sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Luiz Poeta (Pousada)


Chuva. Da janela, observava o tempo. As nuvens escureceram rápido, engolindo a montanha mais próxima. O vento varria o capinzal, sacudia as árvores, invadia o avarandado, arremessava gotículas prateadas na parede frontal do casarão.

Alheia às momentâneas intempéries, divagava. Deixava-se molhar pelos respingos. Era agradável perceber-se vulnerável. Cada gota escorrida era como  um dedo molhado acariciando-lhe a epiderme solitária de afetos.

O vento aumentou de Intensidade, a chuva agora era um chicote cristalino de infinitas pontas... Cerrou as básculas, acendeu a lamparina, dirigiu-se ao quarto na intenção de ressonhar a fantasia interrompida.

Reparou uma monótona e repetitiva goteira caindo do telhado. Pôs sob ela uma bacia, estendeu a mão buscando senti-la. Lá fora, a água descia morro abaixo em grossas torrentes, barrenta, impetuosa. Saltava o barranco e explodia na terra.

O barulho da chuva descendo nas calhas, o rumor do vento assobiando carências e medos, a goteira intermitente no recipiente improvisado, a cascatinha explodindo prata na solidão das pedras e os úmidos e avassaladores respingos deram-lhe um súbito prazer, fizeram-na, sôfrega,  comprimir os seios num louco suspiro de posses não possuídas.

Sonhava-o.

Caboclo... queimado pelo sol rural... olhos sedutoramente amendoados, felinos espreitando a presa, garras afiadas, quentes nas suas coxas na varanda, boca vulcânica, língua de chama no seu pescoço... réptil sem veneno acariciando-lhe os ouvidos trôpegos de murmúrios ardentemente dislálicos...

Sentiu todos os tremores num só arrepio.

Lanhou o travesseiro como se fora as costas dele, apertou-o entre os seios, ventre e perna, com volúpia, olhos cerrados, embevecida pela improvável possibilidade de tê-lo...

Bateram.

Pôs-se de pé num salto, as mãos ajeitando o vestido, cobrindo o peito seminu, mexendo nos grampos - um na boca mordida. Tentou recompor-se.

Abriu a porta do quarto quase refeita do êxtase solitário, dissimulando uma trôpega naturalidade, disfarçando a prazerosa tontura provocada por uma incontrolável carência afetiva.

- O que foi? - perguntou sonolenta.

- Alguém lá fora - respondeu a irmã mais velha - pede pousada até a chuva passar.

- Quem? - Não conheço, disse que veio de longe, a cavalo.

- Espera que eu vou ver.

Encaminhou-se à sala, entreabriu a janela, os cabelos soltos no ombro nu sob a camisola.

O moço aguardava. Abriu a minúscula portinhola de vidro, Olhou-o cautelosamente. Perscrutou-lhe o perfil com atenção... Tremeu dos pés à cabeça.

Impossível! ...mas aquele homem era o caboclo que sonhara naqueles instantes pregressos, filhos de uma nebulosamente passional eternidade.

Entreabriu, a custo, a porta de madeira maciça.

- Moça... galopei a noite inteira na chuva... estou com muito frio... será que a senhora poderia...

O homem não completou a última frase.

A jovem e sôfrega mulher não disse c nem poderia dizer nada... o ímpeto não deixaria.

Num átimo, apenas deixou-se mergulhar na sedução do abismo daquele peito molhado pela chuva que súbita e providencialmente aumentara.

Aquela noite chuvosa seria longa... maravilhosamente longa.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo escritor.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 139 (corrigido)


Monteiro Lobato (O Reformador do Mundo)


Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de pôr defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.

– Asneiras, Américo?

– Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule de uma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

– Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf!, uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão malfeito assim. E segue para casa refletindo:

– Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-Pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida afora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Araceli Rodrigues Friedrich (Canteiro de Trovas)


Abraça, menino, o estudo;
procura, encontra o saber:
– Que ele te sirva de escudo
na luta do bem viver.

A brisa leve me traz
um laivo de teu perfume;
mas esse fato é capaz
de acirrar o meu ciúme.

A chuva lenta que cai,
da nuvem que se desfaz,
a terra encharcando vai
e a seara se refaz.

A felicidade é um triz
que passa, assim, de repente
mas eu para ser feliz
empreendo uma luta ingente.

A goteira impertinente,
ao cair do meu telhado,
incomoda muita gente,
por deixar tudo molhado.

Amizade não se mede
pela distância, pois não!
Na verdade ela só pede,
morar no meu coração.

Ao compor a minha trova
terno desejo me invade,
querer dar-te minha prova
de uma sincera amizade.

Ao contemplar as estrelas
no firmamento de anil
não as encontro mais belas
que as do céu do meu Brasil.

Ao perceber o desprezo
estampado em teu olhar
meu coração, que está preso,
quero do peito arrancar.

Ao ver como é imponente
aquela árvore esguia
esqueço a humilde semente
que lhe deu a vida um dia.

Aquela grácil menina
que tanta beleza encerra,
possui origem divina:
– Foi Deus quem a pôs na terra.

Aquele que ama, perdoa,
eis uma grande lição,
veja quão doce é que soa;
– Sim, eu te perdoo, irmão!"

A saudade é sentimento,
amargoso como fel;
mas há sempre um bom momento,
em que é doce qual um mel.

Assim como é conhecida:
- Ser da instrução a mais pura,
Curitiba nesta lida,
é a "Capital da Cultura".

Às vezes, pensando eu fico
e este pensar me consome...
Como é que em país tão rico
existe quem passe fome?

Às vezes tenho vontade,
de voar pelo infinito:
- É quando sinto saudade
do teu rostinho bonito.

Atento e não mais duvido,
maior orgulho não há,
que ver meu nome incluído,
na UBT do Paraná!

A vida tenho levado,
em fazer umas poesias
que, mesmo com pé quebrado,
dão-me muitas alegrias.

Cismando eu te vi tão lindo,
rezando junto ao altar,
que tive desejo infindo
de correr pra te abraçar.

Coisas que faço e refaço
e, às vezes, digo, também,
não são causa de embaraço
mas a defesa de alguém.

Com a grande pretensão
de ser poeta algum dia
vivo de lápis na mão
tentando fazer poesia.

Com entonação discreta
e com letrinhas, só três,
assim inventou o poeta,
maior nome em português.

Deputado diz "fazido"?
Não me assusto, não senhor;
ele não deve ter tido
um sábio e bom professor.

É bem feliz quem na terra,
vive nas lides da paz,
esquivando-se da guerra,
é de amor tudo o que faz.

É mais difícil na vida,
você subir que descer,
mas não esqueça, querida,
a glória está no ascender.

Em lindas trovas singelas,
eu procurei me inspirar:
- Lendo-as tão simples e belas,
não consegui versejar,

Em vez da palavra guerra
que tanta desgraça traz
devia existir na terra
somente a palavra PAZ!

Enquanto orares não digas
simples palavras ao léu,
pois elas são inimigas
no caminho para o céu.

Eu busco a felicidade
por este mundo sem fim,
mas vejam quanta maldade
– Ela só foge de mim.

Eu gosto de ler quadrinhas,
as que eu fiz e as que não fiz,
pois mesmo as que não são minhas,
também me fazem feliz!

Eu juro! Digo a verdade,
não estou sendo revel...
falando: -"Felicidade"
sinto um gostinho de mel.

Eu perdi a liberdade,
de te adorar, ó querida,
no momento em que a saudade
acorrentou-me na vida.

Eu quero beijar, querida,
seus lábios cor de carmim,
para que, sempre na vida,
você só lembre de mim.

Hoje me punge a saudade
dos dias em Porto União:
ali deixei amizade...
sonho… ternura... ilusão...

Hoje, no romper da aurora,
fui meu relógio acertar;
prevendo ter, ó Senhora,
mais tempo pra Te adorar.

Menina, faça um versinho,
escrito com muita graça,
tendo no enredo o carinho
que muito feliz me faça.

O dia é pleno de sol
à noite a lua ilumina
e quando surge o arrebol
já penso em ti, ó menina!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Noberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Tupinambá: A Vingança de Maire-Pochy)


Apesar da nobre ascendência de Monan, Maire-Pochy, por alguma desgraça do destino, nascera voltado à infelicidade. Além de servo do cacique, ele era feio e corcunda.

Maire-Pochy gostava de pescar, e certo dia trouxe do rio um belo peixe. Ao vê-lo, a filha do seu amo lambeu os lábios de apetite.

– Que beleza! Tudo faria para saboreá-lo!

Maire-Pochy correu logo a preparar, ele mesmo, o belo peixe no moquém (espécie de grelha). O peixe devia ser muito especial, pois tão logo a jovem o comeu, ficou grávida. O menino nasceu com uma rapidez inaudita, e logo o pai da jovem quis saber quem era o pai da criança.

Mas ninguém se apresentou, o que obrigou o cacique a ter uma conversa com o pajé.

– Os miseráveis estão calados, e ninguém quer assumir a paternidade! – disse o morubixaba. – Como hei de saber quem é o pai da criança?

O pajé, porém, que tinha receitas para todos os males, tinha uma também para este.

– É fácil descobrir – disse ele, com uma empáfia serena. – Reúna todos os homens da tribo e os faça desfilar diante da jovem portando seus arcos. Quando o verdadeiro pai se apresentar, a criança tocará o seu arco.

O cacique fez como o pajé dissera, e todos os homens saudáveis da tribo desfilaram diante da jovem com o bebê ao colo. Mais de cem índios, de todos os tamanhos, passaram à frente do bebê, mas ele não tocou o arco de nenhum deles.

Então, o terror cresceu na alma do cacique.

– Será Anhangá, o espírito mau, o pai da criança?

Mas, quando todos já estavam se dispersando, o pajé gritou:

– Esperem! Faltou Maire-Pochy, o corcunda!

Um coro de risos explodiu entre os índios.

– Está brincando? – exclamou o cacique ao pajé.

– Ele é um homem saudável, apesar da aparência – disse o pajé. – Que desfile também!

Então Maire-Pochy desfilou diante da índia e de seu bebê. Assim que ele passou diante dos dois, portando o seu arco, o garoto esticou o bracinho e fez vibrar a corda.

Um som parecido com o da harpa soou, fazendo calar a tribo inteira.

– Afronta e vergonha! – gritou o morubixaba, fuzilando a filha com os olhos.

No mesmo dia, o cacique ordenou que a tribo inteira partisse daquele lugar, abandonando a filha e o neto junto com Maire-Pochy.

– De hoje em diante, não tenho mais filha! – esbravejou o cacique, antes de partir.

Desde aquele dia, a taba florescente converteu-se numa taba-fantasma, habitada apenas pela mulher, a criança e Maire-Pochy. Mal sabia, porém, o cacique que, ao partir, levara consigo uma maldição, pois nas novas terras verdejantes onde a tribo se instalou não crescia mais um único talo de erva, a água havia secado e toda a criação perecera.

– Isto só pode ser uma maldição de Maire-Pochy! – disse o cacique.

Nas terras onde haviam permanecido o corcunda e a índia, tudo continuava às mil maravilhas: as plantações brotavam por si mesmas, a água corria fresca e estuante e os animais procriavam como coelhos.

Ao saber dos infortúnios do cacique, Maire-Pochy mandou dizer a ele que poderiam vir abastecer-se nas terras onde agora era o senhor.

– Maire-Pochy diz que não guarda mágoa alguma – disse o emissário ao cacique.

O morubixaba pensou um pouco e disse:

– É, não tem outro jeito, vamos ter de nos humilhar diante daquele miserável!

Então apresentaram-se diante do corcunda e da jovem.

– Abasteçam-se de tudo quanto quiserem – disse Maire-Pochy , com um ar piedoso.

Os esfomeados se lançaram à comida farta, espalhada por dúzias de moquéns. Ao experimentarem os pitéus, no entanto, sobreveio imediatamente a desgraça, pois tudo não passava de uma armadilha. Logo todos começaram a se converter em porcos, em grilos e em maracanãs (espécie de arara menor, de plumagem verde). O cacique se converteu num jacaré, enquanto sua esposa virou uma tartaruga.

Cumprida a vingança, Maire-Pochy fez como o seu antepassado Monan e subiu às nuvens, para nunca mais retornar à Terra.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas

Projeto Apparere (Lançamento da Coletânea de Natal)


Apresentamos a Coletânea de Natal do Projeto Apparere. Esta é uma coletânea de Contos, Crônicas, Poemas, Roteiro falando sobre o Natal e suas diferentes facetas. Momentos bons ou talvez não tão bons vividos no dia de Natal, mas certamente um momento inesquecível.

Essa é nossa vigésima quarta Coletânea e nela o leitor encontrará os 52 melhores textos (na percepção dos julgadores) dentre 98 inscritos. O tema desta Coletânea foi sugerido por Renata Pereira Gonçalves e Luiz Loureiro; e escolhido dentre várias sugestões. Como nas coletâneas anteriores, a Capa desta obra desenhada por Adriano Vox é a capa escolhida pela maioria dos Autores que se inscreveram na coletânea, dentre 2 (duas) inscritas para participar da seleção. Continuamos com nossa política de termos em nossas Obras a participação democrática não só de Escritores, mas também de Designers e Leitores.

Autores selecionados para esta coletânea

Adnelson Borges de Campos
Adriana Ferreira da Silva
Airton Rodrigues
Antônio C. S. Santos
Antonio Stegues Batista
Aucenir Gouveia
Brenda Sales
Caio Fraga
Caliel Alves
Camila dos Santos Santana
Cárlisson Galdino
Carlos José Ferreira Lopes
Carlos Marcos Faustino
Danilo de Oliveira Pessôa
Divino Antonio
Edilma Maria da Silva
Elio Moreira
Fátima Alves
Garbo Nael
Gil Nascimento
Gilberto de Guedes Vaz
Ilma Pereira Nunes Moreira
Ivan de Oliveira Melo
Jairo Alves
Jorge de Palma
José Feldman
José Luiz Teixeira da Silva
Júlio César Freid'Sil
Juna Guimarães
Kelly Cristina Araujo
Kleyser Ribeiro
Laércio Vieira
Lenilson Silva
Léo Guimarães
Leomaria Mendes Sobrinho
Luiz Loureiro
Marcelo Oliveira
Marilia de Souza Abduani
Mauricio da Costa Carvalho Vidigal
Miguel Jorge da Silva Fortes
Mirelle Cristina da Silva
Neri França Fornari Bocchese
Roberto de Jesus Moretti
Roberto Minadeo
Rodrigo Mendes
Roger Ribeiro
Rosa Acassia Luizari
Sergio de Souza Merlo
Tainá Custódio
Tarique Layon Lima Vilhena
Thiago Sabino Leite
Valéria Guerra Reiter

Fonte:
http://www.apparere.com.br/venda-coletanea-natal.php

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Vinicius de Moraes (Broto alegre, "coroa" melancólica...)


Elas se atarefavam, mãe e filha, nos últimos preparativos para a festinha. Iam ser uns quarenta ao todo, entre meninas e meninos, como sempre esfaimados, e a mãe não poupara nas comidas e sobremesas para os que iam comemorar os 16 anos de sua queridinha. Esta, excitada com a movimentação, ordenava agora os discos por ordem de popularidade. O barril de chope acabara de chegar, e os homens instalavam a serpentina que deveria mantê-lo bem gelado. A filha lançou um último olhar à sala enfeitada de flores e depois correu a beijar a mãe, que, emocionada, fingiu não dar por isso, ocupando-se com a arrumação de um vaso.

- Você é um devaneio! - disse-lhe a menina. - A garota mais legal que eu conheço.

- Pois é... - suspirou a mãe, disfarçando. - Acho que não falta mais nada.

A filha coçou a cabeça, franzindo um pouco a testa.

- Você acha que esse negócio de chope vai dar certo? Não é meio... antiquado, meio devagar? Será que os caras não vão me gozar?

- Que é isso? Tenha personalidade! No meu tempo era o que se usava, para as festas maiores. Sai tão mais barato... Imagina dar uísque a essa gente toda... Era só o que faltava! E depois, custa mais a dar pileque.

- Bem, eu tenho uísque escondido para o Marquinhos e o Ronaldo, que são do peito. Os outros vão pensar que é guaraná.

A mãe parecia, de repente, perdida em recordações.


- Era sempre chope... A não ser, naturalmente, nos grandes dias, quando seu avô abria vinho e até champanha...

- Devia ser o auge do troço quadrado - comentou a filha distraidamente.

- Não tinha nada de quadrado, não senhora! A gente se divertia muito mais, em lugar de ficar se matando com essas danças malucas de vocês. Eu me lembro, por exemplo, quando fiz 18 anos. Tinha leitão assado, galinha ao molho pardo, frigideira de siri, empadas de camarão... você nem imagina! Sobremesas, acho que eram umas dez!

- E vocês dançaram?

- Se dançamos! Seu avô mandou contratar especialmente a orquestra de Nelsinho e seus Turunas. Era o que se chamava, então, uma jazz band. Tinha uma música que eu adorava... como é mesmo? Ah, já lembrei... Chamava-se "Carabu":

O minha Carabu
Dou-te o meu coração
La-ra-ra-ra-ra-rão
Tu, somente tu
Minha Carabu!

- A melodia é bacaninha, mas a letra parece uma bomba. Como é que você estava vestida?

- Ah... - e a mãe deu uma meia-volta de modelo para mostrar - eu tinha um vestido mauve rosé até aqui: bem curtinho. Foi a moda precursora do Courrèges. Sapatinhos meio-salto, mordorrés, meias com liga de elástico, e rococós.

- Rococós? Que troço é esse?

- Nada, sua boba. Eram duas rosinhas de cetim que se punha na frente das ligas, para ficar bonitinho se alguém por acaso visse, sabe… O cabelo era assim meio de taradinha, como andam usando de novo. Só que a gente fazia pega-rapaz, umas vírgulas de cabelo na testa e dos lados. E a boca era pintada em forma de coração. Ah, ia me esquecendo: punha-se sempre um sinal preto um pouquinho abaixo do olho, o grain de beauté. Eu usava um produto chamado Sardalina, para disfarçar um pouco as sardas, e a gente escovava bem os dentes com pasta Diamant vermelha, para ficar com as gengivas rosadas. Na mão só se levava uma pequena trousse: a minha era linda, de ouro, que mamãe tinha me dado. Um leque japonês também tinha seu lugar, mais para as senhoras. Nos olhos se usava Kohl, uma pasta preta: ficava lindo!

- Imagino... - disse a menina.

- É sim! Quando a orquestra ia embora, passava-se para o gramofone. E no final da noite faziam-se jogos de prenda. Esconde-esconde seu avô não deixava, por causados beliscões que os moços davam.

- Ninguém puxava um fumo?

- Se alguém fumava? Havia quem fumasse, mas escondido, para os pais não verem. Imagina se alguém ia ter coragem de fumar diante de seu avô...

- Você não entendeu... Eu perguntei se alguém fumava maconha, ô quadradona!

- Você está louca, menina! Você tem cada idéia! Isso são loucuras dessa mocidade de hoje. Mas em compensação eu tinha um namorado, logo antes de seu pai, que tocava ukelele!

- Tocava... o QUÊ?

- Ukelele, ora essa! Muito bonitinho. Vocês por acaso não tocam todas essas bobagens de iê-iê-iê e não sei mais quantas? Meu namorado tocava ukelele. E muito bem até!

A menina correu para dentro, as mãos tapando a boca de tanto rir.

- Essa não! Essa não!

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969.

Argentina de Mello e Silva (O Bom Humor nas Trovas)


A criança encanta, enleva,
mas, com seu ar inocente
quando a gente crê que a leva
ela está levando a gente!

A mulher fala a verdade
(sem hesitação nem briga)
se lhe perguntam a idade,
não a sua… mas, da amiga!

A mulher tinha a mania
de achar coisas no abandono,
até que encontrou um dia
um apartamento sem dono.

À pintura antiga e eterna
hoje chamam de caduca.
Mas quem gosta da moderna
deve ser “lelé da cuca”.

“Aqui jaz na lousa fria
o José João da Espinhela”
(Foi ao encontro de Maria
e encontrou o marido dela).

Briga tanto o Zé Noronha
com a esposa – que o filhinho,
por vingança da cegonha
sai a cara do vizinho.

Casa a Maria do Céu…
e que grande trapalhada…
porque segurando o véu
segue toda a filharada!

Coleantes, envolventes,
há mulheres perigosas.
Mas, também, como as serpentes
nem todas são venenosas.

Com seu destino sofrido
nunca a mulher colabora:
chora por não ter marido
e quando tem… também chora!

Curitiba é uma risonha
cidade de muito brio,
porque o amigo da vergonha
é aqui chamado: Frio!

Diz a mulher ao marido
(velho, bem intencionado)
“daqui a meses, querido
vai nasceu teu enteado”.

Era Amélia. Ele quisera
ter mulher assim somente,
até saber que ela era
a Amélia de muita gente.

É triste lembrar (se é!)
e à nossa vaidade ataca:
que o homem foi chimpanzé
e a mulher já foi macaca…

Falam tanto mal de sogra,
muitas vezes sem razão;
pois no paraíso a cobra
não era sogra de Adão.

Hoje a moda, com jeitinho,
tapa apenas de relance.
Se despenca o tal trapinho?
“honi soit qui mal y pense”! *

Homem velho, ainda matreiro,
por qualquer mulher se engraça.
Mas é só cão perdigueiro:
corre atrás, não come a caça.

Mesmo que ele seja “um pão”
quando se torna marido,
ela tem indigestão:
como enjoa o pão dormido!

Moça moderna, a Clarisse,
com seu ar desinibido,
quanto mais cresce em burrice
mais encurta seu vestido.

“Não tem profundeza a trova”
disse alguém – profunda asneira!
Se há muita poesia nova
mais rasa do que peneira!

No enterro de seu Pessoa
há um aviso aos ignotos:
“ Favor não trazer coroa,
só ramos cheios de brotos”.

Nua, a Godiva, coitada!
Causou surpresa incomum;
ver hoje mulher pelada
não causa “suspense” algum.

O casamento é um remanso
início de um doce lar,
onde ele vai pra descanso
e ela pra trabalhar!

O homem pensa, sofisma,
cria problemas, dá murro.
O burro, calmo, nem cisma,
qual é, dos dois, o mais burro?

Paquerador o Andrada
na moto ele tanto ronda,
que até a Maria Quadrada
já está ficando redonda.

Qualquer dia Dona Lua
diz ao ianque que a aporrinha:
“ Fica, bicho, lá na tua
que eu também estou na minha”.

Quem tem mulher monumento
e vizinho por ali…
lembre o antigo testamento:
mate primeiro o Davi.

Se o julgamento ao alheio
se estampasse na fachada,
o mundo estaria cheio
de muita cara quebrada.

– Seu Delegado examine
o que da luta sobrou;
– Qual foi o móvel do crime?
– Isso o morto não falou.

Tanta pílula espalhada…
tanta gente sem-vergonha…
que uma lei foi promulgada
dando férias à cegonha.

Treze pontos, bem contados,
na esportiva, que alegria!
Mas, depois, mil afilhados,
quem deles me livraria?

Vai a Paris, por capricho,
e volta esnobando a dona:
“ Fui ao Louvre. Quanto bicho!
Mas não era “lisa a mona”.
_________________________
Nota:
* Honi soit qui mal y pense é uma expressão em francês que significa Envergonhe-se quem nisto vê malícia, muito usada em meios cultos. Também é o lema da Ordem da Jarreteira, comenda britânica criada pelo rei Eduardo III de Inglaterra, no tempo das Cruzadas. E um dos lemas do Reino Unido, estando estampado em sua bandeira.

Diz a lenda que, em 1347, durante um baile, a Condessa de Salisbury, amante do mesmo Eduardo III, perdeu a sua liga, azul. O Rei mais que depressa recolocou-a, sob o olhar e sorrisos (cúmplice) dos nobres. O Rei grita então (em francês, que era a língua oficial da corte inglesa) "Messieurs, honni soit qui mal y pense! Ceux qui rient en ce moment seront un jour très honorés d'en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement." (Maldito seja quem pense mal disto! Os que riem nesta hora ficarão um dia honradíssimos por usar uma igual, porque esta liga será posta em tal destaque que mesmo os trocistas a procurarão com avidez).

No dia seguinte cria a ordem da Jarreteira, tendo como símbolo uma liga azul sobre fundo dourado, que ainda hoje é a mais prestigiosa ordem do Reino Unido, tendo somente 25 membros e cujo Grão Mestre é o monarca da Inglaterra. (wikipedia)

__________________________
Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

ALTO e IHGM (Noite do Café-com-Letras, 14 de dezembro)


A Academia de Letras de Teófilo Otoni e o Instituto Histórico e Geográfico do Mucuri têm a honra de convidar Vossa Senhoria e família para a sessão especial denominada Noite do Café-com-Letras, com a seguinte programação:

Lançamentos literários:

Somos todos mais de um: Reflexão e Poesia
Luciano José Schirmer de Oliveira

Diário de um menor abandonado
Salvador Araújo

Contestado: Embate fraticida entre Minas Gerais e Espírito Santo
Administração de Recursos Materiais e patrimoniais: um enfoque prático
Wallace Gomes Moraes

Herdeiros das origens: um estudo das relações entre arte erudita e arte popular
Rasgos na Alma: ode ao Vale do Rio Doce
Edileila Portes

Transcenda: superando seus limites
Marcélia Aguiar Ferreira

Revista Literária Café-com-Letras
Tema: Palavra, espelho de emoções

IHGM: 
Lançamento da Coleção Resgate da Memória: Livros Essenciais

Edição digital:
Notas Históricas do Município de Theophilo Ottoni
A Bandeira de João da Silva, o Mestre de Campo, o Todos os Santos e os selvagens do Mucuri
Reinaldo Ottoni Porto

100 anos de colonização alemã em Teófilo Otoni
Max Roth

A Circular aos eleitores mineiros
Theophilo Benedicto Ottoni

Recepção e posse de sócia correspondente do Instituto Histórico
Edileila Maria Leite Portes - Governador Valadares/MG

Entrega de Cestas Literárias
Instituições da área da educação e cultura do município e Região

Homenagens Especiais

Data: 14 de dezembro de 2019 (sábado)
Horário: 19:00 horas
Local: Plenário da Câmara Municipal

Aluísio de Azevedo (Casas de Cômodos)


Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquece; um tipo digno de estudo - é o "dono de casa de cômodos"; mais curioso e mais completo no gênero que o "dono de casa de jogo"; pois este ao menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir à glória, ao passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo, isento da pecha de mal procedido.

Quase sempre forasteiro, exercia dantes um ofício na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas, percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do ofício e de fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casario de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora o verás!

Como na Capital Federal há mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cômodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efêmeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios, limpa-trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa pobre gente, rara quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.

Mas, por entre a aflita farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boêmio.

O poeta boêmio é para o alugador de cômodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta boêmio vive da desgraça e da glória de ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora, kneippeando* pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos coradouros das lavadeiras em fúria.

Esse é o anjo mau da casa, o terror dos vizinhos, o mal querido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta coisas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem.

Esse nunca paga.

Mas que importa o calote de um boêmio, cujo quarto era pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinquenta e os cem mil réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cômodos pagar o aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?

E assim vai vivendo o esperto forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para ele.

Lá um belo dia de fim de mês, um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha, e o lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre um segundo estudante, e um terceiro e um quarto seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo Correia, o voo do companheiro e cá vão ficando no pombal as meias cômodas, as estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior*. E outros, e outros inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto

Não já pela janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como despojo de luta, os trecos que constituíam a sua mobília.

Então, o dono da casa de cômodos começa a anunciar "Quartos mobiliados" e começa a cobrar aos novos hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.

São sempre os inquilinos quem guarnece de móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama "Casa de pensão" só vai um passo, e a coisa faz-se quase sempre do seguinte modo: - Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os aluguéis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.

Entre estes há sempre uma quitandeira de quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.

Assim chega a empresa ao seu completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso, acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um dia, farto de aturar o Brasil, passa com luvas o estabelecimento e retira-se para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a preciosa quitandeira ao seu substituto.

E, quando algum dos inquilinos fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos em "sua casa".

Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma coisa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como verdadeiro dono.

Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da "sua casa", vá, mas nem isso acontece, porque quando os inquilinos são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.

Entrássemos lá agora, neste instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clichês. E, se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos escritórios de todos os gêneros.

Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o locador? O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, a babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez: "Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à caça!"

Todavia, certo é que dentre toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social em nosso meio.

Será justo? Não sei, mas. parece-me que o direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.

Que diabo! não vale a pena fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!
__________________
Glossário
Belchior - brechó.
Kneippeando - palavra derivada do alemão, frequentando tavernas, bares, botequins.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Contos. Biblioteca Virtual.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 138


Carolina Ramos (Pretensão)


Peguei o papel, a caneta e sentei-me ao lado da máquina, disposta a escrever. A hora da compulsão não pode ser desperdiçada, que as coisas que vêm nem sempre voltam.

O Natal aproximava-se. Época em que as mãos femininas, solicitadas em demasia, deixavam-se levar pela absorvência dos afazeres domésticos, a ver escapar por entre os dedos o tempo roubado às repousantes fugas do espírito. Antes que a exaustiva faina do limpar, arrumar, coser, enfeitar e servir, começasse, permitia-me algumas concessões, como se criar e escrever fossem guloseimas antecipadas.

A máquina engoliu a folha de papel, devolvendo-a imaculada do outro lado do rolo, vítima indefesa da agressividade tecnológica a ser acionada pelos meus dedos. O hábito de escrever quase sempre diretamente à maquina, desta vez fora relegado. Decidia-me pelo rascunho. O pretendido conto natalino merecia especial esmero.

Procurava a ponta, o resto viria por si. Teria de ser um conto realmente muito especial, que falasse daquela noite azul, de sublimidade mágica. Única, sem igual! Noite plena, cheirando a incenso, com sussurros de vozes angelicais veladas por emoção indescritível a ser perturbada apenas pelo balido dos cordeiros, pelo coruscar de miríades de estrelas e o ruflar de asas de arminho. Noite em que até as pedras, mudas e frias, pareceriam ter ganho vida, personificadas ao toque do momento redentor. Momento ímpar, profundamente decisivo para o futuro da humanidade! Noite de paz! De paz absoluta!

Ah... eu queria um conto que falasse da chegada do Menino Deus e que o perfume da humildade O apresentasse feliz em Seu leito de palhas, envolto em panos rústicos, acalentado pela insignificância, docilmente assumida, daquele jumento de orelhas longas e pela ruminante meiguice de uma vaquinha mansa.

Mas para isso, eu queria, com urgência, verbo de ouro e pena brilhante para descrever com fidelidade a inocência do sono do Menino-Luz, velado pela ternura da Mãe-Pureza e pela nobre solicitude do Esposo castíssimo, lídimo modelo de bondade e compreensão!

Ah… sim. Eu queria escrever não um conto qualquer, vivenciado por personagens banais do dia-a-dia, mas, algo transcendental, que há muito fervilhava em minha cabeça, sem encontrar fórmula ideal... nem palavras dignas, dentro daquela perfeição que a mim mesma, pretensiosamente, impunha.

E, afinal... a frustração inevitável: — eu queria... sim, eu queria tanto... e tanto exigia de mim que, definitivamente acabei por não escrever coisa alguma!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 2


LÍRICA Nº 13
   
Afinal me surpreendo
de que ainda insista,
ainda tente.
O que? Se nada adianta.
Se tudo se desfigura
nem bem arranco do coração
e exponho em palavras...
__________________________
LÍRICA Nº 14
   
Exatamente neste instante, que farás? Estarei em ti,
envolvendo-te e conduzindo-te, como estás em mim
neste halo de angústia que é a tua falta ao meu redor?
__________________________
LÍRICA Nº 15
   
Ficaste nua em meus sentidos.

Lembro-me que eras friorenta
e sinto frio por ti.

Em vão tento cobrir-te com a saudade,
falta o amor.
__________________________
LÍRICA Nº 17
   
Se não mentes, como não minto
quando te tenho nos braços
- chega! Para que mais "por quês"?

Para que culpar a Deus
se do mesmo barro nos fez?
__________________________
LÍRICA Nº 18

Não. Não te entenderei. E na verdade
já nada mais importa.

A vida para mim é um intérmino solo...

Como poderei te entender, se me trazes agora
morto, nos braços,
o mesmo amor que há pouco, em beijos, embalavas,
e aconchegavas ao colo?
__________________________
LÍRICA Nº 21

I
Difícil compreender
como se acidulou o que era puro mel...
Tu que eras toda amor, ternura e sonho,
num momento te tornaste
fria, cruel.

II
(Em vão tento gritar ao sofrimento
que me suplicia: basta!)

Até hoje me pergunto a razão por que tu, que eras
a crente humilde e fiel,
de repente, te tornaste a iconoclasta?
__________________________
LÍRICA Nº 23
   
E quem diria, amor, que ao amanhecer
não nos reconheceríamos,
nós que até como cegos
antes nos encontrávamos…
__________________________
LÍRICA Nº 26
                                                      
Não te desejo a felicidade.

Resta-me a inútil convicção
de que já a colhemos.
__________________________
LÍRICA Nº 27
   
Mereço tudo. Tinha de acontecer.
curvei-me tanto a este amor

que passaste por cima,
sobranceira,
e acabaste por nem me perceber...
__________________________
LÍRICA Nº 28
   
Desmemoriados, enterramos este amor
em que lugar?

E ainda bem. Era amor que nasceu só para se viver,
não, para se lembrar.
__________________________
LÍRICA Nº 29
   
No fundo, não acredito que nos despedimos.

Apenas nos afastamos um do outro
por algum tempo,
para darmos ao destino a alegria de nos reencontrar.
__________________________
LÍRICA Nº 30
   
Em vão tento vingar em outras
o amor perdido.

Só consigo ir multiplicando
a tua falta.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Nilto Maciel (O Caso de Amo)


Eis que venho sem demora.
Ap. 22.7.

Mitologia

Gordo e corado carro parou no claro da esquina e dele saltou murmúrio suave de sereia, que penetrou as serenas ouças de bela menina. Sai dos escolhos destes velhos becos e vem provar o doce desta vida. Vem ver que eu tenho mais pra dar que pra tirar. O macio deste pássaro de ouro e o voo aventureiro de meu pulso. Vem, flor mimosa, molhar teu cheiro na brisa desta noite.

E tanto o canto sibilou que a pobre flor sorriu e para o carro entrou.

Embriaguez

Num bar qualquer, um magro, pálido e triste obreiro bebia umas e outras doses de aguardente. Falava da vida e da morte e cuspia blasfêmias nas pontas de cigarro, como se as fomes que os seus olhos viam pudessem ser saciadas com sonhos e ausências suas.

Escolhos

Fugindo das luzes e dos olhos, o carro corria feito criança, em busca dos ermos das praias longínquas. E de tanto buscar, vela que a doçura da fala embalava, a lua os iluminou entre o cansaço e a luta. E lhes deu paz pra guerra entre o espinho e a flor. E os derrubou no sujo gozo dos corpos nus.

Viagem

Pelos vapores do copo ido, o pálido obreiro no seu barraco aportou. A porta espancou e o choro fino da mulher ouviu. Nossa virgem sumiu pra rua ou pra lua, encantada por moço galante ou leite galático.

Ato

O velho barco na escuridão penetrava as profundezas do mar, em viagem tão de fúria que os olhos da lua se anuviavam. As águas de frias ardentes se fizeram e de vermelho se tingiram. Um grito mudo o sátiro pançudo espantou e fê-lo correr pra longe das areias.

Procuras

Nas vizinhanças e chefaturas a triste mãe e o magro pai toda a noite consumiram, perguntas fazendo e dúvidas deixando, nada encontrando parecido com uns cabelos longos, olhos castanhos, pernas bonitas, sorriso de flor e vestidinho de organdi.

Vagamundo

Girando no escuro da noite, o carro viu a cidade estertorar de cansada e rasgar os lençóis do sonho. Viu as fugas em fugas ligeiras e as estrelas mudarem de cor. E disse graças a Deus quando o sol piscou o olho entre as brancuras edificadas.

Alerta

Quando os galos suburbanos cantaram, os pais da menina perdida anunciaram aos filhos dormidos que procurassem debaixo das malas a irmãzinha escondida, pois nas ruas não havia nenhuma com ela parecida.

Primeiro

Antes que o porteiro chegasse, Amo abriu as portas do escritório. O vigia experimentou uma sensação de dormência muito mais forte que a sentida no decorrer do noturno serviço. Refestelou-se o patrão no gabinete e ordenou a si mesmo que não pensasse em nada, a não ser em dinheiro.

E se viu rajá, rodeado de moedas. Coroa de rei e cara de mulher. Caras que se alongavam, rindo e chorando a um tempo, rindo do rei rajá amo de todos, chorando do estupor ante o poder daquele que as mirava com avidez.

Último

Muito tarde foi chegar o operário Valdevino, alegando estar vivendo um momento de terrível aflição, por ter sua filha sido raptada ou fugido na noitada passada. Tal desculpa não quis o gerente ouvir, dizendo simplesmente vá-se embora.

Rixa

Revoltado com o dito, Valdevino procurou o gabinete do patrão, pra contar a mesma história e dizer mal do bajulador. Seu Amo não aceitou a desculpa e gritou-lhe vá-se embora. Valdevino, enraivecido, levantou o punho forte e derrubou o patrão.

Prisão

Alertados pela barulheira, guarda-costas de Amo tomaram o gabinete e desancaram o malcriado. E, por ordem patronal, a polícia chegou e levou acorrentado o coitado Valdevino.

Sonho

Na cela pequena, o operário se enroscou e olhou o mais que pôde para dentro de si. E viu sua filha voltando nos braços-silvas dos anjos, pisando a cabeça grande do dragão-amo-patrão, que tombava desfalecido na cadeira confortável.

Fim

No gabinete, Amo pensou uma vez mais na menina morta e sentiu uma agonia apoderar-se de seu corpo. Agarrou-se ao espaldar da cadeira que girava, como se agarrasse a vida, que fugia, fugia.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo escritor.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 137


Sinclair Pozza Casemiro (Cinquenta Rosários)


Um célebre filósofo contemporâneo e ocidental, B. Mondin, em uma de suas obras mais conhecidas, "O Homem, quem é ele? – elementos de antropologia filosófica", discorre da natureza humana. Transcendente, o homem sempre quer mais, idealiza mais para si mesmo: ser mais bonito, mais virtuoso, mais sábio, mais... e por aí vai. Isso é da espécie humana, mesmo, em qualquer lugar do mundo e em qualquer circunstância, sempre aflorará o desejo, a propulsão que faz essa espécie, nunca satisfeita, buscar, buscar, sonhar, sonhar... eternamente buscar e sonhar. Muitas vezes, a gente vê isso ser provado em casos mais bizarros. Essa tal teoria acaba por dizer o mesmo da teoria do "jogo de espelho" que a retórica, desde Aristóteles até agora a nova retórica, de Perelman, por exemplo, apregoa: na busca do "ser mais" o homem se identifica com padrões, modelos idealizados que, consciente ou inconscientemente espelham,

Daí, um passo pra sedução dar vez à manipulação do discurso, da retórica, dos sofismas... e da busca incontrolável de nossos desejos, os mais estranhos, às vezes.

Interessante é notar que em qualquer circunstância, mesmo, isso pode ser flagrado. Ser mais belo pra uns, mais inteligentes pra outros... e até mais "bandido" pra muitos. Um causo me chamou a atenção, verdadeiro, que eu vivi, duma frustração profunda, dum personagem singular, da nossa região - a COMCAM, Este personagem está vendo a vida passar, agora, crente de que não vai mais alcançar o seu desejo, o seu "ideal" de jovem, tão sonhado. E, cá pra nós, ainda bem...

A visão é de romance nordestino, mas acontece é aqui mesmo, no coração do Paraná, lá pelas bandas de Barbosa, Corumbataí. Quem quiser ver, ainda consegue: está vivo e saudável o maior jagunço que resta na redondeza. Cavalga, no seu sempre companheiro Alazão, cavalo manso, prudente, acostumado aos imprevistos que o dono lhe arruma. A gente estava, na caminhonete, procurando pistas do velho trio dos índios, do Peabiru, muito famoso nas redondezas, mais famoso ainda como "o trio dos jisuíta". De repente, avistamos o cavaleiro, num marrom só, o cavalo troteando, sossegado, desvia a passagem, de pronto. O caboclo vestia uma capa suja, suja, não se sabe precisar a verdadeira cor, só prevalecia o encardido da estrada, que é hoje a continuação de seu lar. Na cabeça, o chapéu velho de couro, carcomido, encolhido e cheio de marcas que o tempo foi deixando, como na pele, que parecia continuar do chapéu, enrugada, marrom, tão judiada. A cena é, vista de longe – pelas costas, e bem de perto - de lado, geometricamente, como um losango marrom.

– Bom dia, seu Rufino!

– Ooua... Oi, tudo bom, homi. É seu Gancedo?

– Sou eu, mesmo, tá? Andando um pouco por aí?

- É, pois é. É o que resta, homi. Avivenu os tempu, qui num tem mais nada pra fazê, só trabaiá pra cume, qui é a sina...

– Tá vivendo sozinho?

– Ah, sim. Ali, naquele ranchinho... A muié perfeiru fícá cos fio, si foi. Os fío di hoji, homi, num arrespeita os pai, qué vive dum jeito qui num é certo, di arrespeitu. Falei; si quisé morá cumigo, tem qui mi arrespeitá. Vive nos mordi qui um homi veve, eis num quis sabe. Num arrespeitá pai, mais não. Num tem arrimo... Perferi dexá i. A muié foi tamém, perferiu os fio. Aqui vou vivenu... Vivo bem... Ali tá minha rocinha, minha casinha. O fazendero daqui, gente boa, num mexe cumigu, não. Meu Alazão me acumpanha,

– Pois é... Seu Rufino... Estava aqui falando para as professoras que o senhor já foi jagunço. Elas não acreditam,

Nessa hora o rosto impassível do cavaleiro estremece e um lance de olhar brilhoso desperta na face até então inalterada:

– Eu? Jagunço não. Seu Gancedo.... quisera fosse... Num cheguei a tanto, não, homi... Num tenhu a metade dum rusaru.

Agora é a professora que pergunta. Entendeu logo que o "status" de jagunço, a que o seu Rufino, pelo jeito aspirara, mas não lograra êxito, dependia do tal rusaru:

- Qui é rusaru, sinhora? A sinhora num reza? Num cunhece rusaru?

– Sim... sim... Mas...

– Pois, óie; jagunço mermo, jagunço, seu Gancedo, tem que tê feito cinqüenta rusaru. Eu feis nem deis... A sinhora cunhece cuma é o rusaru: tem o pai-nossso, as treis ave-maria, adispois mais pai-nosso, mais uma porção de ave-maria, num é? Pois, intão: jagunço dus bom, mermo, é qui compretô os pai-nosso e as ave-maria nuns cinqüenta rusaru. Mais eu num cunsegui, não... Uns deis... sifô.

– Mas não dá tempo, ainda de fazer cinquenta rosários, seu Rufino? Afinal, que rosário é esse?

– É rusaru dioreia, sinhora. Oreia di bugre. Bugre, índio, sinhora... Por aqui tinha tantu dus jagunçu, dus bom, qui mi dexaru na mão... Num restô bugre pra mi dá o gosto di sê um jagunço di verdade. O povo mi chama... Mais num sô, não. Farta munto rusaru... I cadê us bugre? Matado bom tinha essas banda, cabaru logu ca bugraiada, arguns abandonam tudu e fugiru, Us que ficava, morria, memo..

No silêncio da tarde, olhando a vastidão dos campos desnudos das matas, lar dos "bugres" desfeito tão selvagemente, pelos civilizados brancos, pensei não ter podido encontrar maior testemunho do que buscava naquelas andanças. E, levada pela imaginação vi o azulão da floresta escondendo as sagas daquela gente indefesa mais uma vez exposta à cobiça e aos sonhos dos novos bandeirantes deste século passado, encobertos pelas regras desse também novo tempo. E entendi bem como é fácil apagar a memória de tantas barbaridades consentidas por inescrupulosos indivíduos dessa nossa espécie (a escolhida?) que quer e sonha sempre mais... mais... não importa o quê.

Mais ... "rusaru"? Creio em Deus Pai, Ave-Maria! Chega de rusaru, Minha Nossa Senhora das Dores! O próprio Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo há de convir! O mais irônico é que muito provavelmente tenham se utilizado, para as suas proezas, os famosos jagunços, de resquícios do remoto Caminho de Peabiru - "o caminho que leva à Terra Sem Mal".

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 2


BALADA DA ESPERANÇA
Vivo caminhando
à procura de algo que não vem
enquanto a noite é alta
o silêncio é profundo
o céu sem estrelas
me diz de outro mundo.
Num triste sussurro
o vento aparece
trazendo uma voz,
lamentos e prece...
Baladas sem ritmo, sem nome, atroz
doces cantigas,
palavras antigas
momentos passados,
destinos traçados,
no coração de alguém
sou apenas ninguém
chorando, amando,
solitário esperando
a Solidão que não vai
o Amor que não vem…
__________________________
MADRUGADA

Madrugada
  instante de sonho
    procuras em vão
      silêncio presente
        palavras ausentes
          que não voltarão...

          Madrugada
        sonho que finda
      restos de saudade
    esperas inúteis
  momentos perdidos
de felicidade...

Madrugada
  porto do dia
    estrela cadente
      vento parado
        música distante
          amor ausente…
__________________________
NADA MAIS...

Não importa
o sofrimento que tortura
Não importa
que o céu
é infinito de amargura...
Quero apenas
ficar em paz
sozinho
a colher  
os espinhos
das flores murchas
do meu caminho...
Não importa...
Nada importa nesta vida
agora que o sonho acabou
e apenas é ilusão perdida...
Antes
entre sonhos e acalantos
havia a ternura do amor
Agora
que nada mais resta
pouco importa
a solidão
a dor
pouco importa
tudo...
e nada mais…
__________________________
OUVI ESTRELAS
                      
Ouvi estrelas
na quietude imensa
sussurros outonais apenas
Senti calor
num sol sem luz
Gerei palavras
nas águas de azul
Ouvi estrelas
na prece do vento
Compus um sonho
no sono dolente
Evoquei serenatas
na sinfonia da lua
Ouvi estrelas
no segredo dos desertos
Cantei no silêncio
das flores colhidas
Ouvi estrelas
dizendo baixinho
palavras de amor…
__________________________
PERGUNTAS PLATÔNICAS

Povoam estrelas
seres estranhos
se sonhos alcançam
o Amor sempre ausente
Parequemas só nascem
no encontro das mãos
Perguntas platônicas
nem sei
se bem sei
pois
enquanto perdure
parélios coloridos
respostas nas trevas
habitarão minh'alma
e espera
que o tempo
me faça
pantólogo imortal
da estrutura
do nada!
__________________________
PRECOCES PALAVRAS

Pioneiros que buscam
sussurros de paz
que em cinzas de guerra
contemplam o silêncio
Parti à procura
da palavra
mais pura
enquanto é tempo
no instante pequeno
Acelerai os ânimos
em precoces palavras
Pioneiros do mundo
em busca de paz!
__________________________
PRIMAVERAS PERFUMADAS

Há em mim
desejos sublimes
ofertando-me esperanças...
Tesouros ocultos de felicidade
à espera que o tempo passe...

Há em mim
saudades peregrinas
ressuscitando fantasmas...
Restos de tardes mortas
esquecidas no meu passado...

Há em mim
procuras vacilantes, temerosas
trazendo-me, no silêncio dos meus passos
primaveras perfumadas
enfeitadas pelas flores que não nasceram…

Fonte:

Arthur de Azevedo (Epaminondas)


Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.

Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável, por tudo quanto não fosse a expressão exata e cristalina da verdade.

Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de esposo, porque o amava. Casaram-se.

Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientíssimo sistema de não encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.

Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.

Esses receios não se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.

Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.

A esposa sobressaltou-se, coitada, - mas o marido tranquilizou-a com estas palavras:

- Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não sinto por essa mulher senão asco.

- Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário, o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio capaz de transformar o teu caráter!

- Não creias.

- Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!...

- Cala-te! Não digas tolices!...

- Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus não me digas nada! Ao menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Vê como estou nervosa!...

- Isso passa.

Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com ele ao dentista.

De repente abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou como um raio.

- Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!...

E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocote (meretriz) abraçou com veemência e beijou repetidas vezes o seu ex-amante, que em vão forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansão.

- Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!

Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado.

Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia.

O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda.

- É minha mulher! Esconda-se!...

A cocote compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou.

Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.

D. Sidônia entrou no consultório, e, vendo o marido com o colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou:

- Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?...

- Ninguém... nada... bem vês, - balbuciou o Dr. Lacerda.

Houve uma pausa.

O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D. Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato.

Ela voltou-se para o filho:

- Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?

- Uma senhora?

- Que senhora?

- Não a conheço.

- Que fez ela?

- Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai!

D. Sidônia fulminou com um olhar terrível o Dr. Lacerda, que, para disfarçar, atava de novo a gravata.

- Que senhora é essa? - interrogou ela com os lábios trêmulos.

O Epaminondas respondeu pelo pai:

- Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito grande!

- Onde está essa mulher?

- Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...

- Onde?

- Naquele quarto.

D. Sidônia empurrou com o pé a porta da alcova, mas não encontrou ninguém lá dentro: a Esmeralda, praça velha que não se apertava nas ocasiões difíceis, abrira outra porta, comunicando com o corredor, e conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor ruído.

Vendo a situação bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia revistava a alcova, disse baixinho ao filho:

- Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!

E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada:

- Ah! Ah! Ah! Ah!...

- Que quer isso dizer? - perguntou ela.

- Quer dizer que caíste como um patinho!

- Hem?

- Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu grande!

- Mas... para quê?

- Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo resultado da pilhéria...

- Isso é verdade, Epaminondas?

- É mamãe, - respondeu o pequeno com um tom de convicção de quem jamais fizera outra coisa, senão mentir.

- E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?

- Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança à coisa.

- Achas então que sou tola? - disse D. Sidônia sorrindo e sentando-se tranquilamente. - Tolo és tu!

- Porquê?

- Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!

- É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!

Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Revista Florilégio de Trovas (n. 34 – dezembro)


Lançado o último número do ano da Revista Florilégio de Trovas.

Em suas 20 páginas:
 
Trovas do Brasil e Portugal,
 
Trovas com o tema: Respeito,
 
Trovadora Destaque: Leonilda Yvonneti Spina, de Londrina/PR,
 
Mini-biografia atualizada de José Feldman.

Faça o download em pdf, no link:
https://drive.google.com/open?id=1zvyLoSrk27KG0p_cvThDtaEdKsYZNYwH


O tema para a revista de fevereiro é: Fantasia/,
enviar a/s trova/s para revistaflorilegiodetrovas@gmail.com

domingo, 8 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 136


Nilsa Alves de Melo (Natal em Trovas)


A prévia do paraíso
terás, com muita emoção,
num "Bom Natal", efusivo,
com anos de duração!

Deixem que os outros insistam,
comam, acendam mil luzes,
cheios de brilho se vistam
sem lamentar suas cruzes.

É como um Natal de sonho,
de luzes, de animação,
felicidade que exponho
com minha alma e coração.

És luminoso cristal,
Maringá, belo torrão
onde em noite de Natal
soa a paz no coração.

Natal é festa propícia
para que demos as mãos,
e conservando a delícia
de sermos todos irmãos.

Ser bom, mas só no Natal,
é coisa muito sem graça!
Que do começo ao final
do ano: - Todo o bem se faça.

Um Natal cheio de luz
só tem sentido se atesta
que o nosso Mestre, Jesus,
é a estrela maior da festa!

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

Isabel Furini (Ele não me ama)


Não fui convidada, mas estou aqui, observando-o.

Ele vai até a janela, apoia-se no parapeito e olha para fora. Os ruídos dos motores dos carros e ônibus que trafegam pela Alameda Cabral invadem a sala (estamos no primeiro andar). A subida força os motores e o ruído é mais intenso. Há também sons incômodos de buzinas. No quarto só ele e eu. Ele continua a olhar pela janela. De repente, levanta o braço esquerdo e acena com sua mão sem a aliança (a mão direita segura o copo). Ele mostra o copo e faz sinal para que o outro suba.

Na calçada, perto do ponto de ônibus, de camisa listrada e barba sem fazer, um amigo está olhando para cima. Solta uma gargalhada e faz um gesto de negação com a mão aberta enquanto grita: Minha namorada me espera...

Ele caminha até a cozinha, abre a porta da geladeira e, com ar de satisfação, enche novamente o copo. Finge que não estou lá perto dele. Esparrama-se na poltrona verde e liga a televisão. Não quer me olhar, continua fingindo que eu não estou do seu lado. Assiste, sem interesse, a uma das tantas séries policiais sem imaginação - programas imbecis, murmura - e eu olho para ele, esperando que desligue a televisão. Mas não, ele muda de canal.

Será que ele sente prazer em me ignorar? Será que gosta de pensar que fui para sempre? Seu tolo! Adeus, falou quando começou o namoro com a loira falsificada que vendia semijoias. Adeus, disse-me novamente quando namorou a enfermeira com excesso de quilos nos quadris e cabelo avermelhado. Adeus, insistiu quando trabalhava no banco e ficava no bar com o grupo de colegas até duas ou três horas da manhã. Adeus, murmurou quando se apaixonou pela psicóloga de olhos azuis. Adeus, sorriu enquanto dava uns amassos numa mulata que conheceu em um baile de carnaval. Adeus, quando namorou a japonesinha meiga da pastelaria da esquina. Adeuses intermináveis. Adeus, falou pela última vez há duas semanas, no balcão, quando começou a namorar a professorinha da escola estadual do bairro. Mas eles brigaram e eu estou aqui outra vez. Mesmo assim ele me ignora, finge que eu não estou. Permanece sentado na poltrona verde. O que ele espera? Ah! Quer me mandar embora! Gosta de fingir, o safado. E não é o único, não! Homens gostam de demonstrar que são populares. Amados pelas mulheres. Vaidade machista. Porém, não adianta me ignorar, eu sou tenaz.

Ele se levanta preguiçosamente, caminha até a geladeira e pega duas latinhas. Bebe e assiste TV. Bebe a segunda. Traga o líquido com mais rapidez. Outra vez se desloca a passos lentos até a geladeira, mais um copo cheio. Muda de canal. Olha o telefone. O telefone não toca. Ah! Ele está esperando uma ligação. É isso. Lentamente se levanta, deixa a latinha sobre a mesa, pega o telefone e liga para alguém... Dá para escutar a secretária eletrônica, mas ele não deixa recado. Finge que eu não estou. Procura outra cervejinha. Seu caminhar é desengonçado (pode ser o efeito da cerveja). Recosta-se no sofá e pega um jornal do chão enquanto muda os canais.

Eu continuo aqui, olhando-o. Por fim, ele não pode mais me ignorar. Desliga a TV e grita: Que droga! A solidão é minha única companheira. Ah! Finalmente falou meu nome. Obrigada! Muito obrigada!

Epílogo

Eu sou a única companheira que fica quando todos o abandonam. Eu não sou um vento que passa, como alguns pensam. Eu sou uma vibração que ecoa no instante do nascimento e o acompanhará na jornada, até a morte. Sou uma vibração bem próxima da tristeza e do abandono. Uma vibração baixa que se estende desde os pés até o ventre, os ombros, os braços, os ouvidos e os olhos. Uma vibração que contrai o tórax e faz descer a cabeça. E não importa se você tem cargos, títulos, honrarias. Eu enfraqueço os homens. Torno-os crianças desamparadas. Nem tentem fugir de mim, porque eu sou persistente. Na rua, na cama, diante do computador, ao fechar o livro, ao sair do cinema, ao dirigir o carro, em algum lugar você vai pronunciar meu nome. Vai, sim... Em algum momento você vai dizer: Solidão!

Fonte:
Literatura de Isabel Furini

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) III


SÓ SE CHORA POR QUEM PARTE
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 20
 

Choremos por quem parte sem voltar
A ser presença viva à nossa mesa
E desse imenso reino da tristeza
Desça à terra num raio de luar.

Ausente, para sempre, em nosso olhar
Terá em nosso peito a fortaleza
Que guarda a delicada vela acesa
Da memória que brilha em seu altar.

De saudade será a sua imagem
Que se esvai como um barco na viagem
No denso nevoeiro, rumo ao norte.

Só quando a sua face tão inteira
Não nos assomar, sem que a gente queira
Só então foi levada pela morte.

DORMIRÁ NAS BERMAS DAS ESTRADAS
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 42

Dormirá pelas bermas das estradas
O sonho a que ninguém abrir o peito
Definhando ao pó sujo e tão desfeito
Onde passam pessoas apressadas.

Bastavam três palavras conversadas
Num olhar de amizade e de respeito
Pão e sopa na mesa e morno leito
Para o salvar de tão frias facadas.

Um sonho é uma riqueza sem dinheiro
Um impulso tão forte e tão inteiro
Que a vida se converte em "quero e posso!"

Num mundo tão ingrato e tão padrasto
Por vezes, quando tudo já foi gasto
O sonho é o sumo bem que ainda é nosso.

E OS TEUS OLHOS FICARAM MAIS DISTANTES
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 97

E os teus olhos ficaram mais distantes
Quando na luz da tarde se perdeu
O aceno da partida que doeu
Como nunca me tinha ferido antes.

Fiquei parado, ali, por uns instantes
Naufragando no mar que, então, desceu
Do meu olhar que a noite ao mundo deu
Habitada por gritos suplicantes.

Tu partiste e eu fiquei de mim ausente
O tempo corre e apenas sei que sinto
Que na terra já nada mais me importa,

Errante vou seguindo inconsciente
Perdido nos sopés de um labirinto
Como se em mim já fosse a vida morta.

QUE NEM UM RASTO FIQUE NO CAMINHO
Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas" p. 122

Que nem rasto fique no caminho
Por onde me perdi, errando os passos
E os meus pés possam ter deixado traços
Quando avançavam sós e em desalinho.

Por mim acompanhado andei sozinho
Com glória diminuta e bens escassos
Cingi os grandes nadas com meus braços
Plantei agrura e quis colher carinho.

Em vão tentei encher meu ser de bem
Degustar o melhor que a vida tem
Mas o meu peito a graça não achou.

Fugaz e pouca foi a rainha vida
Uma estrela cadente que, perdida
Riscou o céu e logo se esfumou...

ANTE A VERDADE PURA E SEM DISFARCE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 192

Ante a verdade pura e sem disfarce
Dos teus olhos interrogando os meus
O coração, nesse instante do adeus
Não logrou fazer mais do que entregar-se.

E vieram as lágrimas juntar-se
Nascidas dos meus olhos tão ateus
Ao enlace dos meus braços pigmeus
Onde o teu colo em dor veio aninhar-se.

O amor falou mais alto nessa hora
Em que tu desististe de ir embora
E voltaste a aquecer a nossa cama.

A lua deu lugar à luz do dia
Das trevas despontou uma alegria
E das cinzas nasceu uma outra chama.

E EU FUI TALVEZ FELIZ SEM O SABER
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 193

Eu fui talvez feliz sem o saber
Quando a felicidade eu procurava
E, cego, via em tudo o que encontrava
A negação do bem e do prazer.

Nessa busca ansiosa pelo ter
A minha energia dissipava
E impotente e incapaz não enxergava
Que o principal da vida é sempre o ser.

O Tempo deu-me a doce regalia
De ver agora claro o que eu não via
Que é quase sempre em vão o que sofremos.

Depois de uma procura tão a sós
Sei que a felicidade mora em nós
Se amarmos o que somos e o que temos.

DOS GESTOS COM QUE AMOR SE MANIFESTE
Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés" p. 206

Dos gestos com que Amor se manifeste
De todos o sorriso é tão primeiro
Que sendo puro, aberto e verdadeiro
Parece a luz que vem do azul celeste.

Se de um sorriso o olhar se enfeita e veste
O nosso coração bate ligeiro
Parece o peito ser quente braseiro
E de rubor o rosto se reveste.

Quando o sorriso nasce nada é feio
E as almas ficam presas nesse enleio
Que tanta coisa diz sem dizer nada.

Ficam palavras presas na garganta
E aquela que de todas mais encanta
É no fundo da alma que é guardada.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.