segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Antonio Carlos de Souza (Chimarrão) Parte 1


( Nota: as palavras em itálico negritado possuem o seu significado no vocabulário gauchesco no final a postagem)
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Pintura em tecido, por Rosvita

A Erva Mate foi descoberta pelos Índios Guaranis, antes do Descobrimento do Brasil. CAÁ – significa Erva Mate na linguagem Guarani, CAÁ-Y – significa a água da erva. Hoje mate amargo ou Chimarrão.

O Chimarrão, um grande patrimônio da Tradição Gaúcha, foi descoberto no atual Estado do Paraná, lá pelos idos do ano de 1554. Com as notícias da Prata, logo após a descoberta da América do Sul, muitos Europeus desembarcaram em nosso Continente, rumando para Assunção – Paraguai. Tentavam atingir a terra das valiosas minas, subindo pelo Rio da Prata. Foi numa dessas investidas que o governador de Assunção, IRALA, em 1554, descobriu o Mate Amargo. Partindo de Assunção o governador seguiu a leste, para conquistar terras para a Espanha e a busca de riquezas. Alcançando Guaíra, hoje Estado do Paraná, foi recepcionado, junto com a sua comitiva, por um povo indígena, que compunha uma Nação de 300.000 índios Guaranis. Ficaram impressionados com a hospitalidade jamais vista em suas andanças. Foram convidados a tomar uma bebida estimulante, que dava inspiração e proteção, ensinada por Tupã, Deus Indígena, aos pajés. Essa Erva era chamada pelos índios de “Erva Tupã”, porque era abençoada por Deus, seu mate produzia efeitos estimulantes e fortalecedores, ao corpo e ao espírito, para os guerreiros. Consistia em torrar as folhas de uma certa árvore silvestre, fragmentá-las e coloca-las num pequeno porongo, com água morna, quase quente, chupar com um canudinho de taquara. Um trançado de fibras de cascas e membranas de árvores, em sua base, impedia a ingestão de partículas das folhas, via canudinho. Era o CAÁ-Y, que também era consumido como chá, fervido e até mascado, sob a forma natural, em folhas verdes ou secas.

E disse o Hélio Moro Mariante em sua Fronteira do Vaivém:


Há uma árvore importante
Que nasce sem se plantar.
Sua folha é estimulante
Depois de se a sapecar.
É planta, mas chamam erva.
Dizem que as forças conserva,
Dos que a tomam no frequente
É chupada de um porongo
Com canudo e água quente.

A boa nova foi levada pelos expedicionários à Assunção e foi se espalhando por toda a América do Sul. A erva mate chegou a ser moeda corrente no Paraguai.

No início da era da erva mate a Igreja Católica foi sua fervorosa combatente. Os padres Franciscanos, em nome dos mais santos princípios da Igreja, instituíram a “excomunhão” dos que mateavam. Era o tempo da Inquisição. Eles chamavam a “erva do diabo”, por ter surgido no meio indígena, com a benção do deus Tupã.

Por isso Dimas Costa nos conta em sua Carta à Mãe Natureza:

– E assim é que o mate amargo
Tem muito de pago e china.
E a tradição é que ensina
Que o chimarrão, no passado,
Foi erva amaldiçoada
E por isso foi queimada
Por um conselho sagrado.

Então daí criou-se o hábito de quem prepara o mate toma o primeiro gole, para provar que ali não havia diabo algum. Foram muitas décadas de lutas da Igreja Católica, contra o uso da erva mate, porém o hábito invadiu o Continente. Até que a Igreja resolveu suspender o combate infrutífero. Formaram-se, então, dois grandes polos de produção, GUAÍRA, no Paraná, e Sete Povos das Missões, às margens do Rio Uruguai, no atual estado do Rio Grande do Sul.

Glaucus Saraiva realça em poesia o divino da erva mate:

Trazes à minha lembrança,
Neste teu sabor selvagem,
A mística beberagem,
Do feiticeiro charrua,
E o perfil da lança nua,
Encravada na coxilha,
Apontando firme a trilha,
Por onde rolou a história,
Empoeirada de glórias,
De tradição farroupilha.

No Rio Grande do Sul, quando se deixou brotar a tradicional hospitalidade Gaúcha, sempre esteve uma mão amiga estendida, alcançando o símbolo desse gesto, um chimarrão. Nas estâncias Gaúchas nunca faltaram às rodas de chimarrão. Nas charlas galponeiras, ao redor dos fogos de chão, entre um mate e outro, sempre foram tomadas as mais importantes decisões do curso de nossa história.

O momento do chimarrão é propício para se ordenar e planejar os negócios do dia. Ninguém mateia com pressa. A exploração da Erva Mate, como descoberta nativa, constituiu-se em grande fonte de divisas para o Rio Grande do Sul, principalmente pelos missioneiros, especialmente após a chegada ao pó da erva.

E o grande payador Jayme Caetano Braun em seu Potreiro de Guaxos explica:

É por isso meu patrício
Que não mateio solito
Embora o verde bendito
Pra mim seja mais que vício.
É o meu último munício
Que não dispenso nem largo
E peço a Deus, sem embargo,
Na xucreza do meu canto,
Que no céu me guarde um Santo
Parceiro para o Mate Amargo. 

Cedo provei o Chimarrão. Via todo mundo sorvendo nas bombas de prata, via o topete da erva de um verde diferente dos outros porque a vida nela adormecera e esperava, e era como uma alusão misteriosa ao sabor que deveria subir lá de dentro da cuia. Via o mate correr entre homens e mulheres, entre os homens da casa da fazenda e no galpão, e pelos alpendres das manhãs acesas ou das tardes tristes, o mate obscuro das mulheres negras da cozinha nas tardes escuras de chuva, quando elas andavam silenciosas, descalças sobre os ladrilhos gastos, com a cuia na mão. (Reynaldo Moura – Romance no Rio Grande).

- Já o grande poeta Guilherme Shultz Filho, pinta o quadro poético que se emoldura:

Mate amargo! Que doçura!
Velha cuia de porongo!
Nesse teu feitio oblongo
Que parece um coração,
És toda uma tradição,
Todo um passado resumes!
Desde os singelos costumes
Do meu pago e minha gente
Velha cuia confidente!
Mate Amargo! CHIMARRÃO!

- O Amargo se expande na síntese de Aureliano de Figueiredo Pinto:

Com o porongo Africano
A bomba peninsular,
Erva do índio Americano
Três Continentes a dar
A sua contribuição
A democrata reunião
Fraterna que anima e puxa
E acende a veia Gaúcha
Nas charlas de um CHIMARRÃO.

- Eis que Valdomiro Sousa relembra um naco da nossa história:

Eis que a cuia me ensina:
Quando chegou Silva Paes,
Sepé entre os ervais
Tomava o seu chimarrão,
Feliz, na paisagem guasca.
Sepé que soberbo e ousado
Sucumbiu, despedaçado,
Por amor deste Rincão.

- E Hermelindo Cavalheiro ao mate amargo se aferra:

Chimarrão, vinho da terra
Onde na paz ou na guerra,
Seu apanágio é o valor,
Sempre foste para o gaúcho
Bebida simples sem luxo
Mas sem igual no sabor.

- O Grande cantor e compositor Lupicínio Rodrigues compôs:

Amigo boleie a perna,
Puxe o banco e vá sentando.
Descanse a palha na orelha,
E o crioulo, vá picando. 
Enquanto a chaleira chia, 
O Amargo vai cevando.

- E a poesia que imortalizou o Mate Amargo de Glaucus Saraiva:

CHIMARRÃO

Amargo doce que eu sorvo
Num beijo em lábios de prata.
Tens o perfume da mata
Molhada pelo sereno.
E a cuia, seio moreno,
Que passa de mão em mão
Traduz, no meu chimarrão,
Em sua simplicidade,
A velha hospitalidade
Da gente do meu rincão.

Glaucus Saraiva também ensina como encilhar um mate:

UM POEMA AO CHIMARRÃO 

Palmeio o velho porongo
derramo a erva com jeito
encosto a cuia no peito
batendo a erva pra um lado;
com os quatro dedos curvados
formo um topete bem feito.

Com um poquito de água morna
bem devagar despejado,
tenho o amargo ajeitado
que ponho a um canto pra inchar;
e espero a água esquentar
pitando o baio sovado.

A pava chiou no fogo.
Encho a cuia que promete;
a espuma se arremete
bem pra cima, borbulhando,
e acariciante, beijando,
branqueia todo o topete.

Agarro a bomba de prata,
tapo o bocal com o dedão,
calço o bojo bem no chão
da cuia e vou destapando
a bomba que vai chupando
um pouco de chimarrão.

Derramo outro pouco d'água
para aumentar o calor...
e o mate confortador
vou sorvendo em trago largo,
pois me saiu um amargo
despachado e roncador.

E do grande poeta Aureliano de Figueiredo Pinto nos brinda com esses maravilhosos versos:

CHIMARRÃO DA MADRUGADA

Não sei por que nesta noite
o sono velho sebruno
ergueu a clina e se foi!
E eu que arrelie ou me zangue.
Tenho olhos de ave da noite,
ouvidos de quero-quero
cordas de viola nos nervos
e uma secura no sangue.

Então, da marquesa salto
e vou direto ao galpão:
bato tição com tição
e a labareda clareia
os caibros do galpão alto.
Já a cuia bem enxaguada,
corto um cigarro daqueles
de reacender vinte vezes
num trote de quatro léguas
de uma chasqueira troteada.

E, quando a chaleira chia,
principio um chimarrão,
mais verde e mais topetudo
do que um mate de barão.
Me estabeleço num banco
pra gozar gole e fumaça,
pitando um naco de branco.
E entre tragada e golito
saludo mui despacito
cada recuerdo que passa.

É um gosto olhar os brasidos
E os luxos das labaredas
dançando rendas e sedas
para a ilusão dos sentidos.
E entre o amargo e a tragada
tranqueiam na madrugada
tantos recuerdos perdidos.

E o chimarrão macanudo
vai entrando pelo sangue!
Vai melhorando as macetas,
curando as juntas doridas
como água arisca de sanga
sobre loncas ressequidas.

O peito avoluma e arqueia
como cogote de potro.
E as ventas se abrem gulosas
por cheiro de madrugada.
- Potrilhos em disparada
num Setembro de alvoroto.

Ah! Sangue velho... Descubro
porque hoje estás de vigília:
- Dois séculos de Fronteiras.
de madrugadas campeiras,
de velhas guardas guerreiras
bombeando pampa e coxilha!

Por isso é que hoje não dormes!
Ouviste a voz de ancestrais:
-"O chimarrão principia”!
Alerta! O campo vigia!
Da meia-noite pra o dia
Um taura não dorme mais...

- O ato de tomar um mate é muito maior do que simplesmente ingerir uma bebida: É um ritual símbolo da cultura Gaúcha, uma tradição que une as pessoas.

Foste bebida selvagem
E hoje és tradição,
E só tu, meu chimarrão,
Que o gaúcho não despreza
Porque és o livro de reza
Que rezo junto ao fogão.
(Vitor Ramill)

continua… parte 2 (final)
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Vocabulário Gauchesco:

Alvoroto – Burburinho. Motim, revolta. O mesmo que alvoroço.
Bombeando – espionando, explorando, vigiando.
Brasidos – braseiros.
Charlas – conversas.
Charrua – Palavra que caracteriza os atuais habitantes do território outrora ocupado pela tribo Charrua, o que hoje equivale ao sul do Rio Grande do Sul e toda a República Oriental do Uruguai. Indivíduo que habita as regiões fronteiriças entre Brasil e Uruguai.
Chasqueira – diz-se do animal de trote duro.
China – Mulher guapa, valente. Tal gíria é muito utilizada em regiões da fronteira do estado do Rio Grande do Sul com o Uruguai.
Clina – O mesmo que "crina", pelagem comprida que fica no pescoço e/ou no rabo de animais como o cavalo.
Cogote – pescoço grosso.
Crioulo – cigarro de palha.
Despacito – devagar, vagarosamente.
Encilhar – colocar erva na cuia de chimarrão.
Guasca – correia, corda de couro cru. Tem sentido pejorativo também.
Lonca – couro fino do animal para costurar.
Macanudo – bom, poderoso.
Maceta – tornozelos inchados, dificuldade para andar.
Marquesa – espécie de cama muito larga.
Munício – gado de corte para alimentação dos soldados.
Pago – lugar em que nasceu.
Pava – chaleira.
Payador – quem escreve payada, que é uma forma de poesia improvisada vigente na Argentina, no Uruguai, no sul do Brasil e no Chile. É uma forma de repente em estrofes de 10 versos, de redondilha maior e rima ABBAACCDDC, com o acompanhamento de violão.
Porongo – 1. cuia de chimarrão. 2. Fruto não comestível, caracterizado por seu tamanho grande, formado por uma casca grossa e com sementes por dentro, sem polpa. Utilizado para confecção de cuias de chimarrão, berimbau (concha acústica), ou mesmo para fazer casas de passarinhos.
Recuerdos – lembranças, recordações.
Rincão – ponta de campo cercada de rios, matas.
Sanga – Pequeno riacho, córrego, com nascente própria e que geralmente deságua em rios ou lagos.
Sebruno – animal cavalar de pelo escuro.
Sepé – Sepé Tiaraju (1723 – 1756) foi um guerreiro indígena brasileiro, considerado santo popular e declarado "herói guarani missioneiro rio-grandense" por lei. Chefe indígena dos Sete Povos das Missões, liderou uma rebelião contra o Tratado de Madri.
Taquara – tipo de bambu.
Taura – individuo valente, destemido.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 13 de outubro de 2019

Sebas Sundfeld (Visita Importante)


Caboclo de compleição franzina, gênio brando, barba rala no rosto cor de cobre, cabelo rente e grisalho, pitando cigarro de palha, seu Pedrinho passou a vida no trabalho rude do campo. Com a mulher, morava agora, de favor, numas terrinhas de onde tirava o seu sustento.

Rocinhas ralas de milho e de mandioca e um chiqueirinho ocupavam as proximidades do seu rancho de pau-a-pique, de três cômodos ligados por passagens sem porta. Apenas a do quarto exibia uma cortina amarrotada, na preocupação com olhares curiosos de algum
visitante inesperado. Sim, por que às vezes aparecia por lá alguém da fazenda.

Naquela manhã clara e quente, chegaram dois cavaleiros, moços da cidade em férias e a procura de aventuras por aquelas simplezas rurais. "Visita importante" matutou seu Pedrinho.

Recepcionou os desconhecidos com agrados na fala. Sabendo a que vinham, levou-os para dentro. Enxotou os frangos empoleirados nas cadeiras, para que os recém-chegados sentassem. Então serviu-lhes a bilha com água fresquinha da mina que brotava à sombra dos taquaruçus. Desajeitados, emborcaram a bilha. Saciaram a sede. E molharam a camisa. Mal humorados já iam se despedindo. Um cheiro adocicado que vinha da cozinha deteve a saída altiva dos jovens não habituados aos aromas da roça.

– É a Filoca ali no fogão, explicou o dono do rancho.

Disse e foi buscar uma panela de milho cozido, quentinho, fumegando. Colocou sobre a mesa e convidou respeitoso:

– Experimente, moço, pra vê cumo é bão. Com um pôco de sar fica mió ainda.

Os visitantes, de saída, voltaram olhares vertendo ironia. O comentário de um deles desprezou a generosidade do anfitrião roceiro.

– Nós não comemos milho cozido.

Desapontado, seu Pedrinho quis se desculpar. Sua resposta veio singela e apropriada:

- Intão me descurpe, moço, pruquê o mio cru os porco comero.

(Crônica vencedora no IV Concurso Literário "Cidade de Maringá")

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas)


A gatinha, de bom tom,
só quer mesmo, no seu ninho,
em vez de um baita edredom
um musculoso gatinho...

A gatinha, na balada,
viu seu gato, com um "cacho",
e partiu para a "porrada",
mostrando quem era o macho...

Ah, se eu pudesse, faria,
tudo de novo outra vez,
estudava economia,
pro salário dar pro mês...

A vergonha foi demais
no casório da velhinha:
a velha queria mais
e mais o velho não tinha…

Caiu a casa do gato
da madame 'socialite'
depois ela viu um rato
desfilando no seu 'site'...

Chuta o balde a dona Mima
porque o marido, Vavá,
em vez de partir pra cima,
vai pra baixo do sofá...

Desesperado, o ladrão,
vendo que vítima orava,
roubou-lhe a própria oração
só pra dizer que roubava...

É político de escol,
sabe tudo, até no escuro,
faça chuva ou tenha sol,
não sai de cima do muro...

Esse inverno tudo arrasa
e a gente agora aconselha
ter sempre guardado em casa
um bom cobertor de orelha...

Morre a sogra... e no velório,
aparece, no cantinho,
o genro com o foguetório
já prontinho... já prontinho...

Na jogada de furor,
a galera aperta o passo,
quando o urso driblador
faz o gol sai pro abraço...

Na sociedade mais rica,
preguiça é 'doença rara'
que o médico diagnostica
somente olhando na cara...

No balcão do botequim,
o bebum tenta falar,
mas gasta todo o latim...
e não consegue explicar…

No desespero, o casal
vestiu a roupa ao contrário,
e o flagrante foi fatal:
"casal mal vestido e otário..."

O barulho na cozinha
denunciou mais um duelo:
o gordo atrás da sardinha,
a esposa atrás do chinelo...

O jogo foi traiçoeiro,
e foi expulso o infeliz,
porque o chute foi certeiro
bem nas partes do juiz...

O pijama de bolinha,
não anima nada, nada…
e o coronel perde a linha,
a vontade, o jeito, a espada...

O sabonete caiu
e o desespero da Bruna,
não foi tanto o que ela viu,
mas o drama da coluna...

O soldado trapaceiro
vai pra banda, e, como tal,
'ta’ treinando dia inteiro
para ser o general...

O velho fica feliz
pois há tempos não namora,
mas a velha acorda e diz
- "Muita calma nessa hora...”

Passa a noite no batuque,
mas, na volta, muda o tom:
ele, atrás de um novo truque,
mas ela, atrás do batom…

Põe pijama, baixa o som...
E o meu compadre, na cama,
bem na hora do "bem bom"
só quer mostrar o pijama…

Pra sogra que mora ao lado,
tem um remédio chinfrim:
fazer um muro elevado,
igualzinho ao de Berlim...

Toda vez que o time afunda,
deixando a torcida à míngua,
a rima, rica e profunda,
esta na ponta da língua...

Trabalhando a noite inteira
na boate, a Leonor
não entra na bebedeira,
pois só toma... suador!...

Vendo a grave situação,
o padre ao casório vem,
e aproveita a ocasião
para o batismo também...

Fonte:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças: trovas & poemas. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.

Carlos Drummond de Andrade (Banco Barroco)


— Quer comprar o meu banco? Ele não está à venda.

Falava com superioridade de banqueiro que se sabe forte na praça, capaz de resistir à pressão de grupos econômicos poderosos. Tornou-se arrogante:

— Não vendo ele de jeito nenhum. Já recusei muitas propostas. Por que havia de vender? Gosto dele, não vai mudar de proprietário enquanto eu for vivo.

— Perdão, eu não queria comprar.

— Queria então o quê?

— Queria permissão para ver. Estou estudando mobiliário barroco, e soube que o senhor tem em casa uma peça valiosa.

— Valiosa? Pra mim ele não pode ser avaliado em cruzeiros. Nem em dólar, que aliás hoje não é mais lá essas coisas. O senhor quer ver apenas?

— Ver e, com sua licença, fotografar.

— Ah, fotografar pra quê? Pra botar no jornal?

— Não trabalho em jornal.

— Então, trabalha pro governo, já vi tudo. Vem ver o meu banco, tira retrato, faz relatório, depois, pimba: o governo desapropria o meu banco por essa tal de utilidade pública. Muito bonito.

— O senhor está completamente enganado. Não sou funcionário público, sou estudante e trabalho no escritório da Light. Olhe aqui as minhas carteiras.

— Carteiras? Carteira não prova nada.

— Bem, se não acredita…

— Prefiro acreditar na sua cara, que me parece de gente de bem. Pode entrar.

A salinha era pobre, só o banco impunha sua classe, misturado a trastes sem estilo.

— Século XVII, no duro. Joia.

— Eu sei, eu conheço o que é meu.

— O senhor permite que eu tome as medidas?

— Pra que tirar medida? Não chega tirar retrato?

— Para documentar bem a peça. Vou fazer um sucesso danado lá na Escola, com o trabalho sobre este banco.

A desconfiança voltou a acinzentar os olhos do dono:

— Sei não. Este seu interesse pelo meu banco…

— O senhor está pensando que eu vim a mando de algum antiquário? Dou minha palavra de honra que faço uma pesquisa escolar.

— Bom, pode tirar as medidas.

O rapaz aproximou-se, alisou o couro lavrado, com carinho. Banco de igreja nordestina, jacarandá venerando, oito pés retorcidos, duas traves torneadas, como é que um tesouro desses foi parar naquela casinha vulgar de Madureira?

— Vou dar ao senhor cópias das fotos.

— Não carece, moço. Prefiro olhar pro meu banco do que olhar pro retrato dele.

— O senhor… posso saber como essa coisa linda veio ter às suas mãos?

— Olha só a curiosidade dele. Eu não falei? Agora tem fiscalização de móveis na casa da gente?

— Não precisa responder, é claro. Está se vendo que isto é um bem de família, o senhor herdou de seu pai.

— E meu pai de meu avô. Meu avô do pai dele, ou da mãe, sei lá. Negócio muito do antigório.

— Mas este banco não é do tempo do seu bisavô. É muito mais antigo.

— Como é que eu posso saber quem foi a primeira pessoa da minha família que possuiu este banco? Não sou adivinhão.

— Bem, ele saiu duma igreja.

— Isso eu sei.

— Não estou duvidando de sua família, claro. Absolutamente. Mas seus pais não lhe contaram nada, nada, não lhe falaram de uma tradição da família em torno deste banco?

Ficou pensativo, coçando a testa.

— Parece que tinha um padre…

— Lógico que tinha um padre.

— Vou confiar no senhor. Negócio perdido na fumaceira do tempo, né? a gente pode contar.

— Isso.

— Uma dona da nossa família era casada com ele. Naquela base, entende? O padre morreu, a comadre guardou o banco de lembrança. O senhor vê que este banco é sagrado. Não vendo ele pra Onassis nenhum. Ninguém tem o direito de sentar nele. Nem eu. Sou pobre mas sustento a honra do passado. Agora que já sabe tudo, o senhor aceita uma xicra de café coado na hora?

Fonte: 
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

José Feldman (Adeus, Minha Irmã!)


POEMA: ADEUS, MINHA IRMÃ
(Para a Mel - 3/5/2003 - 8/10//2019

Adeus, ó minha irmã querida
deixas meu coração em pranto.
foste pura doçura em vida,
a luz, a alegria e o canto.

Teus latidos se calaram...
a noite ficou muito fria
as estrelas se apagaram,
não há mais a tua alegria.

Foste a bússola a me guiar
com teu jeitinho carinhoso
a ternura sempre a encantar
em teu modo de olhar dengoso.

Foste um ser iluminado
que a luz na terra se apagou,
um coração abençoado
que com lágrimas, nos deixou.
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NOTA:

Por hora não haverão postagens, pois é tempo de dor e pranto. Breve retornarei.

Conto com vossa compreensão
José Feldman

domingo, 6 de outubro de 2019

Maurício Cavalheiro (O Segredo de Boas Histórias)


No intervalo vespertino, deixo o escritório para combater a fome na padaria da praça. Peço pão na chapa e pingado. Junto à mesa, na calçada, observo o movimento.

As 15 horas, precisamente, ele aparece com o livro à axila. Caminha lento, apoiado na bengala, até se acomodar no banco ao lado do coreto. Ajeita o chapéu, apruma os óculos, pigarreia. Dizem que no início tagarelava para os pombos. Mas estes preferiam bicar resíduos de alimentos no chão a ter que ouvi-lo.

Por um bom tempo foi considerado destrambelhado. Por isso os pais criavam medo nos filhos, para não se aproximassem do velho "doido". Mas como toda invencionice tem prazo de validade e criança é um bicho impertinente, o enredo se desfez. Há muitos anos, o filho rebelde do prefeito resolveu importunar o 'Velho doido". Tentou de todas as maneiras. Fez isso, fez aquilo, e mais um pouco. Não adiantou: acabou pacificado pelas histórias do nonagenário. Desde então, o degredo perdeu forças e o velho ganhou popularidade.

Ainda menino, inúmeras vezes ouvi histórias contadas por ele. Histórias que não se repetem. Naquele livro mágico nasciam - e nascem - reinos, galáxias, monstros, florestas e muito mais. Naquele livro há passados e futuros inimagináveis. Confesso que, de vez em quando, deixo o café para ouvi-lo, como neste instante.

Atravesso a rua e me aproximo da plateia; crianças e adultos sentados na grama. Ele me reconhece. Cumprimento-o com um aceno. Ele dá uma piscadela e encosta o indicador no nariz me pedindo para manter o segredo. Meneio a cabeça assentindo.

Depois de pigarrear mais uma vez, abre o livro e começa a contar, elaborando gestos e expressões faciais para cada momento da história. Sua voz, embora rouca e um pouco enfraquecida, tempera com sabedoria cada palavra. Crianças e adultos, literalmente, viajam nas histórias.

Ao fim da oratória, recebe aplausos e outras manifestações de carinho. E vai embora.

Dentro de mim, o menino continua maravilhado. Dentro de mim, reina o segredo inviolável: ele é analfabeto e conta histórias guardadas no coração,

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Fernando Vasconcelos (Tertúlia da Saudade)


Ante a montanha serena,
é que o homem vê, com certeza,
como a criatura é pequena;
como é grande a natureza.

Ao criar toda grandeza,
em seu divino mister,
querendo amor e beleza,
Deus se esmerou na mulher.

A trova é coisa sucinta,
toda glória ao inventor...
só com pouquinho de tinta,
eu posso falar de amor.

Corre o homem a toda brida.
buscando mil emoções...
é cavalo de corrida,
no prado das Ilusões.

Deus deu ao Norte a salina,
para o cabra ter, quiçá,
no rigor de sua sina,
bem pertinho no jabá.

Esta saudade é um jeitinho
de estarmos juntos, nós dois;
de reviver teu carinho,
já tantos anos depois.

Faça este bom sonho arder,
no fundo do coração...
quando o querer é poder,
desejo se faz ação.

Palavras são universos,
aqui mesmo está a prova,
ao prender em quatro versos
o infinito de uma trova.

Pelo espírito picante,
as salinas, com esmero,
em colóquio incessante,
vão dando aos mares tempero.

Preso nas encruzilhadas,
bem depois de tantas fugas,
rolam lágrimas cansadas.
por velhas trilhas de rugas.

Quem do verso tem a lida,
a trova trazendo a lume.
porta a lâmina da vida
e usa bem certo o seu gume.

Quem já viu só tem certeza
e guarda no coração...
não há uma maior beleza
que um olhar de gratidão.

Quis a vida minha sina
fosse loucura qualquer,
por estes olhos menina;
por este corpo mulher.

Sinta forte, queira fundo,
nada move mais a gente,
nas estradas deste mundo,
que puro desejo ardente.

Solidão, estado d'alma
que não tem definição...
quando temos toda calma
a gerar agitação.

Solidão, este vazio,
vil chuva de pranto, em vão,
com gosto seco de estio,
sem definir a estação.

Um clima que, então, existe.
lembre-se disso, ó irmão...
estar só não é tão triste.
quanto sentir solidão.

Um rico conhecimento
é certo e trago comigo:
para quem não vive atento,
o desejo é um perigo.

Vendo tão calma a montanha,
não traz suspeita a visão,
de que, em sua rude entranha,
pode dormir um vulcão.

Vento que ondula copadas,
nesta sina de viajor
leve, nas tantas jornadas,
as nossas trovas de amor.

Fonte:
Fernando Vasconcelos. Estou nascendo para a trova. Ponta Grossa/PR: Gráfica Planeta, 1994.

sábado, 5 de outubro de 2019

Carolina Ramos (O Leitor…)


Quando alguma ideia pula da mente para o papel, ou, melhor dizendo... Quando algumas frases aparecem na tela do computador, clicadas por dedos não tão ágeis; às vezes quando as ideias fluem, os primeiros leitores serão sempre os olhos do autor, críticos ávidos, prontos para descobrir o que pode ser dito de melhor maneira, o que pode ser cortado como supérfluo, ou tão somente o que pode ser amenizado com um pouco mais de bom senso. E como são exigentes esses dois leitores, que analisam com rigor aquilo que a mente deixou passar sem cuidados maiores, sem análise ou filtro, mantendo ainda a pureza de um retrato sem retoques, nada do que foi dito, sem alcançar ainda forma definitiva!

Só depois desse encontro definitivo com o autor o texto viabilizado terá passagem liberada para chegar a outros olhos, talvez até mais benevolentes do que os primeiros! As páginas, os livros e os versos levam dentro de si a alma de quem os escreveu. Toda obra, em geral, tem o efeito de catarse, nem sempre buscada, mas incontida sempre. Isto porque a sinceridade de quem escreve é sempre difícil de ser controlada, e, ainda mais, de ser disfarçada.

O leitor tem em mãos uma obra qualquer. Poderá folheá-la com certo interesse. Como poderá relegá-la, após esse folheio. Poderá ainda deixar-se prender, quase que inconscientemente, por aquele fio invisível que conduz a narrativa até o ponto final - marco inconfundível de vitória do autor!

A sintonia que une a mente de quem escreve à mente interessada de quem lê é o objetivo principal daquele que nasce fadado a fragmentar-se, a cada dia, em letras e sinais gráficos que espelham o que pensa, expõem o que deseja, na entrega de sua alma inteira a seres que sequer conhece, mas cuja existência o ajudam a manter viva aquela chama criativa que lhe garante a sobrevivência do impulso indispensável à ação de escrever.

E é justamente aí que a importância do leitor mais cresce. Quem escreve quer ser lido. E, portanto, quem lê é complemento indispensável ao estímulo e à perpetuidade da difícil arte da escrita. O leitor é testemunho público de que aquele escritor por ele prestigiado faz jus ao título que carrega, podendo até depois de morto ser considerado imortal, uma vez que suas páginas palpitam ainda em mãos de quem as encontrou numa estante, em formato de livro.

E esse alguém, ao ler aquele livro com carinho, salva o autor da triste penumbra do esquecimento, cruel e contumaz apagadora de nomes e memórias, a cada dia que passa.

Fonte:
Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IV


A brisa da madrugada
no silêncio rega a vida,
a relva toda orvalhada
brilha rejuvenescida.

Amor, sentimento raro,
hoje, tão pouco vivido,
para viver pede amparo
sem perder o seu sentido.

As cortinas do universo
pelo tempo são rasgadas,
nelas o bom e o perverso
têm visões diferenciadas.

As estrelas cintilantes
nos chamam mais atenção,
não só por serem brilhantes
mas pela grande atração.

Comodismo não fomenta
as bases do crescimento,
só com dinamismo enfrenta
quem se focar no fomento.

Devo sempre agradecer
a Deus pelo que hoje sou,
mas também reconhecer,
nobre lar que me adotou.

Do avestruz ao beija-flor
respeitemos cada qual,
não matemos por furor
só por ser irracional.

Entre as linhas do presente
sinto o tempo se esvair,
seu sinal mais evidente
é nossa força exaurir.

Jornadas, noites adentro,
lapidam nosso amanhã,
tendo à fé o sublime centro
e o trabalho por divã.

Livro, o que tens pra contar?
Lições provindas do autor?
Quando este não mais falar
fales por ele ao leitor...

Mesmo sem ser importante
faço parte desta estrada,
cada vez mais integrante
de uma longa caminhada.

Na rua, pobre menino,
clamando, pedia esmola,
mal sabia, o seu destino,
era estar em uma escola.

Nas florestas vemos tantos
passarinhos a encantar,
seus suaves, lindos cantos,
nos fazem também cantar.

O dinheiro compra tudo,
menos a temida morte,
não se atreva alguém, contudo,
investir naquela sorte.

O homem chora por amores
também chora de saudade,
chora quando sente dores
ou só de felicidade.

Olho para o firmamento
em noite toda estrelada,
me enche de contentamento
vendo estrelas e mais nada.

O incêndio quando começa
com tendências a crescer,
tão pouco resta que impeça
de a tragédia acontecer.

O zero quando ficar
à esquerda do numeral,
seu valor pode mudar
só se for um decimal.

Quando tudo está perfeito
nos resta ratificar,
se tiver algum defeito
melhor é retificar.

"Quem não vive pra servir
não serve para viver".
Isso nos faz refletir
sobre o nosso proceder.

Quem temer o sofrimento
pode sofrer duplamente,
a dor chega num momento
vai sumindo lentamente.

São perplexos os motivos
que deturpam tantas mentes,
deixam rostos aflitivos
com sintomas de doentes.

Se desejas alcançar
grande sol na vida tua,
lembra que deves passar
pelas estrelas e a lua.

Talvez com pouco dinheiro
compro o que me satisfaz,
mas não compro por inteiro
minha tão sonhada paz.

Tantas lutas acontecem
sem nenhuma munição.
Aranhas que teias tecem
só vencem pela traição.

Todo o percurso seguido
nesta longa caminhada,
nunca nos tenha servido
de tropeço pela estrada.

Use a sensibilidade
pra tornar a vida plena,
melhorando a sociedade
vai mudar o ecossistema.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Monteiro Lobato (O Plágio)


— Você sai, Nenesto, com um tempo destes?

— Não há outro.

— Dia de São Bartolomeu, inda mais?...

— Importa-me lá o santo.

— Está bem. Depois não se arrependa...

Isto dizia dona Eucaris ao “queixo-duro” do seu marido Ernesto d’Olivais, ao vê-lo tomar o chapéu do cabide para sair.

Fora, remoinhava o vento, anunciando tempestade próxima.

Por castigo, nem bem caminhara o teimoso duzentos passos e desaba o aguaceiro. Tão repentino que mal teve tempo de barafustar por um sebo adentro, no instante preciso em que o belchior cerrava a última folha da porta. Mesmo assim resfriou-se e foi com três espirros que retribuiu à saudação do homem.

— Atchim!...

— Viva!

— Atchim!…

— Viva!

— Atchim… Brr! Pra burro! Espirro pra burro. C’est le diable.

(Século trinta! Se por acaso um exemplar deste livro chegar ao conhecimento dos teus fariscadores de antigualhas, não se assombrem eles com a expressão curralina do meu Ernesto. Nem quebrem a cabeça a interpretá-la com ajuda da filologia comparada, da veterinária e mais ciências conexas. Cá fica a chave do enigma. A expressão “pra burro” viveu correntio pelas imediações da Grande Guerra, com significação de abundante, excessivo ou estupendo. Nascida nalguma cocheira, alargou-se às ruas e passou destas aos
salões. Penetrou até na retórica amorosa. Romeus houve que, pintando a formosura das respectivas Julietas, substituíram o arcaico linda como os amores por este soberbo jato de impressionismo cavalar: É linda pra burro! Não obstante, as Julietas casavam com eles e eram felizes. Lá se entendiam.)

O belchior era francês, e Ernesto taramelava na língua adotiva do senhor Jacques d’Avray o necessário para embrulhar língua com um belchior francês. Sabia diferençar femme sage de sage femme, distinguia chair de viande e alambicava a primor os uu gauleses. Além disso tinha ciência de vários idiotismos, usando amiúde o qu’est-ce que c’est que ça?; sabia de cor a história do Didon dit-on, além de uma dúzia de prosopopeias de alto calibre, forrageadas nos Miseráveis de Victor Hugo — o que já é bagagem glóssica de peso para um carrapato orçamentário com seis anos de sucção.

Tais conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar a paciência do livreiro, a quem Ernesto, em todo dia 2 de cada mês, tomava alugado um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.

Naquela tarde, porém, Ernesto não queria livros, sim um teto, razão pela qual falhou o usual encetamento da seca. (Esse ritual começava assim: Qu’est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?)

Fora, em rogougos sibilantes, o vento pulverizava a chuva.

Tinha de esperar.

Ernesto esperou. Esperou a remexer as estantes, a folhear revistas, a ler a meia-voz os títulos dourados. De longe em longe tomava dum volume e perguntava ao francês acurvado na escrituração de um livro de capa preta:

— Combien, monsieur?...

E a resposta do homem repicava invariavelmente:

— C’est très salé, c’est très salé, c’est très salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a atenção. Empolgou-lha, logo depois, uma brochura esborcinada: A maravilha, de Ernesto Souza.

— Olé! Um xará! Combien, monsieur?

O livreiro, sem maior atenção, rosnou qualquer coisa, enquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando maquinalmente o très salé... Leu-lhe o período inicial e o final, vezo antigo adquirido no colégio, onde colecionava num caderninho a primeira e a última frase de quanto livro lhe transitava pela carteira. A maravilha era um desses romances esquecidos, que trazem o nome do autor à frente duma comitiva de identificações, à laia de passaporte à posteridade, muito em moda no tempo do onça:

alfredo maria jacuacanga
(Natural do Recife)
3º- anista da Escola de Medicina da Bahia
ou
doutor cornélio rodrigues fontoura
Ex-lente disto, ex-diretor daquilo, ex-membro do Pedagogium, ex-deputado
provincial, ex-cavaleiro da Cruz Preta etc. etc.

Romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vingativos e virtudes premiadíssimas de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus — livros que a traça rendilhou nos poucos exemplares escapos à função, sobre todas bendita, de capear bombas de foguetes.

O período final rezava assim: “E um rubro fio de sangue correu do níveo seio da donzela apunhalada como uma víbora de coral num mármore pagão”.

Ernesto, né de Oliveira mas d’Olivais por contingências estéticas, enrubesceu de apolíneo prazer. E assoou-se, demonstração muito sua de entusiasmo chegado a ponto de arrepio.

— Sim, senhor! Está aqui uma frase soberba! “Como víbora de coral...”.

Magnífico! E este “mármore pagão”...

Foi ter com o monsieur e leu-lha “com alma”; mas o tipo, absorvido numa edição, miou apenas o oui, oui, sem sequer erguer a cabeça.

Ernesto não comprou o livro (não era 2 do mês), mas escondeu-o num desvão para que até o dia aquisitivo ninguém lhe pusesse a vista em cima.

Entrementes a chuva amainara.

Ernesto entreabriu a porta para a rua murmurejante e resolveu abalar.

— Monsieur, au revoir!

— Oui, oui — miou pela última vez o belchior.

Na rua endireitou para casa, ruminado que, sim, senhor, era ter fogo sagrado! Uma frase daquelas fazia um nome. O xará tinha talento. Bem dizia Victor Hugo nos Miseráveis que o gênio... é o gênio.

E foi pelo caminho a redizê-la com cariciosa unção, a remirá-la de todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a em surdina inúmeras vezes; pela forma, revendo o jeito com que a fixaram no papel os caracteres tipográficos; pelas correções associadas, evocando vagos helenismos clássicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cérebro a palmatoadas — Frineia, o cão de Alcebíades, as Termópilas, o barril de Diógenes.

Por fim, à noite, já a preciosa frase se lhe incrustara nos miolos, no lugar onde costumavam encruar as ideias fixas. Chegou a repeti-la à dona Eucaris. Mas dona Eucaris, uma criatura sovada, toda virtudes conjugais e preocupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:

— E você trouxe, Ernesto, o pavio de lampião que encomendei?

Ernesto d’Olivais arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia cólera, coisa rara em seu imo de amanuense gomoso e manso.

— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora, não me aborreça com histórias de pavio!

E voltando-se para o canto (que a cena se passava na cama) embezerrou.

O sono dessa noite não foi bom conselheiro, e no dia seguinte Ernesto andou pela repartição mais meditativo que do costume, com olhos parados — olhos de cobra morta que olham sem ver.

É que uma ideia...

Não era bem uma ideia ainda, mas células vagas, destroços vogantes de ideias mortas, lampejos de ideias futuras, coisas tão afins que ao cabo de três dias se englobavam numa ideia-mãe de imperiosa vitalidade.

— Escrever um conto, uma simples “variedade”, em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de alto estilo... Duas ou três personagens — não gostava de muita gente. — Um conde, uma condessa pálida, a cidade de Três Estrelinhas, o ano de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa de X pelo pintor Gontran —, gostava muito deste nome. A cena, já se sabe, passava-se na França, que nunca achara jeito em personagens nacionais, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha crescendo até engastar-se naquele final... oh, sim!... naquele final, porque, em suma, o conto só viveria para justificar a exibição daquela joia de “celinio lavor”. E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivais.

Esse remate furtado ao xará d’A maravilha insinuou-se aos poucos na consciência de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artística indiscutível.

A maravilha, ora! Um miserável caco de livro cuja existência ninguém conhecia...

Plágio? Como plágio? Por que plágio? É tão comum duas criaturas terem a mesma ideia... Coincidência apenas... E, além disso, quem daria pela coisa?

Ernesto era literato.

“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.

Ernesto não fugira à regra. Em moço, enquanto vivia às sopas do pai à espera de que lhe caísse do céu amanuensado, fundara A Violeta, órgão literário e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apolo e Minerva. Redigiu depois certa folha “crítica, científica e literária” com dois tt, O Combatente, que morreu aos sete meses, combatendo a gramática até no derradeiro transe. Compôs nesse intervalo, e publicou, um livro de sonetos, cuja impressão deu com o pai na miséria.

Incompreendido pelo público, que não percebia o advento de um novo gênio, Ernesto amargou como peroba da miúda, deixou crescer grenha e barba, esgrouviou-se, virou-se e disse cobras cascavéis do país, do público, da crítica, de José Veríssimo e da “cambada” da Academia de Letras. Citava amiúde Schopenhauer e Kropotkin, mostrando tendências para saltar dum pessimismo inofensivo ao perigoso niilismo russo. Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de guatambu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé:

— Vá ganhar a vida, seu anarquista de borra!

Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e afinal cavou o empreguinho. No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a seção “Conselhos Úteis” d’O Batalhador. Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A maravilha e patinhou como Hamlet no pego da indecisão, até que... Ernesto, em tiras de papel de Governo, lançou em belo cursivo um lindo começo bem arredondado:

“Era por uma dessas noites de abril, em que o céu recamado de estrelas lembra um manto negro com mil buraquinhos...”

Na roda de orçamentívoros que domingueiramente bebericavam o chá com torradas de dona Eucaris, todos afinados pela cravelha do Ernesto — vítimas imbeles da incompreensão —, o conto estampado n’O Lírio causou agradável surpresa. O João Damasceno foi o primeiro a dar-lhe um abraço num vai e vem de café.

— Olha, li o teu “Never more” n’O Lírio. Esplêndido! O final, então, divino! Tens miolo, meu caro! Pagas o chope?

Nesse dia Ernesto contou à esposa toda a vida do João, terminando cismático:

— É um caráter, Eucaris, um nobilíssimo caráter...

O capitão Prelidiano, chefe da sua seção, foi comedido e pausado como convinha à eminência do seu tamanco:

— Li o seu trabalho, senhor Ernesto, e gostei; termina com brilhantismo; continue, continue...

E o Claro Vieira? Fora brutal, esse.

— Que ótimo fecho arranjaste para o teu conto! O resto está pulha, mas o final é un morceau de roi!

O que nessa noite dona Eucaris ouviu relativo ao caráter baixo, infame e vil do Claro...

Ernesto entrou-se de receios. Pareceu-lhe que o Claro estava no segredo do “encontro de ideias”. Como medida de precaução deu busca aos sebos em cata de quanto exemplar d’A maravilha empoava por lá. Encontrou meia dúzia, adquiriu-os e queimou-os, com grande assombro de dona Eucaris, que duvidou da integridade dos miolos maritais ao vê-lo transfeito em Torquemada de inocentes brochuras carunchosas.

Mas nem assim sossegou.

— Quem me assegura não existirem outras, espalhadas aí pelas bibliotecas públicas? Se ao menos houvesse eu variado a forma, conservado apenas a ideia...

Fora audacioso, não havia dúvida. Fora tolo, pois não.

— Sou uma besta, bem mo dizia o pai...

Ernesto arrependeu-se do plagiato — sim, porque, afinal de contas, vamos e venhamos, era um plágio aquilo! Sua consciência proclamava-o de cabeça erguida, reagindo contra as chicanas peitadas em provar o contrário. E Ernesto arrependia-se, sobretudo por causa do “Dizem...” d’O Cromo. Constava ser Claro o enredeiro daquelas maldades — e Claro era impiedoso na mofina. Sabia revestir as palavras dum jossá urente de urtiga.

Fizera mal, sim, porque, afinal de contas, um plágio... é sempre um plágio.

Quando no domingo seguinte recebeu O Cromo, tremeu ao correr os olhos pelo “Dizem...”. Mas não vinha nada e respirou. No “Recebemos e Agradecemos” havia boa referência ao conto, muito elogiosa para o remate.

Também A Dalila desse dia trouxe algo: “O conto do senhor F. é um desses etc. etc. O final é uma dessas frases que chispam beleza helênica etc.”.

— O final, sempre o final! Estão todos apostados em fazerem-me perder a paciência. Ora pistolas!

Ernesto deblaterou contra os jornalistas, contra os amigos, contra os dez exemplares d’O Lírio em seu poder — dez arautos do seu crime. E queimou-os. Na repartição, a um novo elogio do Damasceno Ernesto rompeu desabridamente.

— Ora vá ser besta na casa da sogra!

Damasceno abriu a boca.

Nas palavras mais inocentes o pobre autor via alusões irônicas, diretas, claras, brutais. Num simples “bom dia” enxergava risinhos de mofa. O próprio capitão Prelidiano, honestíssima cavalgadura incapaz de ironias, afigurava-se-lhe o chefe da tropa.

Conspiravam contra ele, não havia dúvida.

Ernesto pôs-se em guarda. Fugiu dos amigos. Deu cabo do mate domingueiro. Não podia sequer ouvir falar em literatura, o assunto dileto de tantos anos. Emagreceu.

Dona Eucaris, meditabunda, matutava:

— Serão lombrigas?

E deu-lhe quenopódio às ocultas.

— Afinal...

Afinal? É o diabo ser a vida tão pouco romântica como é! Os casos mais interessantes descambam a meio para o mais reles prosaísmo. Este do Ernesto d’Olivais, por exemplo. Merecia fim trágico, duelo ou quebramento de cara. Quando nada, uma remoçãozinha a pedido. Mas seria mentir. Nem toda gente encontra, como Ernesto, remates de estrondo à mão.

É o caso deste caso.

Ernesto adoeceu, mas sarou. O quenopódio revelou-se um porrete para o seu mal. Depois, com o decorrer do tempo, esqueceu o plágio. Os amigos esqueceram o “Never more”. O Lírio morreu como morrem Lírios, Dalilas e Cromos: calote na tipografia. Ernesto engordou. Já é major. Tem seis filhos. Continua a fazer literatura — clandestinamente, embora. E, se encontrar a talho de foice um novo final de estrondo, plagiará de novo. Moralidade há nas fábulas. Na vida, muito pouca — ou nenhuma...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) IV


A lua minguante
Se energiza distante
Deitada no céu.
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Pra ela
Que era acostumada a plantar sonhos,
Cultivar meus carinhos
Foi algo bem fácil.
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Te visito todos os dias
Mesmo tendo que percorrer um longo caminho.
Que pena que pensas que sou um sonho,
E não percebes
Que sou eu que te acordo sorrindo.
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Enquanto a chuva caía
Muito me doía
Ao ver teus rastros
Se apagando na areia.
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Ao som da sineta
Desviei meu pensamento
Da dura linha do tempo.
Eu todo templo
Varrido de emoções,
No silêncio,
Sem relutar
Deixei vibrar o peito.
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No fundo dos meus olhos
Escondi aquele amor
Que com o tempo descorou.
Resgatando a identidade
Reforço o sorriso com a maquiagem
Encontrando-se comigo
Novamente eu estou.
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O amor dela era tão quente
Que até minh'alma se despia.
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A tua chegada é tão sublime
Que pouco me importa
As razões da partida
Com a mesma saudade de ontem
Te espero ansioso, minha querida!
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No banco vazio
Meus olhos enxergam saudades.
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Quando te entreguei meu coração
Era pra que tu morasses dentro
E não pra que levasses no adeus
Me deixando um vazio imenso.
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Pra te guardar
Como uma memória perfumada
Eu fechava os olhos
Mas abria o coração.
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Pra nos separar
Criaram um abismo entre nós
Só não sabiam eles
Que sendo almas gêmeas
Nosso amor era algo maior.
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E ela amava flores.
Por isso,
Todos os dias,
Eu me plantava em seu jardim.
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Pra tudo há um tempo.
Logo,
A vida é um eterno esperar.
Por ti,
Meus olhos ardem vigilantes
Chamas de velas vacilantes
Mas que não se apagam
Ao vento passar.
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Meu amor por ti
Era algo escancarado
Querendo ser achado
Deixei cair marcas no chão
Mas tu as desprezastes
Pois simplesmente achastes
Que eram apenas
Pequenas migalhas de pão.
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Embrulhadinha pra presente
Minha poesia diariamente
Ofereço ao teu coração
São gotinhas de homeopatia
Para alegrar teu dia
Ou despertar alguma emoção.
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Homenagem aos 196 anos de Jaguariaíva/PR

Minha Terra tem cachoeiras
Abundância de água há
Mas meus olhos se banham em lágrimas
De saudades que tenho de lá.
O cerrado se veste de flores
E os pássaros dão cor ao céu, ao voar.
Meu amor por ti é tão grande
Que só ao amor de mãe
Pode-se comparar.
Teus filhos repetem de longe:
Salve, salve, terra querida!
Jaguariaíva, Paraná.

Fonte:
Facebook da AVIPAF