segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Vinicius de Moraes (A letra A: Palavra por Palavra) Abajur


Abajur: Foi, talvez a primeira palavra francesa de que tive conhecimento, e ela me traz recordações tão lindas da Ilha do Governador que, ainda agora, a escrever estas memórias, tenho os olhos rasos d'água.

Nossa casa, com duas janelas de frente, ficava à beira-mar, em Cocotá, a meio quilômetro da grande amendoeira onde o bondinho da ilha rangia na curva, em demanda de Freguesia. Eu tinha por aí uns nove anos, e era a coisa mais pulante, grimpante e nadante que já existiu. Nunca menino algum aceitou menos as vias normais de acesso. Sempre em carreira, desviava compulsivamente minha velocidade para as sebes, que varava, os muros, que escalava, e os fossos, que transpunha. Vivia aos saltos, de baixo para cima, de cima para baixo. Bastava ver um acidente qualquer de terreno, uma cerca, uma catraia a seco, um valado, e eu, dando tudo, precipitava-me a mil e - zumpt! - saltava-os feito um doido dançarino. Era como um Nijinski infante a dar entrechats cada vez mais altos e elásticos, numa ânsia de alcançar não sei o quê, quem sabe o infinito, quem sabe Deus...

E caía exato

Como cai um gato.

…para recomeçar uma correria nova, fosse para a casa de Mário e Quincas, meus amiguinhos pobres, fosse para o pontão das barcas da Cantareira, de onde Augusto mergulhava.

Augusto era o meu deus. Irmão mais velho de Mário, Quincas e Marina, minha namoradinha secreta, Augusto representava para mim o herói total configurado no mergulhador. Eu admirava, da ponte de Cocotá, a agilidade com que ele, numa escalada de macaco, subia as estacas mais altas, de onde dava os saltos de anjo mais lindos, penetrando o mar como uma faca em ponta, sem qualquer espadana, e com um marulho apenas perceptível. E eu ficava sempre numa aflição, de não vê-lo nunca mais voltar à tona. Augusto demorava dois minutos folgados a vasculhar o fundo, do qual trazia sempre qualquer coisa de belo ou de útil: caranguejo, ferro-velho, estrela-do-mar, ou o que fosse, que me atirava de baixo, em saltos que lhe faziam soerguer meio corpo da superfície, como um golfinho brincalhão. Nós andávamos os quatro sempre de súcia, e a mim me espantava a naturalidade em que seus irmãos o tinham, sem nenhuma mostra de admiração. Foi ele que me ensinou a mergulhar e mover-me no fundo do mar, rente ao lodo; e mais tarde a pescar a dinamite: uma barbaridade que, na época, eu achava o máximo. Augusto colocava-se à proa do barco, nós nos agachávamos na popa como podíamos, ele acendia o pavio, esperava um momento, soprando-o forte, e, de repente, no segundo antes, lançava a banana de dinamite ao mar. A explosão, gorda e cava, levantava, ato contínuo, um cogumelo espumarento, e logo os peixes mortos começavam a subir. Mas os que nos interessavam eram os que ficavam atordoados, atrás dos quais mergulhávamos rápido. Levávamos, para essas ocasiões, pequenos sacos, e, uma vez cheios, metíamos o peixe dentro da camisa da roupa de banho - como se usava na época - e voltávamos semi-asfixiados à tona. Nunca mais pude esquecer o contato frio e viscoso dos peixes contra a minha pele.
                                                *

À tarde, na sala de visitas, como então se dizia, onde tudo o que havia de luxo era o belo jarrão chinês, trazido por meu bisavô de uma de suas andanças, minha mãe sentava-se ao piano e ficava tocando horas perdidas.

Nós ficávamos, minha irmã mais velha e eu, sentados no chão, geralmente a armar colagens ou a folhear o Tico-Tico, o Eu sei tudo e o Tesouro da juventude, nossa primeira leitura infantil. Os sons vinham, encantatórios, mergulhar ainda mais nossas vidas naquele clima doméstico, como se nós fôssemos a única família do mundo. E a verdade é que éramos a única família do mundo, unidos pelos mesmos horários e pelos mesmos desígnios de poupança, pois meu pai, por uns maus negócios que fizera, andava mal de vida.

Minha mãe, ainda tão moça, aflorava as teclas, o olhar perdido longe. Ela tinha sido aluna de francês de meu pai, na velha chácara da Gávea, e se casara aos 15 anos com esse homem bem mais velho, que se apaixonara perdidamente por ela, e que, bom poeta, vivia a lhe fazer sonetos, odes, rimancetes, baladas, elegias - tudo enfim que constitui e consolida a arte de fazer versos.

Eu a achava linda, toda rechonchuda, os longos cabelos soltos e os olhos de um azul tão vivo que, às vezes, parecia perturbar-lhe a visão, como se ela estivesse enxergando mais do que devia. Posso ouvir ainda os primeiros tangos que ela tocava, dos quais "La cumparsita" era o mais vibrante e "Caminito" o mais terno...

E de repente foi o fox-trot. Que alucinação! Meu pai chegava com novas partituras, que minha mãe tirava laboriosamente ao piano:

Hindustão
Paraíso das mulheres divinais
Ó Hindustão
Quem te ama não te esquece nunca mais...

Eram os primeiros doces tentáculos do polvo tateando à toa num mundo despreocupado e sem malícia. Nós não sabíamos de nada ainda. Sabíamos que éramos uma família que morava numa ilha pertencente à capital de um país que não sabíamos tampouco subdesenvolvido. Sabíamos vagamente que houvera uma guerra mundial e um terremoto no Japão. E súbito, aquele ritmo diferente e cheio de langor, a insinuar conivências pecaminosas na penumbra...

Abajur
Com tua branda luz de cor bleu
Tu, só tu
Tu me inspiras não sei por quê...

Minha irmã e eu dançávamos, dois passos para lá, e dois para cá, como mandava o figurino. E os sons me envolviam dessa tristeza que nunca mais me abandonou, que tem a ver com alguma coisa sempre buscada e nunca totalmente possuída: não sei se o amor, não sei se a vida, não sei se a paz. Saudade, certo, que me fez poeta e compositor, e que, apesar de todas as flores e amores que a vida me deu, só me fez crescer em melancolia e solidão.

Fonte:
Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 31/12/1969

Silmar Böhrer ( Divagações Poéticas) 5


Ninguém duvida,
o livro dá vida
à nossa vida.
* * * * * * * * * * * * * *

a vida é uma comédia
infestada de tragédias
* * * * * * * * * * * * * *

às vezes penso
no que sou
e vejo
que nem isso sou
* * * * * * * * * * * * * *

a felicidade existe
em doses homeopáticas
em gotículas
em borrifos
* * * * * * * * * * * * * *

ideias fechadas não produzem
vegetam
* * * * * * * * * * * * * *

Porque a vida,
tão grande,
é tão pequena
que se vai
num piscar de olhos.
* * * * * * * * * * * * * *

Labirintos da memória,
antigos paióis,
silos
de armazenagem
de conhecimentos.
* * * * * * * * * * * * * *

Entre uma rodada e outra
de redes que vão ao mar,
cá estou eu a divagar,
há vida melhor, mais douta ?
* * * * * * * * * * * * * *

Apregoo,
expertos na vida
sejamos.
Eu, aprendiz,
esperto.
* * * * * * * * * * * * * *

Vivo no tempo
a destempo
sem contratempo
* * * * * * * * * * * * * *

tudo na vida
tem seu preço
tem seu peso

Fonte:
O Autor.

Nilto Maciel (Jornal de Domingo)


Escondido atrás do jornal, o professor Luiz Vaz passava o domingo. E garimpava pedras preciosas, por puro deleite. Ou para exi­bi-las a seus alunos.

Fora-se o tempo de Virgílio, Camões, Bilac. Agora, só queria os novos poetas. Nada de vertitur interea coelum*.

Olhos enfiados no chão da folha, Vaz sonhava. Nunca o chamariam velho. Antes, o eterno jovem. O mestre da língua viva. Polêmico, moderno, brasileiríssimo.

Súbita emoção. Arregalou os olhos. Um poema de Noto de Sissa! Leu o título. Uma beleza! O primeiro verso. Um primor!

Com sofreguidão, percorreu todo o poema. Voltou ao título, ao primeiro verso. Releu tudo, cheio de entusiasmo.

***
Na sala de aula, Luiz Vaz freou sua emoção. E amarrou a rubra língua no céu da boca. Queria um comentário escrito de cada aluno ao poema que copiava no quadro-negro.

***

Riu na cara dos alunos. Não aprendiam nada. Pareciam idiotas. Especialmente a "crítica" feita por Oton.

– Uma barbaridade!

E se pôs a falar os versos de Noto de Sissa. Pequena obra-prima da poesia épica.

A maioria dos jovens abriu a boca e queda ficou. Um, porém, não concordou com a análise do mestre. E defendeu, com língua e dentes, sua opinião.

Irritado com a presunção de Oton, o professor tratou de humilhá-lo. Não passava de um aluno, um fedelho. Longe ainda se achava de atingir os primeiros degraus do saber. Enquanto ele, Luiz Vaz, já alcançara o ápice da cultura literária. Ora, exercia a crítica e a cátedra há trinta anos. Escrevia para revistas estrangeiras. Correspondia-se com pessoas do tamanho de Barthes, Foucault, Jakobson, em francês e russo.

Oton de Assis nada mais falou. Na verdade, não podia se ombrear àquele homem.

E deixou-se anônimo entre os colegas. Seu lirismo, porém, ainda germinaria páginas tão belas como as publicadas no jornal daquele domingo.
___________________
Nota do Autor:
*Entretanto o céu gira. Virgílio, Eneida, Livro II; 250.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor

domingo, 19 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 167


Isabel Furini (Meandros do Amor)

Fonte: Facebook

Humberto de Campos (Barba de Bode)


Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.

Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.

O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:

- O compadre já usou chá de barba de bode?

- Barba de bode? - indagou o outro, espantado.

- Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por dia.

E acentuou, sincero:

- É um santo remédio, compadre!

Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.

- Que quantidade, coronéo? - indagou o sertanejo.

- Uns dez quilos.

Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às arvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!

Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:

- Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?

- Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.

- E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?

Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:

- Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de cabra!

Lilia Souza (Poemas Avulsos)


CACOS DE VIDRO

Quando caminhas,
tua indiferença
de teus passos escorre,
como cacos de vidro
que se espalham no asfalto
por onde te seguem
meus passos cansados.
* * * * * * * * * * * * * *

DE REPENTE

No vão da noite
a luz se acende
estrela cadente
de repente
cai
cai e mente
que se esvai
a dor da saudade
e quem mais se espera
vai chegar, afinal,
de repente.
* * * * * * * * * * * * * *

FEITO FACA

No meio da noite do quarto
um raio de quarto de lua
força a vidraça
rompe a renda da cortina
feito faca
fere o silêncio
perfura o escuro.
* * * * * * * * * * * * * *

GRÃOS

Cômoda
no canto do sótão.

Gaveta aberta,
fotos, fitas.

Caixa de Pandora...
* * * * * * * * * * * * * *

MARCELA

Depois que ela descia à praia,
é que começava o dia,
e ao seu caminhar
cada flor pra ela se abria.

Matava sua sede
com algas e águas salgadas
e trocava de rendas
com as rendas brancas do mar.

O corpo, por todo o tempo,
cheirando a manjericão;
fazia amor com o Vento
em inusitada dimensão.

Dentro da concha fechada,
era uma Ostra desperta.
Ela, na ilha encerrada,
e toda a ilha era ela;
enquanto a noite gritava
pra sempre, ao Vento: Marcela!!
* * * * * * * * * * * * * *

PLASMA

Na veia cava a larva
e planta e lavra
o plasma das inquietações
e tinge de sangue
o sangue que corre
na veia e cava
um oceano onde desaguar
- sem jamais encontrar.
* * * * * * * * * * * * * *

SILÊNCIOS

Teus silêncios de água
calaram vozes tranquilas
de tempos, de almas.

Teus líquidos versos
despertaram silêncios
de saudades antigas.

Teus versos silentes
acordaram os ventos
de doridas cantigas.
* * * * * * * * * * * * * *

TANTAS ÁGUAS
Pudesse voltar no tempo
voltava por mesmas águas
até dissolver as mágoas
cravadas nas pedras do leito.

Voltava até os confins
das águas de outros tempos
banhando primevos leitos
de rios dentro de mim.

Voltava e matava a saudade
que corre transborda se espraia
no leito de muitas águas
do peito - longínqua cidade.

Fonte:
Lilia Souza (org.) Coletânea: Academia Paranaense da Poesia. Curitiba/PR: APP, 2012.

Manuel Antonio de Almeida (O Riso)


O homem é o único animal que se ri. - A observação não é nova,  nem lhe quero as honras do achado. Se estivesse hoje em veia de  filosofar havia entrar na indagação das causas desta singular exceção. Mas contento-me por ora, sem discutir, com a explicação de  um pessimista que me disse: o homem é o único animal que se ri,  porque é o único animal que é tolo.

O riso tem três variedades principais que eu chamarei de forma:  É sorriso, é riso, é gargalhada.  Entre o sorriso e o riso há a mesma diferença que entre o botão e a flor.

No sorriso há toda a incerteza, todo o encanto e toda a fugacidade da esperança.  O sorriso é uma palavra que os lábios dizem sem voz.  O sorriso é belo em todos os rostos; em alguns é um raio de luz  que os ilumina com o toque da suprema beleza.

É tímido como a modéstia, passageiro como tudo que é belo  na vida.

Se eu tivesse, como muitos de meus colegas de pena, o hábito  de namorar pela imprensa, tinha agora aqui a lira afinada para cantar um idílio sobre certos sorrisos que às vezes vejo enfeitar um rosto moreno, tão puros, tão suaves, tão cândidos, que morro de inveja ao lembrar-me que não é só para mim que eles desabrocham. Mas  não culpo por isso aos lábios em que eles se aninham, não; eles me  estão dizendo: - somos como o céu: na primavera não sabemos  senão sorrir. E eu creio que eles têm razão.

Voltemos porém ao assunto.  O riso já não tem todas estas qualidades, ou, pelo menos, não  as tem sempre. Há, por exemplo, rostos bonitos a que o riso dá ainda maior  encanto; há mesmo rostos feios que o riso, por assim dizer, enfeita.  Mas também há por outro lado caras que o riso transforma em caretas. Muita gente conheço eu que não pode fazer maior desfeita a  quem a encara, do que rir-se.

O sorriso pode ser às vezes, e quando muito, um ligeiro disfarce;  o riso em muitos casos serve de verdadeira máscara!

O sorriso compõe; o riso transtorna.  O sorriso não é todo do mundo externo; metade do que ele é  fica conosco, nossa alma guarda essa segunda parte de que os outros não tomam posse.

O riso não, esse, desde que o soltamos, escapa-se inteiro, e nada  fica em nós mesmos do que ele foi. O prazer acaba ordinariamente quando acaba o riso; ao contrário quando nós sorrimos é que o prazer começa.

O riso parece muito expansivo e não é; basta dizer que tem  quase uma só forma para todos os sentimentos; vemos um riso e  podemos ficar na dúvida se foi de assentimento ou de escárnio.

O sorriso, não; quando é só dos lábios, quando a alma não participa dele, mostra-o logo no que lhe falta de cândido e sincero.

É fácil fingir o riso; o verdadeiro sorriso não tem imitação.  Com o sorriso podemos exprimir o prazer e a dor; há sorrisos  pálidos, tristes, são quase o pranto; mas ninguém confundirá estas  duas sortes de sorrisos.

No ruído do mundo, no tumulto das sociedades, os homens e  as mulheres riem-se quando se encontram. No silêncio, no retiro,  quando dois entes que se amam estão sós com o seu amor, sorriem-se apenas um para outro.

Apesar de tudo o que fica dito, ainda o sorriso e o riso têm entre  si pontos de semelhança, que ninguém poderá negar.

Se compararmos porém estas duas variedades com a terceira  que a princípio notamos, isto é, com a gargalhada, bem se poderá  ver o que de diverso há às vezes entre coisas que se dizem da mesma origem.

A gargalhada está tão longe do riso e do sorriso, como a algazarra do canto.

Sem dúvida foi pensando na gargalhada que se fez o provérbio  risus abundat in ore stultorum. A gargalhada é uma desnaturação do riso. O riso deleita; a gargalhada aturde. Não é uma expansão, é um desconcerto. Na gargalhada a boca escancara-se, as faces engratam-se e enrugam-se; os  rostos mais formosos tornam-se caricatos; não assenta bem em  ninguém. O ridículo daquilo que nos arranca uma gargalhada,  reverte um pouco sobre nós mesmos. É por isso que muitas vezes  está um homem rindo-se às gargalhadas de qualquer coisa que só  ele viu, chegam outros, e, sem saber por quê, começam a rir-se  do mesmo modo.  E entretanto, meu Deus! parece que há homens fatalizados a  este respeito: as gargalhadas são os pontos e vírgulas das suas orações; dão gargalhadas pelo que eles mesmos dizem, pelo que ouvem dizer aos outros, pelo que veem nos outros e por aquilo que  os outros veem neles. Que entes lamentáveis! Que caricaturas de  carne e osso!

Querem realizar o prodígio do que se chama - gargalhada homérica - mas, não podendo consegui-lo pelo que toca ao volume, buscam suprir esta falta pela continuidade, e então fazem de toda  a sua vida uma gargalhada constante.  As mulheres conhecem mais do que os homens o ridículo de semelhante hábito; por excesso porém algumas tornam-se carrancudas e então pecam pelo extremo oposto.

Tudo nesta vida é assim: o segredo do justo meio é a sabedoria  eterna. No amor por exemplo não há nada pior do que o excesso.  E isso é muito natural; os excessos são raros; e um amor excessivo  dificilmente achará correspondência... Mas a que veio aqui falar-se  de amor? Talvez pensem que isto tem alguma aplicação; não tem: eu estava dizendo que a gargalhada era uma coisa tola; o amor veio  a propósito de coisas tolas.

E, para que não venham outras coisas do mesmo gênero interromper o curso destas muito sérias observações, façamos aqui ponto, alegando, em falta de outra razão, uma que anda agora muito  em moda, e que entretanto talvez bem poucas vezes seja tão verdadeira como nesta: a hora está muito adiantada.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 166


Manuel Antonio de Almeida (O Nome)


Dizem os gramáticos, gente detestável nestes tempos de discordância, que o nome é uma voz com que se dão a conhecer as coisas.  Quando nos tempos de colégio de minha memória, rebelde às exigências do decurião, recusava guardar no seu arquivo esta triste  definição, é que o meu espírito, agora o conheço, pressentia-lhe  já todo o absurdo e falsidade. Nunca em verdade uma mentira tão  grande se escreveu em letra redonda. Aquilo por que as coisas menos se dão a conhecer neste mundo  é pelo seu nome.

O nome é hoje, e não sei se o deixou de ser em algum tempo, a  primeira mentira de todas as coisas: é como um cunho do pecado  original impresso sobre tudo o que existe.

A tradição da Torre de Babel parece-me errada até certo ponto; o  que ali se confundiu não foram as línguas, foram os nomes das coisas. Daí datou, segundo penso, em falta de origem mais remota,  essa confusão à custa da qual tanta gente vive.

Com efeito, se as coisas se chamassem pelo seu nome, muitas  leis não seriam leis, muitos legisladores não seriam legisladores,  muitos governos não seriam governos, muitos sentimentos não seriam sentimentos, e até muitos homens não seriam homens, nem  mulheres muitas mulheres.

Quando se fala em confusão não se pode deixar de falar em mulheres, que são os entes mais confusos da criação. É também nelas  que a mentira do nome é mais constante e mais manifesta. Tenho  visto algumas, feias como um pesadelo, a quem todos, desde o padre que com o batismo santificou a peta, até elas mesmas - e nisto  vai o maior escândalo - chamam pelo nome de Rosa, por exemplo.

Algumas há a quem a menor contrariedade encoleriza no mais  subido grau, que cospem blasfêmias contra a terra e o céu porque se lhes desarranjou a mais pequenina prega do vestido. Pois  se numa ocasião dessas alguém lhe perguntar o nome, responderá  com voz de tempestade: Angélica! Há outras que passam dia e noite prostradas ante o altar do espelho adorando a imagem de uma  divindade, que às vezes não têm segundo devoto, que nunca põem  a mão no peito para ver se o coração palpita, e que morrem no dia  em que se convencem da existência da primeira ruga no rosto e  do primeiro fio de prata na cabeça. Verdade é que muitas destas  ficariam eternas se a morte esperasse tal convicção.
Já perguntei o nome a uma criatura nestas circunstâncias, e  respondeu-me que se chamava Modesta!

Os homens a esse respeito não terão também muito de que gabar-se. Daqui se pode concluir que há muita gente neste mundo  que mente de cada vez que assina o seu nome. Há algumas coisas que se diz não terem nome; nisto há uma  economia de mentiras. Há porém uma infinidade de coisas que  tem uma infinidade de nomes. Entre estes contemos os príncipes,  o que por certo não lhes deve ser muito lisonjeiro.

Um homem, ou uma coisa com muitos nomes, devia representar uma ideia pelo menos por cada um deles; se isto se não dá, há  mentira em cada nome de mais. É por isso que ninguém se batiza com uma série de nomes; a  igreja não quer santificar senão uma mentira, e já não faz pouco.

Não sei qual foi o povo que primeiro pôs em uso ter um indivíduo muitos nomes; isso não deixa talvez de ser uma invenção espanhola. Os ingleses por certo não estabeleceram
semelhante uso. Entretanto - eis aqui uma prova das misérias humanas - um  nome é às vezes a história de uma vida; entretanto há épocas em que  os lábios não sabem pronunciar mais do que um nome, em que os  ouvidos não escutam em todas as vozes da natureza senão um nome,  em que não se tem escrito na memória senão um nome. Sabe Deus  quantas vezes entre estas palavras que se estão lendo o autor não  escreveu sem querer um nome!

Isto porém, como já disse, não prova senão a que misérias está  sujeita a pobre humanidade. Queria que me dissesse qual a razão por que quando um homem se eleva acima do comum, ninguém o conhece nem o chama pela enfiada de nomes com que o obrigam a carregar; por que  é que se diz: Lamartine, Chateaubriand, e todo o mundo sabe logo  de quem se trata?

Há gente que trabalha a vida inteira para conquistar um nome,  que deixa em breve à humanidade, às vezes nas mãos de um descendente, que nem lhe pode com o peso, e o atira de lado para  tomar outro mais leve e que mais lhe enquadre.

E morre-se por um nome!  E morre-se para manter ileso um nome de honra! Nome de  honra! Estas palavras invertidas dão: honra de nome, espécie muito  comum e vulgar, cuja conquista não vale o menor trabalho.

Havia em Roma, perto do Coliseu, que dele tirara o nome, um  colosso de mármore representando o filho de Agripina. A respeito  desta magnífica obra de arte dava-se um fato muito curioso: cada soberano que subia ao trono dos Césares queria que o colosso servisse  a perpetuar sua memória. Para isso o que fazia? Nada mais simples: mandava copiar em mármore sua cabeça, e fazendo tirar a que a estátua tinha primitivamente, colocava-se-lhe a nova sobre os ombros.  Alguns Césares houve menos pretensiosos que fizeram apenas substituir a cabeça do colosso por uma que representava o sol.

Aquele colosso e suas diversas cabeças representam com exatidão o que se passa no mundo em relação ao nome das coisas:  um capricho de César decide o batismo: o que era ontem verdade  chama-se hoje mentira, o que era ontem soberano chama-se hoje  vassalo, só porque isto aprouve a uma seita ou a um homem.

Mas tudo vai como deve ir, e nem se pode dar que fosse de outro  modo. O nome verdadeiro das coisas só Deus o há de dar quando  a sua obra imensa se achar consumada: o nome há de então caber  perfeitamente a tudo, porque há de compreender a essência e o  modo; será a última palavra da Divindade, o selo da grande obra.

Enquanto porém este tempo não chega - e eu pressinto que  ele está bem longe - vamos-nos servindo com o nome de empréstimo que temos; o que quero apenas é que não se lhe dê grande  importância, porque em resumo o nome é a origem de quase todas  as questões com que quebra a cabeça a pobre humanidade, e isso  explica ainda a razão por que tanta gente se mete a questionar.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.