domingo, 8 de setembro de 2019

Paulo Leminski XLVII ("Pense Depressa")


Francisca Júlia (O Trovador)


Balada Escandinava

— Que é que ouves à porta, ó pajem loiro?

— Rei, é um velho de barbas brancas e cabelos longos, que empunha um instrumento de cordas, de que tira celestes harmonias e músicas sonoras.

— Faze-o entrar, lindo pajem, e dize-lhe que venha cantar sob meu trono, na presença dos meus vassalos, as melancolias de sua alma.

"Viva, poderoso rei! em tuas mãos está o cetro de ouro diante do qual se curvam os cortesãos e todos os validos do reino; ao teu mando os exércitos se movem, como servos submissos, obedientes, aos caprichos do teu desejo.

Saúde, nobres senhores! em vossos peitos se ostentam condecorações de honra e medalhas de valor, adquiridas no serviço do rei ou ganhas nos campos da batalha. Urrah, formosas damas! vós inflamais os peitos dos jovens e despertais em suas almas as mais estranhas aspirações de glória.

Eu sou um pobre velho, curvo ao peso doa anos, experimentado nas lides da miséria, que anda pelo mundo despertando nos corações alheios as amarguras adormecidas".

— Canta, trovador.

O velho fechou os olhos e entoou um canto triste, arrancado ao fundo de sua alma. Os homens abaixaram a cabeça para esconder as lágrimas que lhes subiram aos olhos; as moças tremeram á vibração do instrumento e choraram ao eco das suas notas.

O rei, a quem o canto era dirigido, levou aos olhos a ponta do manto, enxugou uma lágrima sentida e disse:

— Velho, desde que subi ao trono sobre o qual se sentaram meus antepassados ilustres, acostumei-me a assistir às dores de outrem de olhos enxutos e coração fechado. Na guerra vi meus amigos e companheiros de infância cair crivados de balas ou rasgados pelas lanças. A fonte do meu pranto está seca. Mas tu, velho, após tantos anos de odiosa indiferença, conseguiste, com as harmonias do teu canto, umedecer a rugosidade das minhas pálpebras com algumas gotas de saudosa lágrima. Toma esta barra de ouro; é mais pesada que o bastão a que te animas.

— Obrigado, bom rei! Agradeço o teu ouro. Quero apenas um pouco de alimento para matar a minha fome e um copo de água fresca para saciar a minha sede.

— Servos, dai ao velho o resto do meu banquete.

O trovador sacia-se nas iguarias reais.

— Obrigado, bom rei! Que a lágrima que derramaste te faça lembrar do trovador humilde. Dá-me agora a liberdade; quero sair, para continuar no silêncio da noite, sob o fulgor das estrelas, minhas tristezas interrompidas.

Fonte:
O Poeteiro

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -1-


António Botto
Concavada/Abrantes, 1897 — 1959, Rio de Janeiro/RJ/Brasil

OUTRA


Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: – a luz do dia!
– Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
– Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
– Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Gedeão
Lisboa, 1906 – 1997

AURORA BOREAL


Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

Florbela Espanca
Vila Viçosa, 1894 — 1930, Matosinhos

SONETO VII

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se pousaram.

São mortos os que nunca levantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, entre doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heroico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

José Saramago
Azinhaga, 1922 – 2010, Tías/Lanzarote/Espanha

DECLARAÇÃO


Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, 1890 — 1916, Paris/França

CRISE LAMENTÁVEL


Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir pra rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a “frousse” das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.

Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o ouro em chumbo se derrete
Por meu azar ou minha zoina suada…

Nicolau Santos
(n. Luanda/Angola) Lisboa

HOJE É UM DIA…


Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais e esta noite
uma cratera para boêmios não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria é um dia a mais ou a menos na
alma como chumbo derretido na garganta um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

Sebastião da Gama
Vila Nogueira de Azeitão, 1924 — 1952, Lisboa

QUANDO EU NASCI

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…

Para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…

Fonte:
Estúdio Raposa

Arthur de Azevedo (Elefantes e Ursos)


Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava, e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.

Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta.

Ora, uma ocasião estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades.

As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estroina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.

Mas isso não foi nada – dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. – Isso não foi nada à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a fêmea… A arma estroa descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava salvo.

Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:

– O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas.

Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:

– O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.

– Você já esteve em Ceilão? – perguntou o coronel.

– Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar – sim, porque também sou caçador! – saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!

– E que fez você? – perguntou o coronel, interessado deveras.

– Não fiz nada – respondeu o Miranda. – Fui comido!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

sábado, 7 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 69


Humberto de Campos (O Pé e o Sapato)


Uma das novidades elegantes que mais têm merecido o meu aplauso, é a condenação das danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de casamento. A ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a elas, todo o sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que sintam, sem obstáculos nem constrangimentos, todas as suaves emoções desse dia.

E esse meu modo de pensar não data de hoje. Vem de longe, de onze anos atrás, do casamento do Dr. Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto em Barra Mansa, com a minha afilhada Odete Costa, do qual fui testemunha, por insistência imperdoável das duas ilustres famílias fluminenses.

O casamento, que se efetuou a 11 de Maio de 1090, na fazenda Água Funda, no município de Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades vizinhas, subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e dias, que encheram, se bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.

No dia seguinte ao do casamento, porém, sucedeu o desastre que dá motivo à minha prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao excesso das danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados com o noivo, a moça amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a locomover-se com enorme dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:

- Então, afilhada, que é isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?

A pequena sorriu, pálida, cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos miosótis dos olhos, e tranquilizou-me, triste:

- Não é nada, padrinho; não se aflija!

E explicou:

- É uma unha encravada...

Não obstante a festa haver continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem no segundo dia, nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu inteiramente boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa, detive-a pelo braço, e indaguei, carinhoso:

- Então, está melhor do pé?

- Estou boa, já! respondeu-me, risonha.

- A unha desencravou?

- Não! - retrucou-me, vermelha, com o rosto em fogo.

E ao meu ouvido, rindo:

- O pé acostumou no sapato...

E, arrancando-se das minhas, mãos, desapareceu, num rodopio, no tumulto dos outros pares.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze.

Luiz Damo (Trovas do Sul) III


Ao subirmos às montanhas
parece vermos o céu,
escalamos as façanhas
pra buscar nosso troféu.

As aves deixam seus ninhos
e neles voltam jamais,
vulneráveis passarinhos
se tornam presas fatais.

Essa vida não tem preço
pra ser comprada ou vendida,
tendo um único endereço
para Deus é remetida.

Fim de tarde, caminhamos,
ao repouso familiar,
Deus permita que tenhamos
um descanso peculiar.

Muitos sonhos permanecem
na clausura das gavetas,
nelas, presos não merecem,
longe ao toque das trombetas.

Ninguém acha o que procura
nem jamais pode encontrar,
se não fizer da aventura
uma meta a conquistar.

No teatro da existência
todos nós somos atores,
alguns com maior vivência
e outros simples amadores.

O grito será melhor
se de paz e construção,
não tem silêncio pior
do que aquele da omissão.

O homem comete loucuras
e depois fica assustado,
das pretensas aventuras
sem pensar no resultado.

Pai, figura tão brilhante,
que ilumina cada filho,
basta olhar no seu semblante
pra sentirmos todo o brilho.

Quem provar nada temer
não pode dizer que teme,
se o medo lhe faz tremer
nele até o gigante treme.

São tantas premonições
que a vida nos faz sentir,
sem mostrar as soluções
pouco vale as pressentir.

Se alguém diz que desconhece
o caminho a ser seguido,
veja e busque o que carece
pra torná-lo conhecido.

Toda vez que colocamos
em algo um ponto final,
já dizemos que acabamos
de entrar na fase outonal.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Woody Allen (A Rejeição)


Quando Bóris Ivanovitch abriu a carta e leu o conteúdo, ele e sua mulher, Anna, ficaram pálidos. Era uma rejeição de seu filho de três anos de idade, Mischa, para a melhor escola de educação infantil de Manhattan.

“Não pode ser", Bóris Ivanovitch disse, chocado.

"Não, não — deve ser algum engano", a mulher colaborou. "Afinal, ele é um menino inteligente, agradável e extrovertido, com boa capacidade verbal e facilidade com os creions e com o Sr, Cabeça de Batata."

Boris Ivanovitch se desligara e estava perdido nos próprios devaneios, Como podia encarar seus colegas de trabalho na Bear Stearns quando o pequeno Mischa não havia conseguido entrar numa pré-escola de prestígio? Já estava até ouvindo a voz gozadora de Siminov: "Você não entende dessas coisas. É importante ter contatos. Tem de rolar dinheiro, Você é tão grosso, Bóris Ivanovitch".

"Não, não, não é nada disso", Bóris Ivanovitch ouvia a si mesmo protestando. "Molhei a mão de todo mundo, dos professores aos lavadores de vidraças, mas mesmo assim o menino não conseguiu."

"Ele foi bem nas entrevistas?” Siminov ia perguntar.

"Foi", Bóris responderia, "se bem que teve alguma dificuldade para empilhar blocos..."

"Dificuldade com blocos". Siminov gemeu à sua maneira desdenhosa, "Sinal de sérias dificuldades emocionais. Quem vai querer um pateta que não é capaz de erguer um castelo?"

Mas por que haveria de discutir tudo isso com Siminov?, Bóris Ivanovitch pensou. Talvez ele nem esteja sabendo.

Na segunda-feira seguinte, porém, quando Bóris Ivanovitch entrou no escritório, ficou claro que todo mundo sabia. Siminov entrou, o rosto como uma nuvem de tempestade. "Você sabe", disse Siminov, "o menino nunca vai ser aceito em nenhuma faculdade decente. Na Ivy League com certeza que não."

"Só por causa disso, Dmitri Siminov? Será que a pré-escola vai ter um impacto na educação superior dele?"

"Não gosto de mencionar nomes", disse Siminov, "mas muitos anos atrás um renomado banqueiro de investimentos não conseguiu colocar o filho num jardim-de-infância de ampla distinção. Parece que houve algum escândalo com a capacidade do menino na pintura a dedo. Seja como for, o menino, recusado pela escola que os pais tinham escolhido, foi obrigado a... a..."

"A quê? Diga, Dmitri Siminov."

"Vamos dizer apenas q|ue quando completou cinco anos foi obrigado a frequentar... uma escola pública."

"Então, Deus não existe", disse Bóris Ivanovitch.

"Aos dezoito anos, todos os seus colegas de antes entraram em Yale ou Stanford", Siminov prosseguiu, "mas esse coitado, como nunca tinha obtido credenciais adequadas numa pré-escola de status... digamos,., adequado, só foi aceito na universidade de barbeiros.”

"Forçado a aparar bigodes", Bóris Ivanovitch gritou, visualizando o pobre Mischa de uniforme branco, fazendo a barba dos ricos.

"Sem nenhuma formação em decoração de bolinhos, nem na caixa de areia, o menino estava totalmente despreparado para as crueldades da vida", Siminov continuou. "Por fim, trabalhou em empregos menores, acabou surrupiando trocados do patrão para sustentar o vício do álcool. Nessa época, já era um bêbado sem salvação. Claro, surrupiar do patrão levou ao roubo e ele acabou assassinando e desmembrando a dona do apartamento. No enforcamento, o rapaz atribuiu tudo ao fato de não ter frequentado a pré-escola correta."

Nessa noite, Bóris Ivanovitch não conseguiu dormir. Ficava vendo a inatingível pré-escola do Upper East Side, com suas salas alegres, claras. Visualizou as crianças de três anos em roupinhas Bonpoint cortando e colando e depois tomando um lanche confortador — um copo de suco e talvez biscoitos Goldfish ou um Graham de chocolate. Se podiam negar isso a Mischa, então não havia sentido na vida, nem em toda a existência. Imaginou o filho, agora um homem, parado na frente do CEO de uma firma de prestígio, que estava testando os conhecimentos de Mischa sobre animais e formas, coisas de que deveria ter um profundo entendimento.

"Bom... é...", Mischa diria, tremendo, "isso é um triângulo... não, não, um octógono. E isso é um coelho… desculpe, um canguru."

"E a letra de 'Do you know the muffin man?'", perguntaria o CEO. "Todos os vice-presidentes aqui da Smith Barney sabem cantar isso."

"Para ser sincero, sir, nunca aprendi direito essa música", admitiria o jovem, enquanto seu pedido de emprego voava para a lixeira.

Nos dias seguintes à rejeição, Anna Ivanovitch ficou inquieta. Discutiu com a babá e acusou-a de escovar os dentes de Mischa para os lados e não para cima e para baixo. Parou de comer regularmente e chorava na pia. "Devo ter transgredido a vontade de Deus para provocar uma coisa dessas", choramingava. "Devo ter pecado além das medidas — sapatos Prada demais." Imaginou que um veículo Hampton Jitney tentou atropelá-la e quando Armani cancelou sua conta sem nenhuma razão aparente ela se trancou no quarto e começou a ter um caso. Isso foi difícil de esconder de Bóris Ivanovitch, uma vez que ele dormia no mesmo quarto e perguntava insistentemente quem era o homem deitado ao lado deles.

Quando tudo parecia estar na mais negra escuridão, o amigo advogado, Shamsky, telefonou para Bóris Ivanovitch e disse que havia um raio de esperança. Sugeriu se encontrarem no Le Cirque para o almoço, Bóris Ivanovitch chegou disfarçado, uma vez que o restaurante havia lhe recusado admissão quando saiu a decisão da pré-escola.

"Existe um homem, um certo Fyodorovitch", disse Shamsky, comendo uma colherada de seu crème brulée, "Ele pode conseguir uma segunda entrevista para seu rebento e, em troca, tudo o que você tem de fazer é mantê-lo a par de qualquer informação confidencial sobre certas companhias que possam fazer as ações subirem ou caírem dramaticamente."

"Mas isso é rompimento de sigilo", disse Bóris Ivanovitch.

"Só se você se restringe às leis federais", Shamsky observou. "Meu Deus, estamos falando de admissão a uma pré-escola exclusiva. Claro, uma doação também ajuda. Nada muito chamativo. Sei que estão procurando alguém para patrocinar um novo anexo."

Nesse momento, um dos garçons reconheceu Borís Ivanovitch por trás do nariz postiço e da peruca. Os funcionários caíram em cima dele em fúria e o arrastaram para fora. "Então!", disse o chefe dos garçons. "Achou que ia nos enganar. Fora! Ah, e quanto ao futuro do seu filho, estamos sempre precisando de ajudantes. Au revoir, babaca."

Essa noite, em casa, Bóris Ivanovitch contou à mulher que iam ter de vender a casa em Amagansett para levantar dinheiro para uma propina.

"O quê? Nossa adorada casa de campo?", Anna gritou, "Minha irmã e eu crescemos naquela casa, Nós tínhamos direito de servidão para atravessar a propriedade do vizinho para ir até o mar. O trajeto passava bem no meio da mesa da cozinha do vizinho. Me lembro de passar com minha família pelo meio das tigelas de Cheerios para ir nadar e brincar no mar."

Quis o destino que, na manhã da segunda entrevista de Mischa, seu peixinho morresse de repente. Foi sem aviso prévio, sem nenhuma doença anterior. Na verdade, o peixinho tinha feito um check-up completo e fora considerado nível A-1 de saúde. Naturalmente, o menino ficou inconsolável. Na entrevista, não tocou no Lego nem no Lite Brite. Quando a professora perguntou quantos anos tinha, ele disse, duro: "Que te interessa, balofa?". Foi rejeitado outra vez.

Bóris Ivanovitch e Anna, agora desamparados, foram viver em um abrigo para sem-tetos. Lá encontraram muitas outras famílias cujos filhos haviam sido recusados por escolas de elite. As vezes, repartiam a comida com essas pessoas e trocavam histórias nostálgicas de aviões particulares e invernos em Mar-a-Lago, Bóris Ivanovitch descobriu almas ainda menos afortunadas do que ele, gente simples que tinha sido recusada por juntas de condomínio por não ser suficientemente bem relacionada. Essas pessoas todas tinham uma grande beleza religiosa por trás de seus rostos sofredores.

"Agora acredito em alguma coisa", disse ele à esposa, um dia. "Acredito que existe um sentido na vida e toda essa gente, rica e pobre, acabará morando na Cidade Divina, porque Manhattan está ficando definitivamente impossível de se viver."

Fonte:
Nadine Gordimer (org.). Contando histórias.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Paulo Leminski (XLVI) "Fechamos o corpo"


Silmar Böhrer (Lampejos) XXIV


Alcântara Machado (O Tímido José)


                                                                                                                                                                      (José Borba)

Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhangabaú. Começou a bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguém, é o que o desanimava. Não podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer coisa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A Lapa é longe. De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio. Alguém atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma coisa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relógio.

- Pode me dizer que horas são?

- Duas. Duas menos três minutos.

Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O Anísio já teria dado um jeito. Na boca é que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direção dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou diante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a coisa pior deste mundo. Pôs um cigarro na boca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa.

Quem sabe se seguiu pela Rua Barão de Itapetininga? Mais depressa não podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria procurar. Iria é para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quis. Agora que era difícil queria.

Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma coisa lhe dizia que era aquele o momento. Porém não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada é que esperava alguém. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredora da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto.

A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E ele também rente aos prédios. Agora já tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que outro também começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciúme, de orgulho ferido, qualquer coisa assim. Nem ele nem ninguém. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caídos, usava galochas e se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem ele nem o velho nem ninguém. Nem que tivesse que brigar. Mas por que não ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo.

Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas não parassem. A mulher virou o rosto na direção dele. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de outro modo. O velho também passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Já era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.

A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrizinho. Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois nada. Só dando mesmo pancada como recomendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar mulher. Já estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.

Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então ele quase que corria também. Dobrou a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó (naquela umidade) gritava palavrões na cara da sujeita que chorava. À primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para dentro do portão. E fechou o portão imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguém dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Então seguiu. E o outro atrás.

Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro.

- Faz favor, seu!

Favor nada. Mas o velho o alcançou. Não podia deixar de ser um canalha.

- Diga uma coisa: conhece aquele xaveco?

Fechou a cara. Continuou como se não tivesse ouvido. Mas o homem parecia que estava disposto a acompanhá-lo. Parou. Perguntou desesperado:

- Que é que o senhor quer?

Por mais um pouco chorava.

- Onde é que ela mora?

- Não sei! Não sei de nada!

O velho começou a entrar em detalhes indecentes. Não aguentou mais, fez um gesto com a mão e disparou. Ouvia o velho dizer: Que é que há? Que é que há? Corria com as mãos fechando a gola do paletó. Só depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava ofegante a garganta doía com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é capaz de ainda estar apanhando.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXV


NAMORADOS

Um ao lado do outro, - assim juntinhos,
mãos enlaçadas num enlevo infindo,
- seguem... a imaginar que estão seguindo
o mais suave de todos os caminhos...

Com gravetos de sonho vão construindo
na terra, como no ar os passarinhos,
a esplêndida ilusão de um mundo lindo,
entre beijos, sorrisos e carinhos...

Nada tolda os seus olhos... Nem um véu...
Andam sem ver os lados, vendo o fim
e o fim que veem é o azul do céu...

Ah! se a gente, - tal como namorados,
pudesse eternamente andar assim
pela vida a sonhar de braços dados!..

NAQUELE DIA...

Não devia
ter-te encontrado em meu caminho
naquele dia...

Naquele dia
teriam gosto amargo os teus beijos mais doces
e por mais sincera e humana que tu fosses
no teu amor por mim,
havia de ferir-te com meu orgulho mordaz...

Perdoa, meu amor, naquele dia
todas as mulheres para mim
eram iguais...

NÓS

Afinal o que sinto
é o sofrimento atroz
de muito tarde descobrir que nunca falaremos
em nós...

Eu, serei eu, tu, serás tu,
e eternamente assim
nem nunca me terás como queres que eu seja
nem serás como eu quero que sejas pra mim...

Muito tarde... muito tarde...
- depois que assim te quero, e preciso de ti
como os pulmões precisam de ar
ou os olhos de luz,
é que vou descobrir que se ficarmos juntos,
eu poderia te odiar, tu poderias me odiar!
- Quem diria ao final, ao que o amor se reduz?!

Estraguei a tua vida e desgraçaste a minha
e fomos acordar, os dois, tarde demais...
Agora, eu sigo só,
tu, seguirás sozinha,
eu, fugindo; covarde!... a este amor que me espinha!
tu, querendo, - medrosa!... inutilmente a paz!

E o que é estranho afinal, é que nos amamos,
e sentimos no entanto que nos separamos,
cada um com a sua sombra dolorosa a sós...
- conformados, na dor cruel, nos convencemos,
de que nunca na vida, eu e tu...
seremos nós...

NOTURNO Nº 3

Sobre o teclado negro das montanhas
onde o sol, num incêndio de gazes e sombras
delira, em agonia,
uma palmeira pianista
com as longas palmas de seus dedos longos
de artista,
toca uma ave-maria...

NOTURNO Nº 4

Ah! só os meus ouvidos ouvem!
Cada estrela é uma nota nítida vibrando
como um toque de cristal,
na sinfonia azul da noite tropical
que superou Beethoven!

O LAGO

É um lago azul, tranquilo, pequenino,
sereno, cristalino,
bem ao pé da montanha distante, onde o vês...
Da sua superfície sempre calma
nada perturba a suave placidez

De súbito, uma pedra vem rolando
e sobre as águas cai...

Uma onda, uma outra mais se vão formando
e em círculos concêntricos crescendo, aumentando,
chegam até as bordas, e a primeira
transborda... e sai...

a alma da gente é assim, é como um lago
bem ao pé da montanha do destino,
com a sua superfície transparente...

Vem a pedra rolando e a água perturba,
os círculos se vão formando, vão crescendo,
e de repente,
as lágrimas transbordam uma a uma
pelos olhos da gente

ORÁCULO

Sinto que vens de longe, através das eras,
para um mundo profano, esquecido das olímpicas
belezas,
das mediterrâneas primaveras
e das perfeições supremas...

Eu sabia que vinhas, e por isso eu te esperava ...

Ressuscitarei em teu corpo a alma perdida e escrava,
e ao milagre da ressurreição,
vibrarão teus ouvidos com a música dos meus poemas
e os teus olhos com a fantasia da minha imaginação!

Despertarei em tua carne todos os gestos adormecidos
e ressoarão novamente em teus sentidos
acordes imortais de outros hinos de amor...

Soprarei a luz nas tuas órbitas frias e inanimadas
que não viram a marcha dos tempos,
e na superfície de cristal de tua beleza serena
acordarei repuxos de líquidos corpos
transparentes,
e mergulharei nas profundezas as minhas mãos nervosas
-as minhas mãos ardentes...

Depois... eu turvarei a pureza sem mácula
da tua alma presa
e adormecida,
trazendo-te do fundo de ti mesma, e entregando-te surpresa
a própria Vida ...

Libertarei o teu corpo feito de ritmos elementares
para a suprema celebração desse milagre criador...
E dos teus esponsais com o Poeta,
renascerão em tuas formas
todas as estátuas gregas,
e de teu ventre virá a luz que há de perpetuar a beleza
na imagem de um novo deus, filho do nosso amor!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Chico Anysio (Mestre-de-Obras)


31 de dezembro. Há 3 dias São Paulo não fala noutra coisa que a Corrida de São Silvestre.

— Deve ganhar um holandês desses...

Há corredores da Holanda, realmente, como os há da Bél­gica, dos EUA, da França, da Argentina. Até da Etiópia há um, que corre descalço. Um de cada país. Do Brasil há 75.

— Boa sorte.

Josué, um dos 75, agradece à namorada o que ela lhe deseja.

É um mulato atarracado, de pernas finas. Nordestino dos que ajudaram a construir São Paulo. Foi pedreiro em muitas obras, fiscal em tantas outras. Hoje, é Mestre, na construção de um prédio na Avenida Ipiranga.

— Obrigado.

Ele agradece à sua neguinha o desejo de boa sorte. Iolanda sorri e lhe põe um beijo na testa. Iolanda é cozinheira, no Morumbi. Conseguiu licença dos patrões para ver seu homem correr. Seria melhor ter ficado em casa, acompanhando pela televisão. Ali, verá a partida e nada mais. Mas achou que sua presença era muito importante. Assim como um estímulo para o namorado.

Josué aquece-se, balançando as pernas de músculos tão diferentes das pernas francesas, inglesas, holandesas, que se põem ao lado.

Mantém-se entre os primeiros no começo da maratona. Há dois louros na frente, além de um japonês pequenino, de sapatilha azul.

As pernas começam a pesar, tornam-se impotentes. O louro da Inglaterra parece máquina. Tum-tum... tum-tum... tum... tum... não muda o passo, não arrefece um segundo. Tem um francês nos seus calcanhares. Quinze metros atrás, o japonês calçado de azul, com muita torcida nas calçadas. Depois, Josué, com a camisa da Força Pública, esperança brasileira, na sua opinião.

— Manda brasa, baiano.

Josué, da Paraíba, tem melado na boca, o coração pulsa na veia do pescoço escondido. Josué sabe que o belga sabe que na hora em que desejar vai superá-lo. Pensa em Iolanda, tentativa de arregimentar forças.

Estão na subida da Rua da Consolação. Josué olha longe. A rua não tem os quilômetros que pensava, mas talvez mais de doze. Sente a perna grossa, os pés começando a doer.

O louro da Inglaterra já está pequenino, pela distância que aumenta. Na esquina da Caio Prado começam as cãibras.

— Pelo menos quinto...

Josué não tem grandes pretensões. Sabe que não come o que os outros comem, que não vive no mar de rosas dos estrangeiros. Ele é mestre-de-obras, trabalha pra ganhar a vida. E trabalha pesado, não vive em moleza.

O belga o supera. Josué percebe que o belga sorri quando lhe passa à frente. E já há um argentino e um venezuelano a persegui-lo de perto.

— Vamos, Josué.

Não sabe de onde partiu a voz, mas sente refrigério no incentivo que escuta. A subida é íngreme apenas para ele. Lá se vão os sul-americanos passando à frente. Calcula estar em oitavo lugar.

— Pelo menos décimo. . .

Josué tem as coxas medindo dois palmos de diâmetro. Dormentes, inclusive. Sente o cheiro do seu suor. Diferente do da obra. Agora, é um cheiro de atleta. Pensa um instante nos irmãos, em Sousa, na Paraíba, que nem sabem que ele é atleta. Pensa em Iolanda, certamente junto a um rádio. Será que estão falando o seu nome?

O sueco o suplanta, como também o holandês. Vão virar na Avenida Paulista.

A noite estava tão fresca, antes da corrida. Agora é esse inferno, essa sufocação que quase não o deixa respirar. Ele bufa a cada passo, morre um pouco a cada pisada. Passa por ele um brasileiro do Corinthians, bastante aplaudido.

— Nem o primeiro brasileiro eu vou ser.

Dobra na Avenida Paulista em vigésimo sexto. Mas há de chegar na frente de muita gente boa. Como estarão suas pernas amanhã? Josué sente o suor escorrer pelas coxas. Está cansado e sofrido. Padece mais, cada vez que um lhe passa à frente. Muitos, aliás, brasileiros. Passa Altamiro, também da Força Pública. Josué não percebe, mas já não corre, passeia. Vão passando muitos. O colombiano é o 78º a superá-lo.

— Subdesenvolvido como eu — pensa Josué, agora em frente do Conjunto Nacional.

Agora, tudo o que deseja é chegar. Qualquer coisa, menos parar no meio, como a maioria dos brasileiros. Chegar. Precisa chegar. Nem que seja em último Mas tem que ir até o fim. Falta quanto? Deseja tão pouco: chegar. Não pede demais, meu Deus do Céu.

— Andando, até eu.

A voz de gozo que sai da calçada o magoa. Pensa um palavrão que não pode falar. Da boca já sai, pelos cantos, uma espuma branca, um creme de cansaço. Faltam 400 metros. Chegar. Iolanda. Os irmãos na Paraíba. Chegar. Os amigos que arranjaram um jeito dele correr, defendendo a Força Pública. Iolanda.

Chegar.

Duzentos metros, Josué.

Continuam a passar por ele. Está incapacitado de saber em que colocação se encontra. Só saberá o lugar que tirou amanhã, pelos jornais.

— Corre, que dá pra tirar terceiro.

Zombam, na calçada. Josué pensa em lhes dizer que se ponham no seu lugar. Não é atleta, é mestre-de-obras, seus idiotas, que só sabem dizer besteira.

As pernas param de resistir. Faltam cem metros. Ele cai. O asfalto queima-lhe a cara. Retiram-no da avenida. Não há ar no mundo. Josué tenta o ar que não existe. A boca aberta, com dentes de ouro, busca o ar impossível. É tarde. O ar acabou, para ele, pelo menos.

No podium colocam uma coroa de louros na cabeça do inglês.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 68


Nilto Maciel (Cavalos de Troia)


No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa: “Eu quisera, por vingança, ver teus olhos de criança na tristeza de outros olhos”. Súbito o locutor soqueou o microfone e, galhardamente, anunciou: “Atenção, atenção! Nossa cidade está sendo invadida por móveis metálicos...” E se engasgou, enquanto os pombinhos, assustados, debandavam.

Mulheres e criancinhas, apavoradas, olhos arregalados, debruçaram-se nas janelas. Meninos que jogavam bola-de-meia na rua, de um pulo se esconderam atrás das portas. Burros se aterraram e, com suas carroças e seus carroceiros, subiram as calçadas. No atropelo, uma galinha perdeu a vida.

Apesar de tudo, o cortejo seguia seu caminho, invadia a cidade, garboso, solene, sorridente, como cavalos de Troia vitoriosos. No primeiro automóvel apenas um homem. Nos outros dois, rapazes de variadas feições, nunca dantes vistos por aquelas redondezas.

***

Aos poucos, o estupor geral desapareceu. As carroças voltaram a ranger nas ruas tortas, conduzidas pelos mesmos velhos burros. A meninada tornou a correr atrás de suas bolas. O alto-falante irradiou novamente valsas de amor. Os pombos regressaram ao telhado do Caffe Portuguez, com seus arrulhos intermináveis. De novidade, só missas em latim e sermões gritados contra o progresso e a máquina.

Os cafés, porém, se encheram naqueles dias. Os homens beberam e jogaram mais, e não pararam de falar na riqueza e no luxo do filho de Daniel Montefusco. Nem os novos filmes de Buffalo Bill despertavam interesse. Os peles-vermelhas morressem sós. O operador fosse matar as pulgas do Cine Brazil.

Nas calçadas, à noite, enquanto a lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas, entoada a Ave-maria, transmitida a Voz do Brasil, as mulheres contavam histórias sem fim de minas e minas de ouro, fortins holandeses recém-descobertos, fotografias escandalosas, onde aparecia, entre o mar e a terra, um rapaz muito galante, cercado de mulheres extraordinariamente exóticas e impuras. Há muito a filha do boticário se perdera no Beco da Onça com o respeitável Josué Montezuma, armazenista de secos e molhados, devoto de Santa Luzia, que o livrara da cegueira quando menino, casado com a digníssima Nazaré da Conceição, cuja mocidade se fora nos braços do hoje invejável Daniel Montefusco...

A lua brincava de esconde-esconde com nuvens e estrelas...

***

No decorrer dos dias e das noites, a cidade se encheu de outras novidades. Uma bodega cerrou suas portas, após seu dono se enforcar. Um homem espetou sua esposa. Algumas mocinhas tornaram-se definitivamente tristes. Um rapaz muito galante fugiu, deixando diante da casa de Daniel Montefusco dois cadilacs, onde meninos brincam de esconde-esconde.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

Jardim de Trovas n. 7


Pôs a bota na janela
o coitado do José.
Papai Noel deixou nela
só remédio pra chulé...
A. A. DE ASSIS

Enquanto o Zé Liberato
sai em busca da gatinha,
pela janela entra um gato
que janta a sua sardinha!
ALOÍSIO ALVES DA COSTA

À cliente que o procura
prescreve o médico astuto:
— Dor na língua a gente cura
pelo repouso absoluto!
ANTÔNIO TORTATO

A mulher que, nesta vida,
com seus espelhos se mete,
anda sempre refletida,
mas, afinal, não reflete!,..
ARCHIMIMO LAPAGESSE

Tão unidos são os dois,
em seu idílio incomum,
que ao vê-los vê-se depois
que são dois e não são um ...
BENNY SILVA

Periga quem se apaixona
por um rosto na janela.
— Nem sempre o corpo da dona
corresponde à cara dela!...
CHICO VEIGA

Brinde a caravela, brinde-a,
que Cabral, em rota incerta,
indo descobrir a índia,
viu a Índia descoberta!...
COLBERT RANGEL COELHO

Aqui jaz magro sujeito,
que foi boa criatura.
Depois de estudar Direito,
formou-se em caricatura...
EMÍLIO DE MENESES

— Quem é que vai no caixão?
quis saber o amigo seu;
e o outro, distraidão:
— Deve ser o que morreu.
FRANCISCO DE ASSIS MENEZES

Fui casar-me e ao padre disse
pecados de arrepiar...
— Que penitência? Tolice!
Não precisas: vais casar!...
GUIMARÃES BARRETO

A pura, a doce Clarissa,
flor cristã, lírio nevado,
alterna o livro de missa
com os livros de Jorge Amado...
JOÃO RANGEL COELHO
 

Ao telefone agarrado,
sem nada dizer sequer:
– Por que estás tu tão calado?
— Falo com minha mulher...
JOSÉ COELHO DE BABO

Seja motorista ou não,
lembre esta coisa preciosa:
Nas curvas, muita atenção!
— Toda curva é perigosa...
JOSÉ CORRÊA

Presos a uma cruz, outrora,
ladrões pagavam seu feito.
Mudou. Aos ladrões de agora,
prendem-lhe uma cruz ao peito...
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO

Vendo-a sorrir, quando passa,
lamento não ser solteiro...
pois ela é cheia de graça
e o pai... cheio de dinheiro!
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA

£ verdade! Mas tem graça:
numa caçada de amor,
quem não vê que é sempre a caça
que caça o seu caçador?
MAGDALENA LÉA
 

Junto ao brotinho assanhado,
diz uma velha travessa:
— Chega pra lá, seu "danado",
senão eu perco a cabeça!...
NICOMEDES ARRUDA

Nesta vida tão ingrata,
feliz é o homem que logra
casar com mulher sensata
e viver longe da sogra...
ORLANDO BRITO

Ao me dar ela o retrato,
que ideia me veio à tona!
Embora ficasse grato,
queria mesmo era a dona...
PAULO DE TARSO COSTÁBILE

Pra que foguete, pra quê?
Pra ir á lua distante?
Eu quando beijo você
não subo aos céus num instante?
WILSON MONTEMÓR

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristóvão/RJ: Artenova, 1972.

Raul Pompéia (A Andorinha da Torre)


Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer, uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram...

Sempre que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene, religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como voos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos sinos, cantando saudosamente na linha azul do horizonte, como um vago salmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas de veludo franjado a ensanefarem* as arcárias (arcada) do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo coisas fantásticas no ar; nem do dorso do padre recamado de florões de ouro sobre cetim branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante; o sino de nada disso me faz lembrar, nem mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas de pau mal talhado...

Desde muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...

Era aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...

Os mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre o mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha. Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o avô da mais galante criança que se tem visto.

Por aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito, davam-lhe doces e beijos que não havia mãos a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que moravam lá no alto as pessoas da cidade que tanto a queriam.

Mas como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e pachorrentos como uns homens de idade, mas, em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns, precipitarem-se no espaço como se fossem desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.

Pareciam mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho Emílio, toda aquela imobilidade movia-se em viravoltas céleres e vertiginosas, toda aquela mudez vociferava, em sonoros estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.

A pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do espírito aqueles monstros boquiabertos que sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo profundo e escuro, clarear-lhes os dourados de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...

Havia amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.

Uma vez, na Semana Santa de 18..., a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar os dias no alto da igreja em companhia de Emílio) adoeceu gravemente.

Caiu de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.

Do quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do sino grande, onde tantas vezes estivera a seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e enfiavam-se por um lado da torre para sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.

Sofria a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.

Por maior infelicidade, havia dois dias que os sinos conservavam-se desesperadamente calados...

Emílio não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a ideia de perder aquela criança, que era a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.

No Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...

Uma alegria sobretudo agitava-a deliciosamente.

O sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse tomar o seu posto.

Rita ia ouvir novamente a voz dos sinos!...

Certo de que eram reais as melhoras da netinha, tranquilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava salva, sorrindo à ideia de que a neta se havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente a testa da criança, deixou-a entregue aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.

Da janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.

A vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse o leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos bons e brandos; parecia-lhe até que ela acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora.

Eram onze horas e meia. Emílio estava impaciente. Os minutos passavam longos, como se em vez de minutos fossem horas...

Do alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se indefinidamente pela cidade afora. As ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros* alastrados de roupa branca onde o sol brilhava deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras, correndo daqui para ali, as cozinhas em movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a findar à última hora dos magros dias da quaresma.

O velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que os altos pontos de vista desvendam numa cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...

Um movimento de espanto fez-o recuar da janela...

Estava suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e agitava desesperadamente um lenço em direção à torre.

Acenava-lhe, sem dúvida.

Mas o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão; talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.

O lenço frenético significava alegria? significava terror?... Urgia saber-se!

Emílio ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:

- Olha o sino!... Olha o sino!... já passa da hora... Já cantaram a Glória!

Emílio, atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as, desvairado, e agita os sinos como um doido, confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na torre uma tempestade de detonações incríveis, infernais.

- Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.

Depois de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da netinha. Estava suspensa como antes da Aleluia e ninguém mais se via.

- Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... pensou o velho...

E, mais tranquilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre. Na escada, teve de sentar-se muitas vezes, antes de chegar ao último degrau.

- Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...

Em casa, encontrou morta a pequena Rita.

- Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.

O velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o espaço profundo, e caiu.

Na rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.

É esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado que me vem à mente, a voz dos sinos, cantando na um vago salmear flutuante...
_____________________
* Notas:
Coradouro – lugar onde se coloca a roupa para corar.
Ensanefar – guarnecer em sanefas.
Sanefa – tira larga de tecido que se atravessa na parte superior de uma portada e que forma conjunto com a cortina ou o reposteiro.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XXIII


Mara Melinni (Da Urgência)


Algumas coisas vão sempre ficando pra depois... Ou porque o dia está cheio ou porque parece que o tempo foge depressa, como se estivesse disputando uma corrida com a gente. Por uma razão ou outra, algo - importante - sempre fica de fora. Pra amanhã, pra depois de amanhã, pra semana que vem, quem sabe!

Aí, livrados da urgência, acomodamos tudo no nosso calendário. O horário do trabalho, a vaga no salão, uma viagem, o dia de sair com as amigas, um aniversário, a hora do pilates, fazer compras... Compromissos, datas. Mas não damos conta, mesmo...

E, no meio dessa correria toda, eu percebi uma urgência. E ela justifica as minhas lacunas. De tanto fazer planos e de eles não caberem no meu tempo, perdendo-se no meio do caminho, vi que o mais essencial estava sendo deixado de lado: Me olhar, me admirar. No sentir, no cuidar e... Até no espelho!

E quando me permiti fazer isso, eu pude me esvaziar daquela corrida maluca com as horas e deixar meus pés sentirem a calmaria do chão, descalços, despidos, suavemente. Pude sonhar acordada, sem relógio e, sem cautelas, rabiscar novos projetos, fazer aposta no meu talento, sentir algo diferente, achar beleza no meu sorriso.

Eu fiz, de mim, a minha urgência.

E eu me senti tão plena, que tudo se acomodou melhor e ficou mais prazeroso.

Apaguei as notas do planner e escrevi um só compromisso: Ser feliz!

Fonte:
Blog da autora.

Thereza Myrthes Mazza Masiero (Jardim de Trovas)


A caridade é um dom
cantando dentro de nós;
na vida, só quem é bom
consegue ouvir sua voz!

A esperança é luz tão cálida,
razão de nosso viver;
recém-nascida crisálida,
enche-nos de alvorecer!...

A juventude é um culto
á beleza e á esperança;
é ser a metade adulto,
outra metade, criança!

Amar é luz, sinfonia,
madrugada a alvorecer;
jatos de sol de alegria,
nossa razão de viver!

Amar... emoção sublime!
Amam-se cristãos e ateus;
quem ama e o amor exprime
fica mais perto de Deus!…

Amizade é sol que aquece,
aonde quer que se vá;
nem sempre o sol aparece,
mas se sabe que está lá!

Aos teus rogos não me rendo;
dizes mentiras aos quilos...
Fingindo, vives vertendo
lágrimas de crocodilos!

A paz é sonho dourado
nas asas do pensamento,
levando de cada lado
fé e amor em voo lento!

Aprendi no dia a dia
que as trovas são obras-primas;
são a essência da poesia
latejando em quatro rimas!

A propensão à violência
assanha o ódio na Terra;
espanta do amor, a essência
e acende o pavio da guerra!

Araras azuis, voando,
vão singrando a imensidão;
parecem fugir em bando
da ameaça da extinção!…

As trovas têm tanta luz
que já são o suficiente;
acendem o que traduz
toda a luz que está na gente!

A trova é real presente
quando se gosta de alguém;
a gente sente o que sente
e a trova vai muito além…

A trova é Santo Remédio,
cura-nos de tantas dores...
Livra-nos do insosso tédio,
cria laços de mil cores!

Carrego em minha bagagem
bela herança de meus pais:
fé, esperança e coragem
e a ânsia de saber mais!

Chegada, rósea alvorada,
fímbria orgia de emoções!
É um grito da madrugada
que arrebata os corações!

Depois de uma tempestade
e a paz volta a florescer,
eu sinto a felicidade
de um cego que volta a ver.

Descobri no dia a dia
que as trovas são obras primas;
são a essência da poesia
latejando em quatro rimas.

Descobriu que foi traído,
não surtou, nem rangeu dente;
mas, vingou-se do atrevido:
-deu-lhe a mulher de presente!...

Deus, com mágico pincel,
fez o mundo tão bonito;
pôs o arco-íris no céu,
a paz e a luz no infinito!...

Dor na “cacunda”, eu escuto,
nas “juntas”, não tem saída...
o velho é mesmo um produto
com validade vencida!

Ela enche a minha bola
e depois me apaga a chama:
se, em vez de uma camisola,
vem pra cama de pijama!

Escrevo trovas porque
não sei dizer cara a cara,
que quando vejo você
o meu coração dispara!

Eu me arrasto a passos lentos...
indo atrás desta paixão;
monto nas asas dos ventos,
sem dar ouvido à razão!

Eu sempre fiz ”macaquice”,
mas “mico” não pago não.
Existe coisa mais triste
que dar “topada” no chão?

Franqueza, um belo costume,
de quem é franco e leal,
é faca que tem dois gumes,
pode, às vezes, ser fatal!

Fresca e rósea madrugada
canta na minha janela...
e a banda da passarada
vem fazer coro com ela!

Mãos que sustentam o mundo,
que plantam paz, fé e amor...
que espalham saber fecundo,
são as mãos do professor!

Mesmo que não sejas meu,
vives guardado em meu sonho;
meu coração te escondeu
nos versos que hoje componho!

Meu lar está sempre em pé,
resiste ao tempo e ao vento;
nele, a fogueira da fé
é acesa a todo o momento!

Meu querido e bom amigo,
entender ninguém consegue,
nosso amor é tão antigo
até que o Diabo o carregue!...

Meus irmãos, os trovadores,
irão erguer mil troféus,
formando um buquê de flores
a LUIZ OTÁVIO nos céus!

Minha MÃE era uma santa,
a mais bela estrela guia;
eu sinto um nó na garganta
por tê-la perdido um dia!

Minha paixão malograda,
sufocada entre segredos,
é como nau destroçada
batendo contra os rochedos!

Muita gente desvalida,
que labuta como mouro,
vive a escutar na vida
que o trabalho vale ouro.

Muito tímido e baixinho,
confessa o marido ao Padre:
-Eu me casei com bom vinho
que “agora” virou vinagre!

Mulher e mãe... Que mistura!
Cuidados mil pelos seus;
zelo, amor, força, ternura,
obra perfeita de Deus!

Na família é que se aprende
o amor, honradez, verdade;
e desse tripé depende
toda a paz da humanidade!

Nas labutas costumeiras
deste mundo sem poesia,
as trovas são companheiras,
nosso pão de cada dia!

Na voz do povo , em geral,
algo tem de verdadeiro;
se o feitiço é para o mal,
"vira contra o feiticeiro!"

Nesta vida, a mocidade
tal qual roseiras viçosas,
dá botões na flor da idade
antes de encher-se de rosas!

No banheiro do boteco,
o cartaz era um “revanche”:
-Quem desentope esse “treco”
é o mesmo que faz seu lanche!

Nos invernos desta vida
viramos todos “mendigos”;
sem atenção, sem guarida,
órfãos de parente e amigos!...

Nossas mais belas cantigas
girando em rodas cantadas,
são lembranças tão antigas,
que nos enchem de alvoradas!

Nossa vida é um carnaval!
Somos todos foliões
dos blocos do bem, do mal,
perdidos nas multidões!

O clarinete assoprou
com tal força e envergadura,
que para longe pulou
saltitante- a dentadura!...

O sábio é um degustador,
degusta a sabedoria,
“carpe diem” com fervor,
bebe a luz que ele irradia.

O valor de uma amizade
é maior do que supomos;
um amigo de verdade
nos faz melhor do que somos!

Poeta não é aquele
que sabe escandir um verso;
poeta traz dentro dele
mil vibrações do universo!

Quando a cabrocha aparece
descendo o morro sambando,
o povaréu enlouquece,
cai no samba rebolando!

Quando assisto à Escolinha
do bom Professor Raimundo,
volto a ser professorinha
querendo salvar o mundo!

Que haverá de mais valor
num mundo de corre, corre?
Amigo é o único amor
que na vida nunca morre!...

Quem ensinou o passarinho
tecer, com arte e primor,
o ninho do filhotinho
com mil raminhos de amor?

Quem impede com carinho
que se parta um coração,
planta flores no caminho,
não terá vivido em vão!...

Quem na vida tem um sonho
só se veste de alvoradas...
Mesmo entre brumas, tristonho,
vê rútilas madrugadas!

Quem quiser ser bem lembrado,
guarde bem esta verdade:
-tem que andar sempre calçado
com sandálias da humildade!

Quem semeia entendimento,
jamais colhe tempestade,
esparrama aos quatro ventos
flores de fraternidade.

Que surrealismo completo
vender "sorte" em loteria,
quem não tem pão, não tem teto...
Que dolorosa ironia!

Saudade é como cebola
que se descasca a chorar.
Mas toda mulher que é tola,
vive a cebola a cortar.

Se a vida nos fecha as portas,
Deus nos abre ao menos uma;
e as esperanças já mortas
ressurgem por entre as brumas!

Se após longa tempestade
a paz volta a florescer,
eu sinto a felicidade
de um cego que volta a ver!

Seja bem-aventurado
o mágico agricultor;
água a esperança e o arado
é arma que espalha o amor!

Senhor, que quadro mais lindo
o arco-íris sobre o mar...;
parece que é Deus sorrindo
querendo o mundo abraçar!

Toda a noite quando saio,
vendo o céu luminescente
sinto a paz, que é como um raio
de luar, dentro da gente!

Toda emoção sufocada
que se vive a camuflar,
é tal qual bomba já armada,
prontinha para estourar!

Todo o progresso, hoje em dia,
entra por todas as frestas...
Destrói a paz, a poesia,
mata o canto das florestas!

Todos sabem que a mentira
pode enganar muita gente;
vira e mexe, mexe e vira,
ela mesma se desmente!

Um dia paguei um “mico”,
escorreguei no salão.
Não sei se encolho ou se fico
estatelada no chão.

Vendo este mundo violento,
irmão a matar o irmão,
pergunto: - Será que há tempo
de Deus nos dar seu perdão?...
_______________
Fontes:
José Feldman (org.) Florilégio de Trovas. Maringá/PR, agosto de 2017.

José Feldman (org.) O Encanto das Trovas. Seção UBT São José dos Campos. Tomo IX. Vol.1. Marijngá/PR, 2017.

União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Myrthes Mazza Masiero e Lilinha Fernandes. Coleção Terra e Céu vol. LXXII. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Thereza Myrthes Mazza Masiero (1937)

Natural de Lorena/SP, radicou-se em São José dos Campos/SP.

Especialista em Educação, Professora, foi Diretora de Escolas, Palestrante sobre trovas e Poesia, Escritora, Poeta e Declamadora Premiada.

Membro fundadora da Academia de Letras de Lorena (ALL- Cadeira nº 12), membro efetivo da Academia Joseense de Letras (AJL- Cadeira nº 09) e membro da UBT de São José dos Campos.

Vencedora em diversos Concursos de Trovas, Poemas e Declamação no Brasil e fora do Brasil.

Em 1983, título de “Destaque do Ano em Educação” do Litoral Norte e a Medalha “Cassiano Ricardo” da Câmara Municipal de São José dos Campos, por serviços relevantes prestados na área da Educação e Cultura. Em 2015 foi Condecorada pela Divine Académie Française des Arts, Lettres et Culture, tendo sido elevada: À La Dignité D’ Ambassadeur.

Autora de Poemínimos, O Homem e o Signo. Coautora de Mulheres de São José, Bons Autores, Mulheres de São José e Outros Poemas, Rio grande Trovador, Charadas em Trovas I, Charadas em Trovas II, Coletâneas da Academia de Letras de Lorena I, II , III, IV, V, VI e VII e outras Antologias. Tem poemas, trovas e sonetos publicados em várias Revistas e Jornais do Brasil.

Fontes:
José Feldman (org.) O Encanto das Trovas. Seção UBT São José dos Campos. Tomo IX. Vol.1. Marijngá/PR, 2017.

União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Myrthes Mazza Masiero e Lilinha Fernandes. Coleção Terra e Céu vol. LXXII. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Antonio Carlos de Barros (O Gaúcho e o seu Cavalo)


O cavalo, por sua importância histórica e social, como instrumento de trabalho, de recreação ou até mesmo nas peleias históricas deste Rio Grande velho, constituiu-se, através dos tempos, em um dos temas que mais cativaram e ainda permeiam a sensibilidade dos escritores Gaúchos, tanto em prosa como em versos. 

Para quem desconhece as raízes do tradicionalismo, talvez fique difícil entender essa relação entre um homem e seu cavalo: é comum dizer que, um não existe sem o outro.

No interior dos municípios Gaúchos, é comum a utilização do cavalo para os diversos serviços de campo, ou como montaria para passeio, para ir às carreiras*, para fazer compras no bolicho*; para conduzir as crianças à escola; ir a um Fandango*, e até cerimônias de casamento. Além de ser usado como montaria, o cavalo muitas vezes é utilizado para tração de carroças, charretes, etc.
Gaúcho que é Gaúcho sabe muito bem cuidar do seu pingo*, conversa com o animal, trata-o muito bem, é a sua forma de dizer que gosta, é o respeito e o comprometimento com o animal. Como citado no verso da música com o conjunto Os Monarcas, famosa por relatar a amizade entre O Gaúcho e o Cavalo:

Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Talvez dois seres perdidos
A vagar pelo capim.
Quem sou eu sem meu cavalo
O que será dele sem mim
Porque quando morre um cavalo
Morre um pedaço de mim.

O grande escritor, poeta, EDILBERTO TEIXEIRA, afirma em seu livro Dicionário Gaúcho do Cavalo, que não é temeridade afirmar-se que o Rio Grande do Sul é uma das “Províncias Idiomáticas” mais ricas do Brasil em razão do cavalo. Ele é a maior fonte inspiradora do Gaúcho ao metaforizar conceitos.

Na poesia, na trova e na sua fraseologia peculiar, sempre, há de estar o cavalo como um símbolo, uma comparação, um dito rimado. No seu viver diário, nas suas lides campeiras, nas suas festas, carreiras, rodeios, sempre junto ao cavalo, dele tira as conclusões por força do hábito.

O grande poeta Guilherme Schultz Filho, em sua magistral poesia PINGOS, trás nos versos a comparação de cada fase da nossa existência, infância, mocidade, adulto e na idade madura ou na melhor idade, analogicamente, com os cavalos. Vejamos os versos:

Em cada ronda da vida
eu tive um pingo de lei.
Montado, sou como um rei,
pelo garbo e o entono.
Cavalo pra mim é um trono:
e neste trono me criei.

De piazito* já encilhava
um peticinho* faceiro,
que era cria de um overo*
e de uma egüinha bragada*:
era da cor da alvorada
o meu petiço luzeiro!*

Rosado como as manhãs,
do pelo da própria infância,
mascando o freio com ânsia,
parece que até sorria...
Chamava-se "Fantasia"
e era a flor daquela estância.

Já mocito, o meu cavalo
era um ruano*, ouro nas crinas,
festejado pelas chinas*
que o chamavam - "Sedutor".
Formava um jogo de cor
sob os reflexos da aurora
com os cabrestilhos* da espora
e os flecos* do tirador*.

Naqueles tempos de quebra,
nos bolichos*, ao domingo,
sempre floreando* meu pingo
todos me viram pachola*
com o laço a bate-cola*
e virando balcão de gringo.

O meu cavalo de guerra
chamava-se "Liberdade"!
Chomico!* Quanta saudade
me alvoroça o coração!
Era um mouro* fanfarrão,
crioulo* da própria marca
e eu ia como um monarca*
na testa de um esquadrão.

Em uma carga das feias,
como aquela do Seival*,
o mesmo que um temporal
rolamos por um lançante*
e até o próprio comandante
ficou olhando o meu bagual*.

Homem feito e responsável,
o meu flete* era um tostado*,
tranco macio, bem domado,
êita pingo macanudo*!
desses que "servem pra tudo",
segundo um velho ditado.

Mui amestrado na lida,
um andar de contra-dança;
de freio, era uma balança,
campeiro, solto das patas...
Gaúcho, mas sem bravatas,
e o batizei de "Confiança"

O cavalo que encilho
nesta quadra da existência,
dei-lhe o nome de "Experiëncia".
É um picaço* de bom trote
e levando por diante o lote
rumbeio* à Eterna Querência.

E, assim, vou descambando,
ao tranco e sem escarcéu,
sempre tapeado o chapéu
por orgulho de Gaúcho,
e se Deus me permite o luxo
entro a cavalo no céu!

_____________________________
* GLOSSÁRIO:

- Bagual – animal ainda não domado.
- Bate cola – o laço entre a cauda do animal.
- Bolicho – armazém de campanha.
- Bragada – pelo do cavalo que tem a virilha ou a barriga branca e o resto do corpo de outra cor.
- Cabrestilhos – correias de couro que seguram as esporas aos pés.
- Carreiras – corridas de cavalos.
- Chinas – descendente ou mulher de índio, morena.
- Chomico – interjeição de espanto.
- Contra dança – macio, leve.
- Crioulo – natural de determinado lugar, região, estado, País.
- Fandango – bailes campeiros.
- Flecos – franjas.
- Flete – cavalo bom e de bela aparência.
- Floreando – manejar com destreza.
- Lançante – descida, qualquer terreno em declive.
- Luzeiro – claro como a luz.
- Macanudo – bom, poderoso, superior.
- Mocito – mocinho.
- Monarca – gaúcho que monta com garbo e elegância.
- Mouro – pelo do animal negro salpicado de branco.
- Overo ou Oveiro – diz-se do animal malhado.
- Pachola – metido.
- Peticinho – ou Petiço - cavalo pequeno, curto, baixo.
- Piazito – gurizinho.
- Picaço – cavalo de pelo escuro com a testa e as patas brancas.
- Pingo – cavalo bom, corredor, bonito, vistoso.
- Ruano – pelo de cavalo arruivado.
- Rumbeio – rumar, encaminhar-se para certo lugar ou direção.
- Seival – banhado extenso, alagadiço. Local de uma batalha próximo à Bagé, na Revolução Farroupilha.
- Tirador – espécie de avental de couro macio, que os laçadores usam pendente da cintura.
- Tostado – cor de canela, meio ruivo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor