terça-feira, 19 de março de 2019

Concurso Internacional de Trovas do Panamá 2019 (Resultado Final)




Tema : PONTE 

Vencedores

1° lugar 
Tosca ponte esperançosa
contempla o leito vazio
e aguarda a chuva copiosa
lhe trazer, de volta, o rio...
Élbea Priscila de Sousa e Silva
 Caçapava / SP

2° lugar
Mudanças eu fiz, milhões!...
Tantas pontes transpassei
para quebrar meus grilhões
e buscar o que sonhei!
Dáguima Verônica de Oliveira
Santa Juliana / MG

 3° lugar
Existe um novo horizonte,
onde Deus nos dá guarida,
ao cruzarmos pela ponte
para o outro lado da vida!!
Joaquim Carlos Trovador
Nova Friburgo / RJ

4° lugar
Essa ponte que interliga
dois corações,  em verdade,
é tão forte!...  E forte siga,
a honrar seu nome: - Amizade!
Carolina Ramos
Santos / SP

5° lugar
Perdido em pleno horizonte,
lamento os dias tristonhos,
porque não soube ser ponte
sobre os rios dos meus sonhos.
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal / RN

Menção  Honrosa

1° lugar
Quando estendo minha mão,
destruindo meu rancor,
e perdoando o meu irmão,
construo a ponte do amor.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba / PR

 2° lugar
Puras em seus burburinhos,
descendo de suas fontes,
as águas cortam caminhos
e a gente as corta com pontes.
Messias da Rocha
Juiz de Fora / MG

3° lugar
A ponte sobre o regato
encerra tanta lembrança,
me faz reviver, de fato...
Os meus tempos de criança!
 Maria Marlene Nascimento Teixeira Pinto
Taubaté / SP

4° lugar
Olhando para o futuro
deste mundo virtual,
tem a ponte no escuro
que nos leva ao irreal.
José Ribeiro Sobrinho
Ibatiba / ES

5° lugar
Doce  ponte  da  lembrança
que  faz  o  tempo  voltar
na  saudade,  na  esperança,
no  sonho  de  te  encontrar...  
Elias Pescador    
São Paulo / SP

Menção Especial

1° lugar
Tal qual ponte que nos leva
a transpor qualquer barreira
a ternura nos enleva
e é dos sonhos mensageira!
Talita Batista
Campos dos Goytacazes / RJ

2°lugar 
A velha ponte em frangalhos
com seus pilares ruídos...
Hoje não passa de atalhos
transportando os tempos idos!
Edy Soares
Vila Velha / ES

3°lugar
Luiz Otávio já previa,
por amor à humanidade,
que a Trova sempre seria
a ponte para a amizade.
Nei Garcez
Curitiba / PR

4°lugar
A vida lembra uma estrada
em comparações singelas:
quando a ponte é interditada
dá-se valor às pinguelas.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora / MG

5°lugar
A enxurrada de ciúme
que quase afogou nós dois,
impediu com um tapume,
a ponte para um “depois”. 
Lóla Prata
Bragança Paulista / SP 

Comissão Julgadora:

Luis Carlos Abritta
Mifori
Vanda Fagundes Queiróz

Fonte: Maria Luiza Walendowski

segunda-feira, 18 de março de 2019

Virgílio Maia (Poemas Recolhidos)


A CASA DO SAQUINHO
Décima com mote de domínio público

Já não se ouvem as pisadas,
os risos, as brincadeiras
e o cheiro das trepadeiras
hoje são coisas passadas.
Tinha as paredes caiadas,
em volta um jardim florindo.
Pois tudo aquilo está findo,
que do ontem restou um nada,
casa velha abandonada
que o tempo vai demolindo.

ALVENARIA

Sobre pedras se eleva este soneto,
em trabalhosa faina alevantado,
as linhas definidas no traçado
da perfeição do prumo e nível reto.

Dentre tantos eleito, põe-se ereto
rima por rima, embora recatado;
ao martelar do metro faz-se alado,
opondo ao som a luz deste quarteto.

Sobre andaime de verso e de ciência
necessário a erguer prova tão dura,
deixa o pedreiro, alçado, o rés-do-chão.

E sobranceiro ao mundo, àquela altura,
Vai concluir, com brava paciência,
A obra em que balança o coração.

A SENHA
         de uma antiga balada cretense

Amada minha, trago estes limões
neste lenço de seda do Oriente.
Foi tudo o que obtive estando ausente
em tantos anos de navegações.

Trago-te a mim, te entrego os corações
que flechados e azuis tenho nos braços.
Quero agora guiar-me por teus passos
e no teu corpo haurir loucas lições.

Abre a porta, não vês que sou eu mesmo?
Sei que o tempo passou enquanto a esmo
doido amante dos mares perlustrei-os.

Sou eu, só eu. Abre esta porta, peço,
pois quem mais saberá deste endereço,
daquele sinalzinho entre os teus seios?

AS HORAS SERTANEJAS

Não lhes direi do presente,
mas de um tempo que se foi,
do Sertão-do-nunca-mais,
do couro, de muito boi,
dos aboios, das cantigas
dos velhos carros-de-boi.

Aqui tenho por meu guia
um livro muito afamado,
redigido por grande homem
do nosso vizinho estado.
Luís da Câmara Cascudo,
um potiguar arretado.

Há de ser sempre lembrado,
pelo muito que escreveu.
Qual ele quase ninguém
nossas coisas percorreu,
anotando com carinho
tudo o que viu e o que leu.

Quase uma grosa nos deu
de preciosos estudos
sobre as mais diversas coisas,
até linguagem dos mudos,
obras por todos buscadas,
por mor de seus conteúdos.

Escreveu sobre os escudos,
os que Holandês invasor.
às nossas Capitanias,
sob o lábaro tricolor,
certo dia achou por bem
fazer-se de doador.

O tempo tudo destrói,
coisa alguma lhe resiste.
Passam os anos., passam os homens,
e passa o que mais existe,
e a vida se vai passando,
nos mostra o ponteiro em riste.

Embora não mais se aviste
o Sertão velho, avoengo,
vou lhe falar de um relógio
muito antigo e solarengo,
 se rima Deus me mandar
aqui para o velho quengo.

No tempo do realengo,
o dos nossos bisavós,
era tudo mais tranquilo
não havia quiprocós
sendo as coisas mais de jeito,
as cordas com poucos nós.

Não se tinham tantos prós
e contras como hoje em dia,
a vida passava calma.,
fluíam. sem correria,
as horas sem muita pressa,
bem lentas. sem agonia.

Do aboio fala. Senhores,
este canto em que o Sertão
se acalma, se põe dolente,
e que qualquer barbatão
ouvindo vai pro curral,
os olhos postos no chão.

Cacimba roubada, então,
é capítulo sem ruindade.
Um é bom, dois é melhor,
 três é ruim...  diz a verdade
o lusitano afamado,
Antônio Galvão de Andrade.

Esta obra de qualidade
traz em sua introdução
das horas os antigos nomes,
que se usavam no Sertão
e que agora eu cordelizo,
pedindo muita atenção.

Uma bela ilustração
a cada hora corresponde,
da lavra de mestre Audifax,
artista que não se esconde,
se se exibe um texto a ele
com um desenho responde.

FOTOS

Deste antigo retrato, com firmeza,
meu avô me interroga bem de perto,
com aquela usual branda aspereza
que criança, me punha em desconcerto.

Na lapela, uma flor, que ele por certo
deixou emurchecida sobre a mesa
e do alto colarinho o branco aperto
incomodava-o um pouco, com certeza.

Tendo ao lado meu pai, que é filho seu,
certamente renovam velhos planos
de terra e gado, açudes e destino.

No fervor de seus vinte e tantos anos,
miram-me, mais novos do que eu,
e assim mesmo, para eles sou menino.

ILUMIARA

Quem pintou essas pedras no Sertão,
nessa tinta que nunca mais se apaga?
E para quem nosso ancestral pintava
brutas cenas de caça e aquela mão?

Tais secretos mistérios estarão
insondáveis nas cores dessas aras:
candelabros ou onças avermelhadas,
mais figuras que seguem em procissão.

Contou-me um dia uma mulher velhinha
que numa noite escura ela passou
se benzendo de medo pela Pedra.

E viu, jurou que viu, vinha sozinha,
que o enorme Gavião se desgarrou
da pintura, gritando feito a Fera.

SONETO ALADO COM CAVALO BRANCO

Trovejante trovão troou no céu,
a treva transformando em claro dia;
transumano contraste sucedeu,
transmudando pavor em alegria.

Foi aquilo verdade ou foi um sonho,
realidade vera ou fantasia,
quando inteiro Sertão tremeu medonho,
obedecendo antiga profecia?

Ao perpassar das éguas e das nuvens,
em crescente o cavalo pôs-se alado,
 guerreiro fez-se, ao Norte e no passado.

Mastigando luares de marfim
na tarde foi -se, galopando aléns,
entre talos de doce gergelim.

UM BUJÃO DE GÁS

Prateado, bojudo, gordo, anão,
num escuro recanto relegado,
humilde é Prometeu acorrentado
por plástica corrente a um fogão.

Traz no bojo ancestral ignição
ofertada da chama no azulado,
na memória assoprando inesperado
espeleológico arco de um tição.

Reside nele a flama do carvão,
labareda eternal em combustão,
homenagem de fogo a quem ousou:

homem primevo, rude antepassado,
que acendendo o futuro, desgrenhado,
num gesto só o fogo arrebatou.

UM CATA-VENTO DE BRINQUEDO

De extinto cacimbão o cata-vento
puxa ao meu rosto as águas de outra idade.
Ele é só um brinquedo, mas vale
pelas recordações que guardo dentro

do menino que mora aqui ao lado,
e sabendo de cor a cor dos ventos,
tem na ponta da língua, decorados,
uns gestos infantis de cata-ventos.

Flandre e ferro somados pela solda:
sendo brinquedo, brinca no jardim,
à brisa mais maneira já se alegra.

Brinca sem compromisso, roda e roda,
se fingindo irrigante desta terra,
num faz-de-conta de aguar jasmins.

Inglês de Souza (Tentação)


 Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d'alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera - cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canícula enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacauzal e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d'água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandrice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.

Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacauzal, primeiro teatro dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do Padre-Santo João da Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.

Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais. Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado no extravagante requinte.

Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriagues dum isolamento a dois.

Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do Padre, à luz vacilante de um candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom humor, repetia as histórias de Maués e os episódios da vida do Padre-Santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporífera de Felisberto assoviava ladainhas e cânticos de igreja.

Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico e anêpetuna - boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma coisa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia alegre e complacente:

- Ara Deus dê bás noites pra vuncês.

Isto fora assim dia por dia, noite por noite, durante três meses. Uma tarde, ao por-do-sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas viagens a Maués, trazendo aquela notícia em que jazia. Encontrara em Maués um regatão de Silves, um tal Costa e Silva - talvez o dono do estabelecimento - Modas e Novidades de Paris - que lhe contara que a morte de Padre Antônio de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela vida, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha de S. Exma. Revma. já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral, na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à mesa de jantar, uma ideia irritante o perseguia. Teria o Felisberto, trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta ideia lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora se evaporaria como fumo tênue, pela indiscrição de um palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.

O primeiro movimento do seu espírito, acordado, por aquela brusca evocação do passado, do marasmo em que o haviam sepultado três meses de prazeres, era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia a todas as tentações do demônio. A consciência, educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura da ininterrompidos prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do Seminarista, honrado com os elogios do seu Bispo, e a ambição de glória e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma, analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado a um meio que não podia dar teatro à ambição nem aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião pública, o ardor do seu temperamento de matuto criado à lei da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão, ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável, provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço. E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério, agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados, posto que igualmente pessoais.

Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do Padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidência de Felisberto vinha até impossibilitar ao Padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias Mundurucoas? Ninguém acreditaria que um Padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da Fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.

sábado, 16 de março de 2019

Francisco José Pessoa (BRASILIDADE - Um canto de amor à Pátria)


(poema classificado no Concurso do Café Patriota)

Idolatrada Pátria abençoada
por Deus, nosso magnânimo arquiteto,
que pôs beleza no teu chão e teto
e fez ramagens para a passarada.
Se feio fez, foi pouco, quase nada,
de belo Ele fez muito, estando às provas,
o sobe e desce de belas corcovas
o choramingo das tuas cascatas
o sopro alegre do vento nas matas
e o vaivém de um mar que se renova.

És tudo isso, Brasil, e muito mais...
o teu perfil de mãe me dá direito
de sentir-me afagado no teu peito
pois ouvir teu ninar me deixa em paz...
isso torna teu filho mais capaz
de lutar com amor e temperança,
hasteando a bandeira da esperança
honrar o dizer Ordem e Progresso
junto a ti, meu Brasil, sou réu confesso
quero  estar preso a ti, sem ter fiança.

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Trovas sobre Ciúme I


Estranha dor, que persiste
teimosa como um perfume:
já cicatriza a saudade
- e dói-me ainda o ciúme.
Anderson Braga Horta
Brasília/DF


O amor me fez tresloucado,
a saudade me fez triste.       
Mas foi com as farpas do ciúme
que mais fundo me feriste.
Anderson Braga Horta
Brasília/DF


Guarda este pranto, sê forte,
foi pra morrer que nasci.
Ou tens ciúme da morte
que quer levar-me de ti?
Anis Murad   
Rio de Janeiro/RJ, 1904 - 1962   

No vazio dos meus dias,
fico a pensar no meu bem:
as suas horas vazias
são preenchidas por quem?
Anis Murad   
Rio de Janeiro/RJ, 1904 - 1962


O ciúme, sem exagero,
tempera o amor com seu sal...
Mas também, sendo tempero,
em demasia faz mal !       
Archimimo Lapagesse 
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ   


Se o Amor é cego, o Ciúme
índa é mais cego, porque,
não vendo nada, presume
que vê bem o que não vê!
Archimimo Lapagesse 
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ   

Despertei sobressaltada
ouvindo-o dizer: "meu bem!"
Pus-me a escutá-lo intrigada,
ele sonha... mas com quem?
Carolina Azevedo Castro
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR


Não é quando vais embora
que tenho ciúmes assim,
é quando estás como agora,       
pensativo, junto a mim.        
Carolina Azevedo Castro
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR

A vida às vezes resume
contrastes deste teor:      
só se morre de ciúme       
quando se vive de amor.
Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

Quando o ciúme deu fim
do nosso amor, duvidei.    
Não supunha que cupim
desse em madeira de lei.     
Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

Amor que não tem ciúme           
lembra a guitarra sem fado;
lareira fria, sem lume;
um verso de pé quebrado      
Durval Mendonça  
Rio de Janeiro , 1906 – 2001


Dizes que sou ciumento.        
Não posso contradizer-te
se vivo a todo momento
o momento de perder-te.
Durval Mendonça  
Rio de Janeiro , 1906 – 2001


Duas vidas separadas,
dois amores... Dois queixumes...
Duas saudades... Dois nadas...
Somos nós dois, - dois ciúmes!...
Edgard Barcelos Cerqueira
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - ????


Vou confessar a verdade:
o meu amor se resume,
de longe, - em sentir saudade...
de perto, - em sentir ciúme!
Edgard Barcelos Cerqueira
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - ????


Sou ciumenta e não minto,
é bom que saibas, meu bem:
o que for meu, não consinto
que seja de mais ninguém.
Iraci do Nascimento e Silva
Natividade/RJ, 1913 - ????, Rio de Janeiro/RJ


Nas lindas noites de lua
que ciúme sofre o mar
vendo a rocha, toda nua
sob os beijos do luar.
Jesy Barbosa
Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ


Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento!
Jesy Barbosa
Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ


Não condenes, por favor,
os meus ciúmes, Maria.
Olha que os cegos de amor
também precisam de guia!   
José Maria Machado de Araújo 
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ   

Disse: "Que trova bonita!"
Mas tu não ouviste bem
e logo indagaste aflita:
"Quem é que é bonita, quem?"
José Maria Machado de Araújo 
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ   

Nisto afinal se resume
teu sofrimento sem fim:       
só por não ter eu ciúme,     
tens tu ciúme de mim.        
Paulo Emílio Pinto 
Conselheiro Lafaiete, 1906 – ????, Belo Horizonte/MG


Fonte:
Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge (org.). Coleção “Trovadores Brasileiros”. Editora Vecchi, 1959.

Chico Anísio (Não se põe Amendoim nos Ouvidos)


   Com tantos lugares maiores e mais práticos, o menino achou de enfiar o amendoim exatamente no ouvido. Ouvido esquerdo, que foi o escolhido por comodidade, visto tratar-se de um menino canhoto.

   A família, na Tijuca, em meio ao ajantarado do domingo, mesmo na hora em que o pai procurava uma sintonia melhor para escutar as corridas, ficou em pânico por causa de uma frase.

   — Mãe — disse o menino que enfiara o amendoim no ouvido —, não estou ouvindo direito.

   — Não está ouvindo direito, como? — indagou a mãe.

   — Como? — inquiriu o menino dando uma inflexão diferente ao advérbio.

   — Tua mãe está perguntando — intrometeu-se o pai abandonando, durante o que dizia, a sintonia no rádio — como é que você não está ouvindo direito. Entendeu?

   — O senhor está perguntando se eu entendi? — voltou o menino, sentado no lugar ao lado da cabeceira.

   — É, entendeu? — tornou o pai, levando à boca, com um ligeiro auxílio indicador-polegar, um pedaço de rabada.

   — Entendeu o quê? — desentendeu o menino.

   — Você está surdo? — gritou a irmã da outra cabeceira que ficava sob a Ceia do Senhor.

   — Será que ninguém compreende o que eu falo? — vociferou o menino, já se pondo de pé. — Eu estou dizendo que não estou ouvindo direito.

   — Você não está ouvindo direito? — insistiu a mãe, já tão aflita, que nem ligava mais para a rabada que esfriava no prato.

   — O que foi que a senhora disse? — questionou o menino, retornando mais calmo ao seu assento.

   — Esse menino está doido — admitiu o pai, voltando a tentar captar a narrativa dos páreos.

   — Doido, não — contestou a mãe —, que ele não é maluco. Você é louco?

   — Um pouco, mãe — respondeu o menino, pensando que a mãe lhe perguntara ser mouco.

   — Não estou entendendo coisa nenhuma — reagiu a irmã numa irritação que mostrava que ela não entendia coisa nenhuma. — Fala comigo, Geraldinho. O que é que há?

   — Falou comigo? — quis saber o menino que enfiara um amendoim no ouvido.

   — Ele está crecré — resolveu a irmã, voltando ao caqui, que era muito mais interessante do que aquele diálogo absurdo.

   Por alguns momentos, sem falar, todos comeram. Rabada ou caqui, feijão ou melancia. O silêncio era tão absoluto que o pai quase conseguiu achar a estação que procurava. Aí, o menino falou.

   — Mãe, não estou ouvindo quase nada.

   — Você já disse isso.

   — O que foi que a senhora disse? — perguntou o menino que não estava ouvindo quase nada.

   — Eu disse que você já disse que não está escutando direito! — irritou-se a mãe com a boca cheia de rabada.

   — Como? — arguiu o menino com o ouvido cheio de amendoim.

   — Eu acho melhor botar esse garoto de castigo — sugeriu o pai, com um dedo no dial, outro na polenta.

   — Foi você quem falou, Terezinha? — perguntou o menino quase surdo ao ouvir a voz do pai.

   — Foi o pai — volveu a irmã de cabelos longos e paciência cortada rente.

   — O quê? — era o menino quem perguntava.

   — Geraldinho! — bradou o pai, deixando o rádio de lado numa atitude tão absurda quanto esta estória. — Presta atenção. Olha para mim. Está escutando o que eu estou falando?

   — O senhor está falando? — sussurrou o menino, preso entre as mãos do pai que lhe deixavam resquícios de rabada e polenta nos ombros.

   — Estou! — gritou o pai, com um soco tão forte na mesa que fez a concha mergulhar no feijão.

   — Não adianta. Eu não estou escutando quase nada — monocordiou o menino Geraldinho.

   — Sabe o que é que eu acho? — ponderou a irmã. — Eu acho que o Geraldinho não está escutando direito.

   — Se ele não está escutando direito — ponderou de novo a mãe — por que não avisa? Está escutando agora, Geraldinho?

   — O quê?

   — Está escutando agora? — repetiu mais alto o pai.

   — Ãh?

   — Está escutando? — esganiçou-se a irmã da cabeceira.

   — Olhem. Eu já disse, e vocês não entendem. Eu não estou escutando direito — falou Geraldinho, já irritado.

   — Ele não está escutando direito — traduziu a mãe, tomando uma visível atitude de defesa do filho que tinha colocado amendoim no ouvido.

   — Mas por quê? — indagou o pai apoplético.

   — Como? — murmurou o menino, numa pergunta a medo, pela notória apoplexia paterna que geralmente dava motivo a surras homéricas.

   O pai esqueceu as corridas de Pernambuco, que tentava escutar, e pediu um lápis que lhe foi entregue pela filha, em meio às folhas de um caderno escolar. O pai escreveu, com letras de imprensa, a pergunta:

— DESDE QUANDO VOCÊ NÃO ESTÁ ESCUTANDO DIREITO?

   Empurrou, com má vontade, o caderno para o lado do menino.

   — Quer saber desde quando eu não estou escutando direito? — quis assegurar-se o menino de ter lido certo.

   — É, Geraldinho — disse a mãe muito maternal —, desde quando?

   — Como? — perguntou Geraldinho muito trêmulo.

   O pai respondeu passando o dedo sob a frase que esfregava na cara do menino.

   — Desde que eu enfiei um amendoim no ouvido.

   Tiraram o amendoim, deram-lhe uma surra e o mandaram para fora da sala, em sinal de protesto.

   O menino foi e voltou chorando, para se sentar na cadeira em frente à tevê.

   — Fazendo a gente ficar doida, esse moleque! — comentou a mãe, tirando a mesa do ajantarado.

   — Como? — perguntou o menino, que acabara de enfiar um amendoim no ouvido direito.

Fonte:
Chico Anysio. O Batizado da Vaca.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Trova 344 - José Feldman (Maringá/PR)


Clarisse da Costa (Eu me livro com livro)


As cartas de certa forma desenvolvem a escrita, a criatividade, os pensamentos e os sentimentos, tais como os livros. Os livros têm uma particularidade, nos trazem conhecimento e nos fazem viajar por diversos temas e personagens. Normalmente o cenário é a vida. O que mais aprecio é o lado humano que muitos autores abordam. Alguns até nos fazem questionar quem somos. Um olhar para dentro de si.

É como passear por dentro de si, abrir asas e se libertar de tudo aquilo que nos faz mal. Tipo eu me livro. Uma das obras populares brasileiras da literatura que particularmente eu curto e que se enquadra nesse contexto se chama "Tempo de Esperas", do Padre Fábio de Melo. A obra mostra todas as vertentes da vida em meio a uma desilusão amorosa. É como uma reflexão que nos salva.

O tempo vai passando e aquela dor rompe uma barreira. Por mais difícil que seja a dor, fortalece. Aprendemos a lidar com ela. De um jeito, ou de outro adquirimos aprendizado. A dor da perda me fez ver que a vida não acaba porque achamos que é o fim. Ela segue. O tempo passa. Não é porque erramos que não devemos mais viver. A vida é como um livro, vire a sua página e comece tudo de novo.

Sempre há tempo para recomeçar. O amor vive somente a sua espera. Ele se aprisiona à medida que nós ficamos alimentando algo que perdemos. Enquanto não se viram as páginas do livro da sua vida, ficamos ali amando o que nunca nos pertenceu. E que, de certa forma, nós mesmos podemos ter estragado tudo.

Talvez seja a hora de formarmos laços com o tempo e saber esperar. Mais que um dom, a espera é sabedoria e requer paciência. Desde cedo aprendi que o amor transforma. Mas sempre tive a certeza que tudo parte de um querer. Nos últimos anos, o amor tem sido um brinquedo nas mãos de algumas pessoas. Ao invés de fazer o bem, tem feito o mal. Mas a culpa é de quem brinca com o sentimento das pessoas. O afeto não parte da ilusão e sim daquilo que é verdadeiro. Não abra o livro dos sentimentos se não for para fazer e sentir com verdade. Nós somos os autores de nossa história, a libertação parte da nossa vontade. Os livros são apenas o início de tudo.

Fonte:
A autora


Mifori (Pantuns e Poemas Livres)


Pantum 1   
O TREM DO NOVO TEMPO


Neste trem do novo tempo
embarco com esperança,
um suave passatempo
eu fortaleço a confiança.

Embarco com esperança
nas amizades que faço.
Eu fortaleço a confiança,
seguindo o comboio de aço.

Nas amizades que faço
a clarear minha visão,
seguindo o comboio de aço,
sinto o amor no coração.

A clarear minha visão
sem ter nenhum contratempo,
sinto o amor no coração
neste trem do novo tempo.

Pantum 2
NOSSOS CAMINHOS


Nossos caminhos... De novo
se cruzaram no além-mar
numa festa de ano novo...
Mais que um sonho a proclamar!

Se cruzaram no além-mar
num caminhar renovado,
mais que um sonho a proclamar
um encontro inusitado.

Num caminhar renovado
não se detém na estrada;
um encontro inusitado
deixa a cruz menos pesada.

Não se detém na estrada
quando o amor é verdadeiro;
deixa a cruz menos pesada
o abraço companheiro.

Quando o amor é verdadeiro
a felicidade é rima;
e o abraço companheiro
afagando se aproxima.

A felicidade é rima
no caminho que promovo,
afagando se aproxima
nossos caminhos... De novo.
______________________
Poemas livres
______________________

AMOR INFINITO

Amor infinito...
É o Incondicional,
aquele que é...
Eterno, sem fim!...
Não depende do real,
nem de você, nem de mim!

Amor infinito...
É vida que borbulha,
fonte que jamais seca
acolhedor qual divina “tulha",
surge e permanece
e envolve legal.
Vive aqui, ali, além...
Sem ser sentimental.
E envolvente... Na sua infinitude!
É transcendental!
É o amor que eleva, não ilude.
Esse amor infinito...
Só o meu Deus tem
com sua onipotência
a todos mostra
e nós o vemos
só como nos convém.

POEIRA DE SONHO

Foi uma poeira de sonho
sob a lua acetinada,
que tristonha
trouxe-me a brisa.
Nessa poeira descobri
o Sol dormindo no poente.
Numa atitude comovente
ela o despertou.
Minha alma se abriu
para uma nova vida.
A vida de sonhos e poesias!
 
Fonte: A poetisa

Lima Barreto (A Barganha)


as palavras com *, ver o vocabulário ao final do texto
____________________________________________
E o “turco”, desde muito cedo, andava pelos subúrbios a mercar aqueles coloridos registros de santos. Havia um são João Batista, com a sua tanga, o seu bordão de pastor e o seu inocente carneiro que olhava doce tudo o que via fora da estampa; havia um Cristo com o coração muito rubro à mostra, coroado de espinhos, e os olhos revirados para o Céu que naquele dia estava lindo, de um profundo azul-cobalto; havia uma Ceia em que Jesus presidia, mansueto e resignado, apesar de se saber traído, e havia muitos outros santos e santas que o “turco” levava, alguns enrolados, mas outros diante do seu peito arquejante das suas caminhadas de humilde bufarinheiro*, daquelas modestas paragens da cidade.

E ele ia:

— Compra, sinhor! Muita bonita!

Das casas, às vezes, lá saía uma mulher ou outra, de cores as mais variadas, e indagava com desprezo:

— Olá! O que é que você leva aí?

Miguel José parava, aproximava-se da porteira e respondia:

— Santa, sinhora! Muita bonita!

— Que santos tem?

— Muitas, sinhora. Tuda bonita.

Desenrolava os registros e a rapariga começava a examinar. De repente, à vista de uma daquelas oleo-gravuras, ela gritava:

— Leocádia! Leocádia!

Lá do interior da casa respondiam:

— Que é?

A outra acudia:

— Vem cá. Vem ver uma coisa.

Vinha uma outra rapariga e a que estava, recomendava, mostrando um dos quadros do “turco”:

— Vê só como é lindo este Menino Jesus.

A outra examinava e concordava. O “turco” se animava e perguntava:

— Não quer compra ele?

Uma delas ia ao encontro da pergunta do bufarinheiro:

— Quanto é?

— Barata, sinhora.

— Quanto?

— Dois mil-réis.

— Chi, meu Deus! É caro, muito mesmo.

O pobre ambulante não fazia negócio algum; e continuava com a sua carga sagrada a palmilhar aquelas ruas que são mais propriamente veredas.

Ainda se houvesse árvores, sombra que amaciasse aquela manhã quente, embora linda e cristalina, o seu ofício seria suportável; mas não as havia. Tudo era descampado e as ruas eram batidas pelo sol em chapa. Lá ia ele. As calças ficavam-lhe pelos tornozelos; o chapéu era de feltro, mas não se sabia se era preto, azul, cinzento. Tinha todas as cores próprias a chapéus dessa espécie. Em um pé calçava uma botina amarela; em outro, um sapato preto.

— Cumpra, sinhor! Coisa bonita de Deus! Cumpra.

Foi dizendo isto a um petulante crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande, gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela; foi dizendo isto a ele que lhe ia acontecendo urna grande desgraça naquela manhã. O negro, ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao “turco” e indagou com um ar autoritário:

— Que é que você está dizendo?

O humilde armênio pensou logo que tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, na terra em que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armênios.

Com essa convicção, Miguel José respondeu cheio de respeito e acatamento:

— Dizia, sinhor: cumpra santo muita bonita.

O negro perfilou-se todo, tomou uns ares judiciais ou policiais, chegou o chapéu de palha para a testa e disse:

— Você parece que não é civilizado.

— Cumo, sinhor?

— Sim, você é herege, inimigo de Nosso Senhor.

— Não, sinhor.

O preto desarmou-se um pouco de seus ares judiciais ou policiais, tomou-se mais suave, quis fazer de penetrante e sagaz. Perguntou:

— Você come carne de porco?

E Miguel José olhou as montanhas pedregosas que ele via lá, longe, esbatidas* no azul profundo da manhã, ressaltando quase inteiramente na ambiência translúcida do dia, e lembrou-se da sua aldeia armênia, das suas cabras, das suas ovelhas, dos seus porcos.

A sua fisionomia dura contraiu-se um pouco e os seus olhos de carneiro quiseram chorar de recordação, de sofrimento, de mágoa. Ele se encheu todo de uma pesada tristeza; mas pôde responder:

— Sim, senhor, eu coma.

— Então você é cristão? insistiu o preto.

— Sim, sinhor; diga a sinhor sou cristão.

— Admira.

— Por quê, sinhor?

— Porque você diz “vender” “comprar” santos.

— Cuma se diz então?

— Troca-se. Aprenda — está ouvindo! É falta de respeito, é sacrilégio dizer comprar ou vender santos. Aprendeu?

— Sim, sinhor. Obrigada, sinhor.

E o crioulo se foi, deixando o pobre armênio arrasado por mais aquele déspota que passava sobre a sua pobre raça; mas mesmo assim, continuou na sua mercancia*.

Lá se foi ele por aquelas ruas de tão caprichoso nivelamento que permite as carroças que por lá se arriscam andarem no ar com burros e tudo. Lá ia ele:

— Cumpra, sinhor! Muita bonita.

Subia, descia ladeiras; parava nas portas; mas não fazia negócio algum.

Num pequeno campo, encontrou uma porção de crianças a empinar papagaios. Parou um pouco para ver aquele divertimento interessante que as crianças da sua terra não conheciam. Veio um pequenote:

— Ó Zê! O que é que você leva aí?

— Santo, menina. Pede mamãe compra uma.

— Ora, esta! Lá em casa tem tanto santo — para que mais um? Vende ali, aos “bíblias”.

Miguel José percebeu bem a malícia da criança, pois de uma feita caíra na tolice de oferecer um registro a essa espécie de religiosos e se vira atrapalhado. Não que o tivessem maltratado, mas um deles, baixinho, com um pincenez* muito puro de vidros cristalinos, o levara para o interior da casa, lera-lhe uma porção de coisas de um livro e depois quisera que ele se ajoelhasse e abandonasse os registros. Noutra não cairia ele…

Continuou o caminho, mas estava cansado. Ansiava por uma sombra, onde repousasse um pouco. Havia muitas árvores, mas todas no interior das casas, nas chácaras, nos quintais ou nos jardins. Uma assim pública, na margem da rua, em terreno abandonado que o abrigasse aí, por uns dez minutos, ele não encontrava.

E seria tão bom descansar assim fazendo o seu minguado almoço, para continuar até à tarde a sua faina, vendo se ganhava pelo menos uns dez ou cinco tostões de comissão com a venda daquelas coisas sagradas.

E continuou o seu caminho, tendo sempre exposta diante do peito a imagem de Cristo, coroado de espinhos, a mostrar o coração muito rubro, com os seus misericordiosos olhos a procurar o Céu, naquela manhã muito linda, de um profundo azul-cobalto…

Afinal, achou uma mangueira, maltratada, cheia de ervas parasitas, a crescer na borda do cominho, num terreno desocupado. Sentou-se, tirou da algibeira um naco de pão dormido, uma cebola e pôs-se a comer, olhando as montanhas pedroucentas* que assomavam ao longe e lhe faziam lembrar a terra natal. Ele não tinha nenhum nítido pensamento sobre a vida, a natureza e a sociedade…

Não tardou que se lhe viesse juntar um companheiro. Era também um “volante” como ele; mas a sua mercancia era outra, menos espiritual. Vendia sardinhas, de que trazia um cesto cheio. Era um português, cheio de saúde, de força, de audácia. Vinha suado, mais do que o armênio; entretanto, não dava mostras de ter ressentimentos nem do sol nem da dureza do seu ofício. O armênio olhou-o com inveja e pensou de si para si:

— Como é que esse homem pode ser alegre, pode ter esperanças?

O português, sem auxílio, arriou o grande cesto na sombra e sentou-se também cheio de confiança e desembaraço.

Foi logo dizendo:

— Bons dias, patrício.

Miguel José fez uma voz sumida:

— Bom dia, sinhor.

O português, sem mais aquela, observou:

— Qual senhor! Qual nada! Cá entre nós, é você pra baixo. Isto de senhor é lá pros doutores, não é para nós que andamos aqui aos tombos.

E emendou comunicativo:

— Que diabo — ó patrício! — que tu comes pra aí?

O “turco” disse-lhe e o Manuel da Silva considerou:

— Lá na minha terra, há quem goste disto; mas eu nunca me acostumei. Cebola pra mim, só na comida. Numa bacalhoada, ah!…

Miguel José continuava a mastigar sua cebola com pão, enquanto Manuel da Silva contava a féria. Contada que ela foi, disse bem alto:

— Pela hora que é, as coisas não vão mal. Até o meio-dia vendo tudo…

Guardou o dinheiro na bolsa que tinha a tiracolo e perguntou subitamente ao companheiro de acaso:

— Você já vendeu muito hoje, patrício?

— Nada, sinhor.

— Está você a dar com o tal de senhor! Pergunto se você já vendeu alguma coisa hoje, homem!

— Nada.

— O que é que você vende?

— Santo, sinhor.

— Santo?

— Sim; santo.

— Deixa ver isto, como é? fez o português curioso.

O armênio passou-lhe os registros coloridos e o vendedor de sardinhas pôs-se a olhá-los com espanto e deslumbramento artístico de aldeão simplório. Achou tudo aquilo bonito: aquele Jesus, mostrando o coração; são João, com o carneirinho; o Menino Jesus — tudo muito lindo aos seus olhos maravilhados de camponês cândido e enfeitiçado pelas coisas do senhor vigário.

Refletiu de si para si: “Coisas tão bonitas, se não as vendeu, é porque este ‘turco’ é mesmo burro. Comigo, já as tinha vendido, ganhado dinheiro e ficado com algumas, pra pôr lá no quarto”.

Veio-lhe uma ideia.

— Patrício! Você quer fazer um negócio?

Os olhos de carneiro do armênio luziram mais forte e com mais esperança.

— Qual é? perguntou ele.

— Tenho ali na cesta cerca de vinte mil-réis de sardinhas, vendidas a duas por um vintém. Se você vendê-las a vinte, ganha o dobro. Quer você trocar estes santos pelo cesto de sardinhas?

Miguel José rapidamente pesou os prós e contras da operação comercial. Sabia bem, por experiência própria, que a população, até as crianças, se mostrava refratária à mercadoria espiritual de que ele era portador; e, pelo que lhe vira ainda agora nas mãos, a do seu companheiro não se portava da mesma forma.

Em se tratando de sardinhas, as coisas não corriam da mesma maneira como no tocante a santos. Considerou bem e logo respondeu:

— Tá feita, sinhor.

Os dois se despediram e trocaram de carga. Miguel José voltou a passar pelos mesmos lugares em que oferecera os registros, sem nenhum resultado; mas, quando apregoou as sardinhas, não teve mãos a medir. Vendeu-as a vintém, então fez escambos de compensação e, de tal forma correram-lhe as coisas que, dentro de três horas, tinha vendido tudo, podia pagar os registros à loja e lucrava cinco mil e tanto.

Manuel da Silva, o alegre português das sardinhas, saiu muito ancho com os seus registros; mas não foi logo vendê-los.

A frugalidade do “turco” tinha-lhe dado uma fome extraordinária. Procurou uma casa de pasto e comeu a fartar, acompanhado de um bom martelo de verdasco.

Bem alimentado, satisfeito, dispôs-se a “trocar” o são João Batista, Menino Jesus, correndo a sua freguesia de peixes e crustáceos.

Batia as portas:

— Mamãe, dizia uma criança, está aí o seu Manuel.

A mãe perguntava lá de dentro:

— Ele traz camarão?

— Não, mamãe; quer vender santos.

— Para que deu agora, seu Manuel! Ora, vejam só! Vender santos. Diga a ele que não quero.

Dessa e de outra maneira, ele foi percorrendo em vão sua freguesia das sardinhas, sem mercar uma única estampa religiosa.

A sua alegria matinal se ia e todo o seu desgosto se voltava terrível contra ele mesmo. Não fora o “turco” que o embrulhara; fora ele mesmo que propusera aquele negócio. Era castigo. Ia tão bem com as sardinhas, para que fizera aquela barganha?

Andou até quase a noitinha e nada vendeu. Ao recolher-se, ainda quis ver as oleo-gravuras que o haviam deslumbrado.

Mirou uma, mirou outra e, olhando-as firmemente, refletiu:

— Se não fosse por faltar o respeito devido a Nosso Senhor Jesus Cristo, que ai está, eu havia de dizer que tudo isso são coisas do diabo que aquele “turco” me impingiu. Nunca mais! Tarrenego*!
_____________________
vocabulário:
Bufarinheiro = vendedor ambulante de bugigangas
Esbatidas = de tom ou colorido pálido
Mercancia = ato de mercanciar, mercadejar, primeira palavra para mercado, negociação.
Pincenez = modelo de óculos que não apresenta hastes. A fixação se dá fixando o óculos sobre o nariz.
Pedroucentas = com um montão de pedras.
Tarrenego! - interjeição. exprime desagrado, repulsa ou censura; tesconjuro.

quarta-feira, 13 de março de 2019

J. G. de Araújo Jorge (12 Trovas Marias)


1
A essa Maria que passa
minha oração já compus:
- Maria cheia de graça !
- Maria cheia de luz!

2
Deus pôs no céu três Marias
na mesma constelação,
e na noite de meus dias
mais três, no meu coração...

3
Há tantas Marias, tantas,
que quantas há eu nem sei. . .
Sei que há belas, feias, santas, . . .
...e a Maria que eu amei. . .

4
Há tantas Marias, tantas,
quantas são as aves no ar,
as nuvens no céu, e as plantas
na terra, e as ondas do mar...

5
Mar adoçado com mel,
dia de luz, claro dia,
misto de mar, terra e céu,
eis o teu nome: Maria.

6
Maria , nome tão doce
que nos sugere outro mar,
mar que salgado não fosse...
... doce até de pronunciar...

7
Maria Clara, Maria
dos Anjos, da Conceição...
E aquela que eu chamaria
Maria do coração. . .

8
Marias que não tem fim ...
. . . das Dores, do Ó, do Socorro . . .
A que diz morrer por mim
e a Maria por quem morro . . .

9
Ó Maria concebida
para ser o meu pecado...
Nos teu braços, minha vida
é um barco desarvorado.

10
Ó Marias . . . Repetidas
simbolizais a mulher,
se há sempre nas nossas vidas
uma Maria qualquer . . .

11
Ó Marias, que eu agora
junto na mesma quadrinha:
- Do céu, a Nossa Senhora,
- da Terra, a senhora minha...

12
Por duas Marias erra
meu viver de déu em déu:
- a que me perde na terra,
- a que me salva, no céu.

Fonte:
J.G. de Araujo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. IV, 1965.


Leon Eliachar (Dicionário de Bolso) Letras N até S

N

Namoro
— passatempo a quatro mãos.

Noivado — período de desajustamento antes do casamento.

O

Oba — palavra que todo revistógrafo brasileiro usa para encerrar o seu show musicado. Na Espanha se usa OLÉ e nos Estados Unidos, IUHU.

Ópera — conjunto de pessoas que praticam os maiores desatinos cantando.

Orador — sujeito que quando abre a boca faz todo mundo fechar os olhos.

P

Palavrão — equipamento mais importante do motorista.

Patrocinador — único sujeito que paga para ouvir seus programas.

Perdão — melhor maneira de esquecer o erro do próximo até a primeira oportunidade.

Pêsames — palavras de gentileza sempre recebidas com a cara fechada.

Plágio — outro sujeito ter tido a nossa ideia primeiro.

Pontualidade — coincidência de duas pessoas chegarem com o mesmo atraso.

Problema — é isso que a gente tem e pede pros outros resolver mas os outros também têm e pedem pra gente resolver.

Procurador — é esse sujeito que passa o dia inteiro nos procurando para saber qual a atitude que deve tomar em nosso lugar.

Promissória — intervalo entre uma assinatura e um milhão de desculpas.

Q

Quadro-negro
— é esse quadro que sempre sai branco nos desenhos.

Quarto de hora — são esses quarenta minutos que a namorada nos pede para retocar a pintura no toalete.

Quinta-feira — dia em que percebemos que não fizemos esta semana tudo o que vamos deixar para a semana que vem.

R

Rascunho
— é o que a gente escreve cinco vezes de forma diferente em cima do mesmo papel e quando vai passar a limpo não entende mais o que escreveu.

Recibo — comprovante que a gente guarda toda a vida pra provar que pagou e só dão de duvidar que não pagamos no dia em que resolvemos rasgá-lo.

Rede — coisa que só para de balançar quando a gente dorme.

Regente — sujeito que só enfrenta o público de costas.

Relógio de pulso — algema que nos prende apenas por um pulso.

Renúncia — gesto que se torna nobre porque não há outro jeito.

Reta — uma curva cortando caminho.

Retrato — isso que a gente fica por conta quando não sai parecido e mais por conta quando sai.

Retrocesso — tecla que não entra no curso de datilografia mas que os datilógrafos acabam usando mais.

Rotina — é esse esforço que a gente faz diariamente para sair da rotina.

S

Sacrifício
— pequena cota do nosso "eu" que depositamos na boa fé alheia para sacar com juros.

Saldo — grande estoque que encalha e o comerciante resolve vender uma peça de cada vez.

Sapato — condução de pobre.

Saudade — retrocesso do pensamento.

Secretária — moça que arruma a vida do patrão e desarruma a da patroa.

Segredo — isso que vai rolando de ouvido em ouvido e volta sempre com mais detalhes.

Sexo — coisa que antes de Freud era indecência; depois, psicanálise.

Sinal luminoso — é isso que abre precisamente com a buzina do carro que está atrás do nosso.

Striptease — uma mulher vestida de olhos.

Suéter — é essa peça de lã que as mulheres usam para fazer os homens suarem.

terça-feira, 12 de março de 2019

Lavínio Gomes de Almeida (Canteiro de Trovas)


A densa treva a cobrir
a montanha do calvário
faz a gente concluir:
- Sombra é uma luz ao contrário.

Ah, Santos! Com que egoísmo
tomas o meu coração!
Teu solo é meu catecismo;
Teu amor, minha oração...

Carnaval!... Tantas folias...
Pagodes doidos de insano!
Cai a máscara três dias
da face que a usou um ano!...

Conceitos, no livro breve
da vida, em página vaga,
vem nosso sonhos, e os escreve;
chega o destino, e, os apaga...

Cruz nas velas, cruz nas luzes
deste céu, brilhante joia...
Mas, por que Deus, tantas cruzes
nas montanhas de Pistóia?

Da História, no vasto trilho,
deixando impressos meus passos,
bem quisera ser teu filho
e erguer-te, Santos, no braço!

Da ternura faço o tema,
das desditas, minha prosa...
De cada dor, um poema,
de cada espinho, uma rosa!

Descalços pelo gramado,
teus pés mansamente vão...
Pões, no pisar, tanto agrado
que eu tenho inveja do chão...

De tudo o que for deleite,
Deus, só deixou, para mim,
a candeia sem azeite,
da vida que chega ao mim...

Deus fez Eva num segundo,
Mas teve um choque, parou!
O seu barro vagabundo
era tão mau que rachou.

Deus que deu ao mar as águas
e às matas deu as graúnas,
pôs, em minh’alma, mais mágoas
que grãos de areia nas dunas...

Durante as longas esperas
de reabrir-se o mosteiro,
a teimosia da heras
já cobre um mural inteiro...

Enquanto choro os fracassos
que a vida me tem imposto,
o tempo imprime seus passos
sobre as rugas do meu rosto!

Envolvido em meus lençóis,
ouço a chuva sobre as hortas
solfejando si bemóis
na clave das horas mortas!

Ergue-te, povo oprimido,
toma tua decisão!
Querem manter-te entretido,
mesmo sem circo e sem pão!

Evolando após a infância,
a juventude é fumaça
tão fugaz, como a fragrância
de um bom perfume que passa...

Faz tanto frio lá fora,
não te vás, detém teus passos!
Eu quero despir-te agora
para vestir-te de abraços...

Já tendo a morte defronte,
nem da vida teve pena:
para não gastar com ponte
quis “pinguela” de safena...

Mais aumentas meu desejo
se colocas, sem ressábios,
a nota “sol” do teu beijo
sobre a flauta dos meus lábios.

Meu sonho bom, tu me bastas,
mas, perto do amargo fim,
se por acaso te afastas,
morre um pedaço de mim!

Meus sentimentos ressalto,
ouvindo do céu conselhos:
sinto-me muito mais alto
quando fico de joelhos.

Na estrada sem estações
do tempo, que, insano, corre,
o amor, cheio de emoções,
nasce... cresce... e depois morre...

Na estrada sem estações,
onde jamais há demoras,
minutos são os vagões
do “trem-sem-volta” das horas.

Na inquietação que se aguça,
carrego na alma dorida
a grande montanha-russa
do sobe-e-desce da vida.

Nas fantasias douradas
da minha imaginação,
fui herói, fiz cavalgadas
sem tirar os pés do chão.

Neste silêncio, as demoras,
em noite escura, sem fim,
eu sinto aceno de auroras,
se acaso estás junto a mim.

No curso de minha vida
foi a tua aparição
a comédia mais fingida
de um Carnaval de ilusão.

No seu viver temerário,
que a nenhum lugar conduz,
quem passa por um calvário
leva vestígios da Cruz!...

Num ato de bom agouro,
se o véu da história descerro,
vislumbro uma pena de ouro
quebrando grilhões de ferro...

Pobre menino vadio,
triste pária pequenino,
és um grande desafio,
sem infância, sem destino...

Presente! Tens frágil glória...
És barco a vagar no escuro!
Fração de tempo, irrisória,
entre o passado e o futuro...

Qual vaqueiro de esperanças,
aboio, com emoção,
a manda das lembranças
nos pastos do coração.

Sei que todo salafrário
que deixa o credor às tontas,
detesta sempre o rosário,
que é feito também de contas.

Sempre só e abandonado
nos teus momentos de ausência,
eu sou segundo parado
no mostrador da existência...

Sofredor sempre se esquiva
de mostrar a dor por fora...
Quando a lágrima é furtiva,
maior é a dor de quem chora...

Sonhando novas auroras,
no meu viver sem ninguém,
me embala a dança das horas
pelo amanhã que não vem...

Vai findar-se a mocidade!
Com ela os sonhos se vão...
Fico noivo da saudade
e viúvo da ilusão...

Veleiro que ao vendo avanças,
a demandar outras plagas,
tu vais cheio de esperanças
sobre a esperança das vagas!

Velhas cartas... meu degredo...
Com pranto as pude escrever.
Há no seu bojo um segredo
que o mundo não vai saber!

Vi, morando em teu rosto,
ao buscar sinais de amor,
pantomimas de mau gosto,
comédia escondendo a dor...

Voltei... a rua, em verdade,
em quase nada mudou...
Mas tinha agora a saudade,
que em cada esquina brotou...

Contos e Lendas do Mundo (África: O Irmão Coelho e o Bebê de Alcatrão)

As histórias do Irmão Coelho eram contadas primeiramente pelos escravos afro-americanos, e são provenientes dos mitos de animais de África. Estas histórias foram registradas por um jornalista de origem europeia, chamado Joel Chandler Harris.

- Toca a levantar, Irmão Raposo! - disse o Irmão Coelho numa manhã soalheira, passando a correr pelo seu inimigo sonado. Agora, o Irmão Raposo era maior do que o coelho, mais forte do que ele e tinha dentes mais afiados, mas o Irmão Coelho estava sempre a levar a melhor sobre ele!

O Irmão Raposo planejou mudar tudo isso - para sempre. A razão por que estava com um ar meio sonolento não se devia ao fato de o barulhento do Irmão Coelho ter acabado de acordá-lo. Não, o Irmão Raposo estava cansado porque estivera a planejar travessuras até tarde.

Rastejara até ao poço de alcatrão, onde o pez borbulhava do chão e moldara um pedaço de modo a parecer-se com um coelho bebê.

Depois, o Raposo levou o bebê de alcatrão e sentou-se no meio do canteiro de terra que ele sabia que o Irmão Coelho palmilhava todos os dias até à sua plantação de alfaces. Então, foi sorrateiramente até casa e enroscou-se, fingindo ter estado lá a dormir toda a noite.

Quando o coelho agarrou o bebê de alcatrão, saudou-o.

- Bom dia, jovem - disse ele. - Onde estão a tua mamã e o teu papá?

Como é óbvio, o bebê de alcatrão não respondeu, porque ele era isso mesmo: um bebê feito de alcatrão. Nessa altura, o Irmão Coelho deu-lhe um bom abanão - só para descobrir que as suas patas se agarravam a ele como cola. Depois, utilizou as patas traseiras para se libertar do alcatrão pegajoso e também elas ficaram coladas.

 Foi então que o Irmão Raposo surgiu. Estivera escondido num buraco, sempre à espreita.

 - Parece que esta noite vou ter guisado de coelho! - riu-se ele. - Acho que vou pôr-te ao lume! - disse, agarrando o Irmão Coelho pelas orelhas.

- Oh, então está bem - disse o coelho. - Pensei que me ias atirar para aquele canteiro de roseiras-bravas.

- Pensando melhor, vou esfolar-te e depois comer-te - disse o raposo, aborrecido por o coelho não parecer estar assustado com a ameaça.

- Desde que não me atires para dentro do canteiro - suplicou o Irmão Coelho.

- Ou posso pendurar-te numa árvore - disse o Irmão Raposo.

- Parece desagradável - concordou o Irmão Coelho. - Mas não tão desagradável como o canteiro.

- Então é mesmo para aí que vais! - exclamou o raposo. Libertando-o do bebê de alcatrão, atirou-o ao ar... e o Irmão Coelho aterrou no canteiro de rosas-bravas cheias de espinhos.

- Obrigado por me soltares, Irmão Raposo - gritou o Irmão Coelho. Esqueceste-te que nós coelhos nascemos e crescemos no meio das roseiras bravas. - E, com isto, foi-se embora saltitando.

Tal como um escravo consegue enganar o seu dono com astúcia, mais uma vez o Irmão Coelho derrotara o Irmão Raposo fazendo-o passar por parvo.

Fonte:

Arthur de Azevedo (A Dívida)


I

Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de São Paulo. Depois da cerimônia da colação do grau, foram ambos enterrar a vida acadêmica num restaurante, em companhia de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São José. Aí se entregaram à recordação da sua vida escolástica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos e este para a capital do Império. As malas estavam feitas.

– Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá tantas voltas!

– Não creio, respondeu Veloso. Vais para a tua província, casas-te, e era uma vez o Montenegro.

– Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas ideias a respeito do casamento, ideias que são, aliás, as mesmas que tu professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro.

– Isso dizem todos…

– Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto de saber que eu quando digo, digo.

– Pois sim, mas há de ser difícil que em Santa Catarina te possas livrar do conjugo vobis. Na província ninguém toma a sério um advogado solteiro.

– Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem ser casados.

– Não me engano tal. Na província o homem solteiro, seja qual for a posição que ocupe, só é bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras.

– Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?

– Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos. Queres fazer uma aposta?

– Como assim?

– O primeiro de nós que se casar pagará ao outro… Quanto?

– Vê tu lá.

– Deve ser uma quantia gorda.

– Um conto de réis.

– Upa! Um conto de réis não é dinheiro. É preciso que a aposta seja de vinte contos, pelo menos.

– Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar vinte contos de réis?

– O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem

– Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!

– Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas estampilhas.

– Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação recíproca, passada com todos os efes e erres!

Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.

– Senta-te e escreve o que te vou ditar.

Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse:

– Pronto.

Eis o que o outro ditou e ele escreveu:

"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de réis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse pagamento, além da presente declaração, a minha palavra de honra."

– Agora eu! disse Veloso, sentando-se:

"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de réis…etc."

As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando cada um com a sua.

No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte.

II

Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo da família dele, paternalmente se ofereceu para encaminhá-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu escritório.

Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente. Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações no comércio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa, frequentando a alta sociedade, gastando à larga.

O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porém, deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteção com que foi recebido.

Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.

– Olha que aquilo está de pé!

– Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.

– Se te casas, não te perdoo a dívida.

– Nem eu a ti.

Os dois bacharéis separaram-se friamente. Veloso não pagou a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se às vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro:

– Então? ainda não és noivo?

– Não.

– Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos…

III

Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito. Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente.

Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rápida e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela elegância do vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras.

Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um físico de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara.

Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressão que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro, ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labareda a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso é que se deixou vencer pela insistência com que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiníveis sorrisos que nas batalhas do amor equivalem a uma capitulação.

O acordo tácito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hóspede na arte de namorar, chegou a perguntar a si mesmo se não era tudo aquilo o efeito de uma alucinação.

O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:

– Vamos jantar.

À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de notável, colocaram Montenegro ao lado da moça.

Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e completa, da sua fascinadora vizinha.

Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam por Lalá, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma irmã de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores. Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima educação que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessário para viverem ambas sem recorrer ao auxilio de estranhos nem de parentes. Para não ser muito pesada à tia, Lalá ganhava algum dinheiro dando lições de piano e canto em casas particulares; eram os seus alfinetes.

– Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa. Quando é preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha tia.

E elevando a voz:

– Não é assim, titia?

– É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem saber de que se tratava.

Lalá era suficientemente instruída, e tinha algum espírito mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciáveis, tomaram proporções exageradas na imaginação de Montenegro.

Este disse também a Lalá quem era, e contou-lhe os fatos mais interessantes da sua vida, exceção feita, já se sabe, da famosa aposta de São Paulo.

E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas confidências que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que não foram poucos.

Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lalá cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressão, e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria. Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade.

Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça num último aperto de mão.

Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor de vinte contos de réis.

IV

Nesse mesmo dia Montenegro estava sozinho no escritório, e trabalhava, quando entrou o Conselheiro Brito.

– Bom dia, Gustavo.

– Bom dia, conselheiro.

O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os olhos:

– Gustavo, aquilo não te serve.

– Aquilo quê?

– Faze-te de novas! A Lalá.

– Mas…

– Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos. Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é tempo. Tu conhece-a?

– Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar
dela o melhor conceito.

– Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não me importa que fumem perto de mim.

– Então ela…?

– Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e não tem podido, por conseguinte, escapar á implacável maledicência dos fluminenses. Demais, está habituada ao luxo, ao luxo da rua, que é o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Não é mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o que bem te parecer.

Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada, calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo de seu pai o dissuadisse de requisitar a moça, – não pelas consequências morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha, de satisfazer uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar de todos os seus esforços, não conseguira até então pôr de parte nem o terço daquela quantia.

Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais conselhos que pedisse à razão, por mais que procurasse iludir-se a si próprio, Montenegro não conseguia libertar-se da impressão que lhe causara a moça. O seu coração estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois do seu encontro com Lalá, esta não lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de reação.

"Doutor. – Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto, não imagina como sofro por não saber os motivos que atuaram no seu espírito para interromper tão bruscamente… a leitura. Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que me tranquilize ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque só eu abro as minhas cartas. – Lalá."

A primeira ideia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar o seu procedimento, se recusasse a explicação com tanta delicadeza solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano categórico e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:

"Lalá. – Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me imponho para renunciar à ventura e á glória de pertencer-lhe; mas um motivo imperioso existe, que se opõe inexoravelmente à nossa união. Não me pergunte que motivo é esse; se eu lhe revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta dizer-lhe que a objeção não parte de nenhuma circunstância a que esteja ligada a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza.
Adeus, Lalá; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. – G. M."

– Que conselho me dá vosmecê? perguntou Lalá à sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.

– O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo… e talvez possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido, minha filha. O Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade.

No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:

"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do Senador Vergueiro. Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que eu e sente-se ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que nos entendamos de viva voz. – Lalá."

O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuía todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia dessa viagem de bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado, Lalá sabia já qual o motivo pecuniário que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de Montenegro.

– O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente considerável; mas… eu sou mulher e talvez consiga…

– O quê? perguntou Montenegro sobressaltado.

– Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.

Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem lhe magoar os dedos.

Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade.

– Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis dar um níquel.

O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:

– Foi por conta daqueles vinte, – sabes?

– Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se também.

V

Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso recato que é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal das suas condições de insolvabilidade, desistira mentalmente de considerá-lo um noivo possível, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga", palavras à-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que se ia tornando penoso e ridículo.

Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu parabéns, e dai por diante só se lembrou de Lalá como de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante mas nunca sua esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira impressão. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos lábios com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão foi tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.

VI

Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano extravagante e o punha em prática enquanto ele, tranquilo e despreocupado, imaginava que ela o houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se com a tia, que não primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritório e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular.

A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.

– Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.

Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o jantar do Conselheiro Brito.

Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso perguntou-lhe, terminada a história, em que poderia servi-la.

– Sou amada por um homem que é digno de mim, e o nosso casamento depende exclusivamente do doutor.

– De mim?

– A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miserável quantia a felicidade… de uma órfã.

– Não compreendo.

– Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.

– Ah! ah!…

– Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução, que tomei, de vir falar-lhe.

– Acredito.

– Qual é a sua resposta?

– Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho... mas perder assim vinte contos de reis…

– Recusa?

– Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de amanhã venha buscar a resposta.

A conversação continuou por algum tempo, e Veloso começou a sentir pela moça a mesmíssima impressão que ela causara a Montenegro.

Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição todos os seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.

– Feliz Gustavo!

– Feliz… por quê?

– É amado!

– Oh! não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão desenfreada!

– Ah!

– É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor não abrir mão da dívida, e ele não se puder casar, não creia que eu me suicide!

Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois, quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras:

– Não!… Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu marido, e…

– E…?

– E eu… tenho ciúmes.

No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela própria velha.

– Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que o outro… Não o deixes escapar, minha filha!

A verdade é que Veloso não se introduziu em casa de Lalá com boas intenções; mas a esperteza da moça e as indiscrições do advogado determinaram em breve uma situação de que ele não pôde recuar.

Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora ajustado esse consórcio imprevisto.

VII

No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório, quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido de Lalá.

– Não acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao Conselheiro Guedes.

– Não; mas não o gastes; afianço-te que terás ocasião mais oportuna para devolvê-lo.

E assim foi.

A lua-de-mel não durou dois meses. Os dois esposos desentenderam-se e logo se separaram judicialmente. Ele voltou à vida de solteiro e ela tornou para casa da tia.

Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em casa dele.

Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes termos:

"Doutor Veloso. – Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos de réis, porque a divida que ele representa é uma estudantada imoral, sem nenhum valor jurídico. – Gustavo Montenegro."

                                                                             Fonte: Arthur de Azevedo. Contos Fora da Moda.