segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Maurício Norberto Friedrich (Jardim de Trovas)


A alva bruma que enverdece
os campos das pradarias
me faz dizer velha prece,
no entardecer dos meus dias!

A lua no céu passeia
num chão coberto de estrela,
deixa o sol, que tanto anseia
louco de amor, para vê-la.

A nora desesperada,
ao ver a sogra na porta.
lendo a receita trocada,
pôs formicida na torta.

A trova que é dita ao vento
tal qual o vento é fugaz;
existe, por um momento...
...e o próprio vento a desfaz!

Amor, palavra tão doce
que nos enche de prazer;
é, às vezes, como se fosse
dor, a nos fazer sofrer!

Ansioso, meu coração,
vive, sempre, nesta espera:
de uma nova floração
da dourada primavera.

Ao chegar o meu outono,
sensato, hoje sou bombeiro:
quando jovem, perdi sono
por querer fazer braseiro!

Ao idoso, honra e venera,
a sua sabedoria;
na velhice, que te espera,
terás tu, a primazia...

Árido, feito um deserto,
meu coração sofredor
anseia, disto estou certo,
ser fértil com teu amor!

As folhas mortas que, ao vento,
bailam e caem ao chão,
me evocam, por um momento,
os ventos de uma paixão!

As flores todas são belas,
mesmo as que nascem em abrolhos,
mas, as mais lindas, dentre elas,
são as que vêm nossos olhos.

As marcas do teu batom
deixadas no meu cristal,
têm sabor e têm o tom
de um grande amor, no final...

Beijando, a brisa, meu rosto,
meiga, me faz relembrar,
com saudade e muito gosto,
o amor que pude lhe dar.

Bela musa, encantadora!
Igual eu nunca vi;
meiga e doce inspiradora;
foste tu que eu escolhi!

Bem-vindos, oh Trovadores,
aos nossos Jogos Florais.
A vós, grandes vencedores,
as láureas dos Pinhais.

Carrego, dentro do peito,
a cicatriz de uma dor
que jamais me dá o direito,
de reaver teu amor!

Como é bonito o Direito,
quando se julga uma ação
e, ao exercê-lo, perfeito,
sempre o que impera é a razão.

Como pode uma criança,
ser vítima de agressão,
se tem, cheio de esperança,
o inocente coração?

Como são belas as serras
do Estado do Paraná!
Que têm cobertas as terras
das cores do manacá!

Completa felicidade
é, por certo, uma utopia;
pois quem já sentiu saudade,
já sofreu melancolia.

Curitiba doce encanto
da terra dos pinheirais
é nela que vivo e canto
meu amor e meus ais.

Curitiba! Ó Curitiba!
Onde estão teus pinheirais,
que te davam tanta vida,
e, hoje, não os vejo mais?

Curitiba, Terra amada,
me albergaste o coração;
a minha alma apaixonada
tem por ti grande paixão!

Da cultura és um celeiro,
Curitiba dos Pinhais;
com teu Jeito hospitaleiro
hoje albergas os florais.

Das felizes madrugadas,
sozinho, curto a saudade...
– Que alegria, nas noitadas,
dos tempos da mocidade!

Das folhas, vendo o cair,
pressinto o chegar do inverno
e o coração, a invadir,
saudade... do lar paterno,

De areia, fiz um castelo,
nas dunas, em vastidão,
e o vento, sem ter rasteio,
soprou...pôs tudo no chão.

Decidido e corajoso,
à tua porta eu bati,
foi o susto mais gostoso
que eu já pude dar em ti.

Dentre as coisas que cultivo,
para evitar vida obscura,
o saber é o incentivo
que aumenta minha cultura.

Dentre tantas namoradas,
que já tive em minha vida
e de todas as jornadas,
foste tu a escolhida!

Desde o dia em que partiste,
triste está meu coração:
este pobre não resiste
a dor da separação.

Do pai seguiu a carreira,
com amor, dedicação:
Tinha a semente certeira
plantada em seu coração!

Do sol em raios envolta
vi-te passar tão ditosa,
com puros gestos, tão solta,
tendo a beleza da rosa.

Dos corações, sempre em festa,
o amor, divino expressar...
faz com que cada seresta
torne a janela um altar!

Dos teus carinhos, distante,
na insônia de cada noite,
fico a pensar, num instante,
esta distância é um açoite.

É tão atroz a distância
a nos separar, amor,
que só a saudade, em constância
ameniza a minha dor.

É tão linda esta menina!
Linda? Parece boneca...
Mas, se namora na esquina,
logo vira uma sapeca.

É uma escultura, bem-feita,
de uma costela qualquer:
criada por Deus, perfeita,
que lhe deu nome...: mulher!

É verdadeira a amizade,
quando nunca se destrói,
com tempo vira irmandade
e faz do amigo um herói!

Hoje sou um moribundo
nas cinzas do teu amor
e não vejo, neste mundo,
remédio para esta dor!

Insone, em noites frias
e em permanente vigília
de mamãe com as ave-marias
recomendava a família.

Irradiantes de alegria!
façamos trovas de amor,
para louvar, no seu dia,
o poeta Trovador!

Já inventaram um remédio,
de um certo tom azulado,
que tira moço do tédio
e deixa velho… assanhado!

Meu amor da mocidade
foi efêmera ilusão:
dele só resta a saudade,
nas cinzas de uma paixão.

Meu coração é um deserto
por falta do teu amor,
se me ofertares, por certo,
virará, um jardim de flor!

Minha herança não tem ouro,
um conselho é o meu legado:
– Meu filho, mais que um tesouro,
vale um homem muito honrado!

Minha paixão foi loucura
por amar-te tanto assim;
hoje estou nesta tortura:
- Por que tu foges de mim?

Regressaste!.... Que alegria!
E a saudade se desfez!
Hoje minha alma irradia
felicidade outra vez!

Restou tão grande a distância,
que nos separa no amor,
que já não dou importância,
se minha vida se for.

Saibam todos que o trabalho,
ao bom homem enobrece,
mas, quem não pega no malho,
seu espírito empobrece!

Salve, ó verão de mil cores,
ao despertar o manacá
que cobre, todas, de flores
as serras do Paraná!

São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!

Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!

Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!

Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Saudade... dor da lembrança
de alguém que distante está;
é o sentir de uma esperança
de que esse alguém voltará!

Se encontro, ao voltar pra casa,
as tuas mãos carinhosas,
o meu amor já se abrasa,
com teu perfume de rosas.

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão:
sê firme em cada pisada
que as honras te seguirão!

Sigo, na vida, o caminho
penoso, porém, correto,
que aprendi, desde meu ninho,
com meu pai severo e reto.

Sim, nas cores do arrebol,
Deus, o mais perfeito esteta,
sob a luz do pôr do sol,
dá inspiração ao poeta..

Singrando mares incertos,
marujo, audaz, varonil
achou montes, recobertos
com flores: Eis o Brasil.

Sinta o perfume das flores
nas serras do Paraná,
tem árvores de mil cores:
-primaveras ou manacá.

Teu charme, encanto e beleza
dão aos poetas um tema,
ó encantada Fortaleza,
linda Terra de Iracema!

Teu conselho, pai querido,
de retidão e de amor,
faz-me, hoje, já envelhecido,
mais entender seu valor!

Teve um infarto, na cama,
a noiva, que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola!

Tico-Tico seresteiro
que vives, sempre, a cantar,
põe teu ninho em meu terreiro;
vem comigo avizinhar!

Vai, meu filho! Não tropeces
nas pedras do teu caminho:
a Deus, faze tuas preces
e não seguirás sozinho!

Vejo uma gota de orvalho
pairando sobre uma rosa:
de Deus, é mais um trabalho
para tomá-la formosa.

Vendo-a sentada no ninho
ditosa mamãe beija-flor,
vejo que há muito carinho
neste seu gesto de amor.

Vi beleza… colhi flores
nesta vida, em seus caminhos,
mas às vezes senti dores
causados por seus espinhos!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 154


Cecy Barbosa Campos (Reminiscências)


A rua não tinha nenhum destes espigões que empanam o sol e, à noite, quando se olhava para o céu, de qualquer ponto, era possível ver as estrelas.

Estrelas brilhantes, tão mais brilhantes quanto mais fria fosse a noite do mês de junho, e este era um mês especial para seus moradores. A meninada, alvoroçada, já no dia primeiro, começava a se preparar para a festa. E como "o melhor da festa é esperar por ela", pode-se dizer que meninos e meninas aproveitavam vinte e quatro dias, sem parar, esperando chegar a noite de São João. Tinham até direito de dormir mais tarde, podendo sair depois do jantar para colar as bandeirinhas que iriam enfeitar o "arraiá".

Os barbantes eram estendidos de um lado a outro, calçada a calçada. Nem tantos carros havia em Juiz de Fora, e a Benjamin Constant, acabando onde é hoje a Tiradentes, era uma rua tranquila e silenciosa, sem ronco de motores a perturbar o alarido da criançada. Assim, sem perigo, todos se encontravam para fazer a colagem, escolhendo as cores cuidadosamente, discutindo com grande concentração e seriedade sobre a conveniência de se colocar uma bandeirinha azul perto da rosa ou vice-versa.

Os maiores providenciavam a capina, pois, no local em que a rua terminava, havia mato, bicho. Era comum encontrar-se, no quintal, um lagarto "quentando" ao sol. Gambás e, dizem, até raposas, costumavam assaltar galinheiros, beber os ovos e roubar frutas durante a noite.

Era necessário limpar e preparar o terreno, num trabalho pesado que ninguém sentia. Tarefas divididas, havia aqueles que iam arranjar o bambu para cercar a área, e os que iam armar barraquinhas onde o pé de moleque, a cocada e a canjica iam ser servidos com muito orgulho pelas donas de casa, quituteiras de mão cheia, que na ocasião demonstravam seus dotes, oferecendo a todos as suas obras-primas.

O local era sempre o mesmo: logo ao final da rua Benjamin Constant, embicava a entrada do arraial que se instalava no espaço entre as atuais ruas Tiradentes e Olegário Maciel. A festa da Benjamin ficou famosa, e os convites para o ingresso eram disputados. Todos se conheciam e todos participavam. Não havia idade nem reumatismo que resistisse à motivação da sanfona e do tablado que, cedido pela Prefeitura, suavizava as irregularidades do solo, permitindo que a caipirada dançasse a quadrilha com muita alegria à luz de uma fogueira cuidadosamente montada.

Passado o mês dos folguedos juninos, a gurizada arranjava pretextos para continuar a se reunir após o jantar. Era o pique-de-meio, no qual, os participantes ficavam a salvo na calçada, sem poder lá permanecer por muito tempo. Tinham que tentar, constantemente, mudar para o outro lado da rua, enfrentando a perseguição do pegador e correndo o risco de, se alcançados, serem expulsos da brincadeira.

À medida que os meninos e meninas iam crescendo, o interesse pelas correrias ia-se transferindo para o vôlei, também no meio da rua. Às vezes, um grande círculo se formava e um jogador, no centro, liderava a distribuição da bola. Outras vezes, em jogo livre, iam sendo feitas exclusões até que a dupla, mais hábil nas jogadas, ficava para a definição final de um vencedor. Em outras ocasiões, até uma rede era improvisada, atravessando a rua de um lado a outro e permitindo uma partida simulada.

Aquele congraçamento de crianças e jovens adolescentes reunia os filhos de conceituadas famílias da cidade. Eram vizinhos próximos os renomados médicos Dr. José Dirceu de Andrade, Dr. Justino Sarmento e Dr. José Mariano; o comércio local se fazia representar pelos senhores Luís Enéas Mescolin e Francisco Romanelli; pela classe bancária respondiam o Sr. José Caldas, o Sr. José Vale da Fonseca e o Sr. Octávio Duarte Corrêa Barbosa.

Havia ainda a simplicidade do "seu" Tonico — o fazendeiro Antônio Teixeira Reis, e a elegância do político, Dr. José Procópio, ex-prefeito da cidade. Outras personalidades marcantes também viviam nas redondezas, mas os citados permaneceram por longo tempo como moradores da rua Benjamin Constant.

Vários remanescentes e /ou descendentes destas famílias ainda lá estão, embora, muitas daquelas casas não existam mais, tendo cedido lugar a prédios altos e modernos.

As crianças de hoje não têm condições de brincar na rua e não conseguem imaginar o que foi o pique-de-meio, o jogo de bola ou a preparação de uma festa junina. Fechadas em suas casas ou apartamentos têm, como distração principal, os programas de televisão assistidos em volume máximo, pois o barulho do tráfego intenso dificulta a audição.

É a marca do asfalto, o preço do progresso. Ainda bem que elas não conheceram a rua Benjamin Constant de 40 anos atrás. A saudade fica para as pessoas que nela viveram naqueles tempos.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora

Antonio Cabral Filho (10. Colar de Trovas) Tema: Esperança


01
Haverá  sempre esperança
onde houver cheiro de flores,
inocência  de criança
*e sonho de trovadores!*
Neiva Fernandes
(RJ)

02
E sonho de trovadores,

servidos na caminhada,
em que só vão sonhadores,
*sedentos pela chegada.* 
Antonio Cabral Filho
(RJ)

03
Sedentos pela chegada

águas tranquilas buscando,
e ao longo da caminhada
*a muitos dessedentando*.
Gilberto Cardoso
(RN)

04
A muitos dessedentando

na busca, a sede matar;
pois o líquido dosando.
*tem saúde  salutar.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

05
Tem saúde salutar,

só assim talvez alcança,
futuramente um lugar.
*Todos cheios de esperança.*
Adriano Bezerra
(RN)

06
Todos cheios de esperança,

úteis ao mundo seremos.
Com coração de criança,
*muita coisa mudaremos.*
Gilberto Cardoso
(RN)

07
Muita coisa mudaremos.

Só depende da atitude.
Exigirá que empenhemos,
*toda nossa juventude*.
Antonio Cabral Filho
(RJ)

08
Toda nossa juventude,

tem tempo de validade,
dependendo da atitude
*nos resta apenas saudade.*
Neiva Fernandes
(RJ)

09
Nos resta apenas saudade,

se esperança e salvação,
mais solidariedade,
*nos negarem uma mão.*
Antônio Cabral Filho
(RJ)

10
Nos negarem uma mão

é falta de consciência,
luz e amor no coração
*do ser que não tem decência!...*
Luiz Cláudio
(RN)

11
Do ser que não tem decência

devemos manter distância,
ente sem nenhuma  essência
*mostrando só petulância*.
Maria Zilnete
(RJ)

12
Mostrando só petulância,

jamais irá aprender.
O homem com sua arrogância,
*a esperança vai perder!*
Gleyde Costa
(RJ)

13
A esperança vai perder

somente quem  não tem fé,
é  preciso ver pra crer,
*quem for como São Tomé!*
Aurineide Alencar
(MS)

14
Quem for como São Tomé

terá sempre um bom Cristo,
para reforçar a fé
*que precisa pelo visto.*
Prof. Roque
(RS)

15
Que precisa pelo visto,

que seja sem confusão,
que o melhor seja previsto,
*na Santa Paz meu irmão.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

16
Na Santa paz meu irmão

com  esperança em nosso lar
eu peço a Deus proteção
*para Ele nos ajudar.*
Neiva Fernandes
(RJ)

17
Para Ele nos ajudar,

medito com atenção.
Esperança no meu lar,
*almejo com devoção!*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

18
Almejo com devoção

com  muita fé e esperança,
com sincero coração
*alegre feito criança.* 
Madalena Cordeiro
(ES)

19
Alegre feito criança,

levo amor no coração,
distribuindo esperança,
*a quem ama seu irmão*.
Antônio Cabral Filho
(RJ)

20
A quem ama seu irmão

o bem sempre lhe deseja,
guardando-o no coração
*com esperança que almeja!...*
Luiz Cláudio
(RN)

21
Com a esperança que almeja ,

O ser humano é feliz.
É muito grande a peleja ,
*o que o objetivo condiz !*
Gleyde Costa Campos
(RJ)

22
O que o objetivo condiz

o que temos na lembrança
quando o coração nos diz...
*Haverá  sempre  esperança.*
Neiva Fernandes
(RJ)


Fonte:
Trovadores do Brasil

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Sgiathán Dearg e a filha do rei do Mundo Ocidental

Noinín, filha do rei do Mundo Ocidental, saiu, um dia, a passear e, enquanto caminhava, viu o pássaro Sgiathán Dearg e considerou que era o mais belo que jamais se lhe deparara.

— Seria feliz se pudesse estar com esta ave! — exclamou.

Sgiathán Dearg esvoaçou em torno dela durante uns momentos, aproximou-se mais e acabou por desaparecer no bosque.

A filha do rei saiu a passear no dia seguinte, o pássaro tornou a aparecer e ela pensou que era ainda mais belo e tentou apanhá-lo, mas não conseguiu. No terceiro dia, o pássaro esvoaçou ainda mais perto. — Gostava tanto de ter esta admirável ave! — exclamou ela.

Sgiathán Dearg aproximava-se cada vez mais. Por fim, logrou apanhá-lo, acariciou-o, beijou-o e levou-o para casa.

Em seguida, pediu que lhe levassem uma gaiola espaçosa, onde o introduziu e conservou no seu quarto, dando-lhe de comer todas as iguarias que ela própria consumia.

A noite, a criada entrou no aposento e, na gaiola, viu um homem em vez de um pássaro. Quando ela se retirou, Noinín voltou-se para Sgiathán Dearg, que lhe explicou:

— Estou sob a influência do feitiço da rainha de Gleann Dearg. Todas as manhãs sou um pássaro, mas à noite recupero a minha forma normal e converto-me em homem. Fico aqui empoleirado e constrangido, entregue ao meu sofrimento. Liberta-me da gaiola, ainda que por pouco tempo, até ao amanhecer.

Ela abriu a porta da gaiola e conversaram até ao romper da alvorada, quando o homem voltou a transformar-se em pássaro, mas não voltou para a gaiola, e a jovem não conseguiu apanhá-lo. Manteve-se no quarto e, quando abriram a porta, saiu disparado e ficou a esvoaçar em redor do castelo.

No quarto dia, Noinín foi passear, para ver se conseguia voltar a apanhá-lo. Estava ansiosa e não se sentia tão bem-disposta como em outras ocasiões. Seguiu atrás de Sgiathán Dearg, rapidamente, esforçando-se por capturá-lo. Assim continuaram durante grande parte do dia, até que chegaram a uma colina. Perto do topo, ela esforçou-se mais uma vez por apanhá-lo, mas, de repente, a encosta abriu-se e ele desapareceu através da abertura, que se tornou a fechar com prontidão. A filha do rei ficou assim abandonada num lugar que não conhecia, pelo que passou a noite na colina, com a esperança de que Sgiathán reaparecesse na manhã seguinte.

No entanto, amanheceu, e o pássaro continuava ausente. Noinín achava-se perante um grande problema e dominada por profunda angústia, consciente de que os pais e demais familiares deviam estar alarmados com a situação. Por fim, começou a afastar-se da colina e caminhou durante todo o dia, até que começou a anoitecer e avistou um belo castelo ao longe. Ao aproximar-se, deparou-se-lhe uma porta enorme ricamente ornamentada, alta e magnífica. Bateu e surgiu uma mulher, que inquiriu:

— Que pretendes, minha filha? Para onde te diriges?

— Venho pedir alojamento para esta noite.

— Tê-lo-ás, assim como jantar, pois deves estar faminta, depois de um longo percurso. És forasteira nesta região, onde passa muito pouca gente. Queres dizer-me como te chamas?

— Sou do Mundo Ocidental e o meu nome é Noinín.

— Que te trouxe para estes lados?

A jovem descreveu toda a história, sem omitir um único pormenor — como conhecera Sgiathán Dearg e o capturara, para depois o perder e perseguir pela segunda vez, vagueando sem rumo definido, até que avistara o castelo.

— Queres entrar para o meu serviço? perguntou, no final, a mulher.

– Sim.

Não se sabe que salário Noinín pediu, nem se chegou a receber algum, porém a mulher explicou-lhe:

— Trabalharás para mim durante um ano e um dia. Suponho que não sabes a quem pertence este castelo!

— De fato, não faço a menor ideia.

— Trata-se da casa do vento e eu sou a rainha do vento.

Quando tinham decorrido três quartas partes do ano, Noinín teve um filho, mas cumpriu todo o período combinado. A mulher nunca lhe encontrou qualquer defeito, nem falou mal dela. No entanto, no termo do prazo, decidiu:

— Não podes continuar aqui. Não quero uma criança a crescer em minha casa. Tens plena liberdade para ir para onde quiseres e trabalhar noutro lugar. — Fez uma pausa e acrescentou: — Ofereço-te este anel. Quando olhares através dele, não terás fome nem sede e verás tudo à tua volta, esteja perto ou distante, à vista ou oculto.

Noinín partiu com o filho e viajou até quase anoitecer. Nessa altura, olhou através do anel, descobriu um elegante castelo e dirigiu-se para lá. Do lado da frente, havia uma porta e um belo prado. Ela bateu e apareceu uma mulher de aspecto agradável.

— Que pretendes?

— Preciso de alojamento por uma noite. Venho de longe e estou muito cansada. Não avistei qualquer casa, além desta.

— Terás alojamento, porque é muito pouco frequente aparecer alguém. Entra. — Noinín seguiu-a, e ela perguntou: — Diz-me quem és.

— Noinín, do Mundo Ocidental. Procuro uma casa para servir.

— Durante quanto tempo?

— O que desejares, mas espero que me seja permitido conservar o meu filho junto de mim.

— Com certeza. Porque não?

— Ele não provoca problemas — assegurou a jovem. — Basta dar-lhe de comer. Não é travesso nem incomodativo.

— Ficarás ao meu serviço um ano e um dia — decidiu a mulher.

Noinín serviu na nova casa com boa vontade. O que a criança não crescia de dia, fazia-o ao longo da noite e, se não era de noite, crescia durante o dia, e ninguém pode imaginar o que aumentava.

— Sabes que casa é esta? — perguntou a mulher.

– Não.

— Não me parece bem que uma pessoa sirva sem saber onde. É a casa da lua e eu sou a rainha da Lua.

As relações entre ambas eram satisfatórias e Noinín uma serviçal excelente: conhecia todos os trabalhos e executava-os o melhor que sabia. Quando transcorreu um ano e um dia, a rainha declarou:

— O teu filho está a crescer muito depressa e tudo indica que será enorme. Não podemos permitir que uma pessoa assim viva mais tempo nesta casa.

— Então, tenho de partir — admitiu Noinín -, pois não posso continuar aqui sem ele.

— Antes de saíres, dar-te-ei um presente. — A mulher entrou num aposento do castelo e reapareceu com um gorro com desenhos e uma varinha. — Pode acontecer ires a um lugar e não saberes onde estás ou como sair de lá. Se tal acontecer, basta pores este gorro e dizer "Desejo encontrar-me neste ou naquele sítio, ou nesta ou naquela rua", para te veres lá imediatamente. Com a varinha, podes abrir caminho através de qualquer lugar ou restituir uma pessoa enfeitiçada à sua forma anterior.

Noinín aceitou o gorro e a varinha, abençoou a mulher e partiu. Durante todo o dia não viu senão páramos e lugares silvestres. Ao anoitecer, lembrou-se do anel que tinha consigo desde que estivera na casa do vento, olhou através dele e avistou um grande castelo, com um pátio nas traseiras e um prado em frente. Quando lá chegou, bateu à porta, que foi aberta por uma mulher formosa.

— Que pretendes ou esperas encontrar aqui?

— Alojamento para esta noite, se estiveres disposta a oferecer-me - respondeu a jovem.

— Dar-te-ei, porque é muito pouco frequente ver uma pessoa desconhecida nestes lados. Que idade tem o teu filho?

— Um ano, três meses e dois dias.

— Se é tão jovem, quando crescer será o maior herói do mundo. Queres entrar para o meu serviço?

– Sim.

— Agora, fala-me de ti. Conta-me tudo e com sinceridade.

Noinín narrou toda a história. No final, a mulher perguntou:

— Sabes que castelo é este?

– Não.

— A casa do Sol e eu sou a rainha do Sol.

A jovem executou perfeitamente o serviço até decorrer um ano e um dia. Não se pode descrever nem explicar como a criança crescia continuamente, nem quanto media.

— Não podemos ter um homem assim cá em casa — anunciou a rainha do Sol. — Deves preparar-te para partir, mas podes ficar mais um dia comigo. Passaste muitas dificuldades e ainda conhecerás mais do que possas imaginar, mas talvez acabes por encontrar dias melhores.

Noinín ficou mais um dia e, na manhã seguinte, viu três corvos diante da janela numa colina. Naquele momento, as aves lutavam umas com as outras.

— E uma pena ver dois matar um — disse o filho.

— Não te preocupes com os corvos — respondeu Noinín. – Não é fácil saber se convém ou não que te intrometas.

Quando anunciou à rainha que tencionava partir na manhã seguinte, esta última discordou.

— Não irás ainda. Gosto da tua companhia. Quero conversar contigo mais tempo.

Na manhã imediata, viram os três corvos pela segunda vez.

— E uma pena ver dois matar um — observou o filho.

— Já te disse ontem que não te preocupasses com isso — lembrou-lhe Noinín.

— Mas preocupo-me! Tenho de ajudar o terceiro corvo.

— Não o farás — decidiu, e, nesse dia, impediu-o de ir ter com as aves.

Mais tarde, falou com a rainha:

— Estou a causar-te mais problemas do que devia e a atrasar-me demasiado.

— Fica comigo hoje, e não te pedirei mais. Tenho algumas outras coisas para te dizer.

Mais uma vez, os três corvos lutavam, dois contra um.

— É uma pena ver dois matar um — tornou a repetir o filho. – Tenho de ajudar o terceiro.

— E difícil manter-te afastado da peleja — reconheceu Noinín, e desta vez não se opôs.

— Tenho uma irmã que afastaram de mim há muitos anos – informou a rainha do Sol. — Agora, que viajarás por lugares solitários e estranhos, abre bem os olhos para veres se a descobres. E impossível prever se voltarás a passar por aqui, mas se tal acontecer avisa-me. Dar-te-ei uma toalha de mesa que, caso necessites, te proporcionará comida e bebida em abundância. Aqui a tens.

O filho dirigiu-se à colina onde se encontravam os corvos.

— É uma vergonha dois tentarem matar um.

— Mais valia que te preocupasses contigo, em vez de vires incomodar-nos — replicou uma das aves.

— Seja como for, vou pôr termo a isto. A partir de agora, só lutará um contra um e o terceiro comigo.

O filho de Noinín lutou com um dos corvos, que voava à sua volta e sobre a sua cabeça, disposto a abatê-lo, quando o jovem lhe apontou a espada e deu uma estocada. O sangue da ave jorrou para a sua mão e, quando a agitou, atingiu outro corvo. Ato contínuo, este transformou-se no homem mais elegante do mundo. Quando o rapaz se deu conta do sucedido, disse ao segundo corvo:

— Não tenho nada contra ti que não tenha contra este.

Salpicou-o de sangue e viu que se convertia num homem como o anterior.

Noinín despediu-se da rainha e empreendeu a marcha com os dois homens e o filho. Os homens iam à frente e, quando começava a anoitecer, chegaram a uma abertura estreita numa enorme escarpa, que se fechou no momento em que eles acabavam de a transpor. Noinín puxou da varinha oferecida pela rainha da Lua e aplicou uma pancada, depois outra e finalmente uma terceira. A passagem abriu-se e ela desceu ao Mundo Inferior, à terra mais magnífica que se podia conceber. Os dois homens encontravam-se lá, na sua frente. Reataram o caminho, que se prolongou por muito tempo. Havia luz a jorros e um campo admirável, com cada zona melhor e mais admirável que as precedentes.

Noinín lembrou-se então do gorro e pô-lo na cabeça, ao mesmo tempo que dizia:

— Desejo que se abra caminho até Gleann Dearg.

Abriu-se imediatamente e eles viajaram longo tempo, não se sabe quanto, até que chegaram a Gleann Dearg, mas não podiam ver nada, porque estava tudo coberto de pó, neblina e um feitiço ofuscante. Encontravam-se esgotados e debilitados pela fome, e não se avistava comida em parte alguma. Noinín lembrou-se então da toalha que trouxera da casa do Sol e não tencionava utilizar até que se visse muito necessitada. Estendeu-a no chão e verificou que estava coberta de comida e bebida em abundância. Todos comiam com prazer, quando surgiu um cisne, que se apoderou da melhor iguaria e voou para longe. Passado pouco tempo, reapareceu e levou outra.

— Se voltas a fazer isso, utilizo a varinha — ameaçou o filho.

O cisne apareceu pela terceira vez, e descia suavemente, quando o filho de Noinín pegou na varinha e o atingiu com ela. No instante imediato, o cisne caiu no chão, transformado numa bela mulher, a irmã da rainha do Sol, que disse a Noinín:

— Esperei durante muito tempo pela chegada do filho de Sgiathán Dearg para quebrar o feitiço que me subjugava. Bem sei que te trouxe nesta direção. Agora, fica aqui. Estes dois heróis proteger-te-ão até que voltemos. O jovem e eu partiremos juntos. E partiram os dois.

— Não tardarás a ver o rei — referiu a cunhada do Sol ao filho de Noinín -, pois ele já sabe que vamos, mas não quem somos. Quando te perguntar quem és e onde vais, responderás que és o filho de um pai e de uma mãe da Irlanda do Norte, já falecidos, e viajas com a tua irmã. Procuras um lugar em que ela possa ficar a servir. Ele aceitar-me-á então para criada de quarto da filha. Tu ficarás nas proximidades, pois eu sairei a dar uma volta todas as noites. Em virtude do cargo que exercer lá, poderei inteirar-me do que se passa no castelo.

Com efeito, o rei de Gleann Dearg contratou a cunhada do Sol para ficar ao serviço da filha. No dia seguinte, a princesa e a criada saíram a passear.

— Isto é um lugar escuro e solitário — disse esta última. — Como consegues suportar a vida aqui, onde só há nevoeiro espesso?

— Não te preocupes — replicou a filha do rei. — Vem comigo, para darmos uma volta.

Andaram até chegar a um castelo, que, outrora, devia ter sido suntuoso. Na porta, havia uma aldrava, e a princesa indicou, apontando-a:

— Puxa-a. — A criada obedeceu. — Agora olha em volta.

A terça parte da planície estava iluminada com intensidade. Tornou a puxar a aldrava, e a luz propagou-se a dois terços. Ao terceiro puxão, a iluminação foi total.

— A minha mãe enfeitiça esta planície todas as manhãs para toda a gente, exceto para si própria, e permanece assim até à noite. Nessa altura, fica tão escura para ela como para os outros, mas se um homem conhece o segredo dos puxões da aldrava, pode iluminar a planície, como nós acabamos de fazer.

Na noite seguinte, a criada saiu para se encontrar com o filho de Noinín. Passearam juntos e andaram longamente, até que chegaram ao castelo parcialmente em ruínas.

— Na sua época, era suntuoso — disse ela.

— Ainda hoje se nota.

— Puxa essa aldrava, mas com força.

Ele obedeceu, e a terça parte da planície tornou-se visível.

— Torna a puxar — indicou a criada.

Desta vez, tornaram-se visíveis dois terços. Ao terceiro puxão, toda a planície resplandecia.

— Também a podes arrancar, se quiseres.

O filho de Noinín assim fez, e o feitiço de Gleann Dearg desapareceu por completo.

— Agora, puxa a deste lado da porta.

No momento seguinte, uma voz proferiu:

— Sou Fear an Fháinne. Que pretendes de mim?

— Quero que a rainha e a sua filha não voltem a enfeitiçar esta planície e Sgiathán Dearg venha imediatamente.

O poder da rainha terminou nesse momento e, pouco depois, Sgiathán Dearg encontrava-se entre eles. Quando o filho de Noinín atingiu o pássaro Sgiathán Dearg com a varinha, este transformou-se num herói mais formoso que qualquer outro homem e acompanhou-os ao lugar onde Noinín e os outros o aguardavam.

— Tinhas-me visto antes? — perguntou Noinín.

— Sim — respondeu Sgiathán Dearg. — Com certeza.

— Porque não me procuraste ou foste atrás de mim, em vez de me deixares só no mundo, a lamentar-me e a vaguear por lugares solitários?

— Não estava dentro das minhas possibilidades. Dominava-me a magia da rainha de Gleann Dearg, que me obrigava a permanecer no seu castelo como homem todas as noites, exceto três em cada sete anos. Foram essas que passei no do teu pai ou perto dele. De resto, se te encontrasse sob a forma de pássaro, que poderia fazer por ti?

— Absolutamente nada — reconheceu Noinín.

O seu filho mantinha relações excelentes com a jovem princesa de Gleann Dearg. Amavam-se muito, casaram e ficaram a viver nesse país.

— Voltemos para a nossa casa e deixemos isto ao meu filho -propôs Noinín.

— Não desejo outra coisa — declarou Sgiathán Dearg.

E puseram-se a caminho em direção ao Mundo Superior — os dois heróis que tinham sido corvos e a cunhada do Sol acompanharam-nos. Quando passaram perto da casa do Sol, Noinín sugeriu:

— Podíamos pernoitar aqui.

Assim fizeram. A rainha do Sol acolheu-os com entusiasmo, mostrando-se encantada e contente.

— Conheces esta mulher? — perguntou Noinín.

— Não — respondeu a rainha.

— Contaste-me que tinhas uma irmã que foi separada de ti há muitos anos.

— Sim, mas era então muito jovem. Não conheço esta mulher.

Noinín trouxera de Gleann Dearg a aldrava que convocava Fear an Fháinne e chamou-o.

— Explica à rainha que esta mulher é a sua irmã — ordenou-lhe.

Fear an Fháinne narrou a história, a rainha acreditou e ele desapareceu imediatamente.

— O meu marido jaz aqui convertido numa pedra — informou a rainha. — Foi a rainha de Gleann Dearg que o reduziu a essa forma. Dá-lhe saúde e força de novo. Liberta-o.

— Puxa essa aldrava — indicou-lhe Noinín. — Convoca tu própria Fear an Fháinne.

A rainha obedeceu. Ato contínuo, Fear an Fháinne devolveu ao Sol a sua força e brilho, encontrando-se perante a sua rainha, tão ágil e em bom estado como sempre.

Todos passaram a noite com alegria e prazer. Na manhã seguinte, ressuscitaram o corvo morto, o terceiro irmão. Os três homens que haviam sido corvos e lutado permanentemente na colina diante da casa do Sol eram irmãos de Sgiathán Dearg que também tinham sido enfeitiçados pela rainha de Gleann Dearg e continuariam a defrontar-se entre si, se não fossem resgatados.

Noinín regressou ao seu lar no Mundo Ocidental, acompanhada de Sgiathán Dearg e dos seus três irmãos.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

sábado, 4 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 153


Isabel Furini (Ao Amanhecer)


A. A. de Assis (Marilinda, Heroica Mulher)


Godô, que assinava Godofredo, chegou para tentar a vida na cidade nova. As ruas poeirentas assistiam ao erguimento simultâneo de centenas de casas, de madeira quase todas. Os moradores, por volta de cinco mil pioneiros, denunciavam pelo sotaque suas diferentes origens. Godô estava pronto para incorporar-se àquela aventura: vinha com algum capital, um jipe, muita esperança de enricar com a loja que planejava abrir.

No Fagundes Hotel, na Pensão Familiar e na Hospedaria Dona Chica não havia quarto disponível, tudo lotado. Godô não teve alternativa senão pedir pousada numa das casas da “zona”, quarteirão afastado do centro, onde cheirosas mulheres davam colo aos solitários do lugar. Marilinda, vasta morena de fartos cabelos negros, abriu o quarto e o coração para acolher o hóspede. Ele, se quisesse, poderia ficar ali até alugar uma casa. Pagaria cama e comida; os carinhos seriam de graça. Marilinda, por uma dessas razões que a razão desconhece mas sempre aplaude, gostara dele, assim de primeira olhada.

Em vez de alugar, Godô decidiu construir uma casa, com espaço para montar a loja na frente. Agradava-lhe, porém, a mordomia oferecida pela generosa hospedeira. Continuaria lá por uns três meses, o tempo que fosse necessário. Achava melhor do que hotel ou pensão: tinha conforto e companhia. Mais tarde, de alguma forma, compensaria Marilinda, tão bondosa era, embora bem mais Mari do que linda fosse.

Terminada a construção, Godô montou estoque (secos, molhados, armarinhos, de um tudo), mobiliou a casa, mudou, abriu a loja, formou logo promissora freguesia. Sozinho de noite, sentia saudade; convidou então Marilinda para governanta. Ela aceitou chorando de feliz, saiu da “zona”, acomodou-se na casa do amigo. Trabalhava de cozinheira, arrumadeira, balconista, lavadeira. Terminado o expediente, acalorava o repouso do patrão.

Solteiro, solteirão para bem dizer, com seus quarenta e tantos, ele jamais se casara. Por falta de tempo, dizia. Homem trabalhador, desde muito moço vinha juntando para se estabelecer num lugar de futuro. Ora se deu, todavia, que Marilinda um dia súbito embarrigou. O passado dela, mais por precisão do que por sem-vergonhice, não era lá essas coisas, desde menina na difícil vida-fácil. Mas coração puro estava ali, mulher leal, de serventia total, nunca reclamava, nada exigia, era toda uma oferta constante de trabalho e ternura ao patrão, agora futuro pai do seu primeiro filho, acidentalmente gerado.

Godô não ficou bravo não. Antes se emocionou até, com a ideia de ganhar herdeiro. Abraçou a companheira, abriu um vinho. Mas a situação dos dois não poderia continuar daquele jeito, a criança teria que nascer em lar organizado, era urgente providenciar o casamento nos conformes da lei, da fé e dos costumes, o passado dela pouco importaria.

Providenciou roupas melhores para a noiva, matriculou-a na escola para aprender as letras, as contas e os bons modos. Queria a mãe do seu filho devidamente transformada em dama,  que deveras ela  merecia,  tão  dedicada  a  ele  desde  o  dia  em  que ali chegara desospedado  e  cansado.  Era a amiga,  a  confidente,  a  servidora,  a  parceira  de  cama   e conversa. Seria injustiça descartá-la, agora que os negócios vinham rendendo e ela trazia no ventre a continuação dele, o filho não encomendado porém bem-vindo.

O bebê nasceu direitinho, e macho. A mãe queria o nome de Godozinho, o pai preferiu José, homenagem ao avô que o criara. Marilinda teve mais quatro, formando com José bonita prole de três meninos e duas meninas. A loja crescendo sempre, junto com a cidade. Godô agora barrigudo, cabeça calva, prestígio grande no lugar, vereador, diretor de várias entidades, só não o lançaram candidato a prefeito porque ele de fato não quis: temia perder fregueses. Aceitou ser presidente do orfanato: queria ajudar as crianças pobres, principalmente as filhas de mães solteiras. Heroicas mulheres, dizia, dando Marilinda como exemplo. Ela teve a sorte de se casar; outras no entanto lutavam sozinhas, marginalizadas. O orfanato iria acolher suas crianças não encomendadas mas bem-vindas, como o José. E assim se fez.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 5



1
Abaixa teu dedo em riste
e, antes que alguém, te descubra...
Sente a humildade que existe
nas cores da tarde rubra!
2
Afasta indignos clamores,
e falsas juras secretas,
que em meio a tantos pastores
há muitos falsos profetas!
3
A manhã, de alma serena,
e a tarde, de alma tristonha;
juntas, vão dosando a pena
da solidão de quem sonha!
4
Ao dedilhar minha lira,
bem cedo, ao romper da aurora,
a voz do vento suspira
gemendo como quem chora!
5
Ao fim da tarde, eu medito,
e percebo a contra gosto,
que a tristeza do infinito
se faz presente em meu rosto!
6
Ao rever a mocidade,
depois de velho e cansado...
Vi a sombra da saudade
nas cinzas do meu passado!
7
À tarde, o que me apavora,
é ver que a melancolia
nos meus olhos também chora
nas horas finais do dia!
8
Buscando cores mais belas,
Deus ouvindo os meus apelos...
Pintou brancas aquarelas
nas telas dos meus cabelos!
9
Carrego em minha mochila,
um brinquedo, amigo e irmão:
Meu pião, que ainda cochila
quando gira em minha mão!
10
Carro-de-bois, teu gemido
fez no sertão nossa história;
teu canto triste e sofrido
é culto em nossa memória!
11
Cerejeira, não se zangue,
que as suas cores florais,
têm a cor rubra do sangue
da luta dos samurais!
12
Com vingança não se encerra
tudo que o mundo desfaz...
Em vez de pactos de guerra
façamos tréguas de paz!
13
Corrupção - é o lado injusto
da mente perversa, insana,
que esquece o preço do custo
do resto da raça humana!
14
Cruzando nossos destinos,
nossas mãos, guardam segredos,
que meus dedos peregrinos
vão revelando em teus dedos!
15
Descalça vai para a escola,
a menina, e não se cansa...
leva sonhos na sacola
e em cada passo a esperança!
16
É bem mais pesada a cruz
que arrasta o velho andarilho,
quando o olhar quase sem luz,
é a luz dos olhos do filho!
17
Guardo esta velha cartilha
que foi luz dos olhos teus,
como centelha que brilha
nas trevas dos olhos meus!
18
Esquece a angústia incontida,
ama esse doce quebranto;
que em cada etapa da vida,
há lágrima, há riso e pranto!
19
Jangada - nos teus acenos,
não há sinais de maldade...
Mas em teus gestos serenos,
oceanos de saudade!
20
Mantém as mãos estendidas,
não firas outros irmãos...
Vê na cruz, que há mãos feridas
pelo perdão de outras mãos!
21
Mesmo por rumos incertos,
com Deus, fiz minha aliança:
Fazer dos braços abertos,
a grande cruz da esperança!
22
Nos braços de alguém que sonha,
ouço uma voz aos pedaços
de uma viola tristonha,
com saudade de outros braços!
23
O pão da vida é melhor,
e a massa cresce e se espalha,
tendo o sabor do suor
do rosto de quem trabalha!
24
O velho ancião, em seus passos,
já se arrasta entre os escombros,
como quem se entrega aos braços
da cruz que pesa em seus ombros!
25
O vento que beija a flor,
no galho onde a flor se arrancha,
nem deixa marcas no amor,
nem deixa mágoas nem mancha!
26
Quando a noite me tortura,
e a solidão me aquartela,
o vento triste murmura
soletrando o nome dela!
27
Quando a paixão me incendeia,
entre os gradis do meu teto...
Apago a luz da candeia
e acendo o fogo do afeto!
28
Quando, no amor, eu me aperte,
começo a fazer resumos...
Em busca de um rumo certo
para o amor que não tem rumos!
29
Sabiá, teu triste canto,
no alçapão que te prendeu,
em mim, dói do mesmo tanto
que em ti, tanto já doeu!
30
Se a seca, com seus ressábios,
deixa mil sonhos vazios...
Decreta a morte nos lábios
das margens secas dos rios!
31
Se há heróis, que se eternizam,
sendo sombras de outros sóis...
Na vida, todos precisam,
gravar seus atos de heróis!
32
Se placas mais luminosas
dão brilho a lutas inglórias...
Há derrotas dolorosas
que ofuscam falsas vitórias!
33
Sino!... Por que tanto alarde?
Há mais pranto em teu cantar...
Se és mesmo o pastor da tarde,
a tarde não quer chorar!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó/RN: Ed. do Autor, 2018.
Livro enviado pelo autor.

Rachel de Queiróz (O Quente e o Apertado)


Sempre defendi com paixão a teoria de que o homem não nasceu para viver nestas imensas cidades — formigueiros onde se concentra. Que a natureza humana pede espaços abertos, as distâncias curtas, os ares limpos, o viver natural do campo.

Mas outro dia essas minhas crenças — que na verdade exprimem as preferências mais veementes do meu coração — viram-se abaladas depois da leitura de um artigo não assinado, em jornal. Dizia o anônimo articulista que, ao contrário do que se clama, o homem não gosta de viver no campo, realmente detesta viver no campo. Que o homem acima de tudo é um animal gregário e só lhe apraz andar em bandos e enxames, como formigas ou abelhas.

A gente pensando — vai ver que é isso mesmo. O maior castigo que se pode impor a um homem é a solidão. Pior que os açoites ou correntes, há o castigo intolerável: o confinamento solitário. A natureza profunda do ente humano repugna ver-se isolada do convívio dos seus semelhantes, e o pior de todos os castigos é aquele que fere a nossa natureza profunda.

Vê-se aquele horror de pessoas amontoadas nas horas do rush nos trens da Central — é horror sim, mas logo se descobre que as pessoas gostam daquilo. Senão, davam um jeito. Não se dá jeito a coisas mais difíceis? Mas sentir-se amontoado, compactamente aglutinado, perdida a nossa identidade dentro do grupo, disso, obscuramente é que se gosta.

Que é que o homem entende por divertimento? Carnaval, procissão, barraquinha, quermesse, parada, baile: — aperto, multidão.

Recordo uma noite de carnaval no velho Highlife, tanta gente pulando no salão que dava para desmaiar. Chamamos nosso primo que viera conosco:

— Vamos para o jardim, aqui está quente e apertado demais!

E o primo, enxugando o suor do rosto, vermelho e sem fôlego, deixando-se arrastar por um tentáculo de cordão que ia passando perto:

— Mas eu gosto é de quente e de apertado!

É isso a gente: o quente e o apertado.

O camponês vive nos seus matos e só tem uma ideia: fugir dali, largar aquelas brenhas e aquela solidão, procurar a cidade, a aglomeração humana. Então deixa o sertão e a serra e se tocam todos, ele e os demais, para Rio e São Paulo, qualquer cidade grande, em procura de vida melhor, sim, mas principalmente em busca daquela atração maior de todas: a pululante companhia humana.

Aliás, pensando bem, a gente só se engana com isso porque quer. Desde os começos do tempo que o homem se agrega, se amontoa. Partindo do casal logo se chega à família, à tribo, à horda, ao povo, à nação, ao império. Quanto mais gente, melhor. O objetivo é congregar, uns porque aspiram a dominar os mais, que aceitam ser dominados conquanto a dominação lhes permita continuarem como unidades do rebanho. Rebanho: está aí o que o homem gosta de ser. Inventa palavras bonitas, nacionalismo, catequese, divisão dos frutos da civilização; mas o que ele quer mesmo é a proximidade, o toque, o cheiro, o convívio do chamado próximo. Bem próximo. A inefável promiscuidade.

Desde o índio. Toda a mata é deles, são uns poucos milhares, às vezes poucas centenas. Porque não se espalham para a caça e a pesca cada um com o seu arco e o seu landuá? Qual, têm que viver amontoados, juntam-se em ocas coletivas onde a tribo inteira dorme mais apertada do que marinheiros num porão de navio.

E as cidades antigas, dos hititas à Idade Média? Em qualquer cabeça de morto levantavam um muro em círculo e toca a apinhar gente ali dentro, As ruas eram corredores, os andares se trepavam uns sobre os outros. Não foram os americanos que inventaram as moradas coletivas, superpostas indefinidamente: já as havia no burgo medievo, já as havia em Roma e na Babilônia. Os americanos, dispondo de melhor técnica, apenas lhes aumentaram a altura.

E, falando em americano — por que dispondo eles de toda a vastidão do continente, foram se amontoar aos milhões dentro da pequena ilha de Manhattan, entre os dois braços de um rio? E de tal forma se multiplicaram e comprimiram que, literalmente, espirraram para o ar? Não foi necessidade de defesa, nem escassez territorial, nem riqueza especial daquele solo — ali eram apenas uns alagadiços doentios. Foi mesmo a atração da promiscuidade.

E favela? Por que, tendo em redor o morro inteiro, os barracos se apertam uns sobre os outros num espaço mínimo?

E rei? Pra fugir à solidão da grandeza, reúne multidões na sua corte. O palácio de Versalhes era uma aldeia formigante.

É inútil clamar e reagir contra a megalópole, pois para ela é que o mundo anda. Só quem ama o campo e deseja viver no mato em solidão, são alguns poucos excêntricos, misantropos, intelectuais sofisticados. O resto da massa humana, Deus lhe botou na alma o mesmo instinto gregário da abelha, que só sabe, só quer viver concentrada na colmeia, cada uma no seu alvéolo. Nem que morra por isso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 152


Nota:
A busca da chamada Terra Sem Mal é uma constante no jeito de ser e da concepção de mundo do povo Guarani. É um lugar intocado onde não existe nem rivalidades, violência e falta de reciprocidade. Um espaço mítico onde o teko porã (“bom proceder”) predomina em relação ao teko marã (“mal proceder”) e o mba’e meguã (“coisa má”) simplesmente inexiste. (Fonte: Terra sem Males)

Carolina Ramos (O Perdão)


O homem olhou-se no espelho, Não gostou do que viu. Por mais boa vontade que tivesse, não poderia deixar de constatar que o visto, não era aquilo que desejava ver! Estava velho! Velho, sim! Quantos anos teria?! Nunca se detivera em pensar nisto!

A verdade é que já nascera velho, barba branquinha como a neve… e que branquinha sempre seria, como se verões e primaveras jamais houvessem passado por ele.

Apertou entre os dedos o anel de gordura que lhe circundava o ventre e acrescentou a contragosto: — Velho e barrigudo! — péssimo binômio, abominado até mesmo pelos menos vaidosos. Reagiu em tempo: — Velho, sim, porém, nem tão barrigudo como o personificavam por aí, estufado de múltiplos enchimentos ao redor da cintura, a simular uma obesidade exagerada, que, na verdade, não era sua!

Detestava os papais-noéis que badalavam sinos às portas das grandes lojas, a arrematar a missão com aquele grotesco Ho… ho... ho!, sempre forçado e inoportuno! Todos eram de meia idade, tentando simular uma velhice robusta, que não chegava aos pés da sua, transpirando em bicas, dentro daquele casacão vermelho, acolchoado, pés metidos naquelas botas negras de cano alto, sem dispensar, é claro, as barbas postiças, nem sempre impolutas quanto às que ele penteava agora frente ao espelho. Todos, sem exceção, empenhados em simular a simpatia bonachona, que o “Bom Velhinho" deveria ter, para a todos conquistar.

Papai Noel verdadeiro, olhou-se novamente ao espelho. Viu-se cansado! Cansado como realmente estava! Pernas pesadas, corpo doído, desejoso de atirar-se numa poltrona, entregue a uma soneca sem fim!...

Pela primeira vez, não sentia ânimo para se desincumbir da tarefa que, durante toda vida, a cada dezembro, aguardava com entusiasmo e carinho, saudoso do sorriso das crianças à espera de sua chegada. Depois de tantos anos de dever cumprido, doía-lhe na alma a constatação de que o mundo repudiava o sonho, roubando à inocência das crianças, aquela fantasia, tão pura, do velhinho com um saco cheio de presentes para distribuir entre aquelas que se comportavam bem, durante o ano todo!

Chamavam-no agora de velhinho atrevido, malfeitor, usurpador das glórias natalinas, com suas bochechas coradas e sadias, que atraiam as atenções, não só dos pequeninos, mas, também, de famílias inteiras, a cercar sua figura de carinhos, fazendo dele alvo das alegrias de infinitos Natais, em detrimento do objetivo principal, que era lembrar o sublime nascimento do Menino Jesus!

Coração retalhado e cheio de angústia. Papai Noel indagava a si mesmo se acaso, não seria mesmo aquele velho atrevido, que se insinuava nos lares, a eclipsar as homenagens pertencentes ao Santo Menino, adormecido no presépio, e, por ele tanto amado?! Se assim fosse, não haveria dúvidas — era, mesmo, um grandessíssimo ladrão!

Batia no peito contrito: — Sim, talvez fosse mesmo um desprezível ladrão! E dos piores! — Roubara... e continuava a roubar, nada menos que, o Espírito do Natal!

A dor de consciência o exauria. Sugava-lhe as forças! Mas, o senso do dever o impelia a continuar. As crianças esperavam por ele. Precisava terminar de vestir-se para a longa viagem.

Lá fora, as parelhas de renas, atreladas ao trenó, impacientavam-se, pisoteando a neve e sacudindo os guizos, para chamá-lo ao dever.

Papai Noel procurou apressar-se! As pernas cansadas, enfiadas nas botas pesadas como chumbo, tentaram arrastá-lo até o trenó. Mas... a noite, fria, chegou primeiro, envolvendo-o com seu manto bordado de estrelas!

Papai Noel dobrou os joelhos e estendeu-se no alvo lençol da neve macia. Adormeceu... e só acordou no céu!

Naquele Natal, as crianças de todo o mundo regalaram-se com os presentes, deixados por seus pais nos sapatinhos, dispostos sobre o fogão, antes de irem para a cama.

Conformado, Pai Noel sentiu que não fizera falta! Em troca, tinha agora ao seu redor uma legião de anjinhos irrequietos a lhe pedir histórias, encantados com o seu riso franco, sem o costumeiro Ho... ho... ho!

Mas... de repente, aquelas bochechas coradas empalideceram! Ficaram mais brancas que as brancas barbas que as circundavam! O riso patético foi engolido - Os olhos tristes do Papai Noel baixaram, confusos, assumindo o peso daquela imensa culpa, acumulada em toda sua longa jornada! É que uma Senhora, muito linda, vinha em sua direção, caminhando sobre as nuvens, trazendo pela mão um Menino também de beleza inconfundível!

O velhinho dobrou os joelhos ante os dois seres que se aproximavam e, sem procurar esconder o constrangimento, murmurou em voz quase inaudível:

— Perdão, Jesus... perdão! Juro que eu não queria roubar nada... nada mesmo! Mas… mesmo sem querer… parece que acabei roubando!

No entanto, para sua surpresa, o Menino de olhos ternos, parecia não ouvir o que aquele homem lhe dizia. Estendia-lhe a mão para que se erguesse e, com voz doce, quase implorava:

— Papai Noel por favor, me conta uma história... conta?

Ao colo de Sua Santa Mãe, o Menino deleitou-se, encantado como qualquer criança de sua idade, a ouvir, atento, a voz, trêmula e cheia de emoção, que começava a contar:

— Era uma vez... um velhinho, muito velhinho mesmo... que, a cada fim de ano, queria ajudar para que todas as criancinhas fossem felizes, pelo menos por uma só noite! E, para realizar o seu sonho, o bom velhinho escolheu a mais bela de todas as noites, a Noite de Natal! Ou seja, aquela noite maravilhosa, em que, há muito tempo, nascera um Menino muito especial. Aquele Menino chamava-se Jesus e trazia consigo uma grande missão, que era dar Sua vida, pela salvação da humanidade!

Maria, coração angustiado por terríveis lembranças, acariciava de leve a cabecinha do Filho - temerosa de que tudo pudesse acontecer outra vez!

Finda a história, o Menino adormecera… guardava ainda nos lábios o esboço de um sorriso feliz!

Papai Noel engoliu um soluço de emoção, sentia-se perdoado!... Mergulhou o corpo cansado no fofo colchão de nuvens... e adormeceu, feliz!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 9 - Terceira Idade


Os velhos morrem porque já não são amados 
(Montherlant - Paris/França, 1896 - 1972)

Uma das formas de se apreender se um povo exercita de fato a cidadania, é verificando como este povo trata o velho, que se convencionou chamar de terceira idade. Pensamos que este tema ainda é tratado com ambiguidade. Por um lado, há os que não têm o menor respeito pelo idoso, por outro, há os que exageram, tratando os velhos de uma maneira piegas.

Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam... Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade (Paulo Mendes Campos).


Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a SI mesmo governar!
A. A. de Assis - PR

Para o trovador, a velhice é constantemente associada à saudade:

Sempre que a praça atravesso
curvada ao peso da idade,
por onde passo eu tropeço
num canteiro de saudade…
Ercy Maria Marques - SP

Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela.
A. A. de Assis - PR

Os anos trazem cansaços,
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice até o fim.
José Lucas de Barros - RN

Outras vezes, a velhice é também associada à tristeza e morte dos sonhos:

Vai findando a mocidade
e, nos meus dias tristonhos,
em surdina, uma saudade
chora a morte dos meus sonhos...
Izo Goldman - SP

Depois de muitas andanças,
cansado de tanta lida,
hoje vivo de lembranças,
juntando os cacos da vida...
Raimundo Andrade de Paiva - CE

Mas os sonhos não envelhecem, ou não deveriam envelhecer. Por mais que se tornem difíceis de serem realizados, não devemos abandoná-los.

Um sonho de juventude
não morre nunca, eu suspeito,
pois me assusta a inquietude
que ainda carrego ao peito.
Gonzaga da Silva - RN

Beirando a terceira idade
me aproximando do fim…
Vejo em grande atividade
a criança que há em mim.
Francisco Macedo - RN

Não importa a face externa
do corpo que envelheceu:
juventude é sempre eterna
no sonho que não morreu.
Antônio Bispo dos Santos - RJ

Se a mocidade se afasta,
não julgue a vida tristonha.
- A ação do tempo não gasta
o coração de quem ama!
Aparício Fernandes - RJ

Em outros momentos, a velhice é vista com mais naturalidade e até com certo entusiasmo:

Minhas netas, sempre rindo,
são meu alegre evangelho:
- musgo verde revestindo,
de esperança, um muro velho!
Lilinha Fernandes - RJ

Mas sociedades em que a preocupação com a produção de bens materiais não é um fim em si mesmo, o velho é visto como um ser que acumulou experiência e sabedoria e, portanto, tratado com mais respeito e dignidade. É o que está expresso nestas sábias travas:

Quanto mais a idade aumentou
e a ilusão se distancia,
a gente mais se alimenta
do pão da sabedoria.
Ercy Maria Marques - SP

O tempo tira a beleza,
rouba da gente a vaidade,
o tempo dá-nos firmeza,
sabedoria e bondade.
Nair Starling - MG

Velhice não é demência
nem é vã filosofia;
é fonte de experiência
que nos traz sabedoria.
Hélio Pedro Souza - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Monteiro Lobato (Fatia de Vida)


Não era homem querido, o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido é força pensar como toda gente.

“Toda gente!”

Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.

“É um esquisitão.”

Inútil dizer mais. O homem marcado vê-se logo posto de través e à margem, como o leproso. Torna-se um indesejável. É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do grêmio como a um corpo estranho, de malsão convívio. Assombramo-nos ao recordar os crimes de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras, matanças religiosas. Transportados à época vemos que o progredir humano não passa da consolidação das vitórias do “esquisitão” sobre “Toda gente”.

“Toda gente” não tolerava dúvidas sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz: A Terra move-se em redor do Sol. “Toda gente”, por intermédio de seus representantes legais, agarra o velho pelo gasnete (garganta) e força-o a retratar-se.

— Renega a heresia, infame, ou asso-te já na fogueira!

Galileu baixou a cabeça encanecida e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno ao Sol, teve que mudar de política e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje roda livremente. O monstro deu-lhe essa liberdade...

Como se vê, apesar da guerra que “Toda gente” move aos esquisitões as ideias destes influenciam e aos poucos transformam a mentalidade do Moloch. No começo o monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca. Depois volta atrás, medita e murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.

“Toda gente” tem hoje a caridade como dogma infalível, e por esse motivo encarou com assombro o doutor Bonifácio quando o esquisitão sorriu a uma frase nédia (brilhante) e lisa do cônego Eusébio. O cônego Eusébio, conspícuo representante legal do Moloch, dissera no tom solene dos que monopolizam a verdade sobre o orbe:

— Não há virtude mais sublime. Só ela tem forças para resolver a questão social. Aquele movimento belíssimo durante a epidemia da gripe em São Paulo — que réplica de escachar o espírito que nega! Todos à urna, governos, matronas, meninas, associações, todos empenhados em lenir o sofrimento dos pobres, como que a derramar Deus nos corações!...

O doutor Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.

— Sorri-se o herege? — interpelou o padre. — Nega até a caridade?

— Não nego — respondeu mansamente o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na plateia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio — sorrio para não chorar...

— Seja mais claro.

— Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti — e, repito, sorri para não chorar...

Depois de breve pausa de interrogativa expectação o doutor Bonifácio principiou.

— Isaura, a minha lavadeira...

As anedotas têm força de ímã. Vários curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.

— Minha lavadeira, como todas as lavadeiras, era uma pobre mulher de incomparável heroísmo, desse que os épicos não cantam, o Estado não recompensa e ninguém sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma nobre por excelência do heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.

— Que esquisitice!

— Porque é heroísmo ininterrupto, sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —, sem momento de repouso e, além disso, sem nenhuma esperança de qualquer espécie de paga.

— Vamos ao caso...

— Viúva com quatro filhos, a heroica Isaura matava-se no trabalho incessante. Aquelas mãos vermelhas e curtidas... Aqueles braços requeimados... Que máquinas! Era do movimento deles que vinha o sustento da casa. Parassem, repousassem — e a Fome, esquálida megera que ronda os bairros pobres, meter-se-ia portas adentro...

— Romantismo... “Esquálida megera”...

— No primeiro sábado da Grande Gripe, Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não me apareceu como de costume com a sua bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio uma vizinha.

“— A Isaura? — perguntei-lhe.

“— Anda às voltas com os filhos. Deu lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa roda-viva.

“— Hei de ir vê-la, coitada...

“— É caridade, senhor. A pobre é bem capaz de endoidecer...

“Não fui. Impediu-me a própria gripe, cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia comecei a sentir. Passei de molho três semanas e quando me levantei, e me preparava para ir ver Isaura, eis que ela me reaparece em pessoa.

“Em que estado, porém! Envelhecera vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos no fundo, o ar de uma coisa vencida pelo destino. E tossia.

“— Sente-se e conte-me tudo.

“Sentou-se e, sem derramar uma só lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua tragédia.

“Tinha em casa uma filha de dezoito anos, que trabalhava na costura; outra de dezesseis, que a ajudava na lavagem; um filho de quinze, entregador de roupa, e mais uma netinha de seis anos, órfã.

“A gripe apanhou-os a todos e a ela também. Mas a pobre criatura não soube disso, não o notou. Como perceber que estava doente se suas faculdades eram poucas para atentar nos filhos? E lá sarou de pé, sem um remédio. E como ela também sarariam os filhos todos se...”

O doutor Bonifácio voltou-se para o cônego.

— ... se a caridade não interviesse...

— Já sei onde quer bater — exclamou o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo de caridade não me refiro à assistência pública, nem sequer à filantropia. Falo da caridade sentimento, da caridade virtude cristã — concluiu baforando o cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

— ... se a caridade sentimento não sobreviesse por intermédio do coração bondoso de uma vizinha. Esta vizinha, compadecida daquele angustioso transe, telefonou a um posto médico narrando o caso e pedindo assistência. A ambulância veio justamente durante a ausência da Isaura, que saíra a compras, e levou-lhe todos os filhos para o Hospital da Imigração.

“Corriam boatos apavorantes a respeito deste hospital improvisado, onde — murmuravam — só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração.

“Assim, ao voltar da rua e saber do acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos, de enfermeiros mercenários, que seria das pobres crianças?

“Correu para aqueles lados, inquirindo às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’ ‘É lá naquela casa grande’, informavam-na pelo caminho.

“Chegou. Bateu. Esperou à porta um tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas, médicos, ajudantes, homens de avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere. ’‘Bata outra vez.’

“Afinal, uma alma caridosa...”

— Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego, sorrindo.

— ... uma alma caridosa apareceu e deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá, mais a netinha. A de dezesseis anos, porém, atacada de tifo.

“— Tifo?! — exclamou, alanceada (amargurada), a pobre mãe.

“A alma caridosa enterrou mais fundo o punhal:

“— Sim, tifo, e do bravo.

“A mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados, como fora de si, repetia a esmo a palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem. Fora a doença malvada que lhe arrebatara o marido.

“— Quero vê-la, quero ver minha filha!...

“— Impossível!

“Isaura lutou, insistiu.

“Inútil.

“A porta fechou-se com chave e a pobre mulher se viu despejada na rua.

“Andou muito tempo à toa, como ébria, sem destino. ‘Olha a louca!’, gritavam os moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos aluada.

“Súbito Isaura resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus, o mundo nada tem com eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São tudo para mim. Como gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu, mãe, os veja? Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’

“Havia de vê-los.

“Galvanizada pela resolução, Isaura correu a implorar socorro de um homem influente cuja roupa lavava.

“O influente deu-lhe uma carta. ‘Vá com isto que as portas se abrem.’

“Nova corrida ao hospital. Nova espera angustiosa. Por fim a mesma alma caridosa...”

O doutor Bonifácio entreparou, olhando para o sacerdote. E, como desta vez ele silenciasse, prosseguiu:

— Por fim a alma caridosa reapareceu e disse à desolada mãe:

“— Posso ir lá dentro saber de seus filhos, mas deixá-la entrar, não!

“— E a carta?

“— Inútil. É expressamente proibido.

“— Pois dê-me notícias de meus filhos, então.

“A alma caridosa foi saber dos doentinhos e a triste mãe, embrulhada em seu xale humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos depois reaparecia a alma caridosa.

“— Olhe, sua filha morreu.

“— Morr...

“E os olhos da miseranda mãe exorbitaram, seus dedos se crisparam...

“— Morreu!... Mas qual delas?

“— Uma delas.

“— Mas qual? Qual?...

“Já eram gritos lancinantes que lhe saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e sumiu-se...

“O infinito desespero de Isaura nessa noite em casa, a revolver-se na cama, a remorder o travesseiro... ‘Qual? Qual das minhas filhas morreu?...’ A dor requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha? Seria a Marietinha?’ E o cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas, meu Deus?’

“São dores que a palavra não diz. Imagina-as a imaginação de cada um. Adiante.

“No outro dia a mulher correu de novo ao hospital. Repete-se a mesma cena — a ansiosa espera de sempre, os pedidos com lágrimas a saltarem dos olhos. O ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não há indiferença na alma caridosa, que reaparece e pergunta:

“— Que quer de novo, santinha?

“— Meus filhos... saber...

“— Seus filhos? Não estão mais aqui. Foram removidos para o hospital do Isolamento, os dois.

“— Os dois?!...

“— Os dois, sim, porque a mais pequena também morreu.

“— A minha netinha morreu?!...

“— Coragem, minha velha, a vida é isto mesmo.

“E a porta fechou-se pela última vez.”

As três ou quatro pessoas reunidas em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo final da história. “E depois?”, era a sugestão de todos os olhos. O doutor Bonifácio prosseguiu:

— Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por instinto — num desvario, numa alucinação...

“Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:

“— Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom...”

O doutor Bonifácio calou-se. O cônego não achou que fosse caso de comentar. A roda dissolveu-se em silêncio.

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 151


A. A. de Assis (O Avô Desforrado)


Pitotiko afinal cresceu, como havia prometido. “Vou crescer, te juro, e quando for grande te acerto, te mando pros confins”. A promessa se deu quando ele viu o avô surrado de chicote por Zé Baitão, doze anos antes, o avô miúdo, curvo ao peso de mais de oitenta verões. Baitão cercou eles no caminho, no alto da serra, lhes roubou a égua e a carga, e sádico bateu no velho. O menino jurou crescer. Agora voltou parrudo.

A perguntar cadê Baitão correu os sítios das redondezas. O valente andava por lá, todos sabiam e tremiam, ninguém queria dizer onde, medo de que no confronto Pitotiko levasse a pior. Melhor jamais se encontrarem.

O menino outrora franzino estava homem feito, peito desenvolvido, olhos firmes, panca de bom brigador. Mas a fama de Zé Baitão assustava, o desalmado era infalível na mira, ligeiro na faca, aqueles braços enormes, pernas rápidas. Pegando Pitotiko, acabava com ele no primeiro golpe. Cabrito enfrentando touro brabo.

Se espalhou a notícia, Baitão ficou sabendo e se riu. Queria brincar com o garoto, dar-lhe uma lição. Não tinha batido nele quando bateu no velho porque o pequeno deu no pé. Era tempo agora de completar o serviço. “Vou tirar a roupa desse fedelho e pendurar ele num pé de pau pra todo mundo ver”. Falou isso em cada venda, zombeteiro.

A gente de juízo tentou tirar da cabeça do moço aquela ideia maluca de vingança. Melhor que voltasse pra cidade, esquecesse as juras, vivesse tranquilo, um jovem de tanto futuro. Conselhos todavia em vão. Era limpar a honra ou morrer, que sem isso não valeria viver.

Vieram correndo avisar que Zé Baitão vinha vindo, ia entrar logo no povoado, armado até os dentes. “Deixa vir, que eu quero ele em campo aberto”. E Pitotiko se pôs ao largo, nem um canivete na mão. “Está doido”, o povo dizia. “Isso é suicídio”, choravam as senhoras do lugar.

Zé Baitão chegou num cavalo baio, o chicote fazendo círculos no ar, o cigarro de palha pendurado nos beiços, a barba grisalha, suja. Se foi direto no rumo do adversário. Pitotiko parado, mudo, os olhos acesos, de longe o povo espiando. Baitão saltou do cavalo, foi logo largando a primeira chicotada. Pitotiko pulou veloz, livrou-se do golpe, contragolpeou num zás, ninguém viu como tomou a chibata das mãos do gigante. Pinchou fora o couro, se lançou na direção da fera. Baitão tirou a faca, o moço fez uma cambalhota, rodopiou as pernas, a faca foi parar numa moita de mato. Revólver em punho, a boca espumando, o ensandecido Zé disparou tiro daqui, tiro dali, o rapaz saltitando que nem pipoca. Acabadas as balas, Pitotiko ali ainda inteiro, gente e mais gente olhando sem crer no que via. “Ele tem o corpo fechado, só pode ser”, diziam.

Um segundo revólver foi lançado à poeira com certeiro pontapé, antes mesmo de Baitão sacar. Era agora corpo a corpo, o gigante totalmente desarmado, acerto limpo, na raça, no muque, hora de conferir quem era ali o valente. Baitão com a barba babada, o orgulho ofendido, fera desmoralizada pela destreza do domador.

Pitotiko finalmente falou: “Lhe disse que voltava crescido pra lhe mandar pros confins. Se encomenda pra quem puder, porco covarde, que os seus minutos tão contados. Bater em velho ocê sabe... Vem agora, machão de bosta, vem bater num homem, vem se brio tiver...

Pernada pra cá, braçada pra lá, Pitotiko deixou o desaforado cansar, bufar, grunhir, até cair. Esfregou o focinho dele na poeira, fez ele pedir misericórdia, chamou o povo pra de perto ver a humilhação, mandou afastarem as mulheres e as crianças, tirou a roupa do imundo. “Queria isso, não era? Vai ter o que queria. Vai ficar nu num pé de pau. Eu ia acabar com a vida dele, porém vou não, que nem vale a pena, tá bom assim. Ocês depois amarrem o porquera no rabo de um burro e levem ele pro delegado. Meu avô, que os anjos o tenham, desforrado está, e pode enfim repousar em paz, Jurei, cumpri”.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa. 
Livro entregue pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) III


A ALTRUÍSTA

Tanto conheço minha esposa ativa
Que em ser cristã à devoção apela.
O sentimento meu também deriva
Aos horizontes da informal favela.

Esta paixão que tanto nos cativa
E apaixonado sigo o senso dela,
Que me conduz à conclusão mais viva
Sobre o guardião da singular capela.

Vejo-a de joelhos, na oração clemente,
Pedindo a alguém, que nunca esteve ausente,
Todo agasalho e o desejado pão.

Por isto a fé, que em nosso lar existe,
Encheu a casa do esquecido e triste
Que não mais dorme no batido chão.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE

Desejo nunca essa megera intrusa
Que desnorteia o sentimento humano,
Traz a tristeza na inversão confusa,
Lesando a paz com seu injusto dano.

Fere a harmonia sem pedir escusa,
Leva a família ao desespero insano.
Abre lacuna que o viver recusa
Na concepção de um funeral tirano.

É dor da ausência que jamais se cala...
E a taciturna solidão propala
Numa saudade que jamais se esvai.

Esmaga a fé e não aceita prece;
E mal profundo que jamais fenece
No condoído coração de pai.
* * * * * * * * * * * * * *

A SIBIPIRUNA E O VENTO

Sibipiruna se dispõe ao vento
Que afoito abraça sua copa inteira.
E nem repara o meu olhar atento
Sobre a calçada - amarelada esteira.

Ela se entrega sem nenhum lamento
Ao vil pintor que não tirou carteira.
Hoje percebo que o maldoso intento:
Foi dar às pedras incomum floreira,

Ele se esvai, mas o amarelo fica
Para escutar da natureza rica
A aprovação que justifica o pranto.

E quando verde acolhe com carinho
No seio ameno, agasalhando ninho,
Que reproduz da natureza o canto.
* * * * * * * * * * * * * *

IMORTALIDADE

Nada mais quer... nada o vetusto anima,
Senão lembranças da vivência antiga.
Sempre debruço sobre a obra prima
Das rotas letras que a memória abriga.

Desconsolado, a solidão lastima
E o coração já não lhe diz: Prossiga!
Ninfa nenhuma lhe estimula à rima
Nem ouve os versos da feliz cantiga.

Triste soneto que à lembrança vem,
Verso de amor que o faz lembrar alguém
Que hoje ao seu lado já não mais declama.

Se entrega à morte renegando a vida...
No leito bruto do batel de ida
Ruma ao jazigo dos anais da fama.
* * * * * * * * * * * * * *

MÃE TICO-TICO

Ave garrida, benfeitora augusta,
Extinta quase... mas tomou à vida.
Servindo a alheia e se alegando justa,
Criando filha, de outra mãe, parida,

Mas eu bem sei o quanto a faina custa:
Ter os filhotes e buscar comida.
A esse mister a própria mãe se frustra
E a ti compete essa gloriosa lida.

E vence o ciclo.., e o sol a negra brilha
E nada falta para a estranha filha
Que ela protege como fosse sua.

Louvado seja quem adota e cria,
Pois, certamente, há de ganhar um dia
Um ninho santo onde o Senhor atua.
* * * * * * * * * * * * * *

PERENE ESPAÇO

O espaço é meu, porém em vão procuro
Ser inquilino de endereço certo,
Mas algo estranho se me põe no escuro
Quando antevia meu caminho aberto.

Sem luz alguma, a solidão conjuro
E com tristeza o coração aperto.
Aço da algema fere o meu futuro
E o meu destino cai no hostil deserto.

A salvadora que jamais esqueço
Se me aparece, sem nenhum tropeço,
Desata a amarra ao despertar ileso.

Livre! O compasso invade a minha tenda
E o som do acorde, da maior legenda,
Liberta o verso que jamais foi preso.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vânia Ennes.