domingo, 21 de abril de 2019

Almanaque O Voo da Gralha Azul (n. 15 - abril de 2019)


Lançado hoje o número 15 do Almanaque O Voo da Gralha Azul.

Antes de mais nada uma errata, no número anterior na biografia do poeta português Domingos Freire Cardoso havia colocado que ele se licenciou em Física, corrija para Engenharia Quimico-Industrial.

Nas 120 páginas deste Almanaque,

Estante de livros: Andrey do Amaral, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, Literatura indígena.

Pedro Malasartes apronta mais uma.

Poesias, muitas, Denise Emmer Dias Gomes, Edy Soares, Elisa Alderani, Hermes Fontes, Lairton Trovão de Andrade e muitos mais.

Textos diversos abre o almanaque com Mara Melinni, seguida por textos de Antonio Brás Constante, Carlos Leite Ribeiro, José de Alencar, Lygia Fagundes Telles, um conto premiado de Luiz Poeta (que está na postagem abaixo), e mais.

Teatro de Ontem e de Hoje é a nova seção, com artigo sobre duas peças.

Trovas de Colombina, Luiz Damo, Miguel Russowski e outros.

A primeira parte de texto de A. A. de Assis que nos conta um pouco da história de antes de Maringá.

Caso deseje o e-book escreva para gralha1954@gmail.com solicitando o número.

                                                                                                              José Feldman

Luiz Poeta (Projétil Pedagógico)


O professor está assumindo sua primeira turma numa escola municipal. São alunos repetentes, de uma sexta série complicada, oriunda de áreas de risco. Ele é novo naquela unidade, mas já dá aula há bastante tempo e acredita que não terá nenhuma dificuldade em ministrar o seu trabalho e passar suas experiências para o seu corpo discente; procura ser simpático, brinca com sua clientela didático-pedagógica, elogia a beleza das meninas e a simpatia dos garotos. A algazarra é inevitável. Eles se divertem e até exageram nos gestos e movimentos buliçosos. O professor pede silêncio. Repete a solicitação com a energia da autoridade. Eles se aquietam gradativamente.

Alguns o olham desconfiados, outros parecem ignorá-lo, mas os sorrisos que recebe do restante da turma sinalizam para uma relação empática com o grupo. O mestre precisa conquistá-los. A primeira aula é decisiva. Inicia seu discurso e fala do mundo, da dificuldade de sobrevivência no planeta, da necessidade que as pessoas têm de se sentirem protegidas e da importância da união entre elas. - Eu sou como vocês - diz ele - posso rir, chorar, ficar feliz ou me entristecer com determinado fato... nossos uniformes não são necessariamente nossas identidades, porque temos capacidade de amar e de ser amados uns pelos outros...

Os alunos, a princípio arredios, parecem magnetizados. Sorriem, divertem-se, dão opiniões, sentem-se livres, à vontade para falarem de suas vidas, dos seus sentimentos, dos seus desejos. Contam histórias, mostram-se personagens importantes de cada uma delas, fazem um teatro espontâneo de suas próprias alegrias. O professor sente-se efetivamente um deles, é o mais feliz de todos eles, entende suas alegrias, senta-se alegremente no meio deles.

Num determinado momento, no clima da evidente euforia coletiva gerada pela aceitação mútua, ele vira-se para a turma e diz: - Eu adoro balas. Alguém aí tem uma para me dar?

Um aluno sentado numa das últimas carteiras, chama o professor, observado atentamente pelos colegas.

- O senhor gosta de balas?

- Adoro.

- Que tal esta aqui?

Trata-se de uma bala de escopeta (não deflagrada, intacta!). O professor está perplexo, visivelmente abatido. Pega o pesado projétil numa das mãos, hesita e percebe que toda a turma silencia. Somando-se ao primeiro, mais dois alunos levantam-se e se colocam ao lado do professor.

Sorridentes, insistem:

- E aí, mestre, gostou da bala?

A pausa é pesada e inevitável. Parece eterna, mas a resposta é intuitiva e inespontânea.

- Prefiro Halls.

A inércia é quebrada, todos riem, a turma se alvoroça. Nem o professor esperava sua própria reação. A custo, ele indaga, misturando solenidade com simpatia:

- Querido, posso continuar o meu trabalho?

- Claro, professor - o aluno senta-se desconfortavelmente.

A aula é reiniciada. A bala de escopeta está na mão do professor. O silêncio é tumular. Em sua boca, as palavras esgueiram-se. Tentando aparentar naturalidade, ele usa o quadro-de-giz e começa a ministrar o conteúdo.

A sirene toca, todos se retiram ruidosamente, cumprimentando o professor com gestos típicos de estudantes de uma comunidade carente:
- Aí, professor, o senhor é maneiro!

- Professor, até amanhã!

- Valeu, professor!

- Tchau, mestre, sangue-bom!

- ...Professor... e a minha bala?

- Ah, tinha me esquecido.

O professor olha fixamente para o aluno. Há no seu olhar um misto de desapontamento, tristeza e extrema afeição. No seu coração, a sensibilidade mescla a necessidade da manifestação do amor de um pai com a necessária atitude de um educador em exercício.

- Você já pensou na possibilidade de a diretora da escola pegar essa bala?
- Já.

- Se ela pega, o que acontece com você?

- Sou expulso da escola.

- Você acha isso legal?

O aluno abaixa a cabeça.

- Não.

O professor insiste. Em cada palavra, a sinceridade evoca a ideia permanente da confiança:

- Meu filho, esta vida tem dois lados: o seu e o do mundo. O seu é de sonhos, de realizações, de conquistas... o outro é o do poder, do medo, da hipocrisia, da covardia... Crie seu território, delimite-o; mostre o que você pode fazer de bom para sua própria sobrevivência e liberdade... Seja feliz, querido... Você é um vencedor! Você não precisa provar isto pra ninguém! Prove para você mesmo!

Pausa.

- ...o senhor vai me devolver ?

- Ah, sim, a bala. Vou. Toma.

- Valeu, professor, o senhor é sangue-bom.

O menino sorri e se retira, deixando no ar uma nervosa sensação de impotência e medo. Há, entretanto, um silencioso pacto entre eles, marcado pela tímida iminência de uma lágrima e pelo poder de um sorriso que se dilui volátil, dentro dela.

Na semana seguinte, mais uma aula. O professor reinicia suas atividades, mas percebe uma inquietação diferente. Está absorto no seu trabalho, quando alguém o chama lá do fundo sala. É o mesmo aluno que lhe oferecera a bala de escopeta.

- Professor... Quer bala ?

Um calafrio percorre cada poro, mas a inicial estupefação cede gradativamente.

- Depende da bala.

A turma ri.

O professor sente-se seguro com a espontaneidade coletiva dos sorrisos.

- Vem aqui pegar. Pode confiar na gente.

O professor caminha na direção dos alunos. Os mesmos três que lhe ofereceram a bala de escopeta.

Eles entregam três sacos de balas ao professor. Hortelã, tamarindo, mel, coco... uma infinidade delas.

O coração se abre como um botão numa flor.

Todos aplaudem a cena.

As balas são distribuídas. A alegria é geral.

Os alunos cumprimentam o professor. Alguém escreve uma frase com letra bonita no quadro: "Nós amamos o senhor."

A lágrima agora é inevitável. Desliza sem pudor pelo rosto num riso sublime que mistura surpresa com euforia. Eles a percebem. Choram e riem com o professor.

Que aula!

O sinal toca. Todos se despedem e saem. O aluno da bala de escopeta fica.

- Gostou das balas, professor?

- Claro.

Pausa.

"...mas ficaria mais feliz se...

- Se eu jogasse aquela bala fora?

- É.

- Eu já me desfiz dela, professor.

- Por quê?

- Porque descobri que sou uma criança ainda, professor. Prefiro balas de hortelã.

(Texto premiado pela Academia Brasileira de Letras e pela Folha Dirigida do Rio de Janeiro - Publicado na Antologia "Por que poesia em tempos de indigência?")

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Luiz Gilberto de Barros. Canção de Ninas Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Ógui Lourenço Mauri (Poemas Escolhidos) IV


A COR DOS OLHOS DELA

O matiz dos olhos dela é uma pintura,
Mais parece um manso lago transparente;
Onde o azul das águas traça a formosura,
Misturado ao verde do meio ambiente.
       
Em seus olhos, vejo um lago cristalino,
Sem perder o verde, réplica do céu...
Quando chove, lembra o choro repentino
Da saudade que ela tem de mim, ao léu.
            
Traz, a cor dos olhos dela, tal beleza,
Um requinte de magia sem igual;
Predomina o verde tom da Natureza,
Com o anil do céu a dar toque final.
             
Este lago azul, matiz verde ao redor,
Normalmente calmo, sofre oscilação.
Vem com seus revoltos que já sei de cor,
Presos aos ditames de seu coração.
              
Foi, a cor dos olhos dela, o atrativo
Que me pôs sob os grilhões de seu fascínio...
Que em meu peito fez lugar mais que exclusivo;
Coração meu, à mercê de seu domínio!

AMAR-TE EM POESIA!

Face a detalhes adversos
E a entraves do dia a dia,
Preciso apelar pros versos
E assim te amar em poesia!

Meus versos são lenitivos
À falta de teu calor,
Mantêm instintos ativos
Por conta de nosso amor.

Amar-te em poesia, sim;
Abrir para ti meu peito!
Trazer tua imagem pra mim
E envolvê-la do meu jeito!

Musa és de meus poemas
Instados pela distância.
De ti, vêm todos os temas
E paixão em abundância.

Os doces versos saindo,
Dão-me vida afortunada.
Amar-te em poesia é lindo,
Antes isso do que nada!

AS FACES DO OUTONO

Traz o outono matiz peculiar,
O sol já não é forte ou intenso;
Sobra ao vento atrevido assoprar,
Num contraste do clima, que é imenso.

Muitas folhas fenecem no chão,
A criar um quadro em sintonia
Com grilhões da voraz situação,
Que aniquila de vez a alegria.

Pois é assim que, não raro, me vejo,
Mergulhado nos dias de outono;
Nostalgia que me dá ensejo
De vigília, de não ter mais sono.

Tenho ainda na mente o verão
Que feliz eu passei a teu lado.
Mas o outono chegou de roldão
E do sonho me vi acordado.

   Quero o outono indo rápido embora,
E que o inverno apareça, por fim;
Que se embrenhe em ti na melhor hora,
 A fazer que tu voltes pra mim!

Fonte:
Colaboração do poeta

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Derradeira Gravidez da Tristeza


A DERRADEIRA GRAVIDEZ DA TRISTEZA

      Saí correndo, em desespero. Me precipitei para a fábrica. Nem meio caminho percorri. Um camponês me alertou:

      - Procura a sua mãe? Pois. foi seu pai que lhe levou para o rio, foi matá-la lá.

      A ideia de encontrar minha mãe golpeada me roubava as forças. Eu já não corria, apenas cambaleava ao sabor da inclinação da encosta. Tudo em redor rodopiava, mas à minha cabeça chegava, com clareza, a consumação do presságio. Então, era isso: o renascer da lenda. A primeira Ntoweni sacrificara a sua vida para libertar a água e salvar os seus. Esse destino revivia agora em minha mãe. Nada sucede de primeira vez, tudo é reedição de algo já sucedido. Quando pisei a margem, meu corpo pingava como se eu tivesse atravessado um oceano. Exausto, tombei. Escutei, então, uma voz de mulher. Era minha mãe que chamava. Estava ferida, incapaz de se levantar.

      - Ele não me fez mal, filho. Seu pai não me magoou.

      O que tinha sucedido? Os dois se despencaram dos rochedos. Ambos ficaram feridos nessa queda.

      - Lutavam?

      Ela respondeu, sorrindo:

      - Fazíamos exatamente o contrário.

      - O contrário?

      - Nós estávamos namoricando. Escorregamos, sem querer, nesses penhascos.

      Acontecera assim: no início ele queria matá-la, fazê-la pagar pela traição. Minha mãe enfrentou aquela carga com serenidade. E lhe disse com o mesmo sossego com que me dizia agora:

      - Esse homem nunca chegou de me tocar.

      Meu pai não acreditou. Disse que conhecia bem aquele ranhoso desse negro, esse que tanto se armava em pronúncia de branco que já os lábios se afilavam.

      - Não foi com esse negro que eu negociei meu corpo.

      - Não foi?

      - Foi com o patrão principal, foi com o branco.

      - Afinal?

      Meu pai parecia ter perdido a razão de sua raiva. Minha mãe disse que ele suspirou, como se fosse em alívio. Depois, levantou o rosto e “inquiriu:

      - E, então, você foi com esse branco?

      - Não, não fui.

      - E por que não foi, mulher?

      O tom dele parecia, no momento, de desilusão. Parecia quase repreendê-la por não ter ascendido. A mãe não quis alongar conversa. E cortou, célere:

      - Não fui nem vou com nenhum outro homem, preto ou branco.

      Olhei o rosto dela, parecia uma bandeira de orgulho. Uma serenidade interior lhe iluminava o semblante.

      - Verdade, mãe? Esse branco não abusou da senhora?

      - Desde o primeiro dia, ele me desejou, sim. Mas o homem não era capaz. Disse-me que eu cheirava à minha raça.

      O branco ordenou que ela se devia perfumar. E lhe quisera oferecer, mesmo, um frasco de perfume. Mas ela recusara. Tinha em casa um frasco de cheiro que sobrara de sua festa de noivado. E foi esse vidro que ela quebrara de encontro à parede do quarto.

      - Mas, mãe, por que não disse logo ao pai, por que não contou desde o princípio que, afinal, nunca esse outro lhe tocou?

      - Para ele sofrer de ciúme! A vocês, homens, faz bem uma dor dessas. Vocês são fracos por falta de saber sofrer.

      Também eu sorri. Suspirei. No fundo, eu me libertava da obrigação de ser cúmplice de algo que, antes, me surgia como uma traição.

      - Eu pensava que a mãe estava repetindo a lenda de Ntoweni.

      - Contaram-lhe essa história?

      - Sim, foi o avô.

      - Disseram-lhe que o imperador possuiu a nossa primeira avó?

      - Sim, disseram.

      - Pois essa é a versão que os homens contam. Nós, mulheres, temos uma outra versão.

      - Outra versão?

      - Dou-lhe um conselho, filho. Nunca diga que uma mulher foi sua. Essas são coisas para nós. mulheres, dizermos. Só nós sabemos de quem somos. E nunca somos de ninguém.

      Ela ficou olhando-me com ar indefinível. Seu rosto me cumprimentava, ela tomava o gosto de ser mãe e me ver ali filhando, pronto a tomar conta dela. Voz amaciada, retomou a palavra:

      - A primeira vez que eu o vi, meu filho, você ainda não tinha nascido. Eu o vi numa gota de chuva.

      Sim, ela me vira numa gota que escorria pelo vidro, como se tivesse intenção de fazer parte da casa. Minha mãe colheu essa gota na ponta do dedo e, depois, a semeou entre as pestanas. Nessa altura ela prometera:

      - Na próxima tristeza hei de chorar-te a ti, meu filho...

      Eu não lhe saí do ventre. Mas da tristeza. Era por isso que aquela chuva, aquela chuva que não tombava, estava falando fundo em sua alma.

      - E diz o quê, mãe?

      - São segredos entre mulher e água.

      E ali ficamos falando, como nunca havíamos conversado.

      O que me dizia, em confissão: nunca ela me dedicara nem mimos nem doçuras. Procurava agora uma desculpa? Que se tinha contido nos afetos para se defender de sofrer. Tivera filhos, todos tinham partido. Eu nascera fora do tempo, já ela se cansara de ser mulher.

      - É o que lhe dizia, você me nasceu da tristeza. Da tristeza de ter perdido os outros, seus irmãos.

      - Mãe. agora já chega de falar em coisa triste. A senhora está ferida, venha que eu a ajudo a regressar.

      Levantou-se apoiada em mim, olhou o leito seco e sorriu.

      - Essa vida é cheia de graça, meu filho.

      Era ali naquela curva do leito que naufragavam as peças da roupa que ela deixava escapar na corrente. Agora, tantos anos passados, ela mesma tinha sido despejada naquele remanso como se fosse um pano largado das mãos de uma lavadeira.

      - Sabe por que eu soltava as roupas, meu filho?

      - Como posso saber?

      - Para descobrir com quem seu pai me traía.

      Era um velho procedimento para se revelar traição. A lavadeira devia soltar os panos na corrente. A roupa que não fluísse, flutuando na ondeação, essa roupa pertencia ao culpado ou à culpada.

      E houve roupa que não seguiu na corrente?

      Houve sim, meu filho. Essa roupa não se afundou na água. Se afundou em mim.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Trova 346 - Paulo Walbach Prestes


Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) VI, final


A NOSSA DOR

Enquanto chora a Mãe desventurada,
Sobre o seu coração, de noite e dia,
Eu canto a minha dor; e a dor cantada
Como que intimamente se alumia...

Se me levanto cedo e a madrugada
Já vem dourando os longes de harmonia,
Sinto que estás ainda despertada
E eu ouço, em mim, cantar nova elegia.

Abre-te a dor os olhos sem piedade,
Durante as longas noites de amargura...
Mas para mim a dor é já saudade.

A dor, em mim, é canto que murmura;
A dor, em ti, é negra tempestade:
Sou a noitinha, e tu, a noite escura!

VIDA ETERNA


Nele adora somente o que não passa;
O que é imortal, perfeito, e no teu ser
É fonte de orações, de luz e graça.

Adora a sua Imagem a viver,
Numa perpetua infância florescendo,
Perpetuamente isenta de sofrer.

Dia a dia, nós vamos falecendo;
Esta vida carnal é um arremedo
Da Vida, á luz da qual eu não entendo

Nem morte ou aparência ou dor ou medo...
Teu Filho agora é luz, revelação;
E tu, ó Mãe, crepúsculo e segredo!

Adora, sim, teu próprio coração
Se desejas amar teu Filho. Reza
E não chores, que a luz duma oração

Mostra-te bem melhor sua beleza,
Seus verdes olhos de alma, a fronte e o rosto
Que as lágrimas sombrias de tristeza.

Seja alegria eterna o teu desgosto
Corpóreo, transitório! Seja aurora
De idílio o teu dramático sol posto!
A alma ajoelha e reza, mas não chora.

MEMÓRIA

Memória, Elísios Campos, Paraíso,
Espirituais Paisagens!
Vales de luz, outeiros de sorriso,
Onde vivem as místicas Imagens.

Jardim florido de Almas que o estertor
Da Morte libertou! Jardim povoado
De luminosas Sombras que em amor
E sonho iluminado,
 
Dando-se as mãos de luz e intimidade,
Vagueiam pelas verdes avenidas,
Ao luar misterioso da Saudade,
Evocando outros mundos, outras vidas...

Vejo, em grupos, os velhos conversando...
E murmuram palavras... voz de outono
Que se vai em silêncios desfolhando
Num ermo chão dourado, ao abandono.

Mais adiante, em doce companhia,
Caminha enamorada a gente nova:
O Herói caído, morto, à luz do dia,
A Noiva que baixou à fria cova!

E mais adiante ainda, em mais ruidosos
E alvoroçados grupos, as Crianças
Falam alto, têm gestos luminosos...
São bandos de esperanças,
 
Tão cedo à luz do mundo arrebatadas
E aos braços maternais!
E brincam a sorrir, inda molhadas
Das lágrimas eternas de seus Pais...

E com um ar de riso,
As beija o Sol do Além...
Nem se lembram das mães, no Paraíso;
São Almas, sim, e as Almas não têm Mãe!

Ao Sol espiritual que as faz corar
Durante os seus brinquedos,
Somente Deus as pode contemplar
Do seu trono de trevas e segredos.

Deus contempla as Crianças que roubou
Ao fundo amor materno... E bem se vê
Nos seus olhos a nuvem que os toldou...
E a si mesmo pergunta: Para quê?

E à luz do eterno dia,
Os Fantasmas divinos das Crianças
Fazem os seus bailados de alegria,
Elas que são tristíssimas Lembranças!

E a nova formosura que elas têm!
O novo e estranho encanto!
Assim tocadas já do sol do Além,
Até aos pés vestidas do meu Canto!

Memória, Jardim de Almas todo em flor
Que as canções e os perfumes enevoam,
Se para mim és dor, és luz e amor,
Para os seres amados que o povoam!

E eis tudo quanto resta à Criatura:
Saber que o seu tormento
É perfeita alegria, alta ventura,
Em outro Firmamento!

Quando os meus olhos íntimos, em sonho,
Esse mundo ideal conseguem ver,
Fico tão deslumbrado que suponho
Haver morrido já sem o saber!

E eis que sou na Paisagem da Memória!
Lembrança de mim mesmo, eu já penetro
Na cidade fantástica e ilusória...
Já sou Aparição, Visão, Espectro!

Que é da minha Presença? Não me vejo!
Ah, não me encontro em mim! Sou a Oração
Redimida, sem Deus e sem desejo;
Amor sem coração!

Sonho liberto, ascendo no Infinito.
A própria Altura é já profundidade!
Onde estás? onde estás? ó corpo aflito!
Meu ser perdeu-se em alma: ei-lo saudade!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912

Lançamento do Livro “Emoções” por Eliana Hüning Corona

Eliana Corona e Isabel Furini com livro "Emoções"
Foi lançado no Festival Literário de Machadinho (RS), em março, o livro "Emoções", organizado pela poetisa Eliana Huning Corona e publicado pela Editora Huning.

Na obra se podem ler os poemas e contos selecionados no 1º Concurso Literário Internacional Reinaldo Corona, além de trabalhos de escritores de Machadinho.

Um poema de Isabel Furini foi selecionado para o livro. Ela ministrou uma palestra no Festival Literário de Machadinho e participou do lançamento da Antologia.

A organizadora de "Emoções", Eliana Hüning Corona, inicia a obra com esse prefácio:

“Embalando a flor da vivência conjugal, em pouco tempo, entre diagnósticos e partida, meu amor foi levado. Ao me deparar com o implacável tempo, a gratidão vem me consolar. Jogar com a espada dos pensamentos e perceber a gaiola que os aprisiona nos rincões da alma que busca estar completa. Diante deste frio viver, organizar o 1° Concurso Internacional de Conto e Poesia Reinaldo Corona foi um presente. Perceber o ser humano como um lugar sagrado e sermos condutores do bem e da felicidade coletiva conduz a aliança entre passado e futuro. O ano de 2018 foi rico em emoções e favorecimento dos desejos adormecidos.

Ser protagonista da vida e manter nossas motivações, ter abrigo no coração dos irmãos que somos, é, sem dúvida, a grande arma que nos liberta dos embotes finais do tempo.

O primeiro Concurso Internacional de Conto e Poesia Reinaldo Corona tem sido manto festivo no desejo de muitos escritores. A compaixão libertadora dos preconceitos também me ensinou a encontrar, hoje, farta morada nos textos e postagens nas redes sociais que promovem sentimentos variados.

O nevoeiro da vida contra a morte passa a ser tênue e na perda dos caminhos se entende a importância do ser.

Obrigada a todos os participantes desta brilhante coletânea "Emoções"

Eliane Corona,
14 de janeiro de 2019.”

Fonte:
Isabel Furini

Mia Couto (A Chuva Pasmada) A Confissão na Ponte Morta - A Inundação do Sangue


A CONFISSÃO NA PONTE MORTA

      Estranhei a tia, furtiva, no escuro. Me acenava, sussurrando:

      - Sobrinho, me ajude. Leve este saco, não quero que ninguém me veja.

      - Para fazer o quê?

      - Não discuta, leve-me o saco. Encontramo-nos no portão das traseiras.

      Ajudei-a nesse seu propósito de sombra. E logo dei conta: ela se esgueirava de casa, de alma e bagagem.

      - Tia, vai-se embora?

      - Eu vou, sim.

      - E porquê?

      - Fui eu que trouxe esta desgraça, foi tudo culpa dos meus pecados...

      Falava enquanto andava, se afastando pela estrada a passos largos. Eu a seguia, ajudando-a nos carregamentos. Até que chegamos à ponte do Guazi, uma ponte velha, em ameaço de desabar. Há anos que ninguém ousava apoiar um pé nas suas carcomidas tábuas. Era ali que minha mãe lavava a roupa quando o rio levava caudal. Mas foi interdita de lavar quando notaram que, invariavelmente, as roupas escapavam ao sabor da corrente. As gentes pescavam as peças de roupa mais abaixo no remanso. Todos estranhamos: nossa mãe, que era tão atenta aos seus afazeres, como se distraía tanto assim?

      Pois, a tia se sentara na mesma pedra onde antes minha mãe lavava as roupas. O olhar dela vadiou pela paisagem enquanto suspirava:

      - Fico aqui, na ponte, quem sabe aqui ele me pode ver...

      - Quem ele?

      - Ele.

      Regressei a casa deixando-a sob o manto da chuva. Ainda parei na estrada a olhar para trás: a tia parecia ter sido capturada dentro de um vidro fosco. A seu lado, uma velha tabuleta deveria, em tempos, ter gravado o nome do nosso lugar. Mas já não se distinguia nenhuma letra. A tia dizia que ali estivera escrito “Sembora”. Segundo ela, a nossa vila se chamava Sembora porque dali a gente só se ia embora. Tanto ninguém chegava que o cemitério nunca fora chamado a crescer.

      Cheguei a casa sem ter dado conta do percurso. Quando contei o sucedido ao avô ele foi como que atingido por um projétil. As pernas bambas se erguiam e reerguiam. A boca abria e fechava como um peixe fora de água. Quando tentei acalmá-lo, ele me segurou os pulsos para vincar bem a sentença:

      - Volte imediatamente à ponte! E fale isto a sua tia: diga-lhe que eu sei tudo. Sempre soube tudo.

      - Certo, avô.

      - Ela que volte para casa. Sua tia não tem culpa nenhuma. E lhe diga assim: que pedra contra pedra só pode dar fogo.

      - Não estou a perceber, avô.

      - Ela há de saber. Diga só assim: pedra contra pedra...

      - ...só pode dar fogo, já entendi.

      - E lhe entregue isto.

      Os dedos tortos tremeram mais do que o costume. Passou-me um embrulho tosco, atado com um cordel.

      Fui andando, rumo à ponte, passo lento para dar tempo às ideias. Minha tia saía de casa sem despedida? Diz-se que despedir é já partir. Talvez por isso ela não dissera nenhum adeus. E até invejei a sua coragem: ninguém a não ser os meus distantes irmãos haviam vencido a estrada.

      Percebi que chegara ao charco de Guazi pelo ruído ensurdecedor das rãs. Minha tia parecia uma mancha borrada, desenho murcho em papel molhado. Desembrulhou o presente. Um faiscar de metal me ofuscou. Enruguei o olhar para apurar a luz entre as luzes. Na concha da sua mão, brilhava o velho isqueiro de meu pai.

      A Bíblia tombou-lhe do colo, soltando-se do invólucro de plástico. Mas a tia estava em tal encantamento que nem cuidou que a palavra divina estava tombada sobre o chão.

A INUNDAÇÃO DO SANGUE

      Minha mãe me chamou ao quarto. Estava-se abonitando, frente ao espelho.

      - Que tal estou, meu filho?

      - Não sei, mãe, para dizer a verdade eu não gosto de lhe ver assim...

      Primeiro, pareceu sentida. Mas depois ela sorriu, mão na anca, em pose:

      - Pois lhe digo: estou bonita, mas muito bonita. Vocês deviam era ter-me visto mais vezes assim, mulher de valer.

      Pegou no frasco de perfume e já se preparava para se borrifar quando hesitou, gesto suspenso. Pediu que me aproximasse.

      - Quero só que me diga: você acha que eu cheiro mal?

      - Mas, mãe...

      - Me cheire, filho. Sem receio, cheire esse meu aroma natural...

      Eu não sabia como contrariar. Menos sabia como obedecer.

      Como se pode, a pedido, cheirar uma outra pessoa? Pior ainda se esse alguém é a própria mãe. Mas o tom ganhava insistência, minha mãe se afastava de si, via-se que não era comigo que falava. Ela estava ajustando contas com fantasmas:

      - Pode alguém dizer, realmente, que este cheiro não é de mulher?

      Virei costas, não podia nem ver nem escutar mais. O meu desejo era sair, a minha pressa era desaparecer. Mas não tive tempo. Porque, de repente, ela atirou o frasco de cheiro de encontro à parede. Vidros e perfume se espalharam por todo o quarto. A mãe desabou no chão como se ela fosse o último estilhaço.

      - Eu não aguento mais, filho. Estou a chegar ao fim.

      Enxugou as lágrimas, inspirou fundo enquanto eu limpava os destroços de sua raiva.

      - Limpe isso, meu filho, me ajude. Eu tenho que ir à fábrica, já estou atrasada.

      Voltou atrás para me dar um beijo. Mais que um beijo: me entregava a amarra de um juramento.

      - Ninguém pode saber, ouviu? Ninguém.

      E saiu. E foi no momento certo, pois não tardou que, leve como uma sombra, meu pai se adentrasse pelo corredor. Vinha guiado pelo cheiro a perfume. Penetrou no quarto de casal e farejou com porte de caçador. Escutou um vidro se esmagar por baixo da sua bota. Os olhos, de gato, perscrutaram em redor:

      - Não sabe de sua mãe?

      - Eu acho que ela foi ao rio...

      - Ao rio?

      Bateu a porta com estrondo. E eu corri com ele para o vale. Meu pai andou às voltas procurando pela mulher. Já desistido, quebrou um ramo de kwangula-tilo. Eu sabia o que era: um arbusto verde-escuro que afasta os relâmpagos e traz bons olhados. Juntando a força dos dois braços, meu velho espetou o ramo na areia branca. Fazia como se cravasse uma faca no peito do mundo.

      Depois, ele próprio se derramou sobre o leito já seco. Parecia chorar. Ou talvez dormisse como se aquela fosse a sua cama primeira. Ficou assim, um tempo. Um tempo tão lento que eu me cansei e regressei, só, para casa.

      Meus pés descalços, no caminho, acariciaram os calhaus rolados. Como o rio arredondou a pedra: assim eu queria suavizar a palavra e pedir a meu pai que regressasse para casa. Mas não fui capaz de dizer nada.

      No quintal, sentei-me no velho barco do avô. Cansado, perdi conta de mim. E sonhei. O mesmo sonho de sempre. Herdei de meu avô o sonho costumeiro de ir ter com o mar. Ser rio e fluir. Água em água, onda em onda, até escutar o grito agudo da gaivota.

      Acordei, estremunhado.

      Não era o piar aflito das gaivotas: eram gritos que vinham de nossa casa. Mais perto, percebi os clamores, meu pai espalhando ameaças:

      - Eu mato-a, eu mato-a!

      Cheguei à varanda e me surpreendi: na sagrada cadeira de Ntoweni estava sentado o menino branco, o filho do dono da fábrica. O miúdo chorava, tremendo e fungando, enquanto meu pai rodopiava como um corvo em seu redor. Muitos braços procuravam acalmar o velho. Sobretudo, a nossa tia sabia dar uso ao seu regresso. E lhe suplicava, com a voz mais doce.

      - Cunhado, por favor, o que esse miúdo falou não é verdade... minha irmã deve estar no mercado...

      Meu pai, porém, já era um vulcão. Entrou na arrecadação, desatou a abrir e fechar gavetas. Aproveitei para me aproximar do miúdo branco. E disse-lhe:

      - Você não pode sentar aí... essa é a cadeira sagrada...

      - Como?

      - Essa cadeira está quebrada, você ainda vai cair.

      O moço ergueu-se, com modos sonâmbulos. Depois, baixou o rosto para esconder as lágrimas. Entre soluços, murmurou:

      - Eu vinha para brincar contigo, eu só queria brincar contigo...

      Meu pai irrompeu de novo pela varanda. Esgrimia uma catana na mão, enquanto anunciava:

      - Vou à fábrica e mato aquela gaja!

      Nenhum de nós se mexeu. Assim que se deixou de escutar a gritaria no fundo da rua, minha tia implorou aos homens que intercedessem. Eles que fossem e fizessem estacar a sangraria. Mas todos se recusaram:

      - É honra de homem, não nos podemos meter.

      - Você, meu sobrinho, vá parar o seu pai, por amor de Deus!

      Mas os outros, mais velhos, me fizeram parar. Sem palavra, sem gesto. Bastou o seu olhar fechado como uma muralha. Ficámos em silêncio, apenas com o vozear ranhoso da nossa tia:

      - Pai nosso, cristais no Céu...

      Não suportava mais aquele cantochão, as mal soletradas orações que só podiam trazer mais desgraça. Zonzeei por ali, até que um leve toque no meu ombro reclamou a minha atenção. Era o moço branco. Falei antes que ele abrisse a boca:

      - Quem o mandou vir aqui, quem mandou dizer alguma coisa?

      - Meus pais não querem que eu brinque convosco. Eu também não posso pensar que o meu pai ande metido com... com uma preta.

      Desta vez, ele disse a palavra. Antes, sempre a evitara. Mas a pronunciara por extenso, com todo seu peso: preta. Talvez porque a pessoa nomeada fosse mulher. Seria mais difícil dizer a palavra no masculino. Quando me dirigi ao miúdo não havia ponta de raiva na minha voz:

      - Nunca mais volte aqui!

      Ele se retirou, cabisbaixo. À saída, deixou o saco com berlindes sobre a tábua do portão. Só quando o vi extinguir-se por entre as gotas é que dei conta de que, durante todo aquele tempo, meu avô não dera sinal. Procurei na varanda. Mas não o encontrei na sua eterna cadeira de balanço. Meu avô desaparecera. Seria motivo de alarme mas, na circunstância, eu estava tão atordoado que nem me movi. Apoiado na balaustrada, deixei as pernas balançarem: eu embalava o filho do diabo. Dos meus lábios fluía uma espécie de oração. Mas não encontrava palavra nem crença. Minha tia enganava-se nas rezas. Eu não encontrava um deus a quem suplicar.

      Nosso pai voltou horas depois, esfarrapado, os braços cobertos de sangue. Ele nada disse. Apenas lançou um suspiro e se fez desabar sobre o chão. Escutaram-se choros. Comedidos para não despertar os maus deuses. A tia se debruçou sobre o meu velho e disse:

      - Venha, cunhado, venha que lhe vou lavar.

      Meu pai se deixou conduzir como um ébrio. Por um momento, pareceu-me que a tia o arrastava para uma dança, rumo a esses embalos fatais com que ela jiboiava os homens.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Colombina (Caderno de Trovas)


A palavra que revela
anseio, prazer e dor,
que toda a vida constela,
é sempre a palavra - Amor.

Adeus - sinal de partida
do trem, do barco, do avião;
sempre carrascos da vida
dos que ficam, dos que vão...

Amar... quem dera eu pudesse
esse verbo definir:
- É gozo de quem padece,
é uma lágrima a sorrir...

Amar, sendo espinho, é rosa,
é luz, sendo escuridão:
é uma amargura gostosa,
- voluntária escravidão.

Amor de mulher no todo
é um anjo posto de rastros;
desce mais baixo que o lodo
ou sobe acima dos astros.

Amor no amor se resume,
sem pensamento mesquinho,
ódio nasce do ciúme,
como o vinagre do vinho.

A vida pode ser linda
um dia... uma hora, talvez,
mas toda a lindeza finda,
fica sendo: era uma vez…

Da frase que não disseste,
- que tanto tempo esperei -
do beijo que não me deste
eu jamais me esquecerei.

Das rimas revolvo a messe,
do ritmo busco o veludo...
No entanto, se eu te dissesse:
- eu te amo - diria tudo.

É na cartilha da vida
que a gente aprende de cor
(e depois de tanta lida)
que...não saber é melhor...

"Eu te amo" - frase pequena
que num segundo se diz;
um paraíso ela acena,
faz, quem a escuta, feliz!

Felicidade seria,
para mim (juro por Deus!),
dizer-te sempre "Bom-dia",
e nunca dizer-te "Adeus".

Meu bem comigo zangou-se.
Que motivo eu lhe daria?
Não sei, não. Mas, talvez fosse
por amá-lo em demasia…

Meu bem escuta, em surdina,
a floresta a sussurrar:
- geme ao vento a casuarina,
escutando a voz do luar.

Meu bem, escuta a cigarra
cantando em pleno verão:
às vezes, é uma fanfarra,
muita vez - um cantochão.

Meu bem, escuta a tristeza
do trem, na curva a apitar...
Vai levando, com certeza,
um coração a chorar.

Meu bem, escuta as cantigas
das ondas crespas do mar:
as suas mágoas antigas,
querem, cantando, olvidar...

Mulher perdida na estrada,
que o mundo tange ao relento,
é pérola encarcerada
na concha do sofrimento.

Não adianta nada agora,
eu já não perco a cabeça.
Mas, é bom ires embora,
antes que tal aconteça…

Não te assuste a falsidade,
nem a palavra mentida:
Não estranhes a maldade,
porque são coisas da vida...

Não te odeio nem maldigo.
Por que motivo? Eu bem sei:
se sofrer foi meu castigo,
amar-te foi minha lei!

Quantos anos tem Maria?
- Não perguntes, pois é em vão.
Ela só responderia:
- Que falta de educação!

Quem me dera ter vinte anos,
não ter na alma cicatrizes!
Poder sonhar, fazer planos,
e acreditar no que dizes...

São sete letras, somente,
numa palavra a dizer
a mágoa que toda gente
terá que, um dia, sofrer...

Saudade - é sombra que fica
e tudo a cinzas reduz:
palavra que crucifica
dois entes na mesma cruz.

Saudade, febre que a gente
sem querer pode apanhar.
nunca mata de repente,
vai matando devagar...

Saudade, lâmpada acesa
no altar da recordação,
onde a ternura e a tristeza
rezam a mesma oração!

Se acaso eu fosse rainha,
dava a você meu reinado;
e, se fosse uma andorinha,
- o meu ninho no telhado.

Se é muito o que nós sofremos,
por mais que a vida nos fira,
o que do berço trouxemos,
somente a campa nos tira.

Se é triste sentir saudade,
muita saudade de alguém,
maior infelicidade
é não tê-la de ninguém.

Sentença justa que brilha
entre os avisos da estrada:
qualquer perdão, quando humilha,
é vingança disfarçada.

Trovas... A muitos parece
que são fáceis de compor:
talvez sejam, mas carece
ter alma de trovador.

Trovas... Traços apagados
de uma vida já no fim...
Quando eu me for, namorados,
lembrem-se um pouco de mim!

Um barco à margem de um rio,
abandonado, sem remos...
lembrando todo o vazio
de um sonho que não vivemos…

Ventura - assim eu a traço
com a pena do coração:
o meu braço no teu braço
e na tua a minha mão.

Fonte:
Amaryllis Schloenbach

Vinicius de Moraes (Amigos meus)


Ah, meus amigos, não vos deixeis morrer assim... O ano que passou levou tantos de vós e agora os que restam se puseram mais tristes; deixam-se, por vezes, pensativos, os olhos perdidos em ontem, lembrando os ingratos, os ecos de sua passagem; lembrando que irão morrer também e cometer a mesma ingratidão. 

Ide ver vossos clínicos, vossos analistas, vossos macumbeiros, e tomai sol, tomai vento, tomai tento, amigos meus! - porque a Velha andou solta este último Bissexto e daqui a quatro anos sobrevirá mais um no Tempo e alguns dentre vós - eu próprio, quem sabe? - de tanto pensar na Última Viagem já estarão preparando os biscoitos para ela. 

Eu me havia prometido não entrar este ano em curso - quando se comemora o 19640 aniversário de um judeu que acreditava na Igualdade e na justiça - de humor macabro ou ânimo pessimista. Anda tão coriácea esta República, tão difícil a vida, tão caros os gêneros, tão barato o amor que - pombas! - não há de ser a mim que hão de chamar ave de agouro. Eu creio, malgrado tudo, na vida generosa que está por aí; creio no amor e na amizade; nas mulheres em geral e na minha em particular; nas árvores ao sol e no canto da juriti; no uísque legítimo e na eficácia da aspirina contra os resfriados comuns. Sou um crente - e por que não o ser? A fé desentope as artérias; a descrença é que dá câncer. 

Pelo bem que me quereis, amigos meus, não vos deixeis morrer. Comprai vossas varas, vossos anzóis, vossos molinetes, e andai à Barra em vossos fuscas a pescar, a pescar, amigos meus! - que se for para engodar a isca da morte, eu vos perdoarei de estardes matando peixinhos que não vos fizeram mal algum. Muni-vos também de bons cajados e perlustrai montanhas, parando para observar os gordos besouros a sugar o mel das flores inocentes, que desmaiam de prazer e logo renascem mais vivas, relubrificadas pela seiva da terra. Parai diante dos Véus-de-Noiva que se despencam virginais, dos altos rios, e ride ao vos sentirdes borrifados pelas brancas águas iluminadas pelo sol da serra. 

Respirai fundo, três vezes o cheiro dos eucaliptos, a exsudar saúde, e depois ponde-vos a andar, para frente e para cima, até vos sentirdes levemente taquicárdicos. Tomai então uma ducha fria e almoçai boa comida roceira, bem calçada por pirão de milho. O milho era o sustentáculo das civilizações índias do Pacífico, e possuía status divino, não vos esqueçais! 

Não abuseis da carne de porco, nem dos ovos, nem das frituras, nem das massas. Mantende, se tiverdes mais de cinquenta anos, uma dieta relativa durante a semana a fim de que vos possais esbaldar nos domingos com aveludadas e opulentas feijoadas e moquecas, rabadas, cozidos, peixadas à moda, vatapás e quantos. Fazei de seis em seis meses um check-up para ver como andam vossas artérias, vosso coração, vosso fígado. 

E amai, amigos meus! Amai em tempo integral, nunca sacrificando ao exercício de outros deveres, este, sagrado, do amor. Amai e bebei uísque. Não digo que bebais em quantidades federais, mas quatro, cinco uísques por dia nunca fizeram mal a ninguém. Amai, porque nada melhor para a saúde que um amor correspondido. 

Mas sobretudo não morrais, amigos meus!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) VI


CHEGUEI TARDE

Cheguei tarde, bem sei...E após minha chegada
foi que eu vi, afinal, que tu tinhas partido...
Mas teu vulto, distante, em sombras já perdido,
divisar ainda pude, ao longe, pela estrada...

Seguia-te outro vulto, - o alguém desconhecido
que primeiro encontraste em tua caminhada...
Partiste! ...E eras feliz, porque partiste amada,
e eu fiquei, entretanto, infeliz e esquecido...

Já não te vejo mais... Vai distante talvez...
E ainda hoje tenho o olhar na estrada, sem ninguém,
por onde tu partiste, um dia, certa vez...

Fiquei...Curtindo a dor de um destino atrasado...
- Sorrindo, por te ver feliz...Junto de alguém,
- chorando, por não ter mais cedo te encontrado!...

CHUVA

Há tanto tempo que não chove assim!
O dia veste um céu triste e cinzento,
e ouço a chuva a cair como um lamento
no seu rumor monótono... sem fim...

Que estranha sensação de isolamento!
-Nem uma voz ouço ao redor de mim,
escuto apenas lá por fora, o vento
a desfolhar as flores no jardim...

Ninguém ao meu redor... ninguém me fala...
-e me deixo a ficar num tédio imenso,
na tóxica penumbra desta sala...

Que inquietude vazia há dentro de mim!
-Não sei se existo... não sei bem se penso...
Há tanto tempo não chove assim!

CIGARRA MORTA

Vês... É uma cigarra morta, asas douradas
completamente roídas e estragadas,
levada pelas formigas...

Olhaste-me e eu te pude compreender...

Não diga nada, meu irmão, não digas,
- os poetas... as cigarras
não deviam morrer…

CIÚME
 
Encontro em ti tudo o que imaginara
na mulher, para ser o meu ideal;
- não é só teu olhar, tua voz clara,
e essa expressão que tens, sentimental !...

Nem essa graça ingênua, hoje tão rara,
de quem não sabe onde se encontra o mal,
ou teu riso feliz, que se compara
ao tinir de uma taça de cristal...

É tudo em ti, traço por traço, tudo !
As tuas mãos são rendas de ternura;
teus carinhos, macios, de veludo.

Por isso mesmo é que é maior a dor,
quando amargo a mais íntima tortura
por não ter sido o teu primeiro amor…

COLEGIAL

Gosto de vê-la, assim... Quando à tarde ela vem
fisionomia suave, ingenuamente franca...
Toda a rua se alegra, e eu me alegro também
com o seu vulto feliz: saia azul, blusa branca...

Quantos nadas de sonho o seu olhar contém !
A luz viva do olhar ninguém talvez lhe arranca.
- Gosto de vê-la, sim... E ficam-lhe tão bem
aquela saia azul, e aquela blusa branca...

Azul: - azul é a cor da vida que ela sonha !
E branca: - branca é a cor da sua alma de criança
onde ela própria se olha irrequieta e risonha

Feliz... Não tem presente e ainda nem tem passado...
Só o futuro, - e o futuro é uma imensa esperança
um mundo que ainda fica oculto do outro lado !

CONFIDÊNCIA AMARGA

Ela veio, sentou-se ao meu lado e me disse
em palavras febris, sua história de amor...
Uma história comum, um sonho, uma tolice,
que fizera tão grande e amara com meiguice
a ponto de entregar seu coração em flor...

Falou-me sem sentir, em toda a sua vida
e no amor de alguém que a fez sofrer tão cedo...
Julgava-se infeliz... sozinha... incompreendida,
não sabia a razão por que fora esquecida,
e revelo-me assim seu íntimo segredo...

E cruzou seu olhar tão cheio de amargura  
com o meu olhar surpreso, e num tom muito brando:  

". . . sei que você é um poeta e aqui estou à procura
de alguém para curar a minha desventura,
meu pobre coração abatido e sangrando . . .

...busquei-o sem cessar... aqui estou quase morta,
arrastando a minha alma após meu desengano,  
venho da minha dor, bater à sua porta,      
porque sei que você tem a voz que conforta
e pode compreender o sofrimento humano...
      
. . . conto-lhe o meu romance, a minha vida, e assim       
faço-o meu confidente, e o chamo meu amigo...      
- não me pergunte nunca as razões por que vim,       
apenas sei dizer que escutei dentro em mim
alguém que me mandou aqui, pedir-lhe abrigo...

. . . confesso-me a você, é apenas confissão.
Não quero ser perdoada, e adoro os meus pecado,
espero uma palavra... um pouco de ilusão . . .
- o poeta é um sacerdote, e a sua religião
manda-o para falar de amor aos desgraçados..."

E silenciou chorando. O seu rosto pendeu.
Mortas nas minhas mãos as suas mãos ficaram.
Num segundo, o silêncio a nós dois envolveu,
depois... sentindo a luz do seu olhar no meu,
- contei-lhe a minha história... e outras que me contaram...

Disse de cor também, versos que ainda nem fiz,
e cheguei a inventar contos que nem sei mais,
- com o tempo... o seu sofrer, lentamente desfiz,
e um dia... - ela de novo, erguendo-se feliz
agradeceu, partiu e não voltou jamais...

Ela que me chegou triste como uma palma
curvada - vi seguir sorrindo outro caminho,
tão outra... tão feliz... tão mudada... tão calma
que nem reconheceu que eu lhe dera a minha alma,
o pouco que era meu...e que fiquei sozinho...

...O destino é afinal, irônico e insensível,
tornou-me o confidente da mulher que amei...
E eu para a ver feliz... fiz-me feliz - é incrível...
Sufoquei meu amor... amarguei o impossível...

Mas quando a vi partir, não pude mais, chorei...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Borboletas, Pirilampos - Um Homem à espera de ser Terra


     
BORBOLETAS, PIRILAMPOS

      No coberto do nosso pátio se passou a juntar a rapaziada da aldeia. Ali podíamos brincar protegidos pelo telhado de colmo. Nessa tarde, minha mãe saiu cedo e os meus assobios logo convocaram a miudagem. E vieram crianças aos magotes. Mas não foram apenas os miúdos que compareceram. Sem darmos conta, no alpendre se haviam juntado todas as borboletas da região. Era um infindar de asas e cores. Ao de leve toquei as asas de uma delas. Nos meus dedos ficou presa uma poeira dourada. Pareciam pequeninas escamas. Afinal, escamas como as de um peixe sem peso.

      Prisioneiros naquele exíguo espaço, que mais podíamos fazer senão brincar ao jogo das adivinhas?

      - Sabem qual é diferença entre borboleta e gente?

      - A pessoa tem alma, borboleta é alma.

      - O pirilampo morre?

      - Não. Que ele é como o Sol: apenas se põe.

      No flagrante da brincadeira vimos passar o menino branco, filho do dono da fábrica. Parecia mais pálido do que era, cabelos finos encharcados num desalinho. Os nossos cabelos, crespos, não se desmanchavam assim tanto.

      Todos os meninos se riram do miúdo, menos eu. Magoaram-me seus olhos gulosos invejando os nossos risos. Ainda me veio à boca o convite: ele que se juntasse. Mas qualquer coisa me suspendeu. Melhor seria não o forçar a que recusasse.

      De repente, meu pai, olhar esgazeado, rompeu-se entre nós. Os miúdos se encostaram nas paredes a dar espaço à fúria dele. O dedo, em riste, me alvejou:

      - Onde é que foi sua mãe?

      - Ela foi ao Tsilequene.

      - Você, se é mentira, bem que se pode arrepender. Vá já dizendo adeus aos seus amiguinhos.

      Com violência, ele me puxou pelas roupas. A mostrar que eu era coisa, não gente. A mostrar que ele era homem, não pai. A vergonha doía-me mais que as pancadas que se avizinhavam.

      - Senhor, desculpe...

      Era a voz descolorida do miúdo branco. Meu velho parou, surpreso, mantendo-me pelos colarinhos.

      - Desculpe, senhor: trago uma mensagem da sua esposa.

      - Mensagem? Da minha esposa?

      - Sim, senhor. Encontrei-a no mercado.

      - No Tsilequene?

      - Sim, no... nesse. Disse-me que entregasse isto ao seu filho.

      Relutante, meu pai me libertou. Aproximei-me do moço que estendia as mãos fechadas. Abriu as mãos nas minhas, de costas para todos os outros. Como eu previa, não havia nada no oco de suas mãos.

UM HOMEM À ESPERA DE SER TERRA

      Vou, não vou!

      Era o avô que gritava, angustiado. Saí correndo para a varanda. Não pude acreditar nos meus olhos: meu avô, trémulo, atacava com a bengala a cadeira sagrada de sua companheira. Enquanto esgrimia a bengala, não parava de berrar:

      - Espere, Ntoweni, não faça isso. Não faça isso comigo.

      Corri mais a ampará-lo do que a pará-lo. Porque a bengala já tombara da sua mão tremente. Ajudei-o a sentar-se, sacudi o ar para lhe restituir o peito. Ficou assim um tempo, seu respirar sendo um fio mais sumido que o rio. Contudo, seus pés raivosos procuravam ainda atingir a cadeira da falecida. E eu me perguntei: será que o nosso avô alguma vez tinha morado todo ele, inteiro, na crença daquele sagrado?

      Até que ele desabou, rosto enterrado entre as mãos. Meu avô chorava. Em vez de lágrimas, porém, lhe caíam pedrinhas pelo rosto.

      - Está chorar porquê, avô?

      - Estou com tanta saudade...

      - Saudade de quê?

      - Não sei, já esqueci.

      Minha mãe, entretanto, regressara a casa. Exibi as pedras choradas por seu pai.

      - Não diga disparates, filho. Já basta de coisa estranha!

      Atirou ao chão as pedrinhas, se chegou ao avô e sacudiu a cabeça. com vigor desmanchou o nó que o atava à cadeira:

      - Nunca mais ninguém amarrará ninguém nesta casa! Que era coisa que nem aos bichos se permite. Gritava alto e bom som para que toda a família escutasse. Meu pai repostou:

      - Mas, sem corda, ele vai-se, mulher. A mínima brisa, ele levanta. Você, depois, vai buscá-lo em cima da árvore?

      A mãe não desarmou. E, num outro tom, como se soubesse de segredos, proferiu:

      - Vai ver que, desatando-o a ele, estaremos a desamarrar a chuva. Vai ver!

      Meu pai se resignou. Mas ainda, antes de sair, depositou um búzio sobre o colo do avô. Era uma concha enorme, desses caracóis marinhos que crescem até ser do tamanho de uma rocha. Servia de peso e ele, na espera, podia até se entreter. Quem tem um búzio, tem o mar. O mais velho encostou o ouvido na concha e adormeceu enquanto a si mesmo se embalava. E já não era pessoa. Era um barco volteando por esse mar que ele nunca visitara e de que sempre falava:

      - Ah. esse mar, eu nunca lá estive mas já lá muito me perdi!

      O avô sempre quisera navegar para o estuário. Todos sempre se opuseram. Um dia, ele foi, fingiu que foi. Não passou da segunda curva do rio. Num remanso, ocultou o barco na margem e se abrigou num esconderijo. Ficou assim uns dias, deixou que a demora apertasse em nosso coração, fez pesar a sua ausência. Só depois regressou, empurrado pela fome e pela sede. Meus olhos ansiosos o cravejaram. Ele rebaixou os cantos dos lábios, displicente:

      - O mar como é? Ora, meu neto, o mar não se pode contar...

      E divagava, frases destoadas: tudo não é senão um ressoar de concha, águas de arribação. E o tontear do nada no vazio de um búzio.

      - Você entra na canoa, pega no remo mas não rema que é para não ofender o rio, entende?

      Não entendia. Como agora, continuava sem entendimento. Olhei em redor: todos se tinham retirado. Ficara eu reparando os estragos na cadeira de Ntoweni. Como que para castigo levantei uma das madeiras quebradas. O avô abanou a cabeça:

      - Veja o que fiz, quebrei o sustento dessa cadeira.

      - Isto repara-se, avô.

      - Mas a culpa é dela. A culpa é de Ntoweni. Diga uma coisa, meu neto: tenho culpa de não ter morrido? Tenho culpa, porventura?

      Pela primeira vez, o avô falava da morte. Parecia ter aberto uma porta interdita. Porque seguiu falando sem se deter. Que a sua tristeza não era o morrer. Era o não saber terminar. Se ele aprendera tanta coisa, até a posar para a fotografia. Não sabia, contudo, posar para a morte. Que palavra, que rosto preparamos para esse momento final?

      - Quando eu era menino, cheio de vida, eu sabia morrer. Agora, que já vou para a despedida, já esqueci como se morre.

      - Avô, morrer é coisa que ninguém sabe.

      - Sabe o peixe. Já viu como o peixe desfalece? Sem cansaço, sem tristeza, sem protesto.

      - Ora, avô, não falemos de coisas tristes. Sabe uma coisa? Um dia iremos os dois a ver o mar...

      - Eu já não tenho tempo. Devia era ter aprendido com o peixe,

      - Não diga isso, avô.

      Olhei para o mais velho e, num instante, o vi todo desaguado, ressequido como um deserto. Afinal, o pai tinha razão. O avô estava secando. Nele eu assistia à vida e seu destino: nascemos água, morremos terra.

      Minha mãe que, entretanto, chegara interrompeu-nos a conversa. Ao pesar aquela nossa tristeza, ela se interrogou: que falas seriam aquelas que tanto ensombravam o meu rosto?

      - Meu pai, por que fala de morte com um miúdo desta idade?

      - São verdades que esse miúdo necessita ir amanhando respondeu o avô.

      - Conversa - respondeu a mãe. E virando-se para mim, tranquilizou. - Não leve no peito, meu filho, isso é tudo fingimento.

      Cão que ladra é porque tem medo de ser mordido. Do mesmo modo, o avô se apoiava na palavra para ganhar força, vencer os medos que o atacavam por dentro.

      - Tudo isso é fingimento - repetiu a mãe.

      O avô fingia tudo, fingia pescar, fingia até viver. Não nos lembrávamos nós de como ele inventara a viagem rio acima?

      - Inventei mas não menti. Você vai aprender, meu neto: toda a viagem é um faz de conta.
     
continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 11


REFAZ-SE O RIO...

MOTE:
Vestem-se as águas de prata...
Saltam no espaço vazio...
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio.
A. A. de Assis 
Maringá/PR

GLOSA:

Vestem-se as águas de prata...
e num bailado bonito,
qual uma doce sonata
ecoam pelo infinito!

Eu fico a olhar essas águas...
Saltam no espaço vazio...
Misturam-se às minhas mágoas
num doloso desafio!

O espetáculo arrebata,
mas tudo volta ao normal.
Findo o show da catarata,
segue o rio o seu ritual!

Olhando essa calmaria,
me emociono e até sorrio,
pois com imensa harmonia,
sereno refaz-se o rio.
__________________________

HISTÓRIA DA GENTE

MOTE:
Esta saudade infinita
do amor que a gente viveu,
é a mensagem mais bonita,
que o meu passado escreveu!...
Aloísio Alves da Costa  
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Esta saudade infinita
fez ninho em meu coração
e, nele, até hoje habita
com a minha aprovação!

É doce e linda a lembrança
do amor que a gente viveu,
daquela eterna aliança
que um dia, entre nós, nasceu!

Minha alma, emotiva, grita
ao recordar nosso amor.
É a mensagem mais bonita,
a que tem maior valor!

Eu sou feliz novamente
lembrando o que aconteceu
na bela história envolvente,
que o meu passado escreveu!...
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O MAIOR SONHADOR

MOTE:
Redimindo os pecadores,
conduzindo-os para a luz,
o maior dos sonhadores,
morreu pregado na cruz!
Aparício Fernandes  
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Redimindo os pecadores,
por puro amor e altruísmo,
tentou aplacar as dores
numa espécie de exorcismo!

Mostrando um novo caminho,
conduzindo-os para a luz,
plantou afeto e carinho
na bondade que reluz!

Somente amizade e amores
queria ver fecundar,
o maior dos sonhadores,
no seu doce e eterno amar!

A falta de humanidade,
sempre, à tristeza conduz,
e o sonhador, na verdade,
morreu pregado na cruz!
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ABRIR PORTÕES

MOTE:
Eu não troco as ilusões
pelos caminhos mais certos.
Meu sonho de abrir portões
despreza os portões abertos!
Arlindo Tadeu Hagen 
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
Eu não troco as ilusões
por nenhuma realidade,
porque em nossos corações
existe a felicidade!

Não troco essas incertezas
pelos caminhos mais certos,
são como águas, correntezas,
molhando nossos desertos!

Não deposito senões
nesse meu sonho encantado:
Meu sonho de abrir portões
e passar para o outro lado!

O meu eu, sempre emotivo,
seguindo rumos incertos,
sendo, da ilusão, cativo,
despreza os portões abertos!
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NOITES... LUAS...

MOTE:
Noite, noite que me enlevas,
luas cheias, luas novas,
se novas, tudo são trevas
se cheias, tudo são trovas!
Carolina Ramos  
Santos/SP

GLOSA:
Noite, noite que me enlevas,
em estrelas navegando
ao paraíso me levas,
vou feliz me aconchegando!...

Tantas luas, tão bonitas,
luas cheias, luas novas,
tuas luzes infinitas,
de um Ser Maior, nos dão provas!

À negritude tu elevas
a razão de tudo enfim...
Se novas, tudo são trevas
que gritam dentro de mim!

Num luar só de alegria
essa minha alma, renovas,
e brota, então, a poesia...
Se cheias, tudo são trovas!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVII. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. Junho de 2004.