal/RN,
Instituto Cultural do Oeste Potiguar,
Membro da Academia Parnaminense de Letras.

Obras Publicadas:
 1 – Cantigas do meu Destino (Trovas),
 2 – Repentes e Desafios (Pesquisa de Literatura Popular), .
 3 – Caminhada (Poesias),
 4 – Diálogo em Trovas I (parceria com Delcy Canalles).
 5 – Diálogo em Trovas II (idem),
 6 – iálogo em Trovas III (Idem).
 7 – Quando Dois Rios se Encontram (Diálogo em sextilhas c/Delcy Canalles),
 8 – Do Potengi ao Guaíba (Diálogo em Setilhas c/Delcy Canalles).
 9 – Dois Poetas em Setilhas (Diálogo em Setilhas c/Ademar Macedo),
10 – Um Rojão em Sextilha Agalopada (com Ademar Macedo e Francisco Garcia de Araújo),
11 – Distâncias Que Se Aproximam (sextilhas e trovas em parceria com Delcy Canalles,
12 – Sexteto em Sextilhas (com A.A. de Assis, Ademar Macedo, Delcy Canalles, Francisco Garcia de Araújo e Gislaine Canales),
13 – No Balanço da Canoa (Trovas e Sonetilhos).
14 – Peleja em Martelo Agalopada (com Prof. Garcia)
Os diálogos poéticos foram feitos todos pela Internet. Há mais quatro em andamento e outros planejados.
15 – Resumo Biográfico do Mons. Lucas Batista (Cordel).

    Além de outros trabalhos inéditos.

    É também letrista em cerca de 20 músicas, com vários parceiros.

    Zé Lucas,como é conhecido, em seu livro Repentes e Desafios conta que o falecido Belarmino de França foi contratado para uma cantoria no município de Pombal (Triângulo), com a garantia do transporte de volta. Na hora da viagem o dono de casa ofereceu-lhe a garupa de um jumento. Diante da situação desanimadora, alguém gritou: "Jumento não tem garupa". Belarmino, instigado pelos presentes, improvisou:

Segundo o que está escrito,
Jumento por garantia,
Levou Jesus e Maria
De Belém para o Egito;
Não é um animal bonito,
Mas, no trabalho, se ocupa;
Se ele der uma upa,
Bota o sujeito no chão...
E eu não sei por qual razão
Jumento não tem garupa.


Fontes:
http://www.avspe.eti.br/biografia2010/JoseLucasDeBarros.htm
http://uniaocultural.blogspot.com/2011/01/no-universo-da-trova-delcy-canalles.html

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Clevane Pessoa (em pequenos frascos)

Fonte:
http://www.mgpoetasdelmundoempoesia.blogspot.com

Nilto Maciel (Hora de Despertar)

Filho desnaturado – disseram vizinhos de Bartira.

Num domingo de muita luz, Oliveiros beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora o espectro do sono flutuará na penumbra da sala.” Pareceu-lhe ouvir o chamado da doente e voltou. Os olhos dela o fitaram como se o fitassem há tempos, desde o princípio de tudo. “A qualquer hora seremos amputados pelo alfanje do vento.” Ele a beijou de novo e arrastou para mais próximo dela a mesinha com as fitas e o gravador. Quando quisesse ouvir outra fita, bastaria esticar o braço. E garantiu voltar logo.

Presa à cama e à cadeira de rodas, Bartira quase não falava mais e pouco enxergava. Urgia arranjarem acompanhante, enfermeira ou dedicada moça. Anunciaram nos jornais. Apareceram meninotas espantadas. Mocinhas loquazes. Senhoras de fala grossa. Porém, Bartira só se impressionou com uma e em razão de seu nome – Oriana. “Não precisa dormir aqui.”

Oliveiros passava o dia fora de casa, vendendo armas e munições numa loja. E aos domingos substituía Oriana nos cuidados a sua mãe.

Bartira sonhou desde menina uma vida de palcos, plateias e famas. Quis ser dançarina, mas seu pai cortou-lhe os passos pela raiz. Quis ser cantora, porém seu pai apertou-lhe a garganta com promessas de morte. Quis ser atriz e seu pai a chamou de meretriz. Quis ser, então, poetisa bem taciturna, olhos fundos, mãos trêmulas, envolta na névoa dos versos. Noturna, quase invisível. E pôs-se a compor elegias, enquanto lia poetas. O tempo, no entanto, se encarregou de amarelar seus versos. E uma súbita paixão os queimou. O vento levou-lhe as cinzas. O pai feriu-lhe as faces, chamou-a de perdida. Fosse criar o fruto amargo de seu pecado às custas da caridade pública. Entanto, Bartira não caiu, antes subiu aos palcos. Representou heroínas de todos os matizes. Viajou muito, conheceu heróis e vilões, enquanto via crescer o pequeno Oliveiros.

No meio do caminho, porém, aconteceu a catástrofe. Um acidente paralisou-lhe parte do corpo. E Bartira voltou aos versos. “Meu filho, leia para mim um pouco de Florbela.” O rapazinho lia sem jeito, como se lesse prospectos. “Leia aquele poema que começa assim: ‘Sou um ser, o outro é a metade que não sei de onde veio’. Oliveiros não sabia onde encontrar o poema. Dissesse o título do poema ou do livro. Ela se punha a pensar. Finalmente lembrava um nome: “Francisco Carvalho. Sim, tenho certeza, é dele.” O rapaz ainda não se satisfazia. Como encontrar um poema no meio de tantos livros? Se ao menos o poeta tivesse um só livro. E ainda nem havia falado de si mesmo, o cotidiano, o trabalho, as armas e munições. “Mãe, vendi uma pistola a um padre.” Ela se lembrava de armas e barões assinalados, de memórias gloriosas. “Estou cansado.” E iam dormir.

Aos poucos, mãe e filho foram aprendendo a conviver com a paralisia e a leitura. Ele não precisava catar poemas nos livros. Lesse tudo. E Oliveiros leu Anacreonte, Bilac, Camões. Foi lendo todos os livros da biblioteca de casa. Quando Bartira dormia, ele fechava o livro e ia também deitar-se.

Chegada a vez de Zorrilla, sentia-se Oliveiros cansadíssimo. E, no entanto, sua mãe queria ouvir tudo de novo. Para fazer a seleção do melhor. Assim, quando quisesse ouvi-los outra vez, saberia onde localizá-los. “Por que não tivemos antes essa ideia?”

Outra ideia encantadora chamava-se Oriana. Limpava a casa, preparava as refeições, cuidava de Bartira e lia versos em voz alta: “há muito te procuro na ladeira das tardes em declínio.”

Hemorragia no céu, melancolia nos olhos. “Já vou, Bartira.” E Oriana punha uma fita no gravador. “O vento que veio dentro da mansarda era um azul como os devaneios da tarde.”

A ideia de gravar poemas em fitas caiu do céu. A voz de Oriana era macia; a de Oliveiros, serena. Um pouco de cada poeta.

Então o rapaz sentiu-se mais livre para voar nos ventos de sua juventude. E num domingo de muita luz beijou a testa de sua mãe, pôs uma fita no gravador e saiu, pé ante pé. “A qualquer hora crepitará a chama da presença.”

Demorou-se Oliveiros nos braços da noite. A madrugada o beijou mil vezes, e o afagou e o deslumbrou.

De manhã Oriana encontrou rija a patroa. Chamou vizinhos, gritou, desesperou-se. Onde andava o filho, aquele ingrato? Talvez um crime tivesse acontecido. Solicitaram a polícia. Acionaram o gravador. “A qualquer hora seremos impelidos para o terrível despertar”.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem = http//www.soloimagen.net

Milton Hatoum (Relato de um Certo Oriente)

A obra de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente, nasceu em 1989, quando o autor apresentou à então editora da Companhia das Letras, Maria Emília Bender, o manuscrito de seu livro. Aprovado por Luiz Schwarcz, proprietário da Cia das Letras, o romance foi finalmente publicado, depois de um longo percurso de escrita, iniciado em 1982, na capital francesa.

 Busca mostrar as dificuldades presentes na convivência diária de familiares e amigos entre si, com seus diferentes segredos e comportamentos, faz deste um grande enredo.

O romance mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua própria história, quase que incomunicável com outro mundo que não seja o dele.

A memória, a identidade e a reconstituição de lembranças são os temas principais deste romance. A personagem protagonista consegue, por meio da rememoração de seu passado e com a ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida, dar sentido e valor à sua origem.

A (re)construção do passado é interessante, pois a narradora utiliza de diferentes recursos para reanimá-lo, seja por um odor, seja por uma voz, seja por um lugar. Esses e outros recursos são utilizados como meios de recuperar a memória perdida.

O enredo do romance é uma tessitura de retalhos narrativos que se alinham em oito capítulos. São várias histórias que se entrelaçam e se completam, lembrando assim o estilo da narrativa oral. Estas várias narrações, que em muito lembram a estrutura das Mil e Uma Noites, se desenrolam em um cenário que lembra constantemente as estruturas de passagem que compõem a existência humana.

A trama se passa numa cidade marcada pelo hibridismo cultural e atravessada pelas ideias de fronteira e trânsito: Manaus, uma capital que se separa da floresta pelas águas fluviais e se situa num estado que faz divisa com três outros países. Ela também é a cidade natal do escritor. No livro também estão presentes a diversidade de costumes, línguas, e a convivência entre indivíduos de diferentes nacionalidades.

Nesta busca incansável da personagem principal por sua identidade e suas origens, em uma Manaus que é mais margem do que propriamente uma metrópole, apesar de ser a capital amazonense, o leitor vai desvelando junto com a protagonista um passado repleto de segredos e revelações inimagináveis, relembrando e descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.

Retornando a Manaus, após estar internada em uma clínica de repouso em São Paulo, a narradora chega na noite que precede o dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva.

Inicia-se, então, o trabalho de recuperar Emelie através da memória, não apenas a sua, mas também a de outros personagens que entrelaçaram seu percurso de forma significativa ao daquela família: o filho mais velho, o único a aprender o árabe e que também irá se distanciar de todos, ao mudar-se para o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo; o marido de Emelie, recuperado, mesmo depois de morto, através da memória de Dorner, e Hindié Conceição, amiga sempre presente, a partilhar com a conterrânea a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosaico, nem sempre ordenado, nem sempre claro naquilo que revela, mas sobretudo rico em pequenos detalhes de extrema significação.

No intuito de enviar uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona, a fim de lhe revelar a morte de Emilie, escreve um relato com depoimento de membros da família e de amigos, conforme o irmão lhe pedira na última correspondência que lhe enviara. Esses testemunhos proporcionam uma verdadeira viagem à memória, com regresso à infância e aos fatos marcantes da vida familiar.

No primeiro capítulo, a narradora descreve uma parte da casa na qual acabara de acordar, em Manaus. A descrição das duas salas contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando uma representação estilizada desse local: tapete de Isfahan, elefante indiano e reproduções de ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos ocidentais, tomados como símbolos, que estão presentes nos cômodos.

No romance as histórias falam das possibilidades e das dificuldades do trabalho com a memória, das tensões e da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos diferentes das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na narrativa do Relato, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e são vividas cotidianamente.

O que mantêm a tensão no romance é a narrativa centrada em incidentes – o atropelamento de Soraya Ângela, o afogamento de Emir.

A obra, em sua estrutura e estratégia de composição, parece oscilar entre a narração – em que a figura do narrador é extremamente importante e o relato é feito principalmente com base nas tradições orais, como uma tentativa de rememorar as experiências coletivas do passado – e o romance, que surgiria como um gênero literário devido as transformações da sociedade capitalista, que destrói cada vez mais a possibilidade de que a experiência comum viva e se revele no relato dos narradores.

Este mosaico narrativo é também influenciado por outro retrato memorialístico, tecido pelo francês Marcel Proust no seu clássico Em Busca do Tempo Perdido. Para Hatoum a memória é uma peça fundamental, sem a qual não se tece a verdadeira literatura. E esta obra é, sem dúvida, uma das maiores apologias ao seu poder.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/estudos/livros/relato_de_um_certo_oriente
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/relato-de-um-certo-oriente/

Gustavo Barroso (Emboscada)

A Mello Morais Filho

 Mais tarde, regressava com sua força, ao lado duma moriçaba, quando ao enfrentar uma moita, no lugar Mangabeira, meia légua distante de Lavras, uma bala, partida do mato, o derrubou do cavalo, instantaneamente morto!
      J. Brígido: O Ceará.


                 Apesar dos seus melhores amigos o haverem prevenido com provas cabais que o Inácio de Albuquerque pusera assassinos de tocaia no percurso que tinha que fazer de Umari ao Iguatu, o Estevão de Matos não recuou da resolução que tomara. Ir àquela cidade sertaneja a cavalo, varando o sertão inóspito, representava para ele um compromisso de honra. Havia prometido à firma Ricarte Irmãos saldar as suas dívidas no dia 30 do mês. Os seus negócios de gado em Pedras de Fogo tinham dado lucro suficiente. Possuía o dinheiro necessário ao pagamento das letras que os Ricartes guardavam. Eles lhe haviam emprestado aquelas somas para salvá-lo duma situação aflitiva nos seus negócios. Pusera-os em dia, só lhe restava agora desobrigar-se da promessa. Não haveria forças humanas capazes de o demover. Nem mesmo aceitava o alvitre de mandar pagar por outro. Iria em pessoa, para mostrar à firma que era homem de palavra e para mostrar ao Inácio que não lhe temia os cabras traiçoeiros e a vingança mesquinha.

                A mulher, em lágrimas, rojou-se-lhe aos pés; os filhos pequenos suplicaram-lhe em vão. Marcou o dia da partida. Deu ordens severas para milhar bem o cavalo ruço e preparar um mocó de sustância. Destemeroso, honesto e franco não se arreceava de outro homem. É verdade que dum tiro certeiro de espera ninguém se livrava. Mas ele “sabia onde moravam os mocós”. Era vaqueiro velho, cheio de mocambos, conhecedor de negaças. Andara uns tempos atrás de cangaceiros, guiando destacamentos. Tinha plena confiança em si.

                No dia marcado seguiu viagem. Partiu de manhã, mas não se embrenhou logo nas catingas. Algum esculca o havia de ter espiado e logo corrido a levar a nova aos assalariados das emboscadas. Parou fora da vila, em casa de Matias Florindo, escondeu o ruço na casa de farinha e ali se ficou a parolar com o amigo até a boca da noite. Com o escuro foi embora, levando o animal devagar, a clavina de repetição passada sobre o arção do ginete. Deixou a estrada e meteu-se pelo mato, guiando-se pelas estrelas faiscantes, que avistava por entre a ramaria rala dos paus-brancos. Tinha medo da lua. Nessa noite ela ainda se levantava tarde. Mas ao outro dia nasceria mais cedo e ao outro mais cedo ainda.

                Quando ela clareou o matagal, madrugava já. Distanciou-se mais da estrada que seguia paralelamente, avistando-a, às vezes, por entre os troncos lisos. Num fechado de rompe-gibão, mandacarus e umburanas, onde o pasto verde e suculento cobria o chão, tirou os arreios do cavalo e amarrou-o pelo cabresto a um tronco. Depois, fazendo da carona manta e da sela travesseiro, adormeceu ao pé das árvores.

                O sol nascia.

                Assim viajou mais uma noite e dormiu mais um dia. Na terceira noite de viagem, a lua veio muito cedo. Aquilo contrariava-lhe os planos. Além disso, a catinga naqueles lugares era tão espessa, tão eivada de espinhais, tão acidentado o terreno, de barrocas, pedras e fojos naturais, que só teve um remédio, depois de experimentar o trânsito do mato em várias direções, que foi ganhar a estrada larga e seguir por ela, lento, de ouvido à escuta e olhos à espreita.

                O luar claro escorria pelos troncos alvos e fazia das resinas transparentes lágrimas de luz. Altas, imóveis, as frondes das árvores destacavam-se na claridade do céu. Mães-da-lua gargalhavam ao longe, muito ao longe.

                Os olhos argutos do Estevão notaram que numa gameleira grande, entre dois grossos ramos em forquilha, as folhas eram tão chegadas que por entre elas não se coava o luar. Parou o cavalo e apontou a clavina para aquele escuro da folhagem, na desconfiança instintiva em que vinha de homens atocaiando-o nas moitas e das copas das árvores. O tiro partiu, ecoando nos pedregais. E um vulto de homem tombou mole, lá do alto, a escabujar na estrada branca.

                Do alto de outra árvore mais adiante veio uma voz de homem, dura e cortante no silêncio daquela solidão.

                – Mataste, Chico?

                O Estevão estremeceu. A emboscada era de dois. Que havia de fazer? Se falasse, o salafrário conhecer-lhe-ia a voz e fugiria a prevenir o amo vil da morte do companheiro. Se não falasse, o miserável desconfiaria, havia de tentar espiar o que se passara e iria dar o alarma à chusma acanalhada dos bandidos do Inácio, ou do seu esconderijo talvez o prostrasse com um tiro bem dado. Essa hesitação durou um instante. A sua grande calma ante os perigos salvou-o, ajudada da fertilidade do seu espírito aguçado e todo sutilezas. Soltou um assobio arrastado e discreto, chamando o outro:

                – Fô – fi – i – i – ô – ô – ô...

                Ligeiro, apeou-se do ruço e ficou de pé, de clavina aperrada, no meio do caminho iluminado, ante o corpo do cangaceiro. O outro veio, cauteloso. Ao avistá-lo na claridade do luar, levou a arma à cara. O tiro partiu e o bandido caiu de joelhos, com um grito. Depois tombou de frente no barro, estorceu-se alguns segundos. Aquietou-se por fim.

                Ao seu grito, só o eco respondeu. Nem uma voz soou nas espessuras das moitas ou baixou da ramada das umarizeiras. Pesou um grande silêncio no sertão enluarado. O Estêvão montou o ruço. Acendeu o cachimbo e largou veloz pela estrada em fora...

 (Gustavo Barroso, Praias e Várzeas; Alma Sertaneja, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979, Coleção Dolor Barreira, págs. 60/62)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Início do Século XX – Gustavo Barroso

Ao analisar os anos de 1909 e 1910, Dolor Barreira assim se manifesta: “O conto, de sua parte, adormecera desde os buliçosos e entusiásticos tempos da Padaria Espiritual e do Centro Literário, com José Carvalho, Eduardo Saboia, Artur Teófilo, Viana de Carvalho, Soares Bulcão, Aníbal Teófilo, Pedro Moniz, Frota Pessoa, Marcolino Fagundes, Joaquim Fabrício e outros”.

Além desses, muitos outros contistas surgiram nos primeiros anos do Século XX, quase todos dedicados muito mais à poesia do que ao conto: Alf. Castro (Alfredo de Miranda Castro, nascido em Pernambuco), Antônio Furtado (autor de Ideia Fixa, contos, 1931), Atahualpa Barbosa Lima, Bezerra Filho, Carlos de Vasconcelos (Granja, 1881 - Rio de Janeiro, 1923, publicou os contos de Os Deserdados, 1921), Carlyle Martins (além dos inúmeros volumes de poemas, deixou Alma Rude, contos, 1960), Clovis Monteiro, Cruz Filho (poeta e historiador, publicou tardiamente Histórias de Trancoso, 1971), Daniel Lopes, Domingos Bonifácio, Edigar de Alencar (Fortaleza, 1901. Jornalista, cronista e poeta. Na orelha do livro de poemas Galé Fugido, de 1957, há referência a Volta da Jurema, título geral de seus contos, nunca publicados), Ernesto Paula Sena, Estevam Mosca, Francisco Matos, Genuíno de Castro, Gil Amora, Gustavo Frota Braga, João da Maia, José Luís de Castro, José Potyguara ou Potiguara, Maria Stela Barros Nascimento, Martins Capistrano (Canindé, 1905, editou Turbilhão, contos), Melo Sidney, Ocelo Sobreira, Pancrácio Júnior, Pontes Vieira, R. Magalhães Júnior (Ubajara, 1907-1981, poeta, biógrafo, contista, autor de Impróprio para Menores (1934) e Fuga e Outros Contos (1936), ambos de narrativas curtas), Saboia Ribeiro (Jaguaribe, 1898, contista, romancista, poeta e ensaísta, imprimiu em 1933 os conjuntos de histórias curtas Rincões dos Frutos de Ouro, premiado pela Academia Brasileira de Letras, e Contos do Cacau, em 1966) e Santino Gomes de Matos.

Braga Montenegro afirma que “o conto cearense só adquiriu substância e qualidade artísticas após ou simultaneamente à guerra, com novos nomes e novas intenções estéticas”.

Desse período dois nomes merecem destaque: Gustavo Barroso e Herman Lima.

Gustavo Barroso

Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza, 1888 - Rio de Janeiro, 1959) exerceu o jornalismo em sua terra natal, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o curso de Direito, iniciado em Fortaleza. Voltou ao Ceará como Secretário do Interior e Justiça, em 1914, exercendo depois mandato de deputado federal pelo Ceará. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi dela presidente por duas vezes. Sua vastíssima bibliografia, que chega a quase cem títulos, versa os temas mais diversos. Cultivou a História, a sociologia e o folclore. De contos, publicou: Praias e várzeas (1915), Mula sem cabeça (1922), Livro dos milagres (1924), O Bracelete de safiras (1931).

Sânzio de Azevedo informa que “se trata de um dos maiores vultos do conto realista e regionalista do Ceará”. E acrescenta à lista de suas coleções de histórias O Livro dos Enforcados (1939), sobre o qual diz o seguinte: “tão esquecido de quantos enumeram os contos de Gustavo Barroso, e que, não obstante seja baseado em acontecimentos históricos, retirados da crônica criminal do Ceará, reúne algumas narrativas do mais autêntico sabor ficcional”. Numa análise de várias páginas do ensaio citado linhas atrás, assegura o crítico: “Não é difícil perceber a segurança com que Gustavo Barroso trabalha o conto, não o alongando excessivamente, e demorando-se em descrições apenas o estritamente necessário à pintura do ambiente e à preparação do clímax da fabulação”.   

Otacílio Colares, no ensaio “Gustavo Barroso e o Regionalismo”, introdução à edição de 1979, da Livraria José Olympio Editora, de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja, num só volume, reabre a questão: estes escritos são contos ou apenas estórias populares adaptadas? “Num como noutro destes livros daquela prosa que diríamos ser ainda alencarina, pela musicalidade, mas, já em parte, pessoal, pelo cunho de realismo regional, quase – diríamos – tendente ao documental, num como noutro, o leitor preocupado com definições rígidas esbarra com o dilema: são contos o que está em ambos os volumes reunidos, ou apenas o são no que a palavra conto significa invenção e a palavra raconto é entendida como repetição (podendo ser modificada) de velhas narrativas.”

Braga Montenegro vê nele o ponto culminante da narrativa curta no Ceará nos primeiros anos do século XX. Entretanto, vamos nos ater aqui apenas a dois de seus livros de histórias curtas: Praias e Várzeas, de 1915, e Alma Sertaneja, de 1923. Para Otacílio Colares os episódios do primeiro livro seriam “racontos de estórias passadas de pais para filhos.” E acrescenta: “Como se pode facilmente verificar, há todo um contexto informativo a par do conteúdo, vamos dizer, ficcionístico ou literário. E, acima disto, a preocupação de empregar toda uma terminologia regional praiana” (...). Na verdade, o que mais chama a atenção do leitor nestes dois livros de Gustavo Barroso é a estruturação das narrativas nos moldes dos contos populares ou das histórias orais. A manipulação da linguagem erudita e popular se faz tanto no discurso direto como na descrição de ambientes e personagens e na narração propriamente dita. A par disso vem o núcleo básico de cada episódio, sempre envolto em tragédia. Outra característica destes contos é a fiel retratação dos ambientes praianos, varzianos e sertanejos do Ceará. Quanto aos narradores e personagens, verifica-se a presença quase que constante de dois narradores: um narrador-testemunha, que se confunde com o próprio escritor e inicia a estória, e um protagonista-narrador, que conta o episódio principal, quase sempre em diálogo com o primeiro ou instigado por este. Em quase todos os contos o narrador-escritor inicia a narração e, em seguida, a “entrega” ao narrrador-testemunha ou protagonista. Apesar disso, a oralidade sertaneja ou praiana não descamba para a linguagem puramente regional e popular. O escritor conduz a fala do outro narrador, sem prejuízo do uso de vocábulos (substantivos e verbos) e expressões regionais.

Em “Velas Brancas” o protagonista é Matias Jurema, “velho pescador do Meireles”, em Fortaleza. A referência aos objetos de uso em pescaria é minuciosa: samburás, tarrafas, poitas, jangadas, tauaçus, quimangas. O narrador não participa da história, é o próprio escritor. E o conflito do velho pescador com a vida e o mar se faz em silêncio e solidão.

A descrição do ambiente praiano em “Finados” é soberba: coqueiros frondosos, praia branca, jangadas e suas velas abertas, no povoado de Mundaú. E a história remete a uma das crendices do povo da praia: “Quem vai pescar dia de finados sujeita-se a não voltar e morrer de assombração no mar” (...). Lucas, no entanto, quer afrontar a morte e sai ao mar. No dia seguinte “os jangadeiros encontraram restos de uma jangada e no meio deles, espetado em pontas finas de rochas lodentas, o cadáver de Lucas.

Em “Naufrágio” “o mar tinha uma calma aparente”, um iate navegava com quatro tripulantes. E a história, “vista” do mar, vai adquirindo ares de tragédia. Primeiro “lufadas imprevistas”, depois outra rajada, a neblina, a chuva. “E o iate virava de bordo no espumejar da vaga.” Os ventos se tornam fortes, terríveis, “a crescer numa espantosa velocidade.” Finalmente “houve uma grande pancada”. Dois homens, “cuspidos n’água, debatiam-se em desespero.” O barco “foi-se afundando, afundando.” De manhã “boiavam cadáveres e fragmentos de tábuas ao sabor das ondulações.”

Em “O Pescador”, como em outros contos do livro, há logo no início uma descrição: as ondas, a praia, coqueirais, dunas, rochedos, um farol. Paisagem pintada com exuberância, para que nela os personagens se movimentem. No terceiro parágrafo surge um personagem. Antes dele, porém, mais um pedaço do ambiente: uma choupana pobre. Pedro Jojó se move: “pôs o uru a tiracolo, enrodilhou a tarrafa no braço, segurou ao cinto a quicé afiada e dispôs-se a partir para a pescaria”. Outra crendice do povo da praia: a do “pescador encantado”, mau e governante das águas e dos peixes do rio. Pedro se diz incrédulo, a despeito dos pedidos de sua mulher. Metido nas águas da barra do Pacoti, o pescador vê erguer-se “um vulto que saía das águas.” No dia seguinte pescadores depararam o cadáver de Pedro.

A destoar das narrativas anteriores, “Santa” é narrada na primeira pessoa: testemunha ou o próprio escritor. Além disso, trata-se de episódio do sertão, em tempo de “seca brava”. Otacílio Colares o chama de “narrativa de cunho regional”. O narrador, sem nome explícito, cavalga um cavalo na serra do Pereiro. A paisagem seca é descrita aqui e ali. Uma personagem aparece na segunda página: “uma cabocla forte e esperta”. Em seguida se apresenta o marido dela, “um caboclo ossudo, alto”. Já quase no final da narrativa o segundo personagem se faz narrador para contar a história da santa do título. Dois personagens participam da trama: “o velho Chico de Paula” e sua mulher, a santa. E as duas tramas se cruzam, como se personagens reais passassem a conviver com personagens fictícios. A segunda mulher, a santa, já envelhecida, se mostra no cenário onde se encontram o narrador inicial, a cabocla e seu marido, o narrador do conto da santa.

Outra história de cenário sertanejo é “Espectro”: “A paisagem tinha a tristeza dos ermos” (...). Na paisagem, uma fazenda, a capela senhorial, com seu sino de cobre, a residência feudal do padre Ferreira, “um dos homens mais ricos e poderosos do sertão”, o protagonista. O ponto de vista onisciente conduz o leitor ao passado (ao tempo da escravidão, quando “estralejavam os chicotes dos capatazes”), à vida do personagem, a esbanjar riqueza, em meio à pobreza de seus servos, açoitados por qualquer motivo, até a morte, quando o cavalo em que viajava espantou-se e o levou ao chão. E mais uma vez a crendice: o corpo do padre desapareceu, levado pelo diabo. Na tarde do enterro viram “um negro todo encourado surgir na casa da fazenda”. (...) “Era Satanás em pessoa” (...).

O narrador de “A Luíza do Seleiro” é um viajante do sertão, uma testemunha ou o próprio escritor. O ambiente é o vale do Aracoiaba, nas proximidades das “serras do Baturité e do Acarape”. O narrador descreve a mata verde, as flores selvagens, as árvores, as águas mansas. Na terceira página se mostra o segundo narrador, o da narrativa do título. A personagem é descrita: “olhos rasgados e negros”, “pele macia e aveludada”, “grumos vermelhos dos seus lábios”. Mais adiante se revela outro personagem, Estevão Nunes, “filho de um fazendeiro rico”, estudante na cidade do Forte (Fortaleza). Um dos contos mais longos dos dois livros.

O protagonista de “O Patuá” é Chico de Paula, um saco de pancadas ou “armazém de pancadas”, seu apelido. O episódio transcorre na vila do Riachão, “ribeira sertaneja”. Tudo gira em torno de um patuá, um amuleto que faz do personagem um valentão, capaz de enfrentar cangaceiros.

Um dos contos ambientado em várzea é “Absalão”, nome de personagem bíblico. “A catinga acabava ali” (...) “e para diante várzeas estendiam-se planas”. O protagonista (pode-se dizer assim) é um velho touro chamado Orelhudo. A última refrega do animal com homem é o desfecho: a morte do vaqueiro, em primorosa narração.

História de violência, vingança e morte é “O Filho do Gurari” (gurari é “nome dum pau duro e espinhoso”), cuja ação decorre cem anos atrás, segundo Otacílio Colares, isto é, por volta de 1880. Grupos familiares em luta: de um lado, descendentes diretos de europeus, sobretudo holandeses, os Cavalcantis; de outro, netos de portugueses com índios Paiacus. De uma matança escapa um bebê, que é levado pelo grupo vencedor e criado como filho do chefe. Feito rapaz, é morto a mando do pai adotivo, por medo deste de que o jovem tome ciência da história da chacina.

Tema parecido com este é o de “Emboscada”, cuja ação se desenrola entre Umari e Iguatu. No entanto, o feitiço vira contra o feiticeiro: o emboscado acaba se dando bem, matando os dois homens encarregados de o matarem.

O segundo livro, Alma Sertaneja, tem como subtítulo “contos trágicos e sentimentais do sertão”. Na verdade algumas narrativas do primeiro também se adaptam a este modelo. A maioria das histórias sertanejas segue o mesmo esquema narrativo: um narrador não identificado ou sem nome explícito inicia a narrativa e apresenta o segundo narrador-personagem ou testemunha. Os animais do sertão mais uma vez estão presentes como personagens. É o caso do touro Azulão, de “Marialva Sertanejo”. O heroísmo, a valentia, a coragem do sertanejo, ao lado da miséria, da fome, da seca, são assuntos desses contos. Em “O Come-Gente” Gustavo Barroso atinge o clímax do realismo, com o personagem Luiz Zambeta, “que ficou maluco de fome” e se tornou “estropófogo” (antropófago). Em “O Drama do Guriú” a fome é dos tubarões (história praiana), que devoram toda uma família, à exceção do chefe. “Os infelizes debatiam-se nas águas movediças e os tubarões, virando-se de dorso para baixo, vinham furiosamente, os papos amarelos à mostra, atacar os prisioneiros do oceano.” Em “A Alma do Turco” não há um segundo narrador, mas diversos. Os personagens-narradores se acham numa barranca do rio Quixeramobim. Teodósia conta o último episódio, o do título. O protagonista é um animal, um cachorro grande, o Turco. Tanto o narrador-escritor como a narradora-testemunha fazem questão de dar alma ao animal ou de humanizá-lo. Acusado de furtar queijo e espantar e matar galinhas, o cão é escorraçado de casa diversas vezes. Ao final, se deixa morrer ou morre de tristeza, ao perceber a aproximação do dia em que será levado por um paroara para muito longe, um seringal no rio Xingu, no Amazonas. Em “A Moça da Sapiranga” o primeiro narrador se acha, com outros personagens, ao pé da serra da Tucunduba, após atravessar o rio Ceará. O segundo narrador, Maneco, conta história ocorrida em Orós, a da moça com sapiranga nos olhos. Em “Os Noruegueses do Sabiaguaba” o primeiro narrador se revela um pouco, ao anunciar ao leitor: “E era isso o que a minha curiosidade de escritor ia procurar na casa vetusta do Curió.” A narrativa acontece em Sabiaguaba, “um recanto de praia e bem bonito, por sinal, entre a barra do Rio Cocó e a do Pacoti.” Em “Chifre de Cabra” o narrador-protagonista é João Gameleira, o pajem do narrador-escritor. O episódio se dá na cidade de Quixeramobim. Mulher trai marido, João Gameleira, e é por ele assassinada, juntamente com o outro. Também história de seca é “A louca”, a lembrar “Come-Gente”. Nela o ponto de vista onisciente não deixa entrever um narrador-personagem ou testemunha. O protagonista é Domingos Lopes. Acossado pela seca, vaga pelos sertões. Depara uma casinhola no meio do sertão. Na entrada vê “o cadáver dum cachorro magro”. Dentro da casa, “os corpos apodrecidos de três pequenas crianças”. A seguir, depara a mãe, a louca do título. Na serra de Baturité acontece o episódio de “O Poço das Piranhas”, a lembrar velhas narrativas de horror. Outra história de seca é “Os Filhos do Capitão João Pedro”, ambientada em Fortaleza. Um dos poucos contos em que a capital cearense, ou o seu litoral, é retratada. “Mano Francisco” se inicia com “Sertão inóspito!” É o sertão de Mombaça. O protagonista é Francisco, irmão do narrador-testemunha, “uma coisa medonha”, “um monstro em forma humana”. O tema é a loucura. O homem “ficou doido varrido”, matou um irmão com a mão-de-pilão e “está convencido que virou leão!” O ponto de vista onisciente é retomado em “O Perdão das Trevas”, no qual mais uma vez a seca é tema. Em “O Lobisomem” o contista “engana” o leitor, desde o título e a primeira frase: “Estórias de lobisomens!” Na verdade, se trata de história de um falso lobisomem, o vaqueiro Geraldo, “que tinha fama de homem honesto”, porém mais interessado num pacote de dinheiro do que em sangue humano. A história transcorre em 1899, na ribeira do Banabuiú. A última narrativa, “Como eu Matei a Maçaroca”, também se localiza no sertão, ao tempo dos cangaceiros e de onças, as maçarocas. São diversos pequenos episódios. O narrador onisciente dá voz ao narrador-personagem, o anspeçada Xico Linheiro, o matador da onça.

A matéria-prima dos contos de Praias e Várzeas e Alma Sertaneja é, pois, a natureza em toda a sua pujança e o homem como ser biológico e como ser cultural, este integrado àquela não apenas na paisagem, mas na própria vida (ação), o que faz de Gustavo Barroso um contista (um escritor) pinturesco e, ao mesmo tempo, dramático (drama, conflito) da terra e da gente cearenses.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Isabel Furini (Relançamento do Livro de Poemas: “Os Corvos de Van Gogh”)

Terça-feira, 26 de novembro, a partir das 19 horas, será relançado o livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” da escritora e poeta premiada Isabel Furini, no Palacete dos Leões, Av. João Gualberto, 570, Alto da Glória, Curitiba.

Van Gogh foi um artista obstinado, um mestre, um pintor genial.  Ignorado pelos homens de sua época, sua obra foi reconhecida depois da sua morte. Isso o torna ainda mais fascinante. 

O livro de poemas “Os Corvos de Van Gogh” procura perceber os movimentos da alma de Van Gogh e os corvos da tristeza e da frustração presentes na sua vida. 

A obra é apresentada pelo poeta Benilson Toniolo, nas orelhas as artistas plásticas Sandra Hiromoto e Cláudia de Lara também dão a sua visão. 

No final do livro o escritor José Feldman faz uma breve biografia do pintor. 

O livro fala dos “corvos de Van Gogh”, além daqueles eternizados no quadro “Trigal com Corvos”, quadro pintado pelo artista pouco tempo antes de sua morte, os poemas representam o medo, a frustração, a solidão, ou seja, os “corvos” interiores.

Na continuação, um poema do livro:

CAMPO DE TRIGO (Van Gogh, 1890)

Corvos ferinos, mímicos ferinos,
sombras da genialidade.

Murmúrio
de rios subterrâneos,
canal das águas do inconsciente,
campo de trigo com pretos corvos
moendo
as tenebrosas horas.

O vento sussurra
entre os ouvidos e a tela.
– quase um ulular de morte.

Fonte:
A Autora

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Rodolpho Abbud (Caderno de Trovas)

A batida no portão
é o sinal convencionado
para avisar que o patrão
vem chegando do outro lado!
**
Acredite quem quiser,
seja o motivo qual for,
em caprichos de mulher,
quando faz juras de amor!...
**
A culpa é minha e é tua,
de quem vê e não faz nada,
se ainda há meninos de rua,
dormindo numa calçada!...
**
A doença comentada
correu mundo, ganhou fama,
pois na pensão "afamada"
ela só vive de cama!…
**
À noite, ao passar das horas,
esqueço os dias tristonhos,
pois tuas longas demoras
dão-me folga para os sonhos!
* *
Ao hospício conduziu
a mulher para internar…
Feito o exame, ela saiu,
e ele teve que ficar!…
* *
Ao se banhar num riacho,
distraída, minha prima
lembrou da peça de baixo
quando tirava a de cima ….
* *
Aos Teus pés eu me ajoelho,
erguendo graças Senhor!
- Quem me dera ser espelho
para a Luz do Teu Amor!
**
Ao ver o frango fugindo
de um outro, num pega-pega,
diz a galinha: Que lindo!
- E o pato: "Tem mãe que é cega"!...
* *
Após batida no morro,
indaga o Zé, com malícia:
-A quem eu peço socorro,
ao ladrão ou a polícia?
* *
Aproveita, criançada,
o tempo, alegre, ligeiro,
que da a uma simples calçada
dimensões do mundo inteiro!
* *
A saudade é tão travessa
que ninguém pode esquecê-la
e a cortina mais espessa
jamais consegue esquecê-la!
* *
Às vezes, num recomeço,
há tal vontade de amar,
que se paga qualquer preço
que a vida queira cobrar!...
* *
A vida é romance breve,
de mistério, onde, com arte,
sem saber, a gente escreve
somente a primeira parte!...
* *
A violência e outras formas
de opressão, mesmo discretas,
não conseguem ditar normas
aos corações dos poetas!
* *
Brasília, o cinquentenário
daquela visão futura
dos sonhos de um visionário
e um gênio da arquitetura!
* *
Cama nova, ele sem pressa
ante a noivinha assustada,
quer examinar a peça
julgando já ser usada!…
* *
Chegaste a sorrir, brejeira,
depois da tarde sem fim…
E, nunca uma noite inteira
foi tão curta para mim!…
* *
Compensando o meu desgosto
por longos dias tristonhos,
à noite eu vejo teu rosto
no espelho azul dos meus sonhos.
* *
Computador... celular...
tudo a ela é oferecido...
- Só lhe falta programar
um robô para marido!...
* *
Contemplo o céu para vê-las
com um respeito profundo,
pois na raiz das estrelas
eu vejo o dono do mundo.
* *
“Dá-me um tempo, ela me disse,
ante o apelo que lhe fiz...
- Agora chega à velhice,
sem tempo de ser feliz!
* *
Dando um susto na mulher,
chega em casa bem cedinho...
- Nem imagina sequer
o susto de seu vizinho!
* *
Dê carona ao seu vizinho!”
E a Zezé, colaborando,
vai seguindo o meu caminho
e me dá de vez em quando!…
* *
Deixando os homens aflitos,
a mulher, por timidez,
faz mistérios infinitos,
quando responde talvez!...
* *
Dela não quero mais nada...
- Tranquei a porta e o portão...
- E a saudade, mais ousada,
alojou-se em meu porão!...
* *
Depois do sonho desfeito,
louvo o porvir que, risonho,
não me recusa o direito
de escolher um novo sonho!
* *
Depois que tudo termina,
na indiferença ou na dor,
nenhum farol ilumina
o naufrágio de um amor...
* *
Disfarçando teu perfume,
mudaste até de fragrância,
mas, nas cartas, teu ciúme
eu sinto a longa distância!
* *
Diz, em segredo, na venda:
"O meu marido acabou!..."
- E houve uma briga tremenda:
a vizinha concordou!...
* *
D. João VI cria a antiga
Vila do Morro Queimado!...
- E a Nova Friburgo liga
seu presente ao seu passado!..
* *
Do energético sapeca,
tirou a prova e deu fé...
- Com dois pingos na careca,
ficou de cabelo em pé!...
* *
Duzentos anos passados...
mas a História permanece!
- Naqueles morros queimados
Nova Friburgo, hoje, cresce!
* *
É força que vem comigo
e no tempo não se esvai:
– Sempre que eu falo de amigo
eu me lembro de meu pai!
* *
Ei, garçom, veja o meu prato!
Tem dois cabelos na beira...
- Por um P.F. barato,
quer ver toda a cabeleira?
* *
Ela é mulher de vanguarda,
motorista de primeira
que ouvindo o apito do guarda,
já vai mostrando a carteira!
* *
Ele pede economia
e ela encontra seu caminho,
poupando sua energia
com o “gato” do vizinho!
* *
Embora livre, sozinho,
não conheço liberdade...
- Fui presa do teu carinho,
hoje estou preso à saudade!...
* *
Em nosso encontro, em segredo,
a vida nos foi covarde:
- Fui eu que cheguei mais cedo,
ou você que chegou tarde?...
* *
Em problemas envolvida,
por um beco se meteu,
que não tinha nem saída,
e, mesmo assim, se perdeu! …
* *
Em seus comícios, nas praças,
o casal cria alvoroços:
- Vai ele inflamando as massas!
- Vai ela inflamando os moços…
* *
Em tudo o que já vivi,
nessa passagem terrena,
se um pecado eu cometi
com ela, valeu a pena!…
* *
É noite... a porteira range
no rancho, à beira da estrada
e o luar, saudoso, tange
os clarões da madrugada!
* *
Enquanto um velho comenta
sobre a vida: -”Ah! Se eu soubesse…”
um outro vem e acrescenta
já descrente: -”Ah! Se eu pudesse…”
* *
Entre esperas e procuras,
encontros e despedidas,
somadas, nossas loucuras
dão mais vidas as nossas vidas!...
* *
Entre os livros, esquecida,
na estante bem arrumada
e contém toda uma vida
essa carta amarelada!
* *
Eu... você... nossa lembrança
de um grande amor, puro, terno,
que um capricho da esperança
simulou que fosse eterno!..
* *
Eu finjo que estou contente…
Ela finge que está triste…
– No canto do amor, a gente
desafina… mas resiste!…
* *
Eu tenho pressa, é verdade,
pois este amor me arrebata...
E se eu não mato a saudade,
a saudade é que me mata!
* *
Foi um erro, reconheço,
o nosso medo de amar...
- E hoje pagamos o preço
por nosso medo de errar!...
* *
Foi um gesto de nobreza,
nas lides duras e bravas:
mãos livres de uma princesa
libertando mãos escravas!...
* *
Foram tais os meus pesares
quando, em silêncio partiste,
que, afinal, se tu voltares,
talvez me tornes mais triste…
* *
Foste embora... e, amargurado,
sufoquei minha revolta
tentando a volta ao passado,
mas o passado não volta!...
* *
Foste embora... e, por encanto,
vejo, no amor que alucina,
teu sorriso em cada canto
e teu vulto em cada esquina!
* *
Hei de vencer esta sina
que num capricho qualquer,
me fez amar-te menina
depois negou-me a mulher!…
* *
Mantendo os olhos enxutos,
na dor da tua partida,
eu sufoquei, por minutos,
o pranto de toda a vida.
* *
Manténs o mesmo calor,
com tal graça e timidez,
que, em cada noite de amor,
eu sinto a primeira vez!...
* *
Mesmo nos dias tristonhos
que a vida insiste em nos dar,
liberdade é perder sonhos,
sem desistir de sonhar!
* *
Minha dor foi mais intensa,
ao ver, no adeus, na incerteza:
eu, fingindo indiferença...
você, fingindo tristeza!...
* *
Minha magoa e desencanto
foi ver, no adeus, indeciso:
- Eu disfarçando o meu pranto…
- Tu disfarçando um sorriso…
* *
Minha sogra, no antiquário,
não ouvindo meu conselho,
abriu a porta do armário
levando um susto no espelho!
* *
Muitas mulheres vieram,
mas... um capricho infeliz
deu-lhe todas que o quiseram
e jamais a que ele quis!...
* *
Muitas vezes nesta vida,
a origem de muita zanga
é uma mulher bem vestida
deixando os homens "de tanga"...          
* *
Na angústia vejo, indeciso,
no amor que me desespera,
que o prêmio do teu sorriso
vale o castigo da espera!
* *
Na ansiedade das demoras,
quando chegas e me encantas,
mesmo sendo às tantas horas,
as horas já não são tantas…
* *
Na briga, há pratos voando,
quebradas mesa e cadeira,
mas, vendo a sogra chegando,
diz que tudo é brincadeira.
* *
Na casa do faroleiro
esta ironia ferina:
Lá fora o imenso luzeiro...
- e dentro,uma lamparina.
* *
"Não conto mais com você!..."             
- Diz a mulher, lá da sala.
"Se no verão não se vê,
no inverno, então, nem se fala !..."
* *
Não gastando o celular,
o “pão duro”, em seus intentos,
querendo economizar,
só liga o 0800...
* *
Não me importa o beijo às pressas,
em meio às brigas e às pazes,
pois eu vivo das promessas
que mentindo tu me fazes...
* *
Não reclamo do desgosto,
nem faço queixas a esmo...
Esta máscara em meu rosto
também engana a mim mesmo...
* *
Não sei como não soubeste
mas o amor veio, infeliz…
Eu te quis, tu me quiseste,
mas o Destino não quis…
* *
Não sendo um homem moderno,
meu pecado e insensatez
foi jurar amor eterno
e amar somente uma vez!…
* *
Não vens... na casa fechada,
a saudade, em horas mortas,
nunca espera na calçada:
- Se esgueira através das portas.
* *
Na pensão da "dona" Estela,
há curiosos pensionistas:
Tem um dentista "banguela"
e gordos nutricionistas !...
* *
Na pensão junto ao quartel,
visitas, sem distinção,
do recruta ao coronel,
comem do mesmo feijão!...
* *
Naquele hotel de terceira,
que a policia já fechou,
a Maria arrumadeira
muitas vezes se arrumou!
* *
Nas buscas que o homem faz,
sem sucesso, andando a esmo,
se busca encontrar a paz,
tem que encontrar-se a si mesmo...
* *
Nas lojas sempre envolvido,
não tem crédito jamais…
- ou por ser desconhecido,
ou conhecido demais !…
* *
Na vida, a bem da verdade,
quando se trata de amor,
loucura não tem idade,
sexo, raça, credo ou cor!...
* *
Na vida, em toscos degraus,
entre tropeços a sustos,
mais que a revolta dos maus,
temo a revolta dos justos!
* *
Na vida, lutar, correr,
não me cansa tanto assim…
O que me cansa é saber
que estás cansada de mim!
* *
Nessa paixão que me assalta,
misto de encanto e de dor,
quanto mais você me falta
mais aumenta o meu amor!…
* *
No abandono que o consome,
é quase um mito o menino
que, na rua, não tem nome,
não tem lar, não tem destino!...
* *
No amor, um leve queixume
não é mal, se a gente pensa
que onde nos falta o ciúme...
é que sobra a indiferença!...
* *
No hospício, foi grande o susto,
quando o Zé, no "elevador,"
procurava, a todo custo,
o botão do "baixa dor"!...
* *
No palco, o adeus indeciso ...
e o cenário, um desencanto ...
- Se era falso meu sorriso,
era mais falso teu pranto!...
* *
Nosso amor se eleva ao cume,
naquela poesia infinda
da pontinha de ciúme
que você conserva ainda!
* *
Nosso Príncipe comprova,
pois é dele a grande glória,
que o mundo novo da Trova
também faz parte da História!...
* *
Nosso rancho abandonado,
você, a rede, o luar,
são lembranças de um passado
que não deseja passar!
* *
Nossos afagos exalto,
sem ritos ou convenções,
pois sempre falam mais alto
do que mil declarações!
* *
Nosso sonho deu em nada,
mas nosso amor ergue a voz,
em busca de outra alvorada
que vive dentro de nós!
* *
Nosso encontro …O beijo a medo…
A caricia fugidia…
Nosso amor era segredo,
mas todo mundo sabia…
* *
No "terreiro" ela, com pressa,
Já querendo "se arrumar"
diz que o "santo" é mole à beça...
- Sobe muito devagar!...
* *
Numa ronda de rotina,
busco o amor, rompendo espaços,
mas, quando a busca termina,
eu sempre estou nos teus braços...
* *
O amor deve ser lembrado
sem mágoas, sem dissabor.
Pondo algemas no passado,
não se prende um grande amor!
* *
O amor tem tantos arranjos,
nos feitiços que quiser,
que nos parecem dos anjos
os sorrisos da mulher!...
* *
Ouvindo tuas propostas,
com muito amor, de mãos juntas
eu, que fui buscar respostas,
voltei cheio de perguntas!...
* *
Para aquecer sua vida,
ela tem, sempre à noitinha,
além da boa batida,
canja quente da vizinha!
* *
Para quem tudo é bonito
se a própria mesa está cheia,
chega quase a ser um mito
saciar a fome alheia!...
* *
Para um jantar convidada
por nudistas assumidos,
“pagou mico” indo pelada,
pois todos foram vestidos!...
* *
Passa a nudista na praia
e o guarda, apito na mão,
leva a mais sonora vaia,  
ao cobrir sua "infração"!
* *
Passa o tempo... e eu vivo aqui,
sozinho, em noites de tédio...
- E ainda dizem por aí
que o tempo é o melhor remédio!...
* *
Passei muita noite insone,
ante a voz, macia e bela...
- Quase quebro o telefone
quando vejo a cara dela!
* *
Pelo "saudoso", intrigada,
já suspendeu sua prece...
- É no quarto da empregada
que seu fantasma aparece!...
* *
Perdi, de todo, a alegria,
quando percebi, tristonho,
que em teu amor não cabia
a ousadia do meu sonho!
* *
Por você sigo a jornada...
e o caminho é sonho, é mito!...
- Que importa se é longa a estrada?...
- Também meu sonho é infinito!...
* *
Provando em definitivo
que o Brasil é de outros mundos,
há muito “fantasma” vivo
passando cheques sem fundos…
* *
Quando a fé nos ilumina,
mesmo nas horas mais turvas,
as ruas não têm esquina
e as estradas não têm curvas!
* *
Quando nada mais nos resta,
já bem no fim da descida,
a saudade é fim de festa
do que foi festa na vida!
* *
Quase ao fim dos nossos prazos,
nosso céu tem luz ainda...
Juntando os nossos ocasos,
a noite será mais linda!...
* *
Quem se veste de esperança
vive de alma agradecida,
quando, todo dia, alcança
o grande prêmio da vida!
* *
Quem tem fé não sente medo
e enfrenta as ondas do mar,
pois sempre vê, num rochedo,
alguma estrela a brilhar!
* *
Seja doce a minha sina
e, num porvir de esplendor,
nunca transforme em rotina
os nossos beijos de amor…
* *
Sê, meu filho, um destemido,
pois, na vida, cedo ou tarde,
mais vale a dor do vencido
do que o pranto do covarde!
* *
Sem preconceitos escravos,
nesta vida, sem alardes,
tanto há prudência nos bravos
como ousadia em covardes!...
* *
Sempre tendo muita pressa,
ao morrer, a sogra é assim:
- chega onde a fila começa...
e, depressa, volta ao fim!...
* *
Sem você, meu rumo é incerto
aumentando a solidão...
E penso estar num deserto
no meio da multidão!
* *
Sem você, minha rotina
é aguardar o fim do dia,
quando a noite abre a cortina
para a sessão nostalgia!...
* *
Seu feitiço me seduz
e alcança tal dimensão,
que eu consigo ver a luz,
mesmo em plena escuridão!.
* *
Sob um arbusto na praça,
o casal fez seu retiro,
mas, quando a polícia passa,
não se ouve nem um suspiro!
* *
Soube o marido da Aurora,
ela não sabe por quem,
que o vizinho dorme fora,
quando ele dorme também…-”
* *
Sua voz não foi ouvida,
dando-me adeus, só porque,
as vozes da minha vida,
falam-me sempre em você.
* *
Tamanha angústia me invade
ao lembrar que te beijei,
que chego a sentir saudade
dos beijos que não te dei.
* *
Tendo você ao meu lado,
tudo esqueço e sigo em frente...
- Que me importa seu passado,
se você faz meu presente?...
* *
Ter pressa não é pecado,
mas pode ter alto custo...
Um julgamento apressado
muitas vezes não é justo!
* *
Toda a receita anda pasma,
sem achar explicação...
- Tem funcionário fantasma
que recebe até serão!...
* *
Toda noite sai “na marra”,
Dizendo à mulher: -”Não Torra!”
Se na rua vai a farra,
em casa ela vai à forra!…
* *
Um Deputado ao rogar
ao Senhor, em suas preces,
pede que o verbo “caçar”
não se escreva com dois esses!…
* *
Um longo teste ela fez
de cantora, com requinte…
Cantou somente uma vez,
mas foi cantada umas vinte!…
* *
Vendo a viúva a chorar,
muito linda, em seu cantinho,
todos queriam levar
a “coroa” do vizinho…
* *
Vamos brincar de mãos dadas,
crianças pretas e brancas!…
O sol de nossas calçadas
não tem porteiras nem trancas!
* *
Velhote, "cabra da peste"
diz que, quando dá saudade,
toma o remédio, faz teste,
mas fica só na vontade!...
* *
Veja o mico que eu paguei:
na tentação, no desvio,
de uma garota escutei
a ducha fria: “Oi, titio”!...
* *
Vejo a onda pequenina
que, às vezes, rude, se alteia,
mas, afina, feminina,
morre de amores na areia!...
* *
Vejo em minhas fantasias,
em Friburgo, pelas ruas,
mil sois enfeitando os dias
e, à noite, a luz de mil luas.
* *
Vem amor, vem por quem és!
Pois já tens, em sonhos vãos,
minhas noites a teus pés,
meus dias em tuas mãos!…
* *
Vendo a viuva a chorar,
muito linda, em seu cantinho,
todos queriam levar
a “coroa” do vizinho…
* *
Vendo uma bruxa eu me oculto
tentando esconder-me dela...
Pior foi ver outro vulto:
-Minha sogra na janela!
* *
Você jura... e recomeça
nas ilusões que desfez...
- e a cada nova promessa
meu amor nasce outra vez!...

Fonte:
Trova Brasil n.10

Rodolpho Abbud (1926)

Rodolpho Abbud nasceu em Nova Friburgo/RJ, em 21 de outubro de 1926; filho de Dona Ana Jankowsky Abbud e de Ralim Abbud.

Radialista, Locutor Esportivo, Poeta e Trovador, foi sempre muito bom em tudo aquilo que fez ou faz. Contam até que, certa vez, transmitindo um jogo do Friburguense, teve a sua visão do campo totalmente coberta pelos torcedores. Sem perder a calma, e com sua habitual presença de espirito, continuou a transmissão assim: – “Se o Friburguense mantém a sua formação habitual, a bola deve estar com o zagueiro central, no bico esquerdo da área grande…”

Tem um livro de Trovas intitulado: “Cantigas que vêm da Montanha”, e, recebeu, com inteira justiça e por voto unânime de todos os Trovadores que ostentam essa honra, o titulo de “Magnífico Trovador”.

São poucos os pioneiros da trova em plena atividade. Entre eles, com especial destaque figura Rodolpho Abbud, o grande e querido apóstolo da trova de Nova Friburgo. Ele entrou na alegre tribo dos trovadores em 1960, com aquele vozeirão inconfundível, como repórter de rádio, entrevistando os participantes dos I Jogos Florais na Rádio Sociedade de Friburgo. Gostou tanto, que virou trovador também.

Quase meio século depois, super-jovem em seus 82 anos, o mestre Rodolpho Abbud continua brilhando não só como criador de primorosos versos, mas também como um dos mais importantes líderes nacionais da União Brasileira de Trovadores (UBT). A importância de Rodolpho Abbud vai muito além das fronteiras da cidade.

Premiado em centenas de concursos, Rodolpho é autor de milhares de trovas memoráveis. Entre outros títulos, ostenta o de Magnífico Trovador Honoris Causa, que lhe foi atribuído por ocasião dos 40ºs Jogos Florais de Nova Friburgo. Ele faz parte da geração de trovadores surgidos com o lançamento dos I Jogos Florais. Trata-se do trovador mais antigo da cidade e a prova está em sua carteira de trovador, que ostenta o número 1.

Rodolpho explica aos que não são versados nesta arte que trovas são pequenos poemas de quatro versos, de sete sílabas poéticas, isto é, com o som de sete sílabas – o primeiro rimando com o terceiro e o segundo com o quarto. Ele aprendeu rapidamente os segredos do estilo poético característico da trova recriado por J. G. de Araújo Jorge e Luiz Otávio.

Quando teve início o movimento trovadoresco em Nova Friburgo, Rodolpho trabalhava como comentarista de futebol na Rádio Sociedade de Friburgo e ainda não tinha descoberto que sabia fazer trovas. Mas desde pequeno gostava de fazer quadrinhas. Na infância as crianças aprendiam na cartilha algumas rimas básicas, que davam origem a quadras como uma que Rodolpho jamais esqueceu:

Joãozinho é cabeçudo
mas tem belo coração
é dedicado ao estudo
e sabe sempre a lição”.


Por alguma razão Rodolpho sempre se identificou com o estilo e, mesmo sem saber, já fazia trovas, que costumava chamar de quadrinha, assim no diminutivo mesmo. Naquela época, porém, bastava rimar o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o quarto. Rodolpho acha até graça, porque já naquela época faturou cem mil réis num concurso da Rádio Nacional, com uma de suas primeiras trovas, em 1950.

“Foi numa festa junina
que eu vi a Rita sapeca
A cabocla era bonita
Parecia uma boneca”.


Levou um bom tempo para os trovadores, inclusive o próprio Rodolpho Abbud, incorporar a expressão trova – que vem do francês trouver, isto é, procurar, achar. Chamavam aqueles pequenos poemas de quatro sílabas de quadra, quadrinha ou trovinha, menos de trova. Um dia Luiz Otávio até chamou a atenção do J. G. de Araújo Jorge, quando este lhe contou que tinha feito uma trovinha: “Que trovinha o quê, José Guilherme, isso aí se chama trova, não é trovinha nem trovão, é trova”.  “Acho que eu sei fazer este negócio aí”
 
Rodolpho Abbud já criou mais de cinco mil trovas. Infelizmente, boa parte delas se perdeu e seu acervo conta apenas com as trovas premiadas nos concursos de que participa em todo o Brasil. A sorte é que o mais respeitado trovador da cidade e um dos maiores do país é um colecionador de prêmios, já perdeu a conta do número de troféus e diplomas que já conquistou.

Sua facilidade para criar trovas impressiona até seus colegas trovadores. Todas, diga-se de passagem, dignas de figurar em qualquer antologia. “Com qualquer assunto se faz uma trova”, explica, modesto, tentando explicar os segredos desta arte. Ele acredita em inspiração, tanto que carrega sempre papel e caneta no bolso para anotar as ideias que vão surgindo em sua cabeça.

Hoje em dia uma das atividades que mais gratificam o velho trovador é ensinar a fazer trovas. Ele e seus colegas trovadores já visitaram muitas escolas, transmitindo às crianças e jovens os conceitos básicos que permitem criar trovas capazes de fazer bonito em qualquer concurso. Já estiveram no Ienf, na Escola Canadá, no Ciep Glauber Rocha, na Universidade Candido Mendes. Até na Clínica Santa Lúcia eles já estiveram.

Junto com seus companheiros da UBT, Rodolpho mantém há 50 anos um programa radiofônico pela Rádio Friburgo AM focalizando o movimento trovadoresco de Nova Friburgo e de todo o Brasil. O programa, transmitido todo sábado, às 20h, é o mais antigo do Brasil e seu slogan diz assim:

“É poesia sempre nova
cultivada com amor.
Se você gosta de trova
pode ser um trovador”.


Solidão? Rodolpho diz que não sabe o que é. Junto com seus amigos trovadores, viaja o Brasil inteiro, sendo sempre recebido com festa e toda a hospitalidade pelos companheiros das outras cidades. As viagens são uma verdadeira festa, com todo mundo brincando e fazendo trovas dentro do ônibus.

Depois de trabalhar 42 anos na Fábrica de Filó, todo mundo pensava que ele fosse ficar deprimido quando se aposentasse. Que nada! Voltou a narrar partidas de futebol, depois mergulhou na trova.

Rodolpho é pai de Luiz Carlos, Suely e Rosane, de seu primeiro casamento. Casado pela segunda vez há 50 anos com a doce Cyrléa Neves, eles são pais do conhecido percussionista Rocyr e da não menos conhecida Rivana, do Bar América.

Friburguense da gema, passou a infância na Rua Oliveira Botelho, até o 5º ano primário estudou com dona Helena Coutinho, que tinha uma escola na Rua São João. Fez o ginasial no Colégio Modelo e depois foi aluno do professor Luiz Gonzaga Malheiros.

Do que sente mais saudades da Nova Friburgo de antigamente? Rodolpho Abbud não pensa um segundo antes de responder. “Da Fonte do Suspiro”, responde de imediato e, subitamente, se emociona, chegando a ficar com lágrimas nos olhos. Mas, como os homens de sua geração não choram, trata logo de mudar de assunto. “Ah, sinto muita saudade também do footing da praça, com os rapazes parados como se estivessem num corredor e as moças passeando de um lado para o outro”, conta.

Maluco por futebol, Rodolpho pertence ao quadro de beneméritos do Friburgo Futebol Clube e, no Rio, é tricolor de coração. Fez até uma trova para seu time:

“É paixão que longe vai
na força do coração:
– Tricolor era meu pai
filhos, netos também são”.


Rodolpho e Cyrléa: 50 anos de amor e dedicação à trova

Fonte:
UBT São Paulo (http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3061472)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Raquel Ordones (Quero Guardar-te)

Clique sobre a imagem para ampliar
Fonte: http://raquelordones.blogspot.com.br

Nilto Maciel (Paisagem Celeste)

Pé ante pé, mão a roçar a parede, Luís deixou o quarto, passou pelo corredor e alcançou a ante-sala. Em cada mão um sapato. Parou, conteve a respiração, desceu o primeiro degrau e o segundo. Olhou para trás. Tudo calmo. Levou a mão à porta. Nada de barulho ao retirar a trave. Se Maria ou os filhos acordassem, inventaria alguma desculpa: esquecera de trancar a porta. E voltaria à rede. Sondou de novo a retaguarda: a parca luz da lamparina se infiltrava pela brecha da porta e alumiava uma nesga de chão do corredor. Ninguém tossia nem roncava. Dormiam sonos profundos, talvez. Retirou, com cautela, a trave e a pôs no chão, em posição vertical. Se tombasse, todos acordariam. Deu uma volta à chave, mais uma, retirou-a da fechadura e a colocou num bolso. Abaixou-se para levantar o ferrolho, voltou à posição normal, puxou com leveza a tábua da porta, olhou para os dois lados da rua, fez o movimento contrário na madeira e desceu o degrau para a calçada. Meteu no bolso a mão, à cata de cigarros. Não, a fumaça inundaria a casa, pelas brechas da porta. Caminhou a passos largos no rumo da igreja matriz. Necessitava caminhar muito, cansar, sentir vontade de dormir. Não suportava mais tantas noites sem sono, a se revirar na rede. Quando a claridade da aurora se anunciava no telhado, mal aguentava espiar os punhos da rede, a cabeça a lhe doer, o corpo quente, febril. Embora assim, carecia se banhar, tomar café, caminhar até a mercearia e passar mais um dia sem ânimo, nem para as conversas sem fim com os amigos de sempre. Ao chegar à pracinha, sentou-se num banco. As luzes dos postes lhe faziam mal. Tossiram numa das casas. Tratou de deixar o banco e se pôs a caminhar entre as árvores, pelas calçadas internas do logradouro. Viu-se diante do coreto. Havia quanto tempo não o via! Talvez nunca tivesse passado ao seu interior. Um cachorro dormia debaixo de um banco e se assustou ao ver aquele guarda-noturno estranho. Fez menção de se erguer e correr. Luís o tranquilizou. Ficasse ali mesmo, não lhe ia fazer mal. O cão mirou os olhos do homem, que deu meia-volta e se retirou. Nada de confusões, fosse com bichos, fosse com gente. Precisava de solidão, paz e silêncio. Para onde iria? Talvez para a mercearia. Não, aquilo não. Os vizinhos acordariam e suspeitariam de arrombamento. Além do mais, já passava os dias enfurnado entre sacos de arroz e fardos de algodão. Tomou o rumo da rua paralela àquela pela qual ia e vinha duas vezes por dia. Na calçada outro cachorro deitado junto à parede. Passou para o meio da rua. Avistou, ao longe, as torres da matriz. O relógio indicava 12 horas e 45 minutos. Se encontrasse a porta entreaberta, ajoelharia diante do altar e rezaria. Talvez não. Havia anos não assistia à missa. Até já o chamavam de ateu. E por que não subir a serra? Apressou o passo. Sim, rumar pela estradinha escura e depois se meter no mato, procurar algum riacho, alguma cachoeira. A Lua apareceu atrás do Pico Alto. Pôde ver com clareza o chão coberto de folhas secas e gravetos. Ia necessitar de muito fôlego para subir a ladeira. Daquele jeito, fumando muito, bebendo genebra todo dia, não chegaria longe. Mas precisava daquilo, os negócios iam mal, os filhos mais velhos só lhe davam desgostos, Maria não lhe apetecia mais. Havia quanto tempo não se encostavam um no outro? Ela num quarto, ele noutro. Conversavam apenas o necessário, quando muito. Discutiam por qualquer ninharia. Não se miravam nunca. Dormir como qualquer outro – impossível. Estacou diante de uma vereda. Examinou a ribanceira. Chiado de água a escorrer. Apalpou o chão com os pés e se pôs a descer. Rastejariam serpentes por ali? Armou-se de um pedaço de pau. Serviria de cajado. Maria teria despertado? E os filhos pequenos? Quando acordassem e o não vissem... Não, nunca o viam ao amanhecer. Ainda dormiam quando saía para trabalhar. Mesmo assim, prometia voltar antes de o sol raiar. Sentou-se ao pé de uma rocha. Açoitou o chão com o galho seco. Nada de bichos por perto. Olhou para o alto. A Lua vagava entre nuvens. Acendeu um cigarro. Bater de asas ao seu derredor. Pios de protesto. Jogou fora a ponta acesa e a esmagou com o pé. Deitou-se e se pôs a admirar a Lua, como havia muito não fazia. São Jorge num cavalo enfrentava um dragão. Nuvem enorme encobriu soldado e animais. Luís fechou os olhos. Aquela peleja não acabava nunca. Ou não passava de pintura, paisagem celeste? Rodavam no espaço desde o início. E rodariam até o fim.

            Quando abriu os olhos, uma nesga de sol se filtrava entre as telhas do quarto. Estremeceu na rede e viu Maria a fugir feito fantasma, de volta ao outro quarto. Já voltei da serra?

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Adolfo Caminha (Velho Testamento)

... Insensivelmente o charuto caiu-me dos dedos e eu fiquei na primitiva abstração, numa espécie de sonambulismo artificial e deleitoso, – pernas ao comprido, torso derreado na velha poltrona de couro-da-rússia, olhos além, no grande busto a crayon de Virgínia, trabalho de um desenhista francês.

            A noite estava úmida e sem luz, misteriosa como uma criação de Poe; o contrário da minha querida sala, do meu atelier de escritor, onde se podia gozar um ambiente morno, leve, outonal.

            O cérebro, num de seus dias de ócio brejeiro, recusava o trabalho sutil das idealizações artísticas, parado quase, no meio torpor de uma alma que se volve toda para o passado num dilúculo de nostalgias.

            O olhar, preso ao busto, via nele, esteticamente corporificadas, as minhas loucuras de outro tempo, loucuras inconscientes da mocidade, entusiasmos de rapazola que antes de tudo é homem e, depois de homem, artista.

            Virgínia... Era ela, sim, – o primeiro fruto proibido que meus olhos tocaram –; ela, a primeira mulher que eu amei como deve amar um coração de vinte anos – rindo e folgando; ela, magrinha, inteligente, delicada, de uma simpleza que ia até ao pudor ingênuo das raparigas do campo; a “francesinha”, como eu a chamava quando ainda nenhum fio branco dava sinal de velhice à minha cabeça de longos cabelos fulvos, secretamente adorada nos misteriosos boudoirs do grand monde.

            Fui-me, então, pelo passado numa romaria espiritual de velho peregrino do Amor, os olhos presos ao busto, a imaginação longe, bem longe daquela atmosfera de silêncio e repouso, trancada aos rumores do inverno, discretamente abafada em penumbra macia de estufa...

            Virgínia...

E sempre a mesma ideia, sempre a mesma obstinação, como se diante de mim houvesse uma esplêndida galeria de quadros originais, representando cada um episódios em que Ela e eu figurássemos numa deliciosa permuta de afetos.

            Um, sobretudo, um desses quadros imaginários, vagamente esboçados pela fantasia do espírito, dominava os outros, pondo sobre eles o luto de um crepe intangível...

            O desenhista pintara Virgínia moça, Virgínia bela, Virgínia em toda a sua perfeição de mulher modelo, – grandes olhos de hebreia, negros e luminosos, fulgurantes, numa irradiação perene de vida; boca pequena e sensual, calando revoltas de temperamento, instintos da natureza animal; face alongada...

            Mas, eu via-a como só a vira uma vez:

            Floriam rosas numa opulência triunfal de cores. Tínhamos vindo, eu e Ela, de um pic-nic na montanha, onde fôramos esquecer um pouco a monotonia da existência, por um soberbo outono, cheirando a resedás.

            Partíramos cedo, a cavalo, num trote suave, beirando a floresta escura e profunda, de um verde carregado que se alastrava indefinidamente.

            Ao vê-la nos seus trajes de amazona, rebenque e espora, ostentando o garbo marcial de uma inglesinha do Hyde-Park, o véu desprendendo-se em asas de borboleta ombro fora, lembrei-me da encantadora criação de Gautier na Mademoiselle de Maupin. E, com efeito, havia no porte esbelto, quase vaporoso, de Virgínia essa desenvoltura enérgica e viril da célebre duelista, essa arzinho petulante, um pouco artificial e muitíssimo graciosa que a fazia tão bela.

            Fomos...

            Que linda a manhã! Na mancha sombria do arvoredo abriam-se florações de um exotismo tropical. Para além a poeira branca da estrada quebrando-se em flexuosidades de serpente, e para trás as linhas indecisas do viveiro humano destoucando-se às primeiras nuanças da luz, como esses burgos risonhos que se erguem no meio da floresta americana.

            Ela, então, sempre alegre, numa garrulice infantil, disse-me cousas do passado, episódios da sua vida de menina quando a levavam ao campo; e ria sonoramente, achando muita graça no que ela própria ia narrando.

            Súbito pungia o animal, vibrava o rebenquezinho, e, passando adiante num galope, numa vertigem, dizia-me – adeus, como se voasse para um país longínquo.

            E eu, para que ela não me fugisse deveras, ia-lhe no encalço, rápido também, mordendo o lábio na ânsia de alcançar a minha Diana.

            Clareava. O bosque todo enchia-se de rumores, e, à proporção que nos aproximávamos, à proporção que a indiscreta luz do alvorecer tirava-nos da fusca penumbra matinal, espatulando as suas tintas vivas de ouro e azul por cima da floresta, mais aumentava o nosso bom humor.

            Chegamos, enfim, ao pitoresco recanto de paisagem que devíamos transformar em domicílio provisório.

            De um lado o aspecto igual do mar, o vasto oceano em repouso, numa grande estagnação luminosa, poeirado de ouro, e, em baixo, a planície, o formigueiro humano, a cidade e os longes da floresta...

            – Belo assunto para um poema! Gracejou Virgínia.

            – ... que eu talvez ainda faça, completei rindo.

            E, depois de um longo quarto de hora de êxtase, fomos a percorrer a natureza.

            – Sabes o que me parece isso? perguntei.

            – Isto é quê?

            – Este pedaço de floresta abrindo para o mar e nós dois quebrando a monotonia do verde? Faz-me lembrar a primeira página do Velho Testamento...

            Então Virgínia, com um sorriso de encantadora malícia, criticou a civilização, as exigências da moda, o viver contemporâneo, o luxo, o belo artificial; e, atirando para longe aquele arzinho de educanda, que lhe ia primorosamente, concluiu:

            – Pois olhe, meu amigo, eu vim à floresta recordar a Bíblia, mas a Bíblia dos hebreus, o grande poema da Criação... Isto aqui é deserto como o Paraíso. – Dispensa folhas de vinha...

            Não percebi logo. Iria ela tentar alguma loucura?

            Perto de nós, à sombra de uma árvore gigante, o cristal de um veio d’água ia despejar em cascata na frescura de um reservatório.

            Vejo-a como naquela manhã, vejo-a desabotoar o casaco, despir-se toda, e, formosa baigneuse, correr para o tanque. – Oh! exclamei numa surpresa de artista, cravando os olhos na pequenina estátua de Virgínia, que outra cousa não era aquele corpo ideal, quase transparente de mulher nova.

            Já agora o esplendor da luz coroava esta cena bíblica em que mais uma vez o homem e a mulher pecavam no seio da natureza, reproduzindo o eterno idílio de seus pais...

            Não era mais bela a amante do primeiro homem que esse tipo miniatural de judia do século dezenove cantando o ditirambo do amor livre em plena luz, num recanto de floresta.

            Virgínia emergiu cansada e trêmula, um quer que era de doentia morbidez na face e no olhar.

            – É extraordinário, disse ela, sinto um vulcão dentro de mim!

            Delicadamente ofereci-lhe cognac: – uma bebida inocente, um magnífico preservativo...

            Reconheci que não era aquele o seu estado normal e logo, cheio de temores, ocultando a minha inquietação, afetando a maior naturalidade, consolando-a, acordando-lhe o interesse pelos efeitos maravilhosos do sol que explodia num vasto incêndio, propus voltarmos.

            Ela não fez objeção: concordou friamente.

            E voltamos abandonando o pequeno farnel   que leváramos: a galinhola tostada, os sanduíches de presunto, os rabanetes... e o delicioso Reno cor de cidra...

            Tudo ficou marcando a nossa loucura incompleta ali no misterioso adito, sobre a relva umbrosa, onde também ficara o nosso bom humor expansivo, a alegria dos nossos corações.

            – Não estou boa, repetia Virgínia com um ar triste que me preocupava. Melhor fora não termos vindo...

            Mal podia se equilibrar e um suor copioso inundava-lhe a face.

            Evidentemente sofria.

            Longe ainda de qualquer auxílio, procurei entreter-lhe o espírito, guiando-a para as belezas da Arte moderna. – Oh, a Arte, ela não imaginava o que era a Arte! – E entrei a falar dos meus artistas prediletos, narrando episódios de sua vida íntima, caracterizando-os em síntese, nunca perdendo o tom familiar das nossas conversas.

            Ela também gostava da Arte, lia muito, admirava os grandes artistas como Flaubert, como Zola, mas preferia Gautier, “o incomparável Gautier, o mestre dos mestres!”.

            Eram breves as nossas pausas; ela, porém, repetia de vez em quando “que não estava boa, que sentia febre”...

            – Nervoso... Qual doente! Olha, já leste o último livro dos Goncourt?...

            E assim chegamos. Tomei-a nos braços; Virgínia caiu numa longa prostração.

            Na verdade a pobre criatura ardia numa febre intensa e não tardou que essa febre aumentasse com uma violência de explosão, irrompendo logo num delírio agitado e convulso. Em menos de uma hora perdera as tintas vivas do rosto num desmaio brusco.

            Houve um momento em que julguei enlouquecer. Virgínia ergueu-se no leito ajoelhando-se, a pedir socorro; que estava morrendo, que não a deixassem morrer tão criança, na flor dos seus vinte anos, brutalmente, sem ter gozado...

            E era uma pena, uma tortura, vê-la em ânsias, reagindo contra a soberania da morte, abrindo os braços: – que não queria morrer! que não queria morrer! – um brilho estranho nos olhos, fria, gelada...

................................................................................................................

            Sei de mim que beijava-a, enlaçando-a, prendendo-a nos braços como se alguém m’a quisesse roubar...

            Justamente nesse ponto doloroso acordei. O busto de Virgínia sorria defronte de mim, talvez de meus cabelos brancos, talvez de uma lágrima triste que descia lenta no meu rosto...

(Adolfo Caminha, Rio-Revista nº 2, março de 1895)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://www.iped.com.br