terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 3


CORES NA PRAÇA

Manacás floridos fazem companhia aos bancos vazios da praça...
O colorido das flores embeleza a manhã de quem passa…
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ESCRITO NO CORAÇÃO...

Na capa do disco antigo
escreveu uma declaração de amor.
O tempo, quase apagou as palavras, a data...
Mas, no coração ainda permanece lindo o amor!
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GOTAS DE EMOÇÃO

Em cada lágrima, retratos de emoção...
Em cada retrato:
um rosto, lembranças e sonhos,
desenhados pela saudade:
nas telas pequenas  e mágicas das lágrimas…
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HÁ DIAS ASSIM...

A lembrança do seu olhar,
Do perfume permanece.
A música da última dança...
E a saudade insiste!
Há dias assim
E noites também…
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JANELAS...

Das janelas vejo as estações dos anos...
A lua e as estrelas.
Admiro as gotas de chuvas...
Folhas secas, flores...
Da janela, ouço os pássaros.
Sonho...
De uma dessas janelas vi o Amor chegar!
Janela mágica que encantou e inspirou o brilho no olhar,
Com as cores da felicidade...
Da janela do Tempo veio a despedida
E com ela, a saudade a espreitar...
Fecho a cortina e finjo que não a vejo.
A Janela da Saudade, tento fechar...
Mas ela é intensa, e mais forte que minhas mãos,
Desisto e deixo-a entrar...
Empresto da janela da Primavera, às flores.
Enfeito a saudade, que iluminada  e decidida
Desenha lembranças nas janelas do meu coração…
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NUM PISCAR DE OLHOS

Num piscar de olhos...
Um amor se conhece,
Abraços e beijos...
Num piscar de olhos,
Sonhos são desenhados,
Aquarelados.
Num piscar de olhos,
A despedida acontece.
A saudade permanece...
Refletido nas lágrimas,
Vejo seu rosto,
Num piscar de olhos...
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O DESPERTAR DA NATUREZA

Os sons da casa ao acordar...
Indicam que um novo e belo dia irá começar!

O sol que entra pela janela,
Na sala, aquece três lindos  e sonolentos gatos...

E lá fora...
Deixa as flores das floreiras, mais belas!
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O ÚLTIMO OLHAR...

Impossível foi evitá-lo...
Não havia mais como fugir, fingir sua ausência.
O último olhar se fez necessário.

A despedida de cor cinza com gosto de saudade,
Como entender e aceitar o fim do amor,
A sensação de vazio, de tempo perdido...

De um amor  que não pode ser esquecido?
Como viver sem seu olhar?
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POSES DE GATO

    Atento
Sentado
    Brincando
  Deitado
   Dormindo
     Espreguiçando...
         Lambendo a patinha.
            Gato preto em sete poses
        deixa linda e misteriosa a caneca branca: encanta!
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REFLEXOS EM MEU OLHAR...

Ao olhar-me no espelho vejo um pouco dos seus olhos...
Ainda lembro-me do dia do seu aniversário, do seu signo,
Do seu doce preferido, de como gostava do café…
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TRAÇOS DA TUA AUSÊNCIA

Tua ausência tem nome, perfume e cor.
Além de senti-la posso até desenhá-la...
Às vezes, tão real é o desenho que quase acaricio teu rosto…
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TRISTE ROTINA

O relógio na parede marca as horas e observa silencioso,
o encontro dos camponeses à mesa,
depois de um dia exaustivo de trabalho, a rotina continua,
a vida prossegue sem a esperança de um futuro mais digno...

O cômodo rústico revela as poucas posses, poucos direitos.
As roupas escuras e gastas pelo constante uso, se completam
com as mãos grandes, ideais para trabalhar a terra...
Olhares sem brilho, revelando tristeza e conformismo.

Cada personagem perdido em seu próprio mundo: como se
seus destinos estivessem traçados muito antes de nascerem.
Olhares sem brilho, refletindo almas sem vida, sem cores,
faltando-lhes vontade e coragem de mudar.

Liberdade, alegria, dignidade para os trabalhadores da terra,
só em sonhos...

* Poesia inspirada no quadro “Os Comedores de Batata”, de Vincent Van Gogh (1885)

Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa

Rachel de Queiroz (Os Passarinhos)

    

De manhã, com escuro, é o trocado da graúna, bem debaixo da janela. Canta cristalino, dobrado e redobrado, como polca de piano, daquelas do tempo de Chiquinha Gonzaga. Mas aí a graúna para e quem faz o solo são os cabeças-vermelhas que outros chamam de galos-de-campina. Eu disse solo mas não é um só que canta; são duetos e tercetos, com primeira voz, segunda e terceira. A graúna vem então e faz o contraponto e por trás de tudo os golinhas sustentam o coro.

Isso é a alvorada. Depois do primeiro café é a vez dos canários que fizeram ninho nos frechais da casa. São dois ninhos no frechal e outro no pé de jucá que dá sombra ao alpendre. Mas esses já são cantores líricos, não se metem com amadores. Esperam que haja silêncio, não toleram nem o rádio. Vem um, se acomoda no galho do jasmim-laranja, verifica a assistência, vira a cabeça para trás e solta o gorjeio. Os demais passarinhos raramente se metem — salvo outro colega canário. E aí temos desafio de tenores e só não tem soprano porque canário faz discriminação de sexo: fêmea não canta. Depois do desafio lírico eles saem mesmo para o duelo e brigam até fazer sangue; chegam a rolar feridos no terreiro. Uma vez apanhei um morto. Canário leva ópera a sério.

O rouxinol daqui que, segundo penso, é a garrincha daí, vem logo depois dos canários; tem uma cantiguinha afinada, mas leve, assim como quem trabalha assobiando. Esse rouxinol uma vez me quebrou um espelho com ciúme do sósia que lhe aparecia no vidro. Bicava o cristal com tanta fúria que ensanguentava o bico. Botei um pano por cima do espelho e ai o rouxinol vinha devagarinho, enfiava a cabeça por baixo do pano, espiava — e lá estava o desgraçado de olho arregalado para ele! O rouxinolzinho avançava para o espelho com uma fúria matadora; e de tanto bater deslocou o prego e o espelho foi se arrebentar no chão. E ele, do parapeito da janela, olhava os cacos de vidro, vingado.

Pelas dez e onze da manhã tem uma calma; a juriti aproveita e fica de longe: vu ... vuu ... vuuu ... ! ... E a rolinha fogo-pagou responde mas há sempre então um bem-te-vi mal-educado que interrompe e estraga a poesia das duas.

Na hora da sesta aparece, mas não é todo dia, um sabiá cantador. Vem por ali, senta no cajueiro, solta o canto. Mas assim que a gente se aproxima, embelezada, ele sai para mais longe, nas algarobas; esse tem temperamento e não gosta de estranhos,

Saindo pelo mato, depois que o orvalho enxuga, a gente vai descobrindo. Se tem sorte até avista corrupião, mas é raro. Os vem-vem são por toda parte: e um passarinho de cabeça encarnada e cantiguinha moderna, por nome abre-e-fecha. Papa-arroz toma voo do capim de lagoa em bandos tão compactos que chega o ar a ficar encaroçado deles; e o pai-luís não levanta do chão e enfrenta a gente zangado, resmungando.

De repente se escuta um tarrafeado, aquela zoada curiosa, meio estridente, meio abafada: é bando de cancão acuando bicho. Acuam cururu, cobra, cachorro. Ficam aos saltos em redor do inimigo, a pena azul furtacor, o bico cor de fogo, os olhos que são como uma joia amarela. Cancão é bonito mas é sem-vergonha. Ladrão de roçado e plantador de milho. Plantam de doidos, porque já no fim das águas, quando tem semente seca, é que eles plantam. Nasce tudo, chega a crescer dois palmos de altura, mas daí não medra, porque é o fim do inverno. Raro é o roçado que não tem pelas beiras de cerca suas carreiras de milho de cancão.

Agora, quando a tarde cai é que é triste. Do outro lado do açude a mãe-da-lua, que já foi moça, ainda espera pelo noivo embarcado e fica chamando e se lastimando:

— Paulo, ôô Paaulo! Foi-se! Foi-se! Foi-se!

E mais triste é a coã, que em outros lugares também chamam acauã, Minha ama me embalava com uma cantiga que imitava o cantar da coã; e ainda recordo um verso que dizia assim: “Adeus, coã, que me vou! / Saudades, coã, de amor!...”

Ah, são muitos passarinhos. E sempre tem um cantando, as mais das vezes nem se identifica qual é.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 192


Monteiro Lobato (O Pito do Reverendo)


Itaoca é uma grande família com presunção de cidade, espremida entre montanhas, lá nos confins do Judas, precisamente no ponto onde o demo perdeu as botas. Tão isolada vive do resto do mundo que escapam à compreensão dos forasteiros muitas palavras e locuções de uso local, puros itaoquismos. Entre eles este, que seriamente impressionou um gramático em trânsito por ali: Maria, dá cá o pito!

Usado em sentido pejorativo para expressar decepção ou pouco-caso, e aplicado ao próprio gramático, mal descobriram que ele era apenas isso e não “influência política”, como o supunham, descreve-se aqui o fato que lhe deu origem. E pede-se perdão aos gramaticões de má morte pelo crime de introduzir a anedota na tão sisuda quão circunspecta ciência de torturar crianças e ensandecer adultos.

O reverendo tomou do estojo os velhos óculos de ouro, encavalgou-os no batatão nasal e leu pausadamente a carta do compadre, que dava notícias, pedia-as, e comunicava a próxima ida para ali do doutor Emerêncio do Val, “nosso ministro em Viena d’Áustria, homem de muito saber e distinção de maneiras, um desses diplomatas à antiga, como já os não há nesta república que etc. etc.”, em viagem de recreio pelo interior, a matar saudades do país.

O reverendo coçou o toitiço com dedos sornas e releu a carta demorando o pensamento nos trechos que pintavam o alto figurão itinerante, em via de honrar-lhe a casa com a sua nobilíssima presença.

Verdade é que dispensava tal honraria, boa seca à pacatez do seu viver abacial, repartido entre missinhas de cinco mil-réis (mais um frango), cachimbadas de muito bom fumo de corda e os pitéus (senão ainda a ternura, como propalavam as más-línguas) da ótima caseira e afilhada, a Maria Prequeté. Culpa toda sua, aliás. Quem lhe mandara a ele possuir a melhor casa de Itaoca e ser, modéstia à parte, um homem de luzes notórias, autor de vários acrósticos em latim?

Já doutra feita hospedara um eloquente inspetor agrícola e, logo depois, o tal sábio que colecionava pedrinhas — grande falta de serviço! Um diplomata agora... Ahn! A coisa variava…

Que viesse, respondeu ao compadre, mas não esperasse encontrar na roça desses “confortos e excelências de vida que é de hábito nas grandes terras”.

Escrita a resposta, foi o reverendo à cozinha conferenciar com a caseira sobre a hospedagem e longamente confabularam sobre o pato a sacrificar-se (se o patão de peito branco ou aquele mais novo com que a viúva do João das Bichas lhe pagara a missa, a gatuna); sobre a toalha de mesa e a roupa de cama; sobre o tratamento a dispensar — Vossa Excelência, Vossa Senhoria ou Vossa Diplomacia.

Após longo bate-boca, salpicado de injúrias em calão e algum latim, assentaram no pato da missa, na toalha de renda e no Vossa Excelência. Combinadas essas minúcias, uma nuvem de nostalgia ensombrou a nédia cara do reverendo. Os olhos penduraram-se-lhe no vago, saudosos, e de lá só desciam para envolver, com ternura viciosa, o velho pito de barro que lhe fedia na mão.

Notou a Prequeté aquelas sombras e:

— Acorda, boi sonso! Amode que está ervado?...

O reverendo abriu-se. Era o pito. Eram já saudades do velho pito... Pois não ia privar-se desse amigo de tantos anos durante a estada do “empata”? Tinha educação. Não desejava impressionar mal a um homem de raro primor de maneiras. E o pito, se é bom, é também plebeu e, mais que plebeu, chulo.

Reconhecia-o, reconhecia-o…

Entretanto, três, quatro dias — sabia lá a quantos iria a seca? — de abstenção forçada, sem que a boca sentisse o bendito contato do saboroso canudo amarelo de sarro?... Doloroso…

E o reverendo sorveu com delícia uma baforada maciça. Tragou-a. Depois, recostada a cabeça ao espaldar, semicerrados os olhos, semiaberta a boca, deixou-se fumegar gostosamente, como piúca de queimada. Coisas boas da vida!...

Mas que remédio? O homem fora diplomata e em Viena d’Áustria!

Confabulara com arquiduques e cardeais. Homem de requintes, portanto. Era forçoso transigir com o pito, o rico pito, o amor do pito. Sim, porque a dignidade do clero antes de tudo! Lá isso…

Uma semana depois nova carta anunciava que “o tal das Europas” em tal data repontaria por ali.

Grande alvoroço de saia e batina. A Prequeté arregaçou as mangas — braços a Machado de Assis tinha a morena! — e pôs de pernas para o ar a casa. Varreu, esfregou, escovou tudo, demoliu teias de aranha, limpou o vidro do lampião, matou o pato e desfez com decoada os muitos pingos de gema de ovo que constelavam a batina do padrinho.

— Arre, que até parece uma gemada! — reguingou ela, entre repreensiva e caçoísta. Depois, relanceando-lhe o olhar pelo alto da cabeça:

— Chi!... A coroa está que é uma tapera! — exclamou.

E, expedita, zás! zás! deu nela uma alimpa de tesoura.

— E o breviário? — inquiriu de súbito o padre.

Andava de muito tempo sumido, o raio do livro; procura que procura, descobrem-no afinal no quarto dos badulaques, feito calço duma cômoda capenga. A Prequeté — maravilhosa caseira! — com uma dedada de banha pô-lo escorreito e envernizado, a fingir com tanta perfeição uso diário que nem Deus desconfiaria da marosca.

— Que mais? — disse ela depois, plantando-se a distância para uma vista de conjunto no seu restaurado padrinho. E como de alto a baixo tudo estivesse a contento: “Está mesmo pshut!”, concluiu, brejeira, borrifando-lhe por cima um chuvilho de Água Florida, para disfarçar o ranço.

Ficou o padre um amor de reverendo, liso e bem amanhado como cônego de oleografia. Ele próprio o reconheceu ao espelho e, nadando nas delícias daquele carinho sem par — e muito agradável a Deus, pois não! —, sorriu-se babosamente, acariciando-a no queixo:

— Esta marota!

Conclusa a arrumação, da coroa do padre à cozinha, postou-se a Prequeté de vigia à janela, indagando os extremos da rua, enquanto o reverendo, lindo como no dia da sua primeira missa, passeava pela saleta a chupar as derradeiras cachimbadas.

Súbito:

— “Evem” vindo o reis! — exclamou a atalaia.

O reverendo meteu o pito na gaveta, passou a mão no breviário e assumindo cara de circunstância rumou para a porta da rua. Instantes depois defrontava-o um cavaleiro. O padre correu a segurar-lhe a rédea e o estribo.

— Queira apear-se vossa excelência, que esta choupana é de vossa excelência. Sou o padre vigário de Itaoca, humilde servo de vossa excelência.

O diplomata, como que ressabiado com tão respeitosa acolhida, deixou-se descavalgar. Mas sem garbo, esquerdão e reles, como aí um pulha qualquer. Entrou. Trocaram-se rapapés, palacianos da parte do reverendo, mal achavascados (quem o diria?) da parte do cortesão que conversara arquiduques e cardeais. Houve etiquetas revividas, sempre claudicantes do lado diplomático. Houve cerimônia.

Mas o doutor não era positivamente o que se esperava. Já no físico desiludia. Em vez duma fina figura de mundano, saíra-lhes um magrela de barba recrescida, roupa surrada, chambão e alvar. Enfim, pensou lá consigo o reverendo, o hábito não faz o monge. Quem sabe, sob aquelas aparências vulgares e talvez rebuscadas, não luzia o espírito de um Talley rand ou as manhas dum Metternich?

Foram para a mesa e no decurso do jantar acentuou-se a desilusão. O homem comia com a faca, baforava no copo, chupava os dentes. Um puro pai da vida.

Observando-o por cima dos óculos, o reverendo piscava para a caseira, que, da cozinha, pela fresta da porta, torcia o nariz à pífia excelência excursionista. Ao trincar o pato, desastre. O doutor deixou cair no chão um osso, que logo apanhou, muito encalistrado. Depois, às voltas com a asa do palmípede, falseou-se-lhe a faca, resultando espirrar-lhe à cara um chuvisco de arroz. A Prequeté por sua vez espirrou lá dentro uma risadinha de mofa, acompanhada dum mortificante ché!...

O reverendo entrou-se de dúvidas. Era lá possível que o doutor Emerêncio do Val fosse um estupor daqueles?

À sobremesa caiu a conversa sobre a política, e o doutor desmanchou-se em bobagens graúdas. Enquanto asneava, o padre ia matutando lá consigo: “E eu com cerimônias, e eu com bobices, e eu querendo até privar-me do pito por amor a um cretino destes! Fumo-lhe nas ventas e já!”

Nisto veio o café. Enquanto o ingeriam, o doutor entrou a falar de remédios, farmácias e projetos de estabelecimento. O reverendo, decifrando o mistério, deteve a xícara no ar.

— Mas... mas então o senhor...

— Sou farmacêutico, e vim estudar a localidade a ver se é possível montar aqui uma botica. Portei em sua casa porque…

O padre mudou de cara.

— Então não é o doutor Emerêncio, o diplomata?

— Não tenho diploma, não senhor, sou farmacêutico prático...

O padre sorveu dum trago o café e refloriu a cara de todos os sorrisos da beatitude; desabotoou a batina, atirou com os pés para cima da mesa, expeliu um suculento arroto de bem-aventurança e berrou para a cozinha:

— Maria, dá cá o pito!

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

José Maria de Heredia (Poemas Recolhidos)


A CONCHA

Depois de tanto inverno, a que gelado oceano
foste, quem saberá, ó concha nacarada?
Das correntes do mar ao poder soberano,
no abismo verde andaste sempre abandonada?

Um leito agora tens sobre a areia dourada,
sob o infinito céu, longe do horror insano;
mas, esperança vã, geme desesperada
em ti, da voz do mar, o misterioso arcano.

Minha alma se tornou uma prisão sonora:
como no seio teu ainda suspira e chora
ecoando sem cessar todo o antigo clamor,

assim no coração, que por ela palpita,
como a voz que há em ti, surda, lenta, infinita,
ruge em mim tempestuoso o longínquo rumor.

(Tradução de  Luís Franco)
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A FEITICEIRA

Em toda parte, até nos altares sagrados,
vejo-a que por mim chama e alvos braços me lança.
Pai venerável! Mãe que me embalou criança!
De uma execrável raça expio hoje os pecados?!

O Eumólpide* não quis na sede de vingança
os mantos sacudir ao solo, ensanguentados.
E eu fujo, sem querer, exausto, os pés cansados;
e dos sagrados cães o rude uivar me alcança.

Aonde vá, sinto, aspiro, a mim mesmo odioso,
o sinistro feitiço, o encanto tenebroso
com que, dos Deuses ainda, a cólera me esmaga,

pois puseram-lhe os céus, como supremo encanto,
esses olhos de sombra e essa boca que embriaga,
armando contra mim seus beijos e seu pranto.

(Tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça)
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* Eumólpide ou hierofante = é o termo usado para designar os sacerdotes da alta hierarquia dos mistérios da Grécia e do Egito. É o sacerdote supremo, que pode ser chamado também de Sumo Sacerdote.
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A FLAUTA

A tarde já chegou. Revoam pombos no ar.
Não dá nenhum encanto à paixão amorosa,
cabreiro! a gaita com que estás a acompanhar
a água que, entre juncais, desliza sonorosa.

Deste plátano à sombra, onde viemos deitar
a relva é mais macia. Amigo, a cabra ociosa
surda a seu cabritinho a fim de o desmamar,
deixa que aos morros trepe e aos brotos busque, ansiosa.

A minha flauta de sete hastes de cicuta
feita, unidas a cera aguda, ou grave, escuta!
Ou chore, ou gema, ou cante, é sempre ao meu sabor.

Vem conosco aprender a arte do deus Sileno!*
Deste sagrado tubo irão pelo ar sereno
como aladas canções, teus suspiros de amor!

(Tradução de  Freitas Guimarães)
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* Deus frígio, companheiro de Dionísio. Atribuíram-lhe a invenção da flauta.
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O BANHO DAS NINFAS

N'um canto da floresta escura e densa
por sobre a fonte curva-se um loureiro.
Nua, à ramada a Oréade suspensa sobre
a água dependura o corpo inteiro.

Ao banho, as ninfas; rápido e ligeiro!
E ei-las, as manchas de brancura intensa
dos corpos nus, levípedes; e o cheiro
que nuvem de ouro do cabelo incensa! . . .

Lançam-se a nado as deusas em peleja
mas súbito, rompendo os negros flancos
do bosque, o olhar de um Sátiro flameja. . .

E, nuas, elas trepam-se aos barrancos...
Tal à vista de um corvo que fareja
debanda a multidão dos cisnes brancos!

(Tradução de  João Ribeiro)
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O ESCRAVO

Escravo sujo e nu, sem teto, esfomeado,
no meu corpo há sinais flagrantes do que digo.
Livre, ao fundo nasci do belo golfo antigo,
onde reflete o Hibla o píncaro azulado.

Deixei meu lar feliz, eu! Se fores amigo,
ao mel de Siracusa e ao ninho embalsamado
pelo bando vernal de cisnes transportado,
procura essa que traz meu coração consigo.

De novo os olhos seus verei, de azul tão puro,
sorrindo ao sol natal que neles se reflete
sob o arco triunfal do supercílio escuro.

Ai, tem piedade, parte; e à meiga Cleariste
que vivo a ver, só para a ver, repete;
hás de saber quem é, porque está sempre triste.

(Tradução de  Melo Leitão)

SEGUINDO PETRARCA
                                                                 
Saíeis de uma igreja e, num gesto apiedado
as vossas nobres mãos abriram-se à pobreza;
à sombra do portal vossa clara beleza
mostrava o ouro dos céus ao mendigo extasiado!

E quando, humilde como um cortesão curvado,
eu vos saudei com toda a graça e gentileza,
puxastes a mantilha aos olhos, com presteza,
desviando-vos de mim, com ar de desagrado.

Mas, Amor, que domina o peito mais altivo,
- menos terna que linda - ah! não quis que uma graça
me não desse a piedade, um doce lenitivo! -

porque fostes tão lenta o véu baixando, oh bela!
Que entre os cílios passou um clarão como passa
dentre a folhagem negra o raio de uma estrela!

(Tradução de Álvaro Reis)
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O grande sonetista de “Les Trophées” livro que lhe abriu as portas da Academia Francesa, nasceu em Cuba, descendendo de sangue francês, em 22 de novembro de 1842, e morreu em 2 de outubro de 1905 na França, no castelo de Bourdonné. Viveu desde os 8 anos na França. Fez parte do grupo dos “parnasianos” sob a chefia de Leconte de Lisle. Seus sonetos, obra de puro artesanato, verdadeiros medalhões, mereceram de François Coppée, a designação de “a legenda dos séculos em sonetos”, parafraseando Victor Hugo.
É talvez dos poetas franceses, ao lado de Hugo e Baudelaire, um dos mais traduzidos.

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. Poesia Universal.  Européia e Americana. Vol. III. Ed. Theor, 1970.

Arthur C. Clarke (Não Haverá Outra Manhã)


– Isto é terrível! – exclamou o Cientista Supremo. – Certamente poderemos fazer algo!

– Sim, Seu Conhecimento, mas será extremamente difícil. O planeta se acha a mais de quinhentos anos luz e é difícil manter contato. Entretanto, acreditam poder estabelecer uma cabeça de ponte. Por desgraça, não é este o único problema. até agora não conseguimos nos comunicar com os seres. Seus poderes telepáticos são extremamente rudimentares... talvez inexistentes. E se não podermos falar com eles, não poderemos lhes ajudar.

Houve um comprido silêncio mental enquanto o Cientista Supremo analisava a situação e chegava, como sempre, à resposta correta.

– Uma raça inteligente tem que possuir alguns indivíduos telepáticos – murmurou. – Teremos que enviar centenas de observadores, sintonizados para captar o primeiro espionar de pensamento, Quando acharem uma só mente sintonizada, que concentrem nela todos seus esforços. Temos que lhes transmitir nossa mensagem.

– Muito bem, Seu Conhecimento. Assim se fará.

No outro lado do abismo, no outro lado do golfo que a mesma luz demorava quinhentos anos em cruzar, os intelectos inquisitivos do planeta Taar estenderam seus tentáculos do pensamento, procurando desesperadamente um só ser humano cuja mente pudesse perceber sua presença. E, felizmente, encontraram o William Cross.

Ao menos, no primeiro momento o consideraram uma sorte, embora depois já não estiveram tão seguros. De todos os modos, não ficava outra eleição. A combinação de circunstâncias que abriram a mente do Bill a eles só durou uns segundos e não é fácil que voltem a ocorrer neste lado da eternidade.

O milagre constou de três ingredientes e é difícil dizer que agente foi mais importante que o outro. O primeiro foi o acidente de posição. Um frasco cheio de água, ao incidir em cima da luz do sol, pode converter-se em uma lente tosca, concentrando a luz em uma pequena zona. Em escala muitíssimo maior, o núcleo denso da Terra fazia convergir os feixes de ondas procedentes do Taar. Na forma ordinária, a radiação do pensamento não fica afetada pela matéria, já que aquela passa através dele com a mesma facilidade com que a luz atravessa o cristal. Mas em um planeta há muita matéria e toda a Terra atuou como uma lente gigantesca. Parece que isto situou o Bill em seu foco, ali onde os débeis impulsos mentais do Taar se concentravam as centenas.

Não obstante, outros milhões de homens estavam igualmente bem situados, mas não receberam nenhuma mensagem. Claro que não eram engenheiros de foguetes nem tinham acontecido anos pensando e sonhando com o espaço, até formar esta ideia, parte de seu próprio ser.

Nem estavam, como Bill, totalmente bêbados, vacilando já no último bordo da consciência; tratando de escapar da realidade para um mundo de sonhos onde não existissem desalentos nem fracassos.

Naturalmente, compreendia a opinião do Exército.

–... lhe pagam, doutor Cross – tinha dito o famoso general Potter, com uma ênfase inútil  – para planejar foguetes, não... ah... naves espaciais. Faça o que queira em suas horas livres, mas tenho que lhe rogar que não utilize os instrumentos de nosso estabelecimento para seus caprichos. A partir de agora, eu mesmo comprovarei todos os projetos da seção de cálculo. Nada mais.

Naturalmente, não podiam lhe despedir; era muito importante. Mas ele não estava seguro de querer ficar. Em realidade, não estava seguro de nada, salvo do trabalho que lhe tinham atribuído e de que Brenda se largou definitivamente com o Johnny Gardner... para pôr os sucessos em sua ordem de importância.

Cambaleando ligeiramente, Bill apoiou o queixo entre suas mãos e olhou a parede de tijolos caiados ao outro lado da mesa. O único intento de adorno era um calendário da Lockheed e uma foto seis por oito de um aerojet mostrando o “Li'l Abner Mark I” efetuando um atrevido separe. Bill olhava tristemente o espaço compreendido entre ambos os adornos e esvaziou sua mente de todo pensamento. As barreiras caíram...

Naquele momento, os intelectos do Taar lançaram um inaudível grito de triunfo e o muro que Bill tinha diante se dissolveu lentamente em uma forma de redemoinhos de névoa. Ao Bill pareceu estar olhando dentro de um túnel que se alargava até o infinito. E isto é o que fazia em realidade.

Bill estudou o fenômeno com escasso interesse. Era uma novidade, embora não chegasse à altura de alucinações anteriores. E quando a voz começou a falar em sua mente, ressonou algum tempo antes de que entendesse algo. Inclusive bêbado, Bill possuía um preconceito antiquado a respeito de conversar consigo mesmo.

– Bill – murmurou a voz – ouça atentamente. Temos grandes dificuldades para contatar com vós e isto é extremamente importante.

Bill duvidava desta declaração sobre princípios gerais. Não há nada tremendamente importante.

– Falamo-lhe de um planeta muito distante – prosseguiu a voz em tom amistoso. – Você é o único ser humano com o que conseguimos entrar em contato, de modo que tem que compreender o que dizemos.

Bill se sentiu algo inquieto, embora de maneira impessoal, posto que agora resultava mais difícil concentrar-se em seus próprios problemas. Às vezes a gente está muito grave, se começar a ouvir vozes. Bom, era melhor não excitar-se. “Doutor Cross, disse, pode tomá-lo ou deixá-lo. Tomarei até que resulte incómodo.”

– De acordo –- respondeu com indiferença. – Adiante, me fale. Embora seja longo, sempre pode resultar interessante.

Houve uma pausa. Logo a voz continuou em forma um pouco preocupada.

– Não entendemos. Nossa mensagem não é só interessante. É vital para toda sua raça e deve notificá-lo imediatamente a seu governo.

– Estou esperando – assentiu Bill – Isto me ajuda a passar o tempo.

A quinhentos anos luz de distância, os taars conferenciaram apressadamente entre si. Parecia passar algo inoportuno, mas ignoravam exatamente o que era. Não havia dúvida de que tinham estabelecido contato, mais não era esta a reação que esperavam. Bem, não tinham mais remédio que prosseguir e esperar o melhor.

– Escuta, Bill. Nossos cientistas têm descoberto que seu sol está a ponto de estalar. Isto acontecerá dentro de três dias a partir de hoje... dentro de setenta e quatro horas, para ser exatos. Nada pode impedi-lo. Mas não têm que lhes alarmar. Nós podemos lhes salvar, se fizerem o que diremos.

– Adiante – repetiu Bill.

A alucinação era engenhosa.

– Podemos criar o que se chama uma ponte... uma espécie de túnel através do espaço, como este pelo que agora olha. É difícil explicar uma teoria tão complicada, inclusive para um de seus matemáticos.

– Um momento! – protestou Bill. – Eu sou matemático, terrivelmente bom, inclusive quando estou sereno. E tenho lido todas estas coisas nas revistas de ficção científica. Suponho que se refere a certa classe de atalho através de uma dimensão mais elevada do espaço. Isto já era velho, na época anterior ao Einstein.

Na mente do Bill se introduziu uma sensação de enorme surpresa.

– Não sabíamos que estivessem tão avançados cientificamente – responderam os taars. – Mas agora não há tempo para discutir essa teoria. Só isto importa: se te introduzires pela abertura que há diante de ti, instantaneamente te acharias em outro planeta. Como disse, é um atalho, neste caso, através da dimensão trinta e sete.

– E isto conduz a seu mundo?

– Oh, não, não poderia viver aqui. Mas no universo há muitos planetas como a Terra e achamos o que lhes convém. Estabeleceremos cabeças de ponte como esta em toda a Terra, de modo que a gente só terá que entrar nelas para se salvar. Claro está, terão que voltar a forjar uma civilização em sua nova pátria, mas esta é sua única esperança. Tem que transmitir esta mensagem e lhes dizer o que têm que fazer.

– Já lhes vejo me escutando – resmungou Bill – por que não falam vós com o Presidente?

– Porque só pudemos entrar em contato com sua mente. As outras estão fechadas para nós; embora não entendamos por que.

– Eu lhes poderia contar isso –  respondeu Bill olhando a garrafa vazia que tinha diante de si.

Certamente, valia o que custava. Que notável era a mente humana! Naturalmente o diálogo não era original e era fácil ver de onde procedia a ideia. Na semana anterior tinha lido um relato sobre o fim do mundo e todos estes pensamentos a respeito de pontes e túneis através do espaço era só uma compensação para todo aquele que levava cinco anos lutando com os recalcitrantes foguetes.

– Se o sol estalar – perguntou Bill bruscamente, tratando de pilhar por surpresa a sua alucinação – o que acontecerá?

– Seu planeta se fundirá instantaneamente. Em realidade, todos os planetas até Júpiter.

Bill teve que admitir que esta era uma concepção grandiosa. Deixou que seu cérebro jogasse com a ideia e quanto mais a considerava, mais gostava.

– Minha querida alucinação – observou piedosamente – se te acreditasse, sabe o que diria?

– Tem que nos acreditar! - foi o grito desesperado através de quinhentos anos-luz.

Bill ignorou o grito. Estava gozando com o tema

– Dir-te-ei uma coisa. Seria o melhor que poderia ocorrer. Sim, economizaria muitos pesares. Ninguém teria que preocupar-se com os russos, a bomba atômica ou o elevado índice da vida. Oh, seria maravilhoso! É justamente o que todos desejam. Obrigado por nos haver isso dito, e agora volte para casa e leve essa ponte.

No Taar reinou a consternação. O cérebro do Cientista Supremo, flutuando como uma grande massa em sua tanque de solução nutritiva, amarelou ligeiramente pelas bordas... coisa que não tinha ocorrido da invasão Xantil, cinco mil anos atrás. Ao menos quinze psicólogos sofreram desenquadramentos nervosos e jamais se recuperaram. O principal computador da Faculdade da Cosmofísica começou a dividir cada número de seus circuitos de cor por zero e não demorou para danificar todos seus fusíveis.

E na Terra, Bill Cross expôs seus pontos de vista.

– Me olhe – dizia apontando seu peito com um dedo vacilante – passei muitos anos tentando construir foguetes que fossem úteis para algo e agora me dizem que só posso desenhar projéteis dirigidos, a fim de podermos destruir uns aos outros. O sol poderá, então, fazê-lo melhor e mais depressa e se nos entregasse outro planeta, voltaríamos a começar com o mesmo afã destruidor.

Fez uma triste pausa, acariciando seus mórbidos pensamentos.

– E Brenda partiu da cidade sem me deixar nenhuma nota. De modo que tem que perdoar minha falta de entusiasmo por sua amável oferta.

Bill compreendeu que não podia pronunciar a palavra “entusiasmo” em voz alta. Mas ainda podia pensá-la, o qual era um interessante descobrimento científico. À medida que se embebedasse talvez só acertasse a pensar palavras monossílabas.

Em um intento final, os taars enviaram seus pensamentos pelo túnel formado entre as estrelas.

– Não pode falar a sério, Bill! Todos os seres humanos são como você?

Vá, uma pergunta filosófica muito interessante Bill a considerou atentamente... ou ao menos com a atenção de que era capaz em vista do quente e rosado resplendor que começava a lhe envolver. Ao fim e ao cabo, as coisas poderiam ser piores. Podia achar um novo emprego, embora só fosse pelo prazer de lhe dizer ao general Potter o que podia fazer com suas três estrelas. E quanto a Brenda... bom, as mulheres eram como os bondes: cada minuto passa um.

Mas o melhor era que havia uma segunda garrafa de uísque na gaveta de MÁXIMO SECRETO. Oh, maravilhoso dia! Ficou em pé com dificuldade e cambaleou pela habitação.Pela última vez, os intelectos do Taar se comunicaram com a Terra.

– Bill! Todos os seres humanos não podem ser como você!

Bill se voltou para o túnel do tempo. Era estranho... parecia iluminado por pontos estrelados... era realmente magnífico. Sentiu-se orgulhoso de si mesmo; poucas pessoa podiam imaginar tal coisa.

– Como eu? – repetiu. – Não, não o são.

Sorriu através dos anos luz, ao tempo que a maré crescente de euforia apagava seu desalento.

– Pensando bem – acrescentou – há muitos indivíduos muito piores que eu. Sim, acredito que, apesar de tudo, eu ainda sou um dos felizes.

Piscou levemente surpreso, já que o túnel acabava de voltar-se sobre si mesmo e ali estava de novo a parede caiada, exatamente igual a sempre. Os taars sabiam que estavam derrotados.

– Adeus, alucinação – murmurou Bill. – Vejamos como será a próxima.

Em realidade, não houve nenhuma mais, porque cinco segundos mais tarde perdeu o conhecimento, enquanto estava marcando a combinação da gaveta do arquivo.

Os dois dias seguintes resultaram vagos e injetados em sangue e Bill esqueceu todo o referente à alucinação.

Ao terceiro dia algo começou a envenenar a mente, como se tivesse recordado a advertência dos taars, e não ter tornado a ver Brenda, lhe pedindo perdão.

Naturalmente, não houve um quarto dia.

Fonte:
Arthur C. Clarke. Histórias de dez mundos. In Biblioteca Sem Limites.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 191


Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: A História da Pequena Pic-Pic)


Quando a jovem Pic-Pic foi, um dia, ao bosque, caiu-lhe na cabeça uma bolota e supôs que o céu estava a desmoronar-se.

- Tenho de procurar o rei a todo o custo, para lhe comunicar que o céu está a cair. - decidiu imediatamente.

Deu meia volta e, pouco depois, cruzou-se com a senhora Put-Put.

- Aonde vai, senhora Put-Put?

Esta respondeu com prontidão:

- Ao bosque, procurar comida.

E a jovem Pic-Pic replicou:

- Não pense mais nisso. Eu estava lá, quando o céu começou a cair-me na cabeça, pelo que vou já informar o rei.

Em face disso, a senhora Put-Put deu meia volta, e acompanhava a jovem Pic-Pic, quando encontraram o senhor Quiquiriqui.

- Aonde vai, senhor Quiquiriqui?

E este respondeu:

- Ao bosque, procurar comida.

- Eu também ia lá com a mesma intenção, mas encontrei a jovem Pic-Pic, em cuja cabeça acabava de cair um pedaço do céu - explicou a senhora Put-Put. - Agora, vamos comunicá-lo ao rei.

O senhor Quiquiriqui deu meia volta e cruzou-se com a senhora Pil-Pil.

- Bom dia, senhora Pil-Pil. Aonde vai?

- Ao bosque, procurar comida.

- Eu também ia lá com essa intenção, mas encontrei a senhora Put-Put, que se tinha cruzado com a jovem Pic-Pic, a qual vinha do bosque, onde lhe tinha caído um pedaço do céu na cabeça - informou o senhor Quiquiriqui. - Agora, vamos comunicá-lo ao rei.

A senhora Pil-Pil deu igualmente meia volta e cruzou-se com o senhor Quac-Quac.

- Bom dia, senhor Quac-Quac. Aonde vai?

- Ao bosque, procurar comida.

E ela anunciou:

- Volte para trás, pois eu estava animada de idêntica intenção, mas encontrei o senhor Quiquiriqui, que, por sua vez, tinha encontrado a senhora Put-Put e esta a jovem Pic-Pic, em cuja cabeça caiu um pedaço do céu, fato que vamos agora comunicar ao rei.

O senhor Quac-Quac apressou-se a dar meia volta e, um pouco adiante, cruzou-se com a senhora Chis-Chis.

- Aonde vai tão cedo, senhora Chis-Chis?

- Ao bosque, procurar comida.

- Deixe-se disso, pois eu tinha a mesma intenção, mas encontrei a senhora Pil-Pil, que encontrara o senhor Quiquiriqui, este a senhora Put-Put e esta, por sua vez, a jovem Pic-Pic, que esteve no bosque, onde lhe caiu um pedaço do céu na cabeça, pelo que vamos todos procurar o rei para o informar.

A senhora Chis-Chis também deu meia volta e em breve se cruzou com Sir Graj-Graj.

- Pode saber-se aonde Vossa Excelência vai?

- Ao bosque, procurar comida - disse ele.

E a senhora Chis-Chis informou-o:

- Eu também ia lá, mas encontrei o senhor Quac-Quac, que tinha encontrado a senhora Pil-Pil, esta por sua vez o senhor Quiquiriqui, este a senhora Put-Put e esta, finalmente, a jovem Pic-Pic, que vinha de lá, onde lhe caiu um pedaço de céu na cabeça. Por conseguinte, vamos comunicar o fato ao rei.

Sir Graj-Graj apressou-se a dar meia volta e não tardou a deparar-se-lhe o senhor Cuá-Cuá.

- Bom dia, senhor Cuá-Cuá. Aonde vai?

- Ao bosque, buscar comida.

E Sir Graj-Graj revelou-lhe:

- Dê já meia volta, porque eu também ia para lá, mas encontrei o senhor Chis-Chis, que tinha encontrado o senhor Quac-Quac, que por sua vez se encontrara com a senhora Pil-Pil, que se cruzou com o senhor Quiquiriqui, que havia falado com a senhora Put-Put, a qual lhe comunicou que a jovem Pic-Pic estivera no bosque, onde lhe caíra um pedaço do céu na cabeça, fato que vamos transmitir ao rei.

O senhor Cuá-Cuá deu também meia volta e acompanhou Graj-Graj, Chis-Chis, Quac-Quac, Pil-Pil, Quiquiriqui, Put-Put e Pic-Pic. Enquanto percorriam a estrada surgiu o senhor Raposo-Raposo, que perguntou:

- Onde vão estas belas damas e distintos cavalheiros?

E eles responderam:

- A jovem Pic-Pic esteve o bosque, onde lhe caiu um pedaço do céu na cabeça, pelo que vamos informar o rei.

Em face disso, o senhor Raposo-Raposo indicou:

– Venham comigo, que lhes mostrarei o caminho. No entanto, conduziu-os ao seu covil, onde ele e os seus distintos filhos comeram a jovem Pic-Pic, a senhora Put-Put, o senhor Quiquiriqui, a senhora Pil-Pil, o senhor Quac-Quac, a senhora Chis-Chis, Sir Graj-Graj e o senhor Cuá-Cuá, os quais não tiveram, pois, a oportunidade de se avistar com o rei para lhe comunicar que o céu se estava a desmoronar.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 3


A idade é, por excelência,
a grande mestra do amor.
– É no outono da existência
que a paixão tem mais calor!
*
A mais bonita homenagem,
concede-a Deus, qual troféu,
a quem completa a viagem,
sem mancha, do berço ao céu!
*
Aos bons sonhos agradeço,
mas às insônias também...
– Ah, quantos versos eu teço
enquanto o sono não vem!
*
A saudade sintetiza
sonhos, glórias, sentimentos,
como um filme que eterniza
nossos melhores momentos.
*
Brilha sempre em nossa vida
alguma luz: a do sol
ou no mínimo a emitida
por um mínimo farol.
*
Com que ternura e altivez
luta a mãe pobre e sem brilho
para ao fim de cada mês
pagar os sonhos do filho!
*
Corações apaixonados
não aceitam repressão.
Explodem, se condenados
a engaiolar a emoção!
*
Cuidemos, irmãos, da imagem;
sem exagero, contudo.
– Muito mais do que a embalagem,
o que conta é o conteúdo.
*
Densas nuvens ameaçam
o futuro da criança.
Mais que as da chuva, que passam,
as nuvens da insegurança.
*
Dê-se ao jovem liberdade
para sem medo ele ousar.
– É no ardor da mocidade
que o sonho aprende a voar!
*
Doce, amigo e generoso,
quis Deus se configurar
no abraço do pai saudoso
no filho que torna ao lar.
*
Entre a inocência e a esperteza,
é da inocência o troféu.
O esperto ganha a riqueza,
o inocente ganha o céu.
*
Feliz o povo que pensa
e que se expressa à vontade.
– Onde amordaçam a imprensa
morre à míngua a liberdade.
*
Há de, enfim, vir o momento
da correção dos papéis:
mais valor terá o talento
que os diplomas e os anéis!
*
Mantenha a esperança alerta,
por mais que lhe pese a cruz.
– Há sempre uma porta aberta
para quem procura a luz.
*
Minha amada é meiga e doce,
dela emana a luz do bem.
Ela é assim como se fosse
minha estrela de Belém!
*
Na era do “ponto.com”,
voa o sonho mais ligeiro:
– um clique... e, qual vento bom,
chega a trova ao mundo inteiro!
*
Não chamem de mundo-cão
o feio mundo do mal.
No cão pulsa um coração
melhor que o nosso, em geral.
*
Nos passos do bailarino,
na garganta do cantor, 
em cada tango argentino
geme uma história de amor.
*
Por mais singela, a pessoa
terá sempre algo a doar.
– A Lua é uma rocha à-toa;
nos dá, no entanto, o luar!
*
Que bom que ninguém mais usa
consagrar heróis de guerra...
– Hoje herói é quem recusa
macular com sangue a Terra!
*
Quer sonhar?... Faça turismo
no coração de um poeta.
É o refúgio onde o lirismo
seus enredos arquiteta!
*
Se as moquecas saem boas,
vão para o “chef” os louvores.
– Nunca ouvi cantarem loas
ao labor dos pescadores…
*
Seca e enchente são recados
aos povos de toda a Terra:
– alerta contra os pecados
do fogo e da motosserra!
*
Solitário coração
abandonado num canto...
Ninguém com um lenço à mão
para lhe enxugar o pranto!
*
Ter mil bens sem ser do bem,
que triste prazer produz...
– É ter tudo, sem, porém
ter nada que leve à luz.
*
Vênus, Marte, o Sol e a Lua
talvez sejam mais vizinhos
que os que compõem na rua
a multidão dos sozinhos.

Fonte:
Vida, Verso e Prosa.

Literatura Hindu Através dos Tempos


Algumas das obras que são conservadas da literatura hindú do III milênio são escritas em sânscrito, a língua mais antiga da árvore indo-europeia.

Durante o primeiro período, foram escritos textos religiosos divididos em diferentes grupos. Vamos ver:

1. Veda: palavra que significa "ciência". Dentro deste grupo, encontramos textos como

Rigveda (Veda dos hinos),
Atharvaveda (Veda dos feitiços),
Samaveda (Veda dos cânticos) e
Yajurveda (Veda das fórmulas sagradas).

São coleções de hinos, orações, canções para a liturgia, invocações aos deuses, etc.

2. O Brahmana: coleção de ensinamentos de gênero religioso e filosófico.

3. O Sutra: são séries de aforismos sobre os mais diversos assuntos.

Mais tarde, grandes poemas épicos da literatura sânscrita começam a aparecer:

o Mahabharata e
o Ramayana.

O primeiro é o poema mais longo escrito no mundo, pois consiste em duzentos mil versos. O tema central deste trabalho são as lutas entre os descendentes dos irmãos Kuru e Pandu. O segundo é mais curto e narra as façanhas do rei Rama. É escrito por Valmiki.

O budismo, a religião por excelência da Índia, deu origem a literatura canônica, que foi preservada em uma grande obra chamada Tripitaka. Seu conteúdo é basicamente religioso, há fábulas e lendas do tipo romancesco.

Na era cristã, o teatro alcança seu maior sucesso graças a Kalidasa, com sua obra-prima Sakuntala, drama de intrigas amorosas intrigantes do Mahabharata. No entanto, o teatro também teve outros criadores menores, como Bhasa (século 2), autor de Carudala, uma comédia emaranhada, e Vishakhadatta (século 5), autor de Mudraraksasa, drama político.

As coleções mais antigas de poesia lírica são Sattasai e reúnem poemas amorosos.

A narrativa indiana é muito importante nesse período, porque é influenciada pela literatura e pelo folclore universal. Uma amostra disso é o Panchatantra (os cinco livros), conjunto de setenta histórias ou fábulas.

Após um período de crise literária, a literatura indiana renasce no século XIV através de diferentes veículos de expressão. Por exemplo, o sânscrito é traduzido por diferentes idiomas modernos, principalmente tâmil, bengali e hindi. O tema principal é amor e religião.

O autor mais universal da literatura indiana é Rabindranath Tagore (1861-1941), que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1913. Embora esse autor escreva em bengali, seus trabalhos traduzidos para o inglês são divulgados.

Fonte:
Traduzido de Mailxmail = Literaturas del Mundo
Fonte da imagem = Literatura Universal

Rabindranath Tagore (Poemas Diversos)


VERDADES

Roubo do hoje a força
Fazendo nascer o amanhã
Da janela acompanho com olhar
As nuvens do céu.
De novo a sombra sinistra
Tolda tristemente meus sonhos.

Tua imagem me acompanha
Por todos os lugares por onde ando.
E em todos os momentos
É a tua presença que espanta
As brumas do desconhecido.
Não faço perguntas.
Tenho medo das respostas que já sei.
Liberta do invólucro físico
Devolverei a matéria ao pó de que fora feito.
Vivi meus três caminhos na terra.
Purgatório. Inferno. Céu.
Tudo de acordo com meus projetos,
Minhas atitudes,
Procurando não reincidir nos mesmos erros.
Agora – vago e espero
Entre ápodos e flagelos
O ressurgir da verdade.

MULHER INSPIRADORA

Mulher, não és só obra de Deus;
os homens vão-te criando eternamente
com a formosura dos seus corações,
e os seus anseios
vestiram de glória a tua juventude.

Por ti o poeta vai tecendo
a sua imaginária tela de ouro:
o pintor dá às tuas formas,
dia após dia,
nova imortalidade.

Para te adornar, para te vestir,
para tornar-te mais preciosa,
o mar traz as suas pérolas,
a terra o seu ouro,
sua flor os jardins do Verão.

Mulher, és meio mulher,
meio sonho.

O ÚLTIMO NEGÓCIO

Certa manhã
ia eu pelo caminho pedregoso,
quando, de espada desembainhada,
chegou o Rei no seu carro.
Gritei:
— Vendo-me!
O Rei tomou-me pela mão e disse:
— Sou poderoso, posso comprar-te.
Mas de nada lhe serviu o seu poder
e voltou sem mim no seu carro.

As casas estavam fechadas
ao sol do meio dia,
e eu vagueava pelo beco tortuoso
quando um velho
com um saco de ouro às costas
me saiu ao encontro.
Hesitou um momento, e disse:
— Posso comprar-te.
Uma a uma contou as suas moedas.
Mas eu voltei-lhe as costas
e fui-me embora.

Anoitecia e a sebe do jardim
estava toda florida.
Uma gentil rapariga
apareceu diante de mim, e disse:
— Compro-te com o meu sorriso.
Mas o sorriso empalideceu
e apagou-se nas suas lágrimas.
E regressou outra vez à sombra,
sozinha.

O sol faiscava na areia
e as ondas do mar
quebravam-se caprichosamente.
Um menino estava sentado na praia
brincando com as conchas.
Levantou a cabeça
e, como se me conhecesse, disse:
— Posso comprar-te com nada.
Desde que fiz este negócio a brincar,
sou livre.

PRESENTE DE AMANTE

Pareço tê-lo amado de formas inúmeras, incontáveis vezes…
Vida após vida, idade após idade, para sempre.
Meu coração fascinado fez e refez o colar de canções,
Que você toma como presente, usa em volta do pescoço de suas várias formas,
Vida após vida, idade após idade, para sempre.

Sempre que ouço antigas crônicas de amor, é a velha dor da idade
É o antigo conto sobre estar separados ou juntos.
Assim como fixo o olhar cada vez mais para o passado, no final você emerge,
Vestido na luz de uma estrela polar, perfurando a escuridão do tempo.

Você se torna uma imagem do que é lembrado para sempre.
Você e eu temos flutuado até aqui na corrente que vem da fonte.
No coração do tempo, o amor um pelo outro.

Temos brincado em meio a milhões de amantes,
compartilhado a mesma doçura tímida dos encontros,
as lágrimas angustiantes de despedida.

Amor antigo mas em formas que se renovam para sempre
Hoje está amontoado a seus pés, encontrou seu fim em você
O amor dos dias de todos os homens tanto no passado e no sempre
Alegria universal, tristeza universal, vida universal.

As memórias de todos os amores se fundindo a este único amor nosso –
E as canções de todos os poetas do passado e para sempre.

CÂNTICO DA ESPERANÇA

Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.

Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.

Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.

Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.

Não seja eu tão covarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso!

AMOR PACÍFICO E FECUNDO

Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.

Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!

Fonte:
Poesias Preferidas – Poesia Indiana

Elisa Alderani (O Seminarista)


Hoje também levantei cedo... Mas um pouquinho mais tarde do que o de costume. Hoje não vou à Igreja. Hoje é sábado. Outra rotina me espera. Os mesmos rituais, café, orações, arrumação da casa com um olho no relógio. As horas do sábado voam mais depressa, não descobri ainda o porquê.

Arrumo-me e, rua. Vou à feira... Como de costume. Porque é sábado.

Nem vejo a rua, até chegar lá. Estaciono, sempre acho um lugarzinho ajeitado para não deixar o carro muito longe, Quando comento com as amigas que sempre acho uma vaga, elas morrem de inveja. Mas o que posso fazer, eu assumo, tenho sorte mesmo.

Ando entre as bancas rapidamente. Já sei o que devo comprar para mim e para minha vizinha idosa. Dirijo-me diretamente à banca da Japonesinha, nunca perguntei o nome dela, eu sempre gosto de enlaçar novas amizades e procuro sempre saber o nome das pessoas com as quais me relaciono.

Meu olhar corre rapidamente pelas verduras, pelas bandejinhas já prontas de legumes. Já todos picadinhos, que beleza de cores; pepinos, berinjelas, cenouras,tudo colocado com harmonia, bem chamativo para um preparo rápido, um convite para uma alimentação bem saudável.

Escolho rapidamente. Sou rápida nas decisões, não me atrapalho com devaneios Inúteis. A Japonesinha me entrega as sacolas que ponho no braço esquerdo; agora com um peso a mais caminho lentamente, observando as bancas, a pessoa que quase sempre são as mesmas que encontro nos sábados anteriores, de modo especial se for à mesma hora. Todas com a mesma rotina dos sábados...

Daí começam os papos, mais ou menos compridos, isso depende da minha pressa.

Hoje o olhar cai na banca do pastel, digamos pastelão. Frito na hora e a fumaça do óleo se espalha junto com os cheiros convidando para degustar a especialidade numero um da feira. Quem gosta de fritura não sai da feira sem comer um ou dois, é sagrado.

Mas.,. É ele, sim, é o seminarista... Sentado atrás da banca. Olho de novo, custa-me para reconhecê-lo. Bem diferente de quando está lá no altar, de batina, fazendo as leituras e as orações dos fiéis. Com olhar sério e comportado. Tenho certeza, é ele.

Falo comigo mesma: "O seminarista comendo pastel de feira? E, por quê não, ele também come..." Naquele instante os olhos dele se encontram com os meus... Um olhar estranho, curioso, igual ao meu.

Tenho quase certeza que naquele momento ele também pensou: "Olha, é ela, é aquela mulher que vejo quase todos os dias cedo, no terceiro banco na Igreja".

Considerando estes acontecimentos a vida vai caminhando e a gente nem percebe as formas repetitivas com que construímos nossa pequena existência.

Fonte:
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilingue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 190


Rubem Braga (O Telefone)


Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:

Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.

Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página  1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra o quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.

Aconteceu por exemplo, senhor, que  outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e  falamos  de coisas antigas - mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser  as parolas vadias de cupinchas velhos - quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente eu não podia permitir;  estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se  o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado "pelo assinante, pessoas de sua família, seus  representantes ou empregados".

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; "dura lex sed lex"; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho - mesmo que esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito  organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei  finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois "o uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a  Companhia desligar e retirar o aparelho".

Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem ruge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma  dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Haywotth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e  insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.

Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia -  porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial  tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado cuém cuém cuém - quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer;  são  horas.  Vou  comer contemplando tristemente  o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica é na verdade algo que supera o  rádio e a  elevisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.

Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife, e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando  meus  pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.
 
Fonte:
Rubem Braga.A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956.

Doce Aconchego das Trovas n. 7


A década mais comprida
da vida de uma mulher
vai dos vinte e nove aos trinta...
e lá nem chega sequer!
ALOÍSIO DE ANDRADE
*
Curou-lhe o mal, sem demora,
o bom doutor quando disse:
— Nada de grave, senhora,
são sintomas de velhice!
ANTÔNIO TORTATO*
Esta velha do ar absorto,
que quer ser adolescente,
debutou quando o Mar Morto
ainda estava doente...
APARÍCIO FERNANDES
*
Hoje em dia, muita gente
diz entender de pintura.
Mas compra quadros somente
pelo valor da moldura...
ARCHIMIMO LAPAGESSE
*
A mulher, além de terna,
faz tudo com perfeição,
que até nos passando a perna
tem a nossa gratidão…
BELMIRO BRAGA
*
Eles não querem, na certa,
que eu coma, de modo algum,
O esculápio escreve: dieta!
E o padre manda: jejum!
CALIXTO DE MAGALHAES
*
Pão-duro a mais não poder,
o meu compadre Zulmiro,
em vez de dar, quis vender
o seu último suspiro...
CARLOS GUIMARÃES
*
Deu a tantos seu carinho
que no enlace, em confusão,
deu o sim para o padrinho
e o beijo no sacristão!
CAROLINA RAMOS
*
Quando te vejo passar,
vou pensando, sem querer,
que não posso nem provar
o que a terra vai comer...
COLBERT RANGEL COELHO
*
Durante o racionamento,
nada de luz... nem de vela…
Na confusão do momento,
beijei a sogra... e não "ela"!
FRANCISCO MADUREIRA
*
— "Eu sou rica", ela falava.
"Tenho rendas, investi."
— De tal modo se sentava,
que por pouco não as vi…
ILDEFONSO DE PAULA
*
És mesmo uma coisa rara,
que a estética repele,
pois que tu tens nessa cara
muito mais rugas que pele...
J. DIAS DE MORAES
*
A rescender mil perfumes,
o transviado, em trejeitos,
é um tipo da maus costumes,
mas de costumes bem feitos...
JOÃO RANGEL COELHO
*
Eu fui ao encontro tão crente,
por seu tom de voz tão terno...
E voltei de lá descrente:
vá ser feia assim no inferno!
JOAQUIM MACEDO FERNANDES
*
Morte, delicadamente,
faço-lhe um pedido justo:
não venha, assim de repente,
eu posso morrer de susto...
JOAQUIM PADILHA VAZ
*
Quando o Godofredo sai,
gorducho como ninguém,
não se sabe se ele vai,
não se sabe se ele vem...
JORGE ROCHA
*
Jurou jamais ver bebida
e agora o pobre coitado,
durante o resto da vida,
só bebe de olho fechado.
JOSÉ GOMES PIMENTA
*
Veja você se me explica
o que é justiça. — Pois não!
É aquilo que crucifica
um justo e solta um ladrão...
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA
*
Toda a desgraça do Alfredo,
que se encontra na prisão,
foi descobrir um segredo:
— o do cofre do patrão!
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA*
Desculpe-me quem puder,
mas a História se enganou:
depois que fez a mulher,
nunca mais Deus descansou!...
MAGDALENA LÉA*
No nosso andar compassado,
dávamos voltas na praça.
Casalzinho enamorado:
eu sem jeito e tu sem graça...
MARIO PEIXOTO
*
É muito linda e singela
a tua blusa bordada.
Mas, para mim, minha bela,
ficas mais bela... sem nada!
NELSON FERREIRA DA LUZ
*
De tanto matar desejos,
hoje beijas bem melhor.
Pena é que agora os teus beijos
são beijos dados de cor...
PAULO EMÍLIO PINTO
*
Desce à campa a sogra má,
e explica um verme sereno:
— Hoje, irmãos, jantar não há,
porque este prato é veneno!
P. DE PETRUS

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972.

Dan Brown (Inferno)


Inferno é o sexto livro de ficção do escritor dos Estados Unidos Dan Brown e o quarto a ser protagonizado pelo simbologista Robert Langdon. Segundo divulgado, o livro foi lançado em 14 de maio de 2013 pela Doubleday, em 20 de maio, no Brasil e em 10 de Julho em Portugal pela Bertrand Editora.

Em 15 de janeiro de 2013, Dan Brown divulgou o título do livro em seu site, após avisar os seus leitores para ajudar a "revelar" um mosaico digital com mensagens no Twitter e no Facebook.

Conforme divulgado pela editora, o livro é ambientado na Itália e em um dos centros da história mais duradoura e misterioso: a obra literária Inferno de Dante Alighieri.

No Langdon de volta para o coração Inferno... seguimos Robert da Europa, onde ele se entrelaça em um mistério com ramificações globais... ligado aos detalhes sinistros e verdadeiramente fascinantes da obra magistral de Dante. ”

O professor Robert Langdon, da Universidade Harvard, desperta em uma cama de hospital com um ferimento na cabeça e sem conseguir se lembrar do que aconteceu nos últimos dias. Ao olhar pela janela, descobre que está em Florença, na Itália. Logo, os médicos Sienna Brooks e Marconi entram em seu quarto e o explicam que ele sofreu uma concussão ao levar um tiro de raspão e deu entrada no pronto-socorro do hospital por conta própria.

Repentinamente, Vayentha, uma assassina profissional que havia perseguido Robert anteriormente, invade seu quarto, atira no médico e tenta chegar até ele, que é agarrado por Sienna e retirado do hospital às pressas.

Eles fogem para o apartamento da médica, onde Robert descobre que Sienna é uma superdotada. Mais tarde, ele encontra um cilindro em um bolso secreto de seu paletó (tão secreto que nem ele mesmo sabia que existia). O cilindro contém o símbolo de risco biológico. Robert decide então ligar para o consulado estadunidense, onde descobre que estão a sua procura. Instruído por Sienna, ele dá o endereço do prédio à frente, para se certificar de que realmente seu consulado enviará funcionários da representação diplomática. Contudo, é Vayentha quem chega ao local, levando Robert e Sienna a acreditarem que o governo estadunidense quer Robert morto.

Robert decide então abrir o cilindro e encontra um cilindro ósseo medieval dotado de um projetor laser que projeta uma versão levemente modificada do Mapa do Inferno de Sandro Botticelli. Na parte de baixo da ilustração, há uma inscrição onde pode-se ler: verità è visibile soolo attraverso gli occhi della morte (a verdade só pode ser vislumbrada através dos olhos da morte). Repentinamente, soldados de preto invadem o prédio de Sienna, que consegue escapar por pouco com Robert. Ambos seguem em direção à Cidade Velha, acreditando que o cilindro está relacionado a Dante Alighieri. Contudo, eles descobrem que a polícia de Florença e os carabinieri fecharam as pontes e procuram por eles. Eles correm para uma obra perto dos Jardins Boboli onde Robert acende o projetor novamente e percebe que dez letras, que formam a palavra "CATROVACER", foram adicionas a cada uma das dez camadas do Inferno, e que as camadas foram rearranjadas. Ao organizá-las de modo a ficarem como na pintura original, Robert chega às palavras "CERCA TROVA" - as mesmas palavras na pintura A Batalha de Marciano de Vasari, localizado no Palazzo Vecchio. Robert e Sienna escapam dos soldados e vão à Cidade Velha usando o Corredor de Vasari.

Robert observa A Batalha de Marciano tentando encontrar respostas. Uma curadora o encontra e o leva para a diretora do museu, Marta Alvarez. Marta havia encontrado Robert e Ignazio Busoni, diretor da Santa Maria del Fiore na noite anterior e lhes mostrado a máscara mortuária de Dante, mas Robert, devido à sua amnésia, não lembrava de nada. Fingindo se lembrar do encontro, Robert pede para ser levado novamente ao local, mas a máscara desapareceu. Checando as câmeras de segurança, eles vêem Robert e
Ignazio tomando a máscara. Os seguranças do museu dominam Robert enquanto Marta liga para Ignazio, mas é informada por sua secretária de que ele sofreu um infarto. A secretária pede para falar com Robert e reproduz um recado que Ignazio deixou antes de morrer: "Os portões estão abertos para você, mas não demore. Paraíso 25."

Robert e Sienna fogem dos guardas, mas os soldados chegam. Eles escapam pelo sótão da Apoteose de Cosimo I. Vayentha encurrala os dois, mas Sienna e empurra para sua morte metros abaixo. Roberto conecta "Paraíso 25" com o Batistério de São João, onde ele e Sienna encontram a máscara mortuária de Dante com uma charada deixada por seu atual dono, um geneticista bilionário chamado Bertrand Zobrist. Um homem chamado Jonathan Ferris, que esconde um ferimento em seu peito, aparece e afirma ser da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele ajuda os dois a fugirem dos soldados. A charada é uma estrofe do Inferno de Dante, que os leva até Veneza, onde Jonathan sofre uma parada cardíaca e Robert é capturado por um grupo de soldados. Sienna consegue escapar .

Robert é levado a Elizabeth Sinskey, diretora-geral da OMS, e finalmente descobre o que está acontecendo. Bertrand, que cometeu suicídio uma semana antes, era um cientista transumanista radical que havia desenvolvido uma praga biológica que mataria boa parte da população da Terra para resolver o problema da superpopulação. Elizabeth violou o cofre particular de Bertrand, encontrou o cilindro e convocou Robert até Florença para ver se ele conseguia entender as pistas. Durante o encontro, Elizabeth costurou um bolso secreto em seu paletó e colocou o cilindro lá dentro para deixá-lo seguro. Contudo, Robert parou de se comunicar com Elizabeth depois de seu encontro com Marta e Ignazio, e a OMS passou a desconfiar dele. Os soldados que perseguiam Robert eram na verdade uma equipe de emergência da OMS e nunca tiveram a intenção de matá-lo.

Quanto a Bertrand, este havia pago uma organização secreta (chamada simplesmente de "Consórcio") para que o deixassem isolado e incomunicável por algum tempo enquanto desenvolvia a praga, e também para que protegessem o cilindro até uma certa data. Ele também deixou um vídeo perturbador com eles, que deveria ser enviado a toda a imprensa mundial no dia seguinte aos eventos do livro. No vídeo, uma espécie de balão pode ser visto flutuando em uma caverna subaquática, com uma substância escura dentro.

Quando Elizabeth roubou o cilindro, o Consórcio se viu forçado a proteger o que quer que ele apontasse. Eles sequestraram Robert após o encontro com Marta e Ignazio, mas ele ainda não havia desvendado todas as charadas, então, eles o injetaram uma dose de benzodiazepina para forçar a amnésia. Criaram também um falso ferimento na cabeça e uma encenação para forçar Robert a encontrar mais respostas. Sienna, Vayentha, Jonathan e até o suposto atendente do consulado estadunidense eram todos atores trabalhando para o Consórcio, sendo que Jonathan era também o médico supostamente assassinado no início da história. O ferimento em seu peito foi resultado de uma explosão mal calculada para simular o tiro que supostamente recebeu de Vayentha. O líder do Consórcio, chamado simplesmente de "Diretor", ao descobrir o plano bioterrorista, se vê forçado a se submeter à OMS para deter a praga.

Descobre-se que a substância contida no balão do vídeo é uma praga prestes a ser liberada, e Robert descobre que o local onde a praga está fica abaixo da Santa Sofia em Istambul, onde Enrico Dandolo está enterrado. Sienna, que estava desaparecida, também segue para lá, onde é perseguida por Robert, o Consórcio e os agentes da OMS, que descobrem que ela na verdade trabalhava por Bertrand, sua paixão secreta. Robert e Christoph Brüder, chefe da equipe da OMS que também é ligada ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, descem até a Cisterna da Basílica, e descobrem que Sienna já está lá. O balão que continha a praga, feito de uma material hidrossolúvel, já havia se desfeito uma semana antes, e todos descobrem que, na verdade, a praga já estava espalhada pelo mundo todo, já que o local é muito visitado por turistas de vários países. Para fugir, Sienna cria um tumulto ao gritar que o local está pegando fogo.

Sienna revela que nunca quis liberar a praga, mas sim detê-la. Contudo, ela não confiava na OMS, pois achava que, uma vez que as amostras de vírus fossem levadas por eles, elas acabariam caindo nas mãos de governos interessados em criar armas de destruição em massa. O Diretor tenta fugir do domínio da OMS com a ajuda de policiais disfarçados, mas acaba preso pela polícia de verdade mais tarde. Sienna decide ajudar a OMS a lidar com a situação em troca de anistia.

A praga criada por Bertrand, na verdade, é um vírus vetor que infectará todas as pessoas da Terra, mas terá efeito em apenas 1/3 delas, selecionadas aleatoriamente, causando uma modificação no DNA que provoca a infertilidade. Desta forma, a humanidade é forçada a entrar em uma nova era, pois qualquer tentativa de reverter o vírus pode provocar efeitos genéticos colaterais perigosos.

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 189


Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: O Rei dos Gatos)


Numa tarde de Inverno, a mulher do coveiro estava sentada junto da lareira, com Old Tom, o seu grande gato preto, ao lado, à espera, semi-adormecidos, de que o dono da casa regressasse. Por fim, entrou precipitadamente e bradou:

- Quem é Tommy Tildrum?

Estava tão nervoso, que a mulher e o gato o olharam fixamente, empenhados em averiguar o que tinha.

- Que te aconteceu? - inquiriu ela. - Porque estás tão interessado nisso?

- Devias ter visto o que me sucedeu! Preparava-me para abrir a sepultura do velho Fordyce e creio que adormeci. O caso é que acordei ao ouvir o miar de um gato.

- Miau - fez Old Tom.

- Sim, exatamente desse modo! Espreitei por cima da sepultura, e que te parece que vi?

- Como queres que o saiba? - replicou a esposa.

- Imagina nove gatos pretos, todos iguais ao nosso Old Tom, com uma mancha branca no peito. E que achas que transportavam? Uma pequena urna, com uma mortalha de veludo preto por cima, e, sobre ela, uma coroa de ouro, enquanto, a cada passo que davam, gritavam em coro: "Miau!"

– Miau! - ecoou Old Tom.

- Sim, exatamente desse modo! - afirmou o coveiro. - A medida que se aproximavam, pude vê-los melhor, pois os olhos emitiam um clarão verde e fixavam-se em mim. Oito deles transportavam a urna, precedidos pelo maior, que caminhava com uma dignidade impressionante... Repara como o nosso Old Tom me olha! Até parece que entende tudo o que digo.

- Continua, continua - urgiu a mulher. - Não te preocupes com ele.

- Como dizia, avançavam com lentidão e aprumo, continuando a gritar "Miau!" a cada passo que davam.

- Miau! - tornou a repetir Old Tom.

- Sim, exatamente nesse tom, até que chegaram ao local, colocaram-se em volta da sepultura de Fordyce, mesmo diante de mim, e ficaram a olhar-me em silêncio... Mas repara no Old Tom, que não afasta a vista de mim, como eles!

- Continua, continua - estimulou a mulher. - Não te preocupes com ele.

- Onde é que ia?... Ah, já sei! Olhavam-me todos fixamente. Por fim, o que vinha à frente adiantou-se um passo e, em voz débil, juro-te que isto é verdade, disse-me: "Comunica a Tom Tildrum que Tim Toldrum morreu." Foi por isso que te perguntei se sabias quem era Tom Tildrum. De contrário, como lhe posso comunicar que Tim Toldrum morreu?

- Repara no Old Tom! - exclamou a mulher.

Ficaram ambos embasbacados, quando o gato arqueou o corpo, eriçou o pelo e bradou:

- O velho Tim morreu? Então, passei a ser o rei dos gatos!

E escapou-se velozmente pela chaminé, para não tornar a ser visto.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.