sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Lucília A. Trindade Decarli (Versos Diversos) 1


Em versos, semente espalho;
meu solo é o papel, que aceita…
Entrego a Deus o trabalho
e espero pela colheita!…


BENDIÇÃO

Bendigo, aqui, a grandiosa obra de Deus;
o sol, a lua, estrelas — maravilhas.
Todo o ar da Terra; a vida em jubileus;
montanhas, vales, rios, mares e ilhas!

Bendigo os homens — nobres a plebeus
e os outros animais em suas trilhas;
todas as plantas que em seus apogeus
se reproduzem entre vastas milhas!

Da Natureza, assim, bendigo a lida,
com força ativa, segue destemida
a perpetuara criação, perfeita.

Bendito o grão, que é dado a semear,
bendita a chuva, pois faz germinar...
Bendito o lavrador, pela colheita!
* * * * * * * * * * * * * *

Deixando em mim forte anseio
pelo seu jeito de amar,
você se foi como veio:
– numa noite de luar!


NOITES DE LUAR

A tarde finda expondo o escuro véu;
raios de sol se apagam no poente...
Impetuosa, a lua, lá do céu
vem clarear a noite intermitente.

Ante o cenário, pensamento ao léu,
lembro um afeto imenso, transcendente...
Do amor não sei dizer quem foi o réu,
o fato é que o fim veio... intransigente.

Cada palavra ou ato do passado,
afloram na alma e tudo está gravado
no coração de, ao menos, um dos dois.

Hoje, entretanto, eu penso que, talvez
os dois se lembrem que a primeira vez
teve luar... e, em noite de um depois!...
* * * * * * * * * * * * * *

Deploro o tempo, arbitrário,
que em frente vai, sem parar,
pois se ele andasse ao contrário
voltaria a te encontrar!…


AMOR INESQUECÍVEL

Como apagar o amor inesquecível
quando as lembranças teimam em voltar...
Ao mesmo tempo, ver como é terrível
aos anos idos não poder tornar!

Os dias ágeis de um mundo insensível,
seguem seu curso sem jamais parar;
porém constato ainda ser possível
pausar na noite para, então, sonhar.

Sonhar que tu retornas aos meus braços,
que independente de outros fortes laços,
o nosso amor ressurge vitorioso!

Enquanto sonho vem um novo dia,
desfaz depressa a minha fantasia
e o tempo corre em seu giro impiedoso!...
* * * * * * * * * * * * * *

Mantenho este sonho louco
sem deixa-lo esmorecer;
se decair, pouco a pouco,
será bem triste o viver!

SONHO LOUCO

Anos a fio me persegue um sonho,
um sonho louco, cheio de paixão,
que mantém vivo o antigo amor risonho,
indiferente ao tempo e à solidão...

Meu sonho louco não quer ser tristonho
e nem, tampouco, ver lançada ao chão
esta esperança, à qual eu não me oponho,
mas dela escondo o sonho... e a dimensão.

Mas sufocado, estando ele oprimido,
há muito tempo atento ao meu gemido,
o sonho sai, liberta-se de mim...

Meu sonho louco voa, ganha espaços
para pousar-me, um dia, nos teus braços,
viver contigo um grande amor, enfim!
* * * * * * * * * * * * * *

Sanar miséria contida
no coração do indigente,
não consiste em dar comida,
mas trata-lo como gente!


MISÉRIA HUMANA
Caminhava sozinho esse ser peregrino,
que em silêncio ingeria o bem pouco que davam;
parecia treinado em ser grato ao destino,
quando, pelo caminho, as migalhas sobravam...

Era a própria miséria a trazer desatino,
um declínio evidente, o qual muitos miravam,
avistando, somente, o boçal figurino:
veste suja, rasgada e que aos pés se arrastavam.

E ninguém percebia, atrás dessa "moldura":
a alma triste, ferida, a isenção de estrutura,
coração injuriado — ambos fracos, vencidos...

Sem lutar se curvara ante a longa jornada;
por jamais rebelar-se à má sorte traçada,
integrara, o indigente, o vil rol dos perdidos...
* * * * * * * * * * * * * *

O tempo, marcas deixou
entalhados em meu rosto,
mas o amor, que perdurou,
minimiza o meu desgosto!

MARCAS DO TEMPO

Do escuro túnel de um tempo passado,
ressurge, audaz, o amor adormecido!
Relembro alguém sorrindo, e do meu lado,
mas que perdi sem querer ter perdido.

Em transe está meu ego e, arrebatado,
canta o passado em ode, destemido,
indo aportar num tempo afortunado
que conheci, porém, sem ter vivido.

Ao desalento o meu amor resiste,
tento esquecer reminiscência triste,
marcas do tempo em minha pele impressas…

O meu viver, repleto de saudade,
exige agora: vem felicidade,
liberta o meu destino das avessas!…

Fonte:
Lucília Alzira Trindade Decarli. Inquietude: poesias. Bandeirantes/PR: Sthampa, 2008.
Livro entregue pela autora.

Machado de Assis (A Causa Secreta)


Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, te-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cozido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

- Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor traze-lo.

- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

- Não, nunca o vi. Quem é?

- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

- Não sei quem é.

Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.

- Sabe que estou casado?

- Não sabia.

- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

- Domingo?

- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

- Não, respondeu a moça.

- Vai ouvir uma ação bonita.

- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.

" Singular homem!" pensou Garcia.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

- Valeu? perguntou Fortunato.

- Valeu o quê?

- Vamos fundar uma casa de saúde?

- Não valeu nada; estou brincando.

- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

- Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:

- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...

Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.

- Deixe ver o pulso.

- Não tenho nada.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

- Que é? perguntou-lhe.

- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

- Mate-o logo! disse-lhe.

- Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha  medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

- Fracalhona!

E voltando-se para o médico:

- Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

Fonte:
Machado de Assis. Várias Histórias.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 164


Antonio Brás Constante (A História Real de um Anjo)


Um anjo não é um ser mitológico com asas, mas é um ser de carne e osso que nos auxilia, ama, ampara, fazendo de nossa existência um lugar melhor para se viver. Este texto pretende falar sobre um desses anjos, uma mulher que, entre tantos nomes, poderia se chamar de Ana, Maria, Tereza, Lecir, Edna, Regina, Solange, Érica, Madalena, Santina, Nelsi, mas que dispõe de um nome único, um nome que bem poderia ser realmente de um anjo.

Sua história começa no interior de um dos estados deste imenso País, mais precisamente na roça. Trabalho árduo que compartilhava com o resto de sua família. Ainda muito nova perdeu o pai. Família grande, de muitos irmãos e irmãs. O campo era seu pequeno mundo e o resto do universo uma incógnita.

Sua frágil figura de semblante sereno, ainda jovem, foi desposada, iludida, tirada do seio de seu lar para viver o sonho das mulheres de sua mocidade, de poder se casar, quem sabe até partir para uma vida melhor. Triste ilusão, a inocência encontra a desilusão. O calvário do anjo começa. Quantos anjos já padeceram igualmente dessa deprimente sina?

Na infelicidade do matrimônio, sofreu desprezos, angústias, dores e desenganos, parindo seus filhos em meio a cruel abandono. Pela miséria passou, sem estudo, sem dinheiro, sem apoio. Uma de suas primeiras casinhas era pouco mais que um caixote. Quando chovia, colocava seu filho ainda bebê embaixo da mesa em um berço improvisado, pois as goteiras eram tantas que parecia não ter telhado. A mulher segurava sua outra criança, uma menina também pequena no colo, sobre a proteção de uma sombrinha velha, e ali ficavam até a chuva passar.

O mundo, agora gigante aterrorizante, bem que tentou minar suas forças. Ela apanhou tantas e tantas vezes da vida, mas mesmo assim seguiu em frente. Sem ter asas para voar, marcou seu destino com os próprios pés firmados no chão, forçando seu caminho ao encontro do futuro.

Catou quinquilharias que para outros era lixo, plantou, fez faxina, trabalhou como copeira, servente, costureira. Divorciou-se em um tempo em que ter a coragem de viver sozinha era algo mal visto e mal falado. Muitos dos amigos que pensava que tinha viraram-lhe as costas por ela ter ousado esse ato de liberdade.

Com muita luta, esta mulher, meio anjo meio gente, conseguiu criar seus dois filhos, superando as dificuldades que eram lançadas diante de si. Hoje a menina que ela segurava nos braços em noites de temporal é gerente de banco, mãe e esposa dedicada, uma pessoa especial. E o bebê que era colocado embaixo da mesa para se proteger, também cresceu, virou pretenso escritor, e resolveu neste dia das mães contar um pouco da história dessa mulher, sua mãe, seu anjo protetor. Um anjo de amor que poderia ter vários nomes, mas que para seus dois filhos, se chama Valdira, ou simplesmente MÃE.

Fonte:
Antonio Brás Constante.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 2


Abri meu coração
Escorreu poesia pra todos os lados.
* * * * * * * * * * * * * *

A chuva passou
Deixando no chão
Rastros de esperança.
* * * * * * * * * * * * * *

Ah, essa tua lonjura!
Sedento por ti
Navego em mim mesmo.
* * * * * * * * * * * * * *

Ainda com um gosto de dezembro na ponta da língua
Dou o primeiro ponto
Nas vestes que se ajustarão aos meus sonhos.
E as vestes de ontem?
Ah, estas agora agasalharão somente
As minhas lembranças.
* * * * * * * * * * * * * *

Descolore-me
Com teus beijos
Que em rendas
Me rendo a ti.
* * * * * * * * * * * * * *

Era tanta afinidade
Que ao tentar te remover
Camada por camada
Descobri que tu eras
Um pedacinho da minha alma.
* * * * * * * * * * * * * *

Miudezas...
Ah!
Era tanta coisinha
Que o amor
Até parecia encantado.
* * * * * * * * * * * * * *

Na sua simplicidade
Não quis ser muito
Mas aos milhares
Se repartiu.
* * * * * * * * * * * * * *

Pra não dizer adeus
Prolonguei meu ontem
Até que o sono me pegou no colo
Sonhando que era deus Apolo
Eternizei teu sorriso
Num belo amanhecer de luz.
* * * * * * * * * * * * * *

Quando eu penso em você
Uma úmida saudade
Me visita.
* * * * * * * * * * * * * *

Quando eu te vi
Meu coração mamulengou dengoso
Feito gato safado, cioso
Que preguiçosamente se esfrega nas cercas
Miando de amor.
* * * * * * * * * * * * * *

Ruidoso mar
Com as tuas batidas
Ensurdeces o fado
Que grita no meu peito.
* * * * * * * * * * * * * *

Se Deus quiser?
Talvez Ele queira.
Mas e o teu querer,
Ser a solução,
Ser de alguém a salvação?
Ah, mas como é cômodo
Esperar que o Outro seja.
* * * * * * * * * * * * * *

Varre-me
Com o teu torvelinho de desejos.
Desliza em meu corpo
Teu hálito sedutor.
Faça
Minh' alma desvairada e andarilha
Em êxtase rodopiar com o teu amor.
* * * * * * * * * * * * * *
 
Fonte:
Facebook da AVIPAF

XVIII Concurso “Fritz Teixeira de Salles de Poesia” (Prazo: 24 de Janeiro)

Categorias “Monte Sião” e “Geral”
Promoção “Fundação Cultural Pascoal Andreta”

REGULAMENTO

I. GERAL
1.    As inscrições estarão abertas de 02 de dezembro de 2019 até 24 de janeiro de 2020.

2.    Todas as poesias são inscritas na categoria GERAL. Somente após o julgamento e classificação dessa categoria são julgadas as poesias dos autores residentes em Monte Sião.

a.    Tendo sido classificado um texto na categoria GERAL, o mesmo não concorre na categoria MONTE SIÃO.

3.    Cada autor poderá concorrer com até 02 (dois) poemas, inéditos, e em língua portuguesa.

a.    A publicação em blogs pessoais não invalida o ineditismo, porém a publicação em livros, jornais e ou antologias quaisquer, bem como a inscrição simultânea em outro concurso similar, invalidam a inscrição.

b.    A participação no concurso é livre para autores de todas as idades, sem qualquer restrição.

c.    São aceitas inscrições de autores residentes e ou originários de quaisquer cidades ou países.

d.    A inscrição é gratuita.

e.    O tema das poesias é livre.

4.    Uma Comissão Julgadora, escolhida pela Fundação Cultural Pascoal Andreta, selecionará os melhores trabalhos.

5.    Os direitos autorais dos textos são de propriedade de seus autores.

a.    Ao enviar sua inscrição para este concurso, os autores concordam expressamente com a publicação das poesias inscritas no site da Fundação Cultural Pascoal Andreta (www.fundacaopascoalandreta.com.br), bem como no livro (edição comemorativa) a ser publicado, sem que qualquer ônus seja imputado à Fundação.

b.    Não é necessário que o autor faça o registro, para fins de direito autoral.

c.    A Fundação Cultural Pascoal Andreta declara que o livro a ser editado (edição comemorativa), não será comercializado em nenhuma hipótese, tratando-se ainda de tiragem limitada.

6.    O envio da(s) poesia(s) ao concurso significa inteira e completa concordância, por parte dos concorrentes, com este Regulamento. Casos omissos serão resolvidos pela Comissão Organizadora. As decisões são irrecorríveis.

7.    INSCRIÇÕES

1.    Para confirmar sua inscrição, o autor deverá preencher o formulário disponível no link Ficha de Inscrição.  https://form.jotformz.com/93343317266660

2.    A(s) poesia(s) deverão ser anexadas na mesma Ficha de Inscrição, em campos específicos.

3.    Ao final do preenchimento do formulário e tendo anexado sua(s) poesia(s), clicar no botão ENVIAR. Aguardar mensagem de confirmação de recebimento.

4.    Não serão aceitos textos e inscrições por email.

5.    As poesias deverão ser enviadas conforme abaixo:

a.    Digitação, preferencialmente, em fonte Times New Roman, tamanho12, ou fonte Arial, também tamanho 12, com espaço livre.

b.    Cada poesia deverá constituir um arquivo único, sem a indicação do nome do autor ou pseudônimo (os textos serão catalogados e indexados por numeração sequencial para encaminhamento à Comissão Julgadora).

A correlação entre as poesias e seus autores é determinada pelo arquivo anexado na Ficha de Inscrição e o índice numérico atribuído – portanto, vinculado unicamente a quem preencheu o formulário – sem que a Comissão Julgadora tenha acesso a qualquer informação antecipada dos poetas e seus textos.

Desta forma, a Comissão Julgadora conhece apenas as poesias e seu número, até que o julgamento seja concluído e o resultado publicado.

c.    Preferencialmente, salvar os arquivos em formato PDF. Arquivos no formato Microsoft Word (.doc ou .docx), OpenOffice, BROffice, LibreOffice ou Google Docs também serão aceitos.

d.    Não são aceitos arquivos no formato figura (JPG, PNG, etc)

e.    Não são aceitos links de compartilhamento em serviços como Dropbox, Google Drive, Skydrive ou similares.

6.    Em até 10 (dez) dias contados a partir do envio das poesias, os participantes receberão comunicado, por email, da confirmação de sua inscrição ou serão solicitados a corrigir eventuais irregularidades.

a.    Para os casos em que correções forem solicitadas, os participantes terão até 03 (três) dias para apresentá-las.

b.    Caso as correções não sejam recebidas, a inscrição será invalidada.

7.    Caso o autor identifique que houve erro em sua inscrição (arquivo incorreto, informações incompletas, etc), enviar email para concurso.fritz.2020@fundacaopascoalandreta.com.br, indicando no campo “Assunto”: Concurso Fritz 2020: Solicitação de Correção de Inscrição

a.    A solicitação será avaliada pela Comissão Organizadora e o autor será notificado da decisão

b.    Em nenhuma hipótese preencher uma nova Ficha de Inscrição.

8.    Eventuais solicitações de substituição da(s) poesia(s) inscritas devem ser encaminhadas para o endereço de email concurso.fritz.2020@fundacaopascoalandreta.com.br, indicando no campo “Assunto”: Concurso Fritz 2020: Solicitação de substituição de poesia
a.    A solicitação será avaliada pela Comissão Organizadora e o autor será notificado da decisão
b.    Não enviar as poesias até a decisão da Comissão Organizadora
c.    Em nenhuma hipótese preencher uma nova Ficha de Inscrição

9.    A relação completa de participantes,  cujas inscrições foram aceitas pela Comissão Organizadora, será publicada no site da Fundação Cultural Pascoal Andreta – www.fundacaopascoalandreta.com.br – no dia 02 de fevereiro de 2020.

10.    Solicitações de esclarecimentos poderão ser encaminhadas para o endereço eletrônico (concurso.fritz.2020@fundacaopascoalandreta.com.br), indicando no campo “Assunto”: Concurso Fritz 2020: Esclarecimentos.


III. PRÊMIOS

1.    Haverá premiação para os três melhores trabalhos, na categoria GERAL:
a.    1º lugar: R$ 2.000,00 (Dois mil reais)
b.    2º lugar: R$ 1.500,00 (Mil e quinhentos reais)
c.    3º lugar: R$ 1.000,00 (Mil reais)

2.    Para os três melhores trabalhos de autores da cidade de Monte Sião:
a.    1º lugar: R$ 1.000,00 (Mil reais)
b.    2º lugar: R$ 600,00 (Seiscentos reais)
c.    3º lugar: R$ 400,00 (Quatrocentos reais)

3.    Menção Honrosa para 07 (sete) trabalhos, na categoria GERAL.

4.    Menção Honrosa para 02 (dois) trabalhos, na categoria MONTE SIÃO.

5.    Menção Honrosa para o concorrente mais jovem.

6.    Todos os classificados, bem como aqueles contemplados com Menção Honrosa, receberão um livro contendo as poesias premiadas (edição comemorativa) e Diploma personalizado.

7.    Os resultados do concurso serão publicados no site da Fundação Cultural Pascoal Andreta – www.fundacaopascoalandreta.com.br – no dia 08 de março de 2020.

8.    A entrega dos prêmios acontecerá no dia 18 de abril de 2020, sábado, às 19:30h.

9.    Para os classificados do 1º ao 3º lugares, que não sejam de Monte Sião, haverá hospedagem com café da manhã.

10.    No caso do não comparecimento de qualquer dos autores classificados no evento de premiação, o respectivo prêmio poderá ser enviado por correios (diploma, jornal, edição comemorativa) e depósito em conta corrente bancária, desde que expressamente solicitado pelo autor em até 30 dias contados a partir de 18 de abril de 2020. Findo este prazo o valor será devolvido ao patrocinador e o ganhador perderá o direito ao prêmio.

11.    Os poetas classificados, inclusive Menção Honrosa, poderão declamar sua poesia ou, se desejarem, indicar outra pessoa para fazê-lo.

Fonte:
https://www.fundacaopascoalandreta.com.br/

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 163


A. A. de Assis (A Hora do Espírito)


No dia em que completei setenta anos, convoquei meu eu-corpo e meu eu-espírito para uma reunião muito séria. Fizemos um balanço do que em conjunto vivemos até então e ficou decidido o seguinte: que eu-corpo, aposentado, estressado, desmotivado, entregaria de vez o comando a eu-espírito.

Nada contra eu-corpo. Até lhe sou gratíssimo pelas alegrias que desde criança me deu: pelos lugares em que me fez andar, pelas coisas bonitas que me permitiu ver, pelos odores, sabores, maciezas e outras gostosuras do mundo-matéria. Nem mesmo alguns contratempos me aborreceram: as dores de cabeça, os resfriados, as cólicas de rins, os dedões destroncados, essas coisas de que ninguém escapa. As próprias travessuras dele perdoo, as dos remotos bons tempos de jovem principalmente. Aos moços dá-se o direito de moderadamente pecar: há a eternidade inteira para a remissão.

Agora, porém, começa outra etapa da vida, a quase-definitiva, e é portanto hora e vez de entronizar eu-espírito na direção dos atos. Eu-corpo que se distraia com as suas caminhadas matinais, seus mingaus, suas novelinhas de televisão, alegres e inocentes recreios tão próprios de quem nada mais cobiça nem nada mais tem a ver com a história deste mundo. Daqui para a frente, manda eu-espírito... Vive le roi!

O que em setenta anos se fez sob a gerência de eu-corpo resultou praticamente inútil. A velha dupla ter-poder, mais uma vez, mostrou-se fofa, chocha e oca. São coisas efêmeras, vaidade pura. Aqui são conquistadas a duras penas (se e quando); aqui se diluem sem deixar sequer saudade. Vale a experiência, e tão só.

Agora, sim, posso começar a de fato viver. Liberto das pressões de eu-corpo, finalmente eu-espírito inicia o ensaio para as maravilhas do fora-e-além do tempo.

Nesta etapa, cada qual, conforme seu temperamento e suas preferências, tem um modo próprio de ser espiritualmente feliz e útil. Uns se dedicam ao trabalho gratuito e generoso em entidades assistenciais; outros ao cultivo da música, da pintura, da jardinagem; outros ainda à meditação e a fazer orações em favor dos que delas mais necessitam. Nada em troca de ganhar dinheiro, muito menos tendo por meta virar celebridade. Prazer mesmo, prazer intelectual, espiritual, que faz bem à gente e a quem por perto está. Só isso.

Meu eu-espírito optou por ser feliz e útil compondo versos. Vez ou outra algum texto em prosa, mas prioritariamente versos. Velho sonho iniciado lá longe, no onde-e-quando fui menino, mas só agora livre para voar sem reticências nem ponto final.

Sobretudo sem egoísmo. A arte me faz muito bem; no entanto não somente a mim. Reparto-a com quem nela possa encontrar algum benefício. Por exemplo: se faço trovas, cuido de fazê-las recheadas de mensagem boa. Se filosóficas, que elas ajudem alguém a pensar; se humorísticas, que ajudem alguém a sorrir; se líricas, que ajudem alguém a sonhar.

É assim que treino para dar sequência à vida na eternidade. Eu-corpo, que do pó se originou, ao pó retornará; eu-espírito seguirá o rumo que Deus determinar.

Deus determina o rumo da gente dando a cada um de nós um tipo de talento. Aos poetas, o belo talento que permite fazer do verso um modo de semear amor.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, verso e prosa.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 3

Nota:
– As palavras com *, o significado está no glossário após os sonetos.
– Foi mantida a grafia da época para não comprometer a rima ou a contagem silábica.

_________________________________________________






ANFITRITE

Louco, às doidas, roncando, em látegos*, ufano,
O vento o seu furor colérico passeia...
Enruga e torce o manto à prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.

A seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pássaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo o pano.

Sossega o vento; cala o oceano a sua mágoa;
Surge, esplêndida, e vem, envolta em áurea bruma,
Anfitrite, e, a sorrir, nadando à tona d'água,

Lá vai... mostrando à luz suas formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco* amículo* das ondas.
* * * * * * * * * * * * * *

ÂNGELUS

Desmaia a tarde. Além, pouco e pouco, no poente,
O sol, rei fatigado, em seu leito adormece:
Uma ave canta, ao longe; o ar pesado estremece
Do Ângelus ao soluço agoniado e plangente.

Salmos cheios de dor, impregnados de prece,
Sobem da terra ao céu numa ascensão ardente.
E enquanto o vento chora e o crepúsculo desce,
A ave-maria vai cantando, tristemente.

Nest'hora, muita vez, em que fala a saudade
Pela boca da noite e pelo som que passa,
Lausperene* de amor cuja mágoa me invade,

Quisera ser o som, ser a noite, ébria e douda
De trevas, o silêncio, esta nuvem que esvoaça,
Ou fundir-me na luz e desfazer-me toda.
* * * * * * * * * * * * * *

EGITO

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe* somente arranca um raro piorno*
Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto
De um adelo* que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranquilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.
* * * * * * * * * * * * * *

MUSA IMPASSÍVEL

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme* de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra*,
Cante aos ouvidos d alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
* * * * * * * * * * * * * *

MUSA IMPASSÍVEL (II)

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro* do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
* * * * * * * * * * * * * *

NATUREZA

Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,

Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.
* * * * * * * * * * * * * *

VÊNUS

Branca e hercúlea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de trono, a formosa escultura,
Vênus, túmido o colo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.

Um sopro, um quê ele vida o gênio lhe insuflara;
E impassível, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A majestade real de uma beleza rara.

Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gládio arranca,
Julgo vê-la descer lentamente do trono,

E, na mesma atitude a que a insolência a obriga,
Postar-se à minha frente, impassível e branca,
Na régia perfeição da formosura antiga.
* * * * * * * * * * * * * *
 
GLOSSÁRIO:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados; belchior; comerciante.
Amículo – pequeno manto feminino, espécie de mantilha.
Anguiforme –  que tem forma de cobra.
Crebra – que ocorre repetidamente; frequente, amiudado.
Glauco – esverdeado
Ibe não encontrei o significado. Se alguém souber, favor me escrever para eu fazer uma errata.
Látego – correia ou corda própria para açoitar; chicote, açoite.
Lausperene – exposição solene e permanente do Santíssimo Sacramento à adoração dos fiéis na igreja.
Piorno – designação comum a diversas plantas de diferentes gêneros, especialmente Genista e Retama, da família das leguminosas, nativas da Europa.
Plaustro – veículo descoberto, carreta.

Fonte do Glossário: Dicionário Houaiss

Monteiro Lobato (A Mosca e a Formiguinha)


– Sou fidalga! – dizia a mosca à formiguinha que passava carregando uma folha de roseira. – Não trabalho, pouso em todas as mesas, lambisco de todos os manjares, passeio sobre o colo das donzelas – e até me sento no nariz. Que vidão regalado o meu...

A formiguinha arriou a carga, enxugou a testa e disse:

– Apesar de tudo, não invejo a sorte das moscas. São malvistas. Ninguém as estima. Toda gente as enxota com asco. E o pior é que têm um berço degradante: nascem nas esterqueiras.

– Ora, ora! – exclamou a mosca. – Viva eu quente e ria-se a gente.

– E além de imundas são cínicas – continuou a formiga. – Não passam de umas parasitas – e parasita é sinônimo de ladrão. Já a mim todos me respeitam. Sou rica pelo meu trabalho, tenho casa própria onde nada me falta durante o rigor do mau tempo. E você? Você, basta que fechem a porta da cozinha e já está sem o que comer. Não troco a minha honesta vida de operária pela vida dourada dos filantes.

– Quem desdenha quer comprar – murmurou ironicamente a mosca.

Dias depois a formiga encontrou a mosca a debater-se numa vidraça.

– Então, fidalga, que é isso? – perguntou-lhe.

A prisioneira respondeu, muito aflita:

– Os donos da casa partiram de viagem e me deixaram trancada aqui. Estou morrendo de fome e já exausta de tanto me debater.

A formiga repetiu as empáfias da mosca, imitando-lhe a voz: “Sou fidalga! Pouso em todas as mesas... Passeio pelo colo das donzelas...”, e lá seguiu o seu caminho, apressadinha como sempre.

Moral: Quem quer colher, planta. E quem do alheio vive, um dia se engasga.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 162 (Especial Sara Furquim)

A trovadora paranaense, professora Sara Furquim nasceu em 27 de dezembro de 1918 e faleceu sexta-feira, dia 10 de janeiro de 2020, aos 101 anos de idade.




Rachel de Queiroz (Os Sobrenomes)

    

O nome de batismo, pai e mãe escolhem tirando de livro, de artista. de celebridade ou da folhinha. Mas sobrenome a gente herda dos antepassados. Seria curioso se pudesse descobrir como esses nomes se fixaram, o que significam. A maioria, claro, veio de apelidos; no sertão está ainda em curso a transformação de alcunha em sobrenome; (Luiz Ferreiro, João Zarolho, Maria Boleira), como a formação dos patronímicos: Zé Cirilo, Mané Rosa, Chico Júlio são os filhos de Cirilo, Rosa e Júlio.

Aliás essa dos patronímicos é a base de inúmeros sobrenomes que trouxemos de Portugal: Rodrigues filho de Rodrigo, Fernandes de Fernão, Peres de Pero, Mendes de Mem ou Mendo, Sanches de Sancho, Álvares de Álvaro, e daí por diante.

Há, porém, entre os muito usados os que não fazem mais sentido nenhum, não têm tradução inteligível atualmente; Queiroz, Peixoto, Macedo, Fonseca, Alencar (que Pedro Nava diz vir do árabe), Andrade etc.

Entre os nomes de árvores (que alguns pretendem foram os adotados preferencialmente pelos cristãos-novos), nota-se a particularidade de que só algumas árvores vindas do Velho Mundo são as escolhidas: — Carvalho, Pereira, Pinheiro, Silveira (ou Silva) ; já bananeira, aroeira, abacateiro, por serem árvores do Novo Mundo, não têm tempo nem tradição para se transformarem em genealógicas.

Os bichos são aqueles onde reina a mais singular discriminação. Nome de bovino, por exemplo, usa-se só o Bezerra; bezerro masculino, vitelo/a, boi, vaca, touro, ninguém usa. Carneiro e Cordeiro há aos milhares; mas ovelha, borrego. não. Dos suínos tirou-se o Leitão, mas jamais o porco. Da capoeira saem Pinto, Galo, Pato, Coelho; mas galinha e peru, não. Tem Leão mas não tem leoa; poucos Tigres e Camelos; inúmeros Lobos, Falcão. Mas hiena, chacal, crocodilo, píton, abutre, não tem, e todos são do Velho Mundo e não novidades americanas. Dir-se-á que é porque se trata de bichos traiçoeiros, peçonhentos ou repugnantes. Mas então por que ninguém usa a inocente girafa, o belo leopardo, o majestoso elefante, a imperial águia? São comuns Rato, Barata, nossos inimigos. Porém os dois maiores amigos do homem, o cão e o cavalo, não têm vez.

Muitos usam o nome de um país como apelido: França, Portugal, Holanda. Brasil. Mas não tem Inglaterra, Alemanha, Noruega etc. Por quê? Embora alguns dos seus gentílicos apareçam; lembro Inglês de Souza, Freire Alemão, Ferreira Francês. Os profissionais deveriam ser muitos, mas são poucos — Monteiro, Lavrador; e Ferreiro, que, curiosamente, só existe no feminino; Ferreira,

Das províncias brasileiras só dão sobrenome Amazonas, Bahia, Maranhão. Não conheço Sergipe, Pará, Mato Grosso etc. Por que será? E há os nomes dos descendentes dos nobres do império, que não podendo herdar o título ficavam na terra do título — Jaguaribe, Ouro Preto, Rio Branco.

Os sobrenomes mais comuns do brasileiro são, como se sabe, Silva, Costa, Lima, Pereira, Oliveira. Costa, evidentemente, não se refere ao detalhe anatômico no caso seria ‘‘Costas’’; terá alguma conotação com marujo ou negreiro, homem ido ou vindo da “costa’’ (d’África)? E se é verdadeiro que os nomes de árvores e plantas são de cristãos-novos, todos os nossos milhões de Lima, Silva, Oliveira, Pereira serão descendentes de judeus batizados?

Está aí um estudo para se fazer. A gente procura resolver os mistérios da Lua e Marte, mas com os mistérios que pululam ao nosso redor ninguém se preocupa.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 1976.

J. G. de Araújo Jorge (Solilóquios)


SOLILÓQUIO AMARGO

As vezes (e estamos em nossas vidas, naturalmente,
vivendo dias e noites, dias e noites
há tanto tempo . . . )

- e, de repente, um pensamento amargo e insólito
toma conta de mim.

Um dia - e ele chegará - um de nós terá
que partir,
e o outro, vai ficar.

Eu? Você? Quem terá que se despedir
sem dizer para onde? Quem terá que ficar
sem dizer para que?

Imagino esse dia, - e um estranho pavor me paralisa
por alguns momentos.
Não concebo minha vida sem Você,
e, - desculpe-me - tenho mais pena de Você
se for eu que tiver que ir embora.

Ha tantos anos vimos trazendo nossas vidas como uma vida só,
e de tal modo as juntamos que o dia em que tivermos que separá-las
a que ficar, será um simples destroço, um pedaço mutilado de vida
incapaz de sobreviver.

Para que, meu Deus? a gente construir com duas vidas
um destino só,
fazer esse trabalho dias e noites, de tantas pequeninas coisas
aparentemente insignificantes,
de momentos de puro prazer, de horas de lenta agonia,
construí-lo lentamente, como quem estivesse fazendo uma
obra para sempre,
e, subitamente - sem o menor aviso, sem a menor razão,  
depois de tanta coisa juntada, e sonhada, e sofrida,
uma força maior - como uma faca - corta tudo ao meio
e uma metade se enterra, e a outra metade, de pé, se desmorona
como um auto-mausoléu de areia?
.....................................................................................................

Eu te agradeço, Senhor, que este pensamento
só raramente me venha, e logo o sopres além...

Que seria de mim, afinal, se ele pousasse por mais tempo
em minha vida?

SOLILÓQUIO AO ENTARDECER

I

Interessante, amor, como depois de tantos descaminhos
de tantos desajustes, a vida vai ajeitando a felicidade,
ou a felicidade vai se ajeitando na vida, sem a gente perceber,
se enrodilhando em si mesma como um gato no tapete.

Como vamos reduzindo as proporções de nossos sonhos
(sem que nos apercebamos disto),
modificando nossos planos (aquelas aspirações que eram
como viagens à Marte),

limitando os horizontes de nossa felicidade,
e por isso mesmo, tornando-a possível, real, palpável,
capaz de ser possuída, sem nada perceber de seu conteúdo,
antes tomando uma forma imprevista. Apenas.

Estranho, amor, como a felicidade
pode se reduzir a um quase nada ( sem deixar de ser tudo)
sem deixar de ser felicidade!

(Sabe uma coisa, amor? A gente só pode ser feliz depois
de ter andado muito, e ter provado
os tragos amargos da vida,
e depois que afinal a gente chega a uma espécie de filosofia
sobre o querer, e o poder alcançar...)

Interessante, amor, mas vamos concluindo que a renúncia
é a irmã mais velha da felicidade,
- Irmã Renúncia! - e só por ela, chegamos tantas vezes
aquela alegria de saber
quanto nos basta esse pouco que nos transborda das mãos...

II

Hoje, por exemplo, basta estar em casa, basta Você estar comigo
para que me sinta feliz...
De repente me ocorre que há hoje tanta gente que não pode estar em casa,
que não sabe o que é estar em casa - sentir vagamente, em torno
o calor de uma companhia que faz de cada coisa inanimada
algo que existe, e vibra, e sente, e sofre, e ama,
como um Ser.

( De deixe que lhe confesse, depois de tanto tempo lado a lado:
- nunca a casa me parece tão vazia, como agora
se acaso chego, e não a encontro...)
É tão fácil entender: Você está em toda parte: nas flores das jarras,
na porta entreaberta, no rumor da cozinha, na bolsa sobre a cama,
em tantos lugares! na ordem das coisas, no gosto dos detalhes,
(em tantos detalhes só acessíveis à minha percepção...)

Hoje, basta você estar em casa e já me sinto feliz,
se seu andar, seu vulto, sua voz,
"materializam" sua presença a todo instante.

Basta saber que cada providência sua é um pensamento em mim,
basta saber que vamos nos sentar juntos, à mesa ( e essa é
sempre uma hora de comunhão)
- e vamos nos deitar juntos... E até já não importa se
conversamos tão pouco
sobre o tão pouco de nossas vidas,
se nossos corpos apenas se tocarão, ao acaso, sob os lençóis,
como dois ramos acenando, na sombra, ao entardecer.

Quem nos vir há de pensar que somos apenas duas pessoas sentadas
à mesa,
conversando na sala,
vendo televisão,
duas pessoas dormindo na mesma cama;
e entretanto, que engano !
- somos dois mundos, duas vidas
construídas há tantos anos em tantos irreconstituíveis momentos,
unidas como fios, por duas agulhas que tecem
a mesma malha,
e eu não poderia olha-la como a olho, se Você não viesse de tão longe
em meu coração,
nem Você sorriria para mim desse modo, se eu não fosse para Você
tanta coisa de que talvez nem Você mesmo se aperceba.

Não sei se consigo traduzir essa sensação de felicidade
que me vai possuindo inteiro - e se vai entranhando em mim,
numa infinita tranquilidade
que sinto na alma, no coração, nas mãos, nos braços, no corpo todo,
sem nenhuma razão aparente,
e por tão pouco, dirão.

Mas hoje basta Você estar em casa, mais nada, apenas estar em casa,
na tua casa que é a minha casa, na nossa casa,
para que eu me sinta feliz.

III

Chega a ser tola, confesso, essa emoção que faz com que
me deixe ficar esquecido
numa poltrona, em silencio, na penumbra, nesta hora quase noite...
E olhando as coisas em torno, e recostando o corpo pesado,
e cerrando os olhos para me ver melhor, me digo sem nenhum medo
que me sinto tão bem, tão em paz com a minha vida
que ate podia morrer.

(Nada deve haver de pior, afinal, para a felicidade,
que a gente chegar de volta, ao fim do dia,
e não encontrar em sua casa
senão uma casa vazia.)

Hoje, basta saber que continuamos juntos, a seguiremos assim
até o fim;
que tormentas medonhas não conseguiram separar-nos,
que vencemos obstáculos que pareciam intransponíveis
além das nossas forças;


- que continuamos juntos, no mesmo barco, como dois remadores
que ficaram em seus lugares quando as vagas cresceram,
e apertaram suas mãos aos duros punhos dos remos
e somaram a sua fé, a avançaram mais fortes, a sentiram que sobreviveram
porque estavam juntos.

Hoje, basta pensar que alcançaremos as calmarias do fim da viagem
quando as correntes e os ventos não estremecerão mais
nossos nervos cansados,
nem agitarão nossos cabelos grisalhos,
e, quem sabe? - chegaremos à terra, braços dados
um no outro, como antigamente, quando era o começo,
e cegos e aventurosos não conhecíamos o roteiro,
nem perigos e emboscadas...

Hoje, basta Você estar em casa para que me sinta feliz...

E nesse momento em que a felicidade parece se reduzir
e ficar mais leve,
para que a possamos carregar,
deixa que lhe confesse amor, que hoje, Você é sempre,
e é muito mais que aquele amor que foi, e continua sendo,
porque posso chamar Você agora
( e até a hora derradeira )
o que Você não podia ser outrora:
- a minha companheira.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Quatro Damas. 1964.

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: A Árvore da Saúde)

Era uma vez um homem que tinha três filhos. Quando estava prestes a morrer, chamou-os e disse que a única coisa que tinha para lhes deixar era o pomar, pelo que o deviam repartir de modo que cada um ficasse com uma parte. Acrescentou que uma das árvores produzia frutos da saúde, mas absteve-se de explicar qual ou onde se situava.

Poucos dias mais tarde, expirou e os filhos prepararam-se para dividir a herança. Mas o mais novo era ainda tão pequeno que não o incluíram e repartiram o pomar em duas partes iguais. O irmão deserdado ficou apenas com a árvore solitária situada no centro do terreno. Decidiram não lhe atribuir terras, por pensarem que, se fosse precisamente aquela a da saúde alguns frutos cairiam nas áreas que lhes pertenciam.

Um dia, inteiraram-se de que a princesa do país estava gravemente doente e o rei prometera concedê-la como esposa, além de oferecer metade do reino, a quem fosse capaz de a curar. Em face disso, os irmãos decidiram tentar a sorte. O mais velho foi o primeiro a dirigir-se ao pomar com uma cesta no braço, para colher uma peça de fruta de cada uma das suas árvores, após o que se encaminhou para o palácio. No entanto, o percurso obrigava-o a atravessar um bosque e, assim que penetrou nele, surgiu-lhe uma mulher idosa.

— Bom dia. Que levas na cesta?

— Rãs e sapos — replicou o rapaz. — Mas que tens com isso?

— Então, serão rãs e sapos — decidiu ela, e afastou-se.

Ele reatou a marcha até que alcançou o palácio, onde um guarda lhe perguntou:

— Que pretendes, rapaz?

— Trago na cesta frutos da saúde e quero entrar para curar a princesa — foi a resposta.

Disseram-lhe que admiravam a boa intenção, mas primeiro tinham de inspecionar o conteúdo da cesta. Quando levantaram a tampa, depararam-se-lhes numerosas rãs e sapos, que tentavam sair. Ato contínuo, aplicaram uma valente surra no rapaz e expulsaram-no.

Entretanto, o segundo irmão foi por sua vez ao pomar e encheu uma cesta com todo o tipo de frutos. Ao entrar no bosque, encontrou-se com a mesma velha, que o cumprimentou e perguntou que continha a cesta.

— Serpentes e víboras — informou o rapaz, não sem alguma brusquidão.

E ela replicou:

— Então, serão serpentes e víboras.

Uma vez diante da entrada do palácio, ele pretendeu passar com os frutos da saúde, mas, quando os guardas levantaram a tampa da cesta, viram-se perante as serpentes e víboras mais repelentes, o que lhe valeu uma surra não menos contundente que a sofrida pelo irmão.

Por último, o mais novo dos três rapazes quis tentar igualmente a sorte. Colheu frutos da sua árvore e pôs-se a caminho. No bosque, surgiu a inevitável velha.

— Bom dia. Que levas na cesta?

— Também te desejo um muito bom dia — replicou ele, cordialmente. — A cesta contém frutos da saúde.

— Então, serão frutos da saúde — determinou ela, e seguiu o seu caminho.

O irmão mais novo atravessou o bosque e, um pouco adiante, desembocou numa praia, onde viu que a rebentação arrastara para terra um grande esturjão, agora ofegante na areia.

— Vou ajudar-te, peixinho infeliz — articulou ele.

Apressou-se a lançá-lo à água e, no momento imediato, o esturjão assomou à superfície e gritou:

— Muito obrigado! Se alguma vez estiveres em apuros e puder valer-te, não hesites em me chamar.

O rapaz seguiu de novo o seu caminho. Pouco depois, avistou um corvo e um enxame de abelhas que travavam luta renhida, com estragos consideráveis em ambas as partes. Ele dirigiu-se-lhes e tentou fazer-lhes compreender a insensatez da peleja, pois podiam voar para onde desejassem. Reconheceram que tinha razão e, enquanto se afastavam, tanto o corvo como as abelhas lhe gritaram:

– Obrigado pelo bom conselho! Se alguma vez te vires em apuros e pudermos ajudar-te, não hesites em nos chamar!

O jovem prosseguiu em frente, até chegar à entrada do palácio.

— Que pretendes daqui, rapaz? — perguntaram-lhe.

— Trago nesta cesta frutos da saúde, para que a princesa os coma e se cure.

Louvaram-lhe a boa intenção, mas insistiram em inspecionar o conteúdo, porque já se lhes haviam deparado as coisas mais estranhas. Com efeito, a cesta estava cheia de maçãs de aspecto admirável. Ele ofereceu duas a um dos guardas, que comeu uma e sentiu-se imediatamente mais leve e alegre e o acompanhou à presença do rei e da princesa.

O jovem ofereceu algumas maçãs a esta última, a qual, quando consumiu a primeira, conseguiu levantar a cabeça da almofada, após a segunda pôde sentar-se e, no final da terceira, ergueu-se de um salto e pôs-se a dançar no quarto.

O rei alegrou-se profundamente e prometeu ao rapaz que seria o marido de sua filha. No entanto, ela não estava de acordo, por o considerar demasiado insignificante. Explicou ao pai que o homem com o qual se prontificaria a casar tinha de ser alguém no mundo. De qualquer modo, se devia desposar aquele jovem, este tinha previamente de recuperar o anel que o rei perdera no mar, vinte e quatro anos antes.

Ante isto, o jovem ficou preocupado. Todavia, lembrou-se do esturjão, correu à praia, chamou-o e comunicou-lhe a situação em que se encontrava. O peixe mergulhou ao fundo do mar e reapareceu pouco depois com o anel. O rapaz regressou ao palácio profundamente aliviado.

O rei recebeu-o com particular assombro, procurou a princesa e anunciou-lhe:

— Sabes perfeitamente que deves casar com quem te curou. Por conseguinte, deixa-te de exigências e desposa-o sem mais delongas.

No entanto, ela respondeu que não o podia fazer. Queria ter um marido que estivesse em condições de construir um palácio tão grande e magnificente como o do pai, além de que devia ser de cera e brilhar ao sol como se fosse de ouro puro. O rei tratou de transmitir estas exigências ao rapaz, que, a princípio, assumiu uma expressão carrancuda, mas acabou por se recordar das abelhas, afastou-se rapidamente, chamou-as e revelou-lhes o dilema em que se encontrava. Elas, porém, asseguraram-lhe que fariam tudo ao seu alcance para o comprazer. Quando, no dia seguinte, todos se levantaram, erguera-se um palácio de cera de dimensões e magnificência idênticas às do que o rei habitava, resplandecente ao sol como se fosse de ouro puro.

O monarca voltou a consultar a filha e advertiu-a:

— Agora, não posso conceder mais adiamentos. Tens de casar com ele, já que as suas capacidades excedem de longe as de qualquer homem médio.

A princesa mostrou-se muito surpreendida com o que via, mas não se deu por satisfeita. Quis que o pai comunicasse ao rapaz que obtivesse os três tições mais velhos do inferno. Prometeu que, se o conseguisse, não faria mais exigências e casaria com ele de bom grado.

O rei ficou extremamente indignado com a nova pretensão, mas acabou por ceder e informou o jovem. Este, a principio, sentiu-se muito apreensivo, mas não tardou a lembrar-se do corvo, o apóstolo de Satanás, ao qual valera numa aflição. Por conseguinte, chamou-o e expôs-lhe o problema. A ave prometeu fazer tudo ao seu alcance para o ajudar e não tardou a reaparecer com os três tições. O rapaz aceitou-os, dirigiu-se prontamente ao palácio e largou-os no regaço da princesa. Arderam imediatamente, e ela esteve na iminência de ficar sufocada com o fumo. Muito assustada, pôs-se de pé de um salto e correu para os braços do pretendente. Já não havia nada que impedisse o casamento. Celebraram-se, pois, as bodas e os noivos receberam metade do reino como dote.

Fonte:
Contos Tradicionais da Dinamarca

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 161


Alcântara Machado (O Lírico Lamartine)


(Desembargador Lamartine de Campos)

Desembargador. Um metro e setenta e dois centímetros culminando na careca aberta a todos os pensamentos nobres, desinteressados, equânimes. E o fraque. O fraque austero como convém a um substituto profano da toga. E os óculos. Sim: os óculos. E o anelão de rubi. É verdade: o rutilante anelão de rubi. E o todo de balança. Principalmente o todo de balança. O tronco teso, a horizontalidade dos ombros, os braços a prumo. Que é que carrega na mão direita? A pasta. A divina Temis não se vê. Mas está atrás. Naturalmente. Sustentando sua balança. Sua balança: o Desembargador Lamartine de Campos.

Aí vem ele.

Paletó de pijama sim. Mas colarinho alto.

- Joaquina, sirva o café.

Por enquanto o sofá da saleta ainda chega para Dona Hortênsia. Mas amanhã? No entanto o desembargador desliza um olhar untuoso sobre os untos da metade. O peso da esposa sem dúvida possível e o índice de sua carreira de magistrado. Quando o desembargador se casou (era promotor público e tinha uma capa espanhola forrada de seda carmesim) Dona Hortênsia pesava cinquenta e cinco quilos. Juiz municipal: Dona Hortênsia foi até sessenta e seis e meio. Juiz de direito: Dona Hortênsia fez um esforço e alcançou setenta e nove. Lista de merecimento: oitenta e cinco na balança da Estação da Luz diante de testemunhas. Desembargador: noventa e quatro quilos novecentas e cinquenta gramas. E Dona Hortênsia prometia ainda. Mais uns sete quilos (talvez nem tanto) o desembargador está aí está feito Ministro do Supremo Tribunal Federal. E se depois Dona Hortênsia num arranque supremo alargasse ainda mais as suas fronteiras nativas? Lamartine punha tudo nas mãos de Deus.

- Por que está olhando tanto para mim? Nunca me viu mais gorda?

- Verei ainda se a sorte não me for madrasta! Vou trabalhar.

A substância gorda como que diz: Às ordens.

Duas voltas na chave. A cadeira giratória geme sob o desembargador. Abre a pasta. Tira o Diário Oficial. De dentro do Diário Oficial tira O Colibri. Abre O Colibri. Molha o indicador na língua. E vira as páginas. Vai virando aceleradamente. Sofreguidão. Enfim: CAIXA DO O COLIBRI. Na primeira coluna: nada. Na segunda: nada. Na terceira: sim. Bem embaixo: PAJEM ENAMORADO (São Paulo) - Muito chocho o terceto final do seu soneto SEGREDOS DA ALCOVA. Anime-o e volte querendo.

Não?

Segunda gaveta à esquerda. No fundo. Cá está.

Então beijando o teu corpo formoso
Arquejo e palpito e suspiro e gemo
Na doce febre do divino gozo!

Chocho?

Releitura. Meditação (a pena no tinteiro). Primeira emenda: mordendo em lugar de beijando.

Chocho?

Declamação veemente. Segunda emenda: lebre ardente em lugar de doce febre.

Chocho?

Mais alma. Mais alma.

A imaginação vira as asas do moinho da poesia.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja da China.

Lóla Prata (Parlendas)


São versos de poucas sílabas poéticas, recitados para entreter, acalmar e divertir crianças, escolher quem deve iniciar um jogo ou os que devem tomar parte numa brincadeira. São sempre rimas ou ditos educativos ou satíricos e não têm música.

Em Portugal, a parlenda é chamada de cantilena ou lengalenga. Foi introduzida no Brasil pelos portugueses.

Considerada literatura oral ou vocal,    (é...)

As parlendas se encontram

* nos acalantos. que são cantigas para fazer criança dormir;

* nos jogos. onde há sempre disputa e competição;

* nas canções de roda: Senhora D. Sancha; Ciranda, cirandinha;

"A Ciranda deveria ser (simbolicamente é) a dança da vida. Ficamos em círculo, olhando uns para os outros, damos as mãos, cantarolamos juntos e tentamos acertar o passo ao ritmo de uma música. Bonito isso, não? Deveria ser assim o convívio dos humanos..." Edna Lopes

* nas adivinhações ou que é que é ...

–  o que é que é que cai de pé e corre deitada?

– o que é que é feito para andar e não anda?

– o que é que é surdo e mudo, mas conta tudo?

– o que é que é que sobe quando a chuva desce?

– o que é que é que sempre se quebra quando se fala?

– o que é que pela manhã caminha com 4 pernas, ao meio-dia com 2 e à tarde com 3? (um dos enigmas mais conhecidos no mundo inteiro, talvez o primeiro dos três que a Esfinge propôs a Édipo).

* nos brincos, parlendas mais fáceis, ditas e recitadas pelos pais ou babás para entreter ou aquietar as crianças:

Palminha, palminha
Palminha de São Tomé
Pra quando papai vier
*

Dedo mindinho
Seu vizinho
Maior de todos
Fura-bolos
Cata-piolhos

MNEMONIA. do grego mnem = lembrança.

Segundo Luís da Câmara Cascudo, quando as parlendas se destinam a fixar ou ensinar algo às crianças (números ou ideias) são chamadas de mnemonias:

Um, dois, feijão com arroz
Três, quatro, feijão no prato
Cinco, seis, feijão pra três
Sete oito, comer biscoito
Nove, dez, comer pastéis

Outra parlenda muito conhecida;

Uni, dune, tê,
salame mingue,
um sorvete colore,
o escolhido foi você!

***

Rebola, bola / Você diz que dá na bola
Você diz que dá, que dá / Na bola você não dá...

A parlenda é um dos primeiros entendimentos da criança, permanecendo gravada na memória na idade adulta.

Há parlendas que são de iniciativa da própria criança, utilizadas nas suas
brincadeiras. Algumas das mais conhecidas, contando os botões do casaco
para ver com quem vai casar,

Rei / Capitão / Soldado / Ladrão.

*

(desfolhando uma flor e pensando em alguém)
Bem me quer. Mal me quer,
Bem me quer. Mal me quer....

Muito conhecidas também são as parlendas para colocar os distraídos em armadilhas; pede-se que a pessoa repita uma determinada expressão depois da última palavra dita, por exemplo "de sete facadas".

Eu ia por um caminho...
Caminho - de sete facadas...
Encontrei uma vaca...
Vaca - de sete facadas...
Encontrei uma casa...
Casa - de sete facadas...
Encontrei um morro...
Morro - de sete facadas!

A tradição oral das parlendas é transmitida de geração em geração, com variantes regionais. Infelizmente, hoje, essa rica manifestação popular só sobrevive em algumas regiões rurais brasileiras e em alguns trabalhos de folcloristas que as catalogaram.

TRAVA-LÍNGUA

Outro tipo de parlenda interessante no folclore brasileiro, trava-língua, poesia admirada por crianças, consiste em versos rimados ou não, difíceis de pronunciar:

Se o papa papasse papa / Se o papa papasse pão
O papa tudo papava / Seria o papa papão,

*

Se a liga me ligasse, eu ligava a liga.
Mas, como a liga não me liga eu não ligo a liga.

*

O doce perguntou pro doce qual era o doce mais doce.
O doce respondeu pro doce que o doce mais doce
era o doce de batata doce.

*

A aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha.

*

Um tigre, dois tigres, três tigres.

*

O rato roeu a roupa do rei de Roma.

*

Três dragões graduados.

*

Chá mancha o chão?

*

O peito do pé de Pedro é preto.

*

O tigre tragou o trigo.

*

Trinta brincos trincados.

*

Três tigres trituram trinta terrinas de trigo.

*

Bagre branco, branco bagre.

*

Como pouco coco / Como pouco / coco compro.

*

Eu tagarelaria / Tu tagarelarias / Ele tagarelaria

*

O relógio tique-taqueia tique-taque, tique-taque;
antes que o tique ticasse, o taque não tiquetacava.

*

Em francês: Un chasseur sachant chasser sans son chien est un bon chasseur.

*

Em italiano: Trenta tre trentini entrarono in treno, tutti trenta tre trotellerano.

*

Em inglês: How much wood would a woodchoaker choak if a wood-choak could choak wood?

Fonte:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.
Livro enviado pela autora